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A COMISSÃO CONSTITUCIONAL: HISTÓRIA, MEMÓRIA E ACTIVIDADE JURÍDICA Um trabalho de análise jurisprudencial André Ventura FDUNL N.º 5 – 2003

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A COMISSÃO CONSTITUCIONAL: HISTÓRIA, MEMÓRIA E ACTIVIDADE JURÍDICA

Um trabalho de análise jurisprudencial

André Ventura

FDUNL N.º 5 – 2003

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A COMISSÃO CONSTITUCIONAL: HISTÓRIA, MEMÓRIA E ACTIVIDADE JURÍDICA

Um trabalho de análise jurisprudencial1

André Ventura

1 O Autor agradece reconhecidamente à Prof. Maria Lúcia Amaral o estímulo e o incentivo dados à produção deste trabalho, bem como as preciosas indicações e sugestões, em termos de jurisprudência e de bibliografia, gentilmente concedidas. Os nossos agradecimentos dirigem-se igualmente ao Prof. António Hespanha, ao Prof. Armando Marques Guedes, ao Prof. Poiares Maduro e ao Prof. Nuno Piçarra pela imediata predisposição para a leitura deste trabalho e respectivo comentário.

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INDÍCE

INTRODUÇÃO 3 A COMISSÃO CONST. NOS TRILHOS DA HISTÓRIA CONSTITUCIONAL PORTUGUESA 5 ANÁLISE DE JURISPRUDÊNCIA SELECCIONADA 15

I) O conceito de “norma jurídica” 17 II) Os direitos fundamentais na jurisprudência da Comissão

- o princípio da igualdade em especial 21 III) A inconstitucionalidade por omissão em análise 29 IV) Autonomia regional no Estado unitário português 34 V) A Constituição económica 39 CONSODERAÇÕES FINAIS 46 BIBLIOGRAFIA 48

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1) INTRODUÇÃO Dispensável se torna, em termos longos e elaborados, qualquer justificação da temática que agora nos propomos abordar. A pertinência do assunto, as novas possibilidades que agora se oferecem ao estudo do mesmo e sobretudo a parca quantidade – senão a inexistência – de um estudo desta índole são razões mais do que suficientes para a empresa que agora iniciamos. Do que dizemos se percebe, de antemão, as nossas principais motivações: contribuir para algum desbravamento de uma área simultaneamente fascinante e revestida de uma importância extrema, sobretudo na fase actual da nossa justiça constitucional. Mas, se tal é possível de aferir, a nossa superior motivação provém exactamente de um alerta, misto de desafio e da amargura, emitido pela Prof. Maria Lúcia Amaral, e que valerá a pena transcrever: Escassos meses depois do início de funções do Tribunal Constitucional português, um jovem Autor escrevia: “A criação pela lei constitucional 1/82 de um Tribunal Constitucional é – não me parece exagero afirmá-lo – um dos acontecimentos mais importantes no direito constitucional português ao longo da sua história. Tal como aconteceu nos países onde se criou um órgão deste tipo, muitos estudos irão, seguramente, incidir sobre o Tribunal Constitucional”. Infelizmente, a previsão mostra-se hoje incumprida. Mais de dez anos passados, contam-se ainda pelos dedos da mão os estudos que, em Portugal, vieram efectivamente “incidir sobre o Tribunal Constitucional” ou que de algum modo registaram a sua evolução.2 Será talvez mais neste último domínio (o registo da sua evolução) que se situa este trabalho, não em torno de polémicas teóricas destinadas a apurar até que ponto se pode considerar a Comissão Constitucional (CC) como antecessora do Tribunal Constitucional (TC), mas da efectiva importância da produção jurídica daquela na actuação deste último e, em geral, no aprofundamento da justiça constitucional em Portugal e no seu efectivo enraizamento na cultura jurídica portuguesa. É por isso que o consideramos [a este estudo, entenda-se] como um trabalho jurisprudencial. Em todo o caso, vamos precisar o que queremos com isto dizer: ao empreendermos esta análise jurisprudencial, temos já como pressuposta a aceitação da CC como antecessora do TC. O cerne do problema, e o fim do nosso esforço, será precisamente o de explicitar em que áreas esta influência foi mais evidente, ou de que forma a CC marcou decisivamente toda nossa jurisdição constitucional. Eis o nosso objectivo primordial, que confere a este trabalho não só a qualidade de um trabalho histórico, mas de um verdadeiro instrumento de compreensão e análise do fenómeno jurídico: mais precisamente, o fenómeno da justiça constitucional em Portugal. Cremos ser útil deixar desde já uma nota. Dois vectores acompanharão, a par e passo, a feitura deste estudo: o vector substancial, atinente ao conteúdo «strictu 2 Cfr. Amaral, M. Lúcia, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra Editora (1998), p. 354. Em todo o caso, justiça seja feita, o rol bibliográfico sobre esta matéria é hoje mais vasto e mais completo, dado o maior interesse que a justiça constitucional vem granjeando. Porém, a nosso ver, muito aquém, ainda, daquilo que seria desejável numa cultura constitucional madura e bem sedimentada.

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sensu» dos acórdãos e pareceres da comissão constitucional, em áreas criteriosamente seleccionadas; o vector metodológico, onde se procurarão detectar influências, nesta órbita, do trabalho da CC no actual funcionamento [na actividade jurisprudencial, obviamente] do TC. De resto, poderemos considerar aqui a existência de uma estrutura tripartida, intencionalmente simples para um trabalho que se pretende acima de tudo claro e sistemático, tendo em conta a sua pretensa utilidade junto de outros leitores. Uma primeira parte desenhará o contexto histórico sob o qual surgiu e se desenvolveu a CC, os seus pressupostos paradigmáticos e a sua compreensão à luz da jovem Constituição de 1976, bem como a complexidade – senão contrariedade3 – dos motivos que determinaram a sua efectiva implementação no período revolucionário. Procurar-se-á também aqui, sem entrar (como já o deixámos claro) em polémicas teóricas, traçar um quadro geral das características da Comissão, bem como a relação mantida com os restantes órgãos constitucionais, no seio do tecido orgânico português pós- revolucionário. Após prestados estes elementos básicos, entraremos no cerne do nosso estudo, que compreenderá a análise, e a respectiva reflexão em seu redor, de material jurisprudencial (quer da CC quer, excepcionalmente e para fins claramente identificados, do TC) criteriosamente escolhido. Serão aqui definidas, como seria de prever, as nossas principais teses no que respeita ao objecto desta empresa, sempre de acordo e em consonância com os dois vectores já acima assinalados. Finalmente, procuraremos elaborar ainda algumas conclusões gerais, como corolário das teses expostas: no fundo tratar-se-á de sintetizar, realçando assim os pontos essencialíssimos, as teses já anteriormente expostas. Importará ainda um esclarecimento: como ficou implícito pelo que dissemos, e ao contrário de outros trabalhos já feitos, não dispomos aqui de um considerável acervo de material bibliográfico auxiliar. Pelo contrário, resta-nos algumas monografias e compilações jurisprudenciais, na maior parte dos casos só colateralmente referentes ao nosso objecto, que nos obrigará à construção de edifícios mentais repletos de pressupostos e de considerações pessoais. Por isso, bem se poderá dizer que, neste caso, será exclusivamente minha a responsabilidade pelo que aqui fica dito, sendo que me comprometo desde já a assumir uma postura de honestidade intelectual no que respeita ao recurso a outros autores e respectivas obras. De resto, só me cabe manifestar mais uma vez o deleite profundo nesta possibilidade de conjugar num único projecto duas realidades que me dizem tanto: a história, verdadeira mestra da vida, e o domínio público, onde cada um de nós tem uma palavra a dizer.

3 Apresentaremos, no devido tempo, sobre esta “contrariedade”, uma tese que, não se podendo considerar original, se encontra desamparada no seio da doutrina jusconstitucionalista portuguesa

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2) A COMISSÃO CONSTITUCIONAL NOS TRILHOS DA HISTÓRIA CONSTITUCIONAL PORTUGUESA Já sabemos que a fiscalização da constitucionalidade dos actos jurídico – públicos acompanha a própria história constitucional portuguesa. Isto porque a noção de fiscalização não propõe necessariamente um processo jurídico: as primeiras formas de exercício de fiscalização da constitucionalidade foram, aliás, exercidas em moldes políticos, geralmente por assembleias ou Cortes. Podemos dizer, sem receio de exagero, que foi esta a primeira forma de assegurar a Constituição como Lei Fundamental da Nação, não obstante a ideia de normatividade constitucional e de supralegalidade [formal e material] só muitos anos depois se virem a impor como uma realidade efectiva. Assim, dispunha o art. 102º, -II da Constituição de 1822, segundo o qual cabia às Cortes ”promover a observância da Constituição e das leis, e em geral o bem da Nação portuguesa”, o que é depois confirmado pelo art. 18º- IV. Da mesma forma, o art. 15º, § 7º confere às Cortes o dever de ”velar na guarda da Constituição e promover o bem geral da Nação”, também isto confirmado pelo art. 139º. Finalmente, o art. 137º II da Constituição de 1838 atribui como competência às Cortes “velar na observância da Constituição e das Leis, e promover o bem geral da Nação”. Portanto, não poderemos, com coerência, reconduzir a existência da fiscalização da constitucionalidade dos actos jurídico – públicos á Constituição de 1911, quando é implantado um sistema, aliás único na Europa, de fiscalização jurídica. Será ainda de acrescentar que a ideia, patente em todas as normas transcritas, de permanente associação entre garantia da constituição e “bem geral da Nação”. Surge aqui insíta a finalidade da constituição em ser uma espécie de “escudo” dos cidadãos, uma protecção dos valores essenciais da Nação e sobretudo, o que é comum às constituições liberais do século XIX, o horizonte político da nação, onde se definia o seu programa e se estipulavam os objectivos fundamentais da colectividade. Afirmamo-lo conhecendo embora a precariedade das garantias efectivas oferecidas pelas constituições liberais e a sua condição, quase sempre comprovada, de vãs “folhas de papel” nas palavras de FERDINAND LASSALE. Em todo o caso, e como já dissemos, é a constituição de 1911 que instaura no ordenamento jurídico, pela primeira vez, um sistema de fiscalização jurídica da constitucionalidade das leis. Fá-lo por influência directa da Constituição Brasileira de 1891, por sua vez reflexo da doutrina norte-americana proposta pelo Chief Justice MARSHALL da Judicial Review of Law. Fá-lo, é bom não esquecer, pela existência inequívoca de uma série de especificidades no mundo jurídico – político português que reclamavam a urgência de formas mais eficazes de garantia constitucional. A razão para tal imperativo pode porém, concentrar-se numa única expressão: a debilidade do parlamentarismo português e o seu funcionamento deficiente. Parece ser esta a orientação perfilhada pela Prof. MARIA LÚCIA AMARAL que, citando MARCELO REBELO DE SOUSA afirma ser “natural que um país marcado por uma forte tradição de apropriação de funções legislativas pelo executivo, onde a lei surgiu sempre “mais do que noutros estados ocidentais, [como] um instrumento de direcção (…) pelo Estado de zonas que pertencem à sociedade civil [tendendo] a confundir-se,

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em larga medida, com a decisão administrativa, tenha sentido a imperiosa necessidade de submeter o legislador ao cumprimento de parâmetros jurídicos superiores”4. E vários autores5 sentiram de facto esta necessidade, quando a restante Europa discutia ainda o próprio conceito de Direito e o sistema de fontes, com o progressivo descrédito do primado da lei na nova complexidade da realidade social, moral e jurídica do século XIX. A comprová-lo estava a célebre, de alguma forma paradigmática, polémica entre KELSEN e C. SHMITT acerca dos guardiões da constituição e ao domínio (jurídico ou político) em que tal protecção deveria ser efectuado. É porém evidente que tal necessidade se reconduz mais uma vez à referida debilidade do nosso parlamentarismo e muito especialmente a uma figura muito abundante e muito recorrente na praxis política portuguesa do século XIX: o Bill de Indemnidade, espécie de absolvição conferida à legislação produzida pelo governo em momentos de anormalidade constitucional, onde o parlamento não se encontrava em exercício de funções. No fundo, este sistema permitia, por um lado, que o governo legislasse no âmbito de uma série de matérias que normalmente lhe estariam vedadas constitucionalmente; por outro lado, possibilitava a produção de legislação avulsa e abundante sem qualquer tipo de controlo visto que a única entidade competente para o fazer no constitucionalismo monárquico - as cortes – estavam inactivas. A verdade é que a implementação desta figura – o controlo judicial difuso da constitucionalidade da lei – era inédita na Europa no início do Século XX. E igual verdade é que, não obstante a sua parca aplicação pratica, esta figura marcou todo o constitucionalismo português, percorrendo toda a sua história até aos dias de hoje. Porém, é imperativo que o digamos, esta introdução “precoce” de uma figura jurídica para o qual o Portugal do início do século XX não estava ainda preparado provocou, a nosso ver, danos irreparáveis (e ainda hoje sentidos) na cultura jurídica portuguesa. Numa altura em que a Europa discutia ainda o sistema de fontes, sem estarem completos os trabalhos de KELSEN referentes à necessidade de uma jurisdição constitucional, em que não estava ainda superado o dogma liberal da absoluta separação de poderes a da antinomia entre Acto- Fonte e Acto- Execução, este sistema não poderia deixar de provocar, ao contrário daquilo que pretendia, um verdadeiro atraso na nossa cultura jurídica e na nossa prática jurisprudencial. De facto, este só poderia funcionar numa cultura jurídica e jurisprudencial maduras, em que os juízes estivessem vocacionados para um papel activo – e criativo- na aplicação do direito à vida quotidiana, jamais despoletando quaisquer efeitos positivos num contexto que os órgãos aplicadores do direito estivessem habituados a um simples raciocínio silogístico e subsuntivo, desprovido de complexos mecanismos de crítica racional. Não produziria, em suma, quaisquer efeitos positivos numa ordem jurídica que os juizes estivessem habituados a manejar os códigos e a descobrir neles todas – sem excepção – as hipóteses da vida.. Independentemente de todas estas considerações a verdade é que o instituto foi permanecendo, nas sucessivas revisões ou emendas à constituição de 1911 e transferindo-se para a Constituição de 1933, no art. 122º. Estava portanto, ao menos na letra do texto constitucional, consagrado um verdadeiro modelo de fiscalização judicial difusa, apesar de nesta última quase esvaziada de conteúdo visto que os mesmos tribunais competentes para exercer esse controlo “deixaram, contudo, de conhecer da inconstitucionalidade orgânica e formal dos diplomas promulgados – 4 Cfr mais uma vez Amaral, M. Lúcia, citando Marcelo Rebelo de Sousa, A Responsabilidade..., cit., pp. 362 - 363 5 Entre eles, talvez de forma mais destacada, encontramos Silva Ferrão

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cujo reconhecimento ficou reservado à Assembleia Nacional-.”6 A perspectiva poderia bem ser outra, como propõe CARDOSO DA COSTA:

«Deve mesmo sublinhar-se que, à luz deste preceito, o instituto da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade passou até, sob certo aspecto – aliás fundamental – a ser reconhecido em termos mais amplos e complexos do que na Constituição de 1911: é que, se nesta última o exercício da correspondente faculdade ficara dependente da iniciativa de impugnação da lei pelos interessados, doravante cabia na própria competência oficiosa do juiz.»7

Também ele reconhecerá, porém, o carácter agressivo das limitações que são

impostas ao instituto. A CRP viria a receber este modelo, conferindo-lhe porém a sua vitalidade original e anulando as limitações, quase absolutas, impostas pela constituição de 1933. No entanto, em função do nosso percurso histórico, “a ordem inaugurada pela CRP não podia revelar quaisquer inovações que, sob o ponto de vista dogmático, merecessem uma atenção muito especial” pelo que “a mudança, se a havia, não parecia ser de molde a impressionar”.8 A precocidade das nossas soluções jurídicas e a nossa própria tradição deixaram-nos imunes e impávidos perante uma mudança que, sem dúvida, era profunda e radical. A fiscalização difusa, fortemente imbricada no nosso património constitucional ( o nosso acervo imenso de Law in the Books nem sempre coincidente com o Law in Action) nem sempre foi imune a críticas, sendo de registar algumas intervenções no sentido da instauração de um modelo de fiscalização concentrada. Neste sentido se pronuncia JOSÉ DE MAGALHÃES GODINHO, que propõe a criação de um Tribunal de Garantias Constitucionais, e também o I Congresso Nacional dos Advogados que chega mesmo a sugerir a criação de um tribunal constitucional9. Ora, pelo que foi dito, uma conclusão se impõe como óbvia, também ela apontada por JORGE MIRANDA e que subscrevemos por completo:

«Depois da Revolução de 1974 dá-se um duplo confronto-entre a fiscalização jurisdicional e a fiscalização política e entre a fiscalização difusa e a fiscalização concentrada. Dele haveria de emergir o sistema de garantia da constitucionalidade do texto inicial da Constituição»10.

A Revolução extingue o regime corporativo11 e mergulha Portugal num inevitável clima de instabilidade revolucionária. Não nos cabe aqui desenvolver quaisquer considerações de índole político – ideológica acerca dos objectivos que moveram e determinaram o triunfo do Movimento das Forças Armadas, mas apenas, 6 Cfr. Miranda, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, Coimbra Editora, Coimbra (2001), p. 125 7 Cardoso da Costa, José Manuel, “O Tribunal Constitucional Português: a sua origem histórica” in Portugal: o sistema político e constitucional (1974- 87) Cap. V, obra colectiva, Coimbra, 2000, p. 915 8 Amaral, M. Lúcia, idem, […], cit., pp. 358 - 359 9 Ambas as intervenções enunciadas se encontram citadas em Miranda, Jorge, Manual…, VI, cit., p. 129 10 Id., Ibid., p. 129 11 Sobre este fenómeno ver a excelente perspectiva, altamente crítica e científica, apresentada por Silva Leal, António da, “Os Grupos Sociais e as Organizações na Constituição de 1976 – A Ruptura com o Corporativismo” in Estudos sobre a Constituição, III, Livraria Petrony, Lisboa (1979), pp. 195 e segs.

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no estrito campo do direito, as consequências visíveis em matéria de fiscalização da constitucionalidade. E elas parecem, de facto, bastante significativas. Desde logo, poderemos afirmar que, até à entrada em vigor do texto constitucional (Abril de 1976) reencontrámos a tradição iniciada em 1911 do modelo pleno do Judicial Review, “por força da ressalva feita pelo art. 1º da Lei nº 3/74, de 14 de Maio, continuando confiada genericamente aos tribunais a fiscalização da constitucionalidade das leis, agora sem a limitação decorrente da reserva da fiscalização da constitucionalidade formal e orgânica das normas…”12. JORGE MIRANDA reforça esta mesma posição, sublinhando que a vigência efectiva deste sistema se justifica não só em virtude das disposições legislativas vigentes (as referidas leis revolucionárias) mas também face aos próprios princípios e objectivos do Movimento de Forças Armadas13, o que nos parece bastante razoável. O modelo não irá, como seria de prever num ambiente repleto de resquícios revolucionários extremistas, sobreviver isoladamente, aparecendo cada vez mais evidentes certos mecanismos de fiscalização política. Se tivermos ainda em conta a predominância das correntes socialistas e marxistas no imaginário político português pós – revolucionário, tal facto ganha clara justificação: seria intolerável que o “caminho para o socialismo” fosse permanentemente obstaculizado por uma qualquer classe e, portanto, também pelos magistrados, decerto tidos como conservadores, espécie de apoiantes do Ancien Regime se quisermos construir uma analogia, de todo realista, com o cenário de 1789. Era aliás nesta linha que iria a 1º Plataforma de Acordo Constitucional de 13 de Abril de 1975 que, sendo em alguns aspectos inovadora, patenteava já uma forte tendência centralizadora em matéria de fiscalização da constitucionalidade. É o que nos diz JORGE MIRANDA, salientando a previsão da fiscalização preventiva e de uma fiscalização de inconstitucionalidade por omissão e, por outro lado, a excessiva concentração de atribuições e competências do Conselho da Revolução que poderia, no caso da inconstitucionalidade por omissão, emitir ele próprio as medidas que considerasse necessárias e julgar das questões de inconstitucionalidade de quaisquer actos.14 Certo, porém, seria o funcionamento, junto do Conselho da Revolução, de uma Comissão Constitucional, cuja referência surge pela primeira vez no Segundo Pacto, caracterizada como “órgão de consulta obrigatória pelo Conselho da Revolução no domínio da fiscalização da inconstitucionalidade por acção ou omissão no plano abstracto e com funções de tribunal de recurso em última instância em questões de inconstitucionalidade”15, sendo esta a solução consagrada no primeiro texto constitucional pós – 25 de Abril.16 A composição da respectiva Comissão (CC) apresentava, antes de mais, grande pluralismo, procurando, para a realização de uma função que se afigurava fulcral para toda a colectividade, recolher um número abrangente de mundividências e visões do mundo. Em todo o caso, o que se pretendeu foi um órgão de competência técnico – jurídica capaz de fazer valer essa descoberta recente do continente Europeu: a normatividade da constituição e a ideia da supralegalidade, especialmente, após a 2º 12 Cfr. Ribeiro Mendes, Armindo, “O Conselho da Revolução e a Comissão Constitucional na fiscalização da constitucionalidade das leis (1976 – 1983) ”, in Portugal: o sistema político e constitucional (1974- 87) , obra colectiva, Coimbra, 2000, p. 927 13 Miranda, Jorge, “A Revolução de 25 de Abril e o Direito Constitucional”, separata do Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, (1975), pp. 99 - 100 14 Miranda, Jorge, Manual…, VI, cit., p. 131 15 Cfr. mais uma vez Ribeiro Mendes, Armindo, “O Conselho…”, cit., p. 928 16 Cfr. arts. 283º e segs. Constituição de 1976, in Miranda, Jorge, As Constituições Portuguesas, Liv. Petrony, Lisboa, (1997), pp. 530 - 531

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guerra mundial, a supralegalidade material e a respectiva aplicabilidade directa dos direitos fundamentais aos casos da vida. Pelo que fica dito, bem podemos concluir que CC representa o confluir de duas tradições diversas: a tradição francesa, e o seu Conselho Constitucional, (tradição com forte expressão em alguns países, nomeadamente na Jugoslávia e nos tribunais de raiz austríaca) e tradição portuguesa (herdada do universo cultural americano) desde a Constituição de 1911, com o Judicial Review. Mais: ela representa a louvável habilidade do legislador em tornear, numa matéria de indiscutível relevo para o futuro político do país, a supremacia do poder militar (de que o Conselho da Revolução, enquanto órgão constitucional, era afinal a expressão) sobre o poder civil. Este elemento assume especial significado se tivermos em conta que o CR seguiu na quase totalidade das vezes que teve de se pronunciar, os pareceres da CC, com um impacto que na fase seguinte deste estudo perceberemos mais claramente. Só não o fez, para sermos mais precisos, em 13 casos, onde deve ser registado a própria divisão da CC e o pendor militar das matérias em causa, não obstante estarem por vezes em causa importantes questões políticas.17 Finalmente, faltava apenas fazer a síntese entre a capacidade decisória da CC no que respeita à fiscalização concreta a incidental (como verdadeiro tribunal de recurso) e a capacidade (exclusiva e, a nosso ver, não meramente formal, como alguns autores indicam) do CR em declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, no que respeita à fiscalização abstracta18. E aqui sim, subscrevemos completamente, neste ponto específico, o entusiasmo de alguns autores que falam na “solução milagrosa do legislador constituinte”, ela própria contida na proposta feita, no essencial, pelo Partido Popular Democrático e que estaria na génese do art. 281º da versão primitiva da constituição, que no seu nº2 dispõe: “O Conselho da Revolução poderá declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de uma norma se a Comissão Constitucional a tiver julgado inconstitucional em três casos concretos, ou num só, se se tratar de inconstitucionalidade orgânica ou formal, sem ofensa dos casos julgados”. Devendo ser sublinhado o pode (e portanto não deve necessariamente), a verdade é que este viria a ser também a génese do actual art. 281º, nº3 da CRP e representou, não tenhamos dúvidas, um acréscimo da capacidade de intervenção da CC no universo jurídico – e político – português. Gostaríamos agora de abordar uma outra questão, também ela amplamente discutida na – já por si escassa – doutrina que sobre esta temática se tem debruçado. Afinal, qual era a natureza específica da CC? Terá sido verdadeiramente um antecedente do TC, ou as suas primícias, como considera CARDOSO DA COSTA? Ou uma instituição sui generis definida pelo poder constituinte português? Ou ambas as coisas? A questão tem de ser detalhadamente analisada. E, para a ela procedermos, estabeleceremos uma antinomia cujos pólos não se encontram habitualmente em confronto: fazemos a distinção entre a realidade de facto e a realidade política, como duas ópticas essenciais para compreender integralmente este fenómeno da CC no universo jurídico português. Quanto ao primeiro domínio, ele remete-nos para aquilo que a CC realmente foi, o papel que efectivamente desempenhou e os efeitos que realmente veio a ter no futuro, nomeadamente na criação de um Tribunal Constitucional, pela revisão 17 Cfr. Ribeiro Mendes, Armindo, “O Conselho…”, cit., pp. 934- 935; Cfr. também Cardoso da Costa, José M., “O Tribunal…”, cit., p. 920 18 Cfr. art. 146º, alínea c da Constituição de 1976, in Miranda, Jorge, As constituições…, cit., p. 478

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constitucional de 1982. No segundo domínio, ocupar-nos-emos da realidade política que esteve subjacente à criação da própria CC, procurando compreender se ela representou a “solução milagrosa” dentro do “compromisso possível” com o poder militar e com as forças políticas de tendência marxista (então fortemente actuantes), ou, pelo contrário, a habilidade destes últimos para contornar uma realidade que se vinha então afirmando cada vez mais na Europa continental: a institucionalização de uma autêntica jurisdição constitucional autónoma. No que respeita ao plano dos factos, haverá antes de mais a mencionar alguns aspectos referentes à composição e ao funcionamento da CC. Trata-se verdadeiramente de uma realidade de expediente técnico, onde deverá ser realçada, sobretudo, a semelhança entre os tribunais constitucionais e a CC em Portugal, bem como a proximidade dos processos de recrutamento dos seus membros – salvo, evidentemente, o lugar de presidente, ocupado por um membro do CR, de acordo com o art. 146º, alínea a da Constituição de 1976. Neste domínio, as semelhanças são de facto visíveis o que talvez seja compreensível, se tivermos em conta de que, não obstante o que pretendesse fazer, o legislador tomou como órgãos comparativos, necessariamente, os restantes tribunais constitucionais já em funcionamento na Europa.19 Também em termos de competências, principalmente em virtude da sua competência decisória no que respeita à fiscalização concreta e incidental, funcionando como um verdadeiro tribunal de recurso, provocando mesmo alguns conflitos com as restantes jurisdições20. No que se refere ao aspecto estrutural da própria Comissão, à sua essência enquanto órgão, simultaneamente consultivo e decisório, a doutrina não manifesta também grande discordância quanto às suas especificidades, pelo que as palavras de JORGE MIRANDA serão aqui transcritas como amplamente consensuais. Afirma o prestigiado constitucionalista, referindo-se à existência histórica da CC: «Não se tratava, porém, de um tribunal constitucional. Em primeiro lugar, porque desempenhava funções auxiliares de outro órgão, aliás de grande importância, como se sabe. Em segundo lugar, porque, mesmo enquanto tribunal com concentração de competência em matéria de inconstitucionalidade, não estava investido de um poder exclusivo (ou prevalecente), nem de um poder genérico de decidir sobre a inconstitucionalidade das normas jurídicas: coexistia a par dos tribunais e só conhecia da inconstitucionalidade de certas normas.»21 De qualquer maneira, essa mesma doutrina é consensual em afirmar que, não se tratando ainda “duma justiça constitucional autónoma, em sentido próprio», podiam «ser já, de algum modo, as suas primícias”22. ARMINDO RIBEIRO MENDES afirma ainda de forma mais categórica que “a Comissão Constitucional foi um órgão de natureza inovadora no ordenamento jurídico português, prenunciando a criação de um Tribunal Constitucional, tal como existe hoje nos países ibéricos, na Itália e na República Federal da Alemanha”23

19 Eram os casos dos Tribunais constitucionais da República Federal Alemã (1949), Itália (1947, apesar de só em 1957 efectivamente instituído), e Espanha (1978) 20 Ver sobre este ponto, Ribeiro Mendes, Armindo, “O Conselho…”, cit., Ponto V – “A Comissão Constitucional e a Fiscalização Concreta”, pp. 937 e segs. 21 Miranda, Jorge, Manual…,VI, cit., p. 136 22 Cardoso da Costa, José M., “O Tribunal…”, cit., p. 920 23 Ribeiro Mendes, Armindo, “O Conselho…”, cit., p. 936

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Cremos, porém, que tais considerações, entendidas em absoluto, ou sem um necessário esclarecimento posterior, são de refutar. E apercebemo-nos disso mesmo se nos debruçarmos sobre essa realidade política que atrás referimos e que subjaze ao surgimento da própria CC. Temos então duas hipóteses, como aliás ficou já dito, e que são a expressão de duas correntes distintas em confronto no Portugal revolucionário: os que queriam institucionalizar a democracia e os que pugnavam pela institucionalização da revolução. Portanto, ou perspectivamos a CC como o corolário da habilidade política e negocial das “forças democráticas”, que procuravam atenuar ao máximo o poder militar sobre a sociedade civil, ainda mais em áreas (como a jurídica) que lhes eram de certa forma estranhas; ou, pelo contrário, entendemo-la como expressão de uma intenção, silenciosa e maquiavélica, das “forças revolucionárias” que mais não era do que a tentativa de condenar ao insucesso, ou pelo menos à timidez, a justiça constitucional. A primeira opção, em nítida vantagem no seio da doutrina portuguesa, tem o mérito de ser mais facilmente reconhecida, mais simplesmente apreendida e, claro está, muito mais querida por parte daqueles que vieram a ser os “vencedores” no que respeita à evolução política portuguesa nos anos 70 e 80, tornando-se, a nosso ver, muito mais um discurso legitimador do que fruto de uma análise ponderada e distante. Já a segunda perspectiva nos parece muito mais realista, o que não deixa indiferente essa mesma realidade política sobre a qual assenta a CC e a sua origem histórica. Afirmamo-lo essencialmente por duas ordens de razões. No que respeita à implantação de um sistema concentrado, que a CC inevitavelmente representa, é indiscutível que se promove uma objectiva aproximação das restantes ordens jurídicas europeias. Mas terá o modelo sido pensado contendo já em si o gérmen de uma futura jurisdição constitucional autónoma e mesmo de um Tribunal Constitucional? Ou terá sido outro o objectivo desta concentração da competência decisória , quando suscitada a questão da inconstitucionalidade em casos concretos, para a CC? Se é certo que tal concentração possibilita uma maior uniformidade dos julgados bem como uma acrescida segurança e certeza jurídicas, não deixa de o ser igualmente o facto de, concentrada tal competência num único órgão, inevitavelmente próximo do CR, permitisse a este último um conhecimento mais detalhado da actividade dos tribunais, evitando quaisquer obstáculos que a magistratura (considerada conservadora, apoiante do regime deposto) pudesse levantar ao cumprimento integral dos seus objectivos. E o sentimento era de facto justificável, se tivermos em conta que, numa ordem jurídica assente no primado da constituição e na sua efectiva normatividade, a fiscalização da constitucionalidade das leis afigurava-se como um instrumento perigoso e potente. Isto mesmo reconhece CARDOSO DA COSTA, de forma bastante explícita: «Estabelecia-se assim um princípio de concentração de competência nessa matéria – em vista, decerto, de assegurar a uniformidade jurisprudencial e doutrinária, mas em razão também, muito provavelmente, de acautelar que a realização legislativa dos objectivos programáticos da Constituição não viesse a ficar bloqueada por um qualquer activismo judiciário…»24 Só em vista destes fins se justificaria que do CR saísse obrigatoriamente o presidente da CC (inclusivamente com voto de qualidade) e o parecer desta fosse

24 Mais uma vez Cardoso da Costa, José M., “O Tribunal…”, cit., p. 920

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meramente consultivo25 para aquele, não obstante a evolução histórica ter demonstrado o quase total acatamento destes pareceres. Este ponto é ainda particularmente notório se tivermos em conta um facto que passa muitas vezes despercebido: a diferença [apesar de tudo fulcral, pelo menos do ponto de vista teórico] entre o art. 281º, nº2 na versão primitiva da constituição e o nº3 do mesmo artigo na CRP. Dispõe nestes termos o art. 281º, nº2 referido:

«o Conselho da Revolução poderá declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de uma norma se a Comissão Constitucional a tiver julgado inconstitucional em três casos concretos, ou num só, se se tratar de inconstitucionalidade orgânica ou formal, sem ofensa dos casos julgados»

Por sua vez, o actual art. 281º, nº3 da CRP: «O Tribunal Constitucional aprecia e declara ainda, com força obrigatória

geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos»

A conclusão torna-se inevitável: enquanto que neste último é a razão jurídica

que determina a invalidade dos actos contrários às normas ou aos princípios constitucionais, podendo fazê-lo de forma “directa”, na versão primitiva da constituição esta razão, por si só, não poderia determinar o mesmo, sendo imperioso analisar se os pressupostos e os argumentos dessa mesma razão jurídica eram conformes aos objectivos programáticos de uma sociedade socialista e sem classes, como dispunha o art. 1º deste mesmo diploma. E estes elementos só poderiam ser averiguados pela entidade que era, ela própria, a expressão máxima do poder revolucionário e militar: o CR.

Mas consideramos ser necessário avançar um pouco mais para explicar de forma completa esta realidade política da CC que nos propusemos estudar. Vamos aqui ao encontro da segunda razão na qual sustentamos a nossa tese. Esta apresentará, não temos dúvidas, alguma originalidade, denotando uma clara marca pessoal.

Como vimos, a ideia de um Tribunal Constitucional, ou pelo menos de uma entidade autónoma que conferisse à justiça constitucional meios adjectivos para actuar, não era, em 1976, uma ideia propriamente recente. Referimo-nos já, em momento oportuno, ao livro Direitos, Liberdades e Garantias, de MAGALHÃES GODINHO e à referência feita pelo I Congresso Nacional dos Advogados a um tribunal desse género. E, como vimos, esta mesma ideia encontra raízes no projecto Kelseniano da Verfassungsgerichtsbarkeit e ecoará em vários momentos históricos da Europa, especialmente no pós – guerra., já com importantes reformas introduzidas.26

Em todo o caso, a verdade é que a ideia de uma entidade autónoma (funcionando como uma jurisdição à parte) e independente (portanto, em sede de fiscalização estritamente jurídica) se impunha cada vez mais como uma necessidade do Estado de Direito democrático27. E as várias experiências europeias demonstravam-no.

25 Cfr. arts. 283º, nº2 alínea a; 284º, alínea a e 284º, alínea b da Constituição de 1976. Ver Miranda, Jorge, As Constituições, cit., pp. 530 - 531 26 Amaral, M. Lúcia, Responsabilidade…, cit., p.329 27 Gostaríamos de introduzir aqui uma nota: concordamos inteiramente com o Prof. Gomes Canotilho quando refuta a tese segundo a qual a existência de um tribunal constitucional representa o coroamento do Estado de Direito. De facto, muitos países não têm nem nunca tiveram justiça constitucional e nem

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Portugal não representava, neste domínio, e apesar das particularidades em que se exerceu entre nós o pouvoir constitutant , uma excepção: assim, o programa do Centro Democrático e Social (CDS) chegava mesmo a prever um Tribunal Constitucional, ao mesmo tempo que o Partido Socialista propunha a criação de um Conselho de Defesa das Liberdades e da Garantia Constitucional28. A necessidade “institucional”, ao menos essa, estava irremediavelmente instalada. E todas as forças políticas presentes tinham a consciência desse facto, desde a ala revolucionária à bancada mais conservadora do hemiciclo.

O próprio Partido Comunista Português – cujas propostas constitucionais não viriam nunca a prever a extinção do Conselho da Revolução - sentia a necessidade (ou pelo menos tomava esse como um desejo majoritário entre os cidadãos e as instituições) de ser estruturada uma entidade superior de controlo constitucional.29

Podemos portanto falar, sem medo de exagerarmos, de um vasto consenso político em torno desta matéria. E era esta a realidade política de que há pouco falámos, uma realidade que encobria, porém, as mais diversas realidades: realidade política e realidade de facto podem bem encontrar aqui o seu grande confronto, como ópticas diferentes – e perfeitamente possíveis – de perspectivar uma realidade única da Comissão Constitucional. O ponto onde queremos chegar é o seguinte: a CC seria, para algumas forças políticas com assento parlamentar, a forma possível de evitar a instauração de uma jurisdição constitucional verdadeiramente eficaz, nomeadamente adoptando a solução de criar um Tribunal Constitucional, já então existente, como vimos, noutros Estados europeus.

De facto, instituído um sistema tal qual existiu entre 1976 e 1982 em Portugal, representava a satisfação de um desejo de vários sectores da população (quadrantes políticos, mas também sociais, culturais e institucionais), bem como a construção de um ordenamento jurídico em conformidade com a dogmática jurídica em crescente expansão na Europa sobretudo após a 2º Guerra Mundial. Mas, de forma plenamente consciente, o sistema era mitigado na sua própria hibridez e, como vimos, pela subsistência de um órgão político (revolucionário) que cominava em si as funções de verdadeiro garante da constituição30.

Ou seja, o sistema de fiscalização da constitucionalidade, nos moldes em que foi instaurado entre 1976 e 1982, obedeceu, em nosso entender, a dois propósitos bastante evidentes: por um lado, representava uma garantia das forças políticas dominantes (então constituídas por um largo e importante sector de tendência marxista) contra o mítico – mas bastante temido – “governo dos juízes”, herdado quase em linha recta dos revolucionários franceses; por outro, o sistema constituía, para alguns, a certeza de que as normas programáticas da constituição e o programa

por isso deixaram de ser estados de direito- é o caso, por exemplo, da Suécia e da Holanda (Cfr. Canotilho, Jurisdição Constitucional e Intranquilidade Discursiva, in Perspectivas Constitucionais, Vol. I, p. 877). O que dizemos aqui é que cada vez mais os estados europeus, sobretudo continentais, sentiram essa necessidade. 28 Cfr. mais uma vez Miranda, Jorge, Manual…,VI, cit., p. 130 29 Miranda, Jorge, Manual…, VI, cit., p. 137. Falava-se, nesse projecto, de um «órgão superior de controlo da constitucionalidade», como pode ser lido no art. 282º, nº4 do Projecto de Revisão Constitucional de 1982 apresentado pelo Partido Comunista Português, não sendo de forma alguma esclarecido se essa entidade deverá integrar a hierarquia dos órgãos do estado, fazendo assim parte do seu aparelho, ou, pelo contrário, deverá ser configurada como um verdadeiro tribunal, verdadeiramente independente face ao poder político 30 Assim se referia o art. 146º da Constituição de 1976 às competências exercidas pelo Conselho da Revolução «na qualidade de garante do cumprimento da Constituição». Cfr. Miranda, Jorge, As Constituições…, cit., p. 478

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político revolucionário não ficaria por cumprir, nem seria bloqueado, pela acção da magistratura, certamente tida por conservadora. Era dada, pois, a última palavra a um órgão revolucionário para impedir que, em vez da institucionalização da revolução, algumas forças pretendessem institucionalizar a democracia, tal como entendida segundo os canônes ocidentais.

Portanto o que queremos em suma afirmar é que a Comissão Constitucional foi fruto de uma construção intelectual inspirada numa ideologia fortemente marxista, no “tipo político” específico que caracterizou a esquerda portuguesa pós – revolucionária, indiscutivelmente desconfiada de qualquer forma de justiça constitucional exterior ao aparelho de estado e independentemente do poder político31. Talvez aqui, ao contrário do que postulava ERNST NOLTE, a política tenha sido verdadeiramente um assunto de cálculo de interesses32: daí a contraposição insistente que desde o início fizemos entre a realidade de facto e a realidade política.

Em todo o caso, temos de o dizer antes de avançar, a importância da actividade da Comissão Constitucional revelar-se-ia, provavelmente contra as intenções de muitos, fundamental, quer para a consolidação e desenvolvimento de uma séria e eficaz justiça constitucional em Portugal, quer para o próprio processo de democratização do país, onde a jurisprudência atinente à matéria de direitos fundamentais e uma concepção aberta do texto constitucional têm um lugar de relevo. Esperamos demonstrar isto mesmo que aqui adiantamos na próxima parte do nosso estudo.

31 A esquerda portuguesa revolucionária reconhecia-se predominantemente- como ainda o faz alguma esquerda no tempo presente- na doutrina leninista (não atendendo aqui, por não o considerar de facto relevante, a algumas linhas de actuação de cariz fortemente estalinista) segundo o qual o Estado não reconhece nem admite qualquer forma de controlo exterior ao seu poder e actuação. Mais, o Estado (na doutrina leninista) não se modela sequer no esquema organizatório- institucional da separação de poderes, antes pelo contrário, considera que a concentração do poder e a sua unicidade sólida são essenciais para se poder conduzir uma acção revolucionária eficaz. Portanto, uma jurisdição constitucional autónoma (decerto vista por estes como um potencial bloqueio ao processo revolucionário, como vimos) jamais seria, nestes termos, aceite. Ver, a propósito deste ponto, Freitas do Amaral, História das Ideias Políticas (Apontamentos), II, Edição do autor, Lisboa (1998), p. 287 32 Citado por Nogueira Pinto, Jaime, O Fim do Estado novo e as origens do 25 de Abril, DIFEL-82, 2º edição, Lisboa (1995), p. 7

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3) ANÁLISE DE JURISPRUDÊNCIA SELECCIONADA Finda então a primeira parte do nosso estudo, entramos naquilo que consideramos ser a parte substancial do nosso plano organizatório. Analisaremos neste capítulo a actividade desenvolvida pela Comissão Constitucional no contexto em que era requerida a sua participação, quer em forma de acórdãos (quando, no processo de fiscalização concreta, era chamada a funcionar como tribunal decisório de última instância) quer em forma de pareceres (quando, a respeito da questão da inconstitucionalidade, estes eram requeridos pelo Conselho da Revolução). Abandonamos, como já tivemos oportunidade de referir, o barco seguro da doutrina para entrar no campo mais incerto e mais disperso da actividade jurisdicional, onde os trabalhos da doutrina só raramente nos auxiliam. Em todo o caso, aqui se cumprirá, assim o cremos, o nosso mais importante propósito: contribuir para um conhecimento mais sólido da importância da intervenção da CC quer no âmbito da jurisprudência que futuramente viria a ser desenvolvida pelo Tribunal Constitucional, quer no âmbito do próprio contexto em que tal actividade foi exercida, procurando ao mesmo tempo desvendar quais os resquícios deixados no nosso percurso colectivo por essa mesma actividade. Uma palavra, porém, gostaríamos de acrescentar antes de entrarmos nesse domínio. Torna-se até imperativo fazê-lo, tendo que ver com a natureza da CC (no essencial, já explorada no capítulo anterior) e com o tipo de decisões tomadas pela mesma entidade, o que poderá ser importante para uma espécie de pré – compreensão das características que essa actividade revestiu e dos traços metodológicos, formais e substanciais (aqui, com menos relevo) mais salientes. A finalidade das decisões judiciais pode ser diversa: ou de tipo cassatório, anulando a decisão já proferida e sobre a qual incidiu algum recurso (próximo do modelo que KELSEN teorizara para o seu Tribunal Constitucional) ou de substituição, substituindo o tribunal de instância superior a decisão proferida pela instância inferior. Ora, no que respeita à CC estamos perante um «tipo intermédio»33, que, a nosso ver, muito reflecte da própria natureza da instituição. Quer isto dizer que não cabia à comissão nem simplesmente anular (cassar, dispondo para isso do chamado poder cassatório) nem todavia substituir, de forma unilateral, as decisões proferidas por outros tribunais. A sua actividade assume contornos diferentes, como resulta duma análise do seu próprio Estatuto34, onde “determina que, no caso de provimento ainda que apenas parcial, os autos baixarão ao tribunal que lhos remeteu, a fim de que este, consoante for o caso, reforme a decisão ou a mande reformar, em conformidade com o julgamento proferido sobre a questão da inconstitucionalidade”35. Resta saber que conclusão, ou que conclusões, poderemos extrapolar desta averiguação. Que consequência tem realmente a adopção deste “modelo” de decisões numa altura em que o sistema de substituição é regra na lei processual civil? Porque terá o legislador optado por outro sistema no que respeita à jurisdição constitucional? Acompanhamos aqui DURÃO BARROSO, cujas palavras subscrevemos, e que consideramos da maior utilidade dar aqui a conhecer: 33 Cfr. Durão Barroso, “O Recurso para a Comissão Constitucional, Conceito e Estrutura”, in Estudos sobre a Constituição, vol. III,Liv. Petrony, Lisboa (1979), p. 721 34 Este tem frequentemente o nome de Estatuto da Comissão Constitucional ou Diploma Orgânico da Comissão Constitucional, sendo regulado no Decreto-Lei nº 503- F/76 35 Citado em Durão Barroso, José, “O Recurso...”, cit., p. 721

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«E por que preferiu o legislador o sistema intermédio ao de substituição, o qual, como vimos, constitui regra na lei processual civil? Só podemos encontrar como explicação a necessidade de não transformar a Comissão Constitucional em órgão superior da hierarquia judicial ou, exprimindo-nos de outro modo, garantir ainda alguma independência entre a ordem judicial e o sistema constitucional de fiscalização da constitucionalidade. A aceitação pura e simples do tipo de substituição representaria, assim, uma “ingerência” da Comissão Constitucional na ordem judicial. Estamos em crer que a adopção do tipo de substituição constituiria igualmente um elemento fundamental para a caracterização da Comissão Constitucional como um verdadeiro e próprio Tribunal Constitucional. Ora, nas actuais condições, a Comissão não o é ainda.»36. Aceitamos, no essencial, este ponto37 , considerando, de facto, que a adopção deste “tipo decisório” não é ingénuo nem tão pouco irrelevante. Não querendo reconduzir-nos de novo à temática tratada na primeira parte deste estudo, achamos por bem avançar.

Diante da imensa compilação jurisprudencial da CC, fruto da sua actividade entre 1976-1982, impõe-se, necessariamente, proceder a uma selecção temática, não só de forma a sintetizar e simplificar o trabalho, mas também para realçar os domínios em que esta produção se revestiu de maior importância e relevo. Neste sentido, destacámos alguns sectores que consideramos fulcrais, e que constituirão portanto a vértebra dos desenvolvimentos que aqui terão lugar.

Consideramos então particularmente importante a jurisprudência da Comissão nos seguintes domínios:

1) O conceito de “norma”, de forma a delimitar, o mais possível, o

objecto de incidência da própria jurisdição constitucional. Como, 36 Cfr. Durão Barroso, “O Recurso...”, cit., p. 722 37 Não queremos, no entanto, omitir uma crítica que nos parece pertinente fazer. Nos termos no seu discurso, Durão Barroso parece crer, e transmite-o implicitamente, que a existência de um verdadeiro tribunal constitucional depende e implica necessariamente a adopção de um modelo de substituição, entendido, aqui, como a substituição, pelo tribunal constitucional, das decisões proferidas pelos restantes tribunais (quer civis, quer administrativos e fiscais). Desta forma, a decisão do tribunal não se cingiria ao juízo de constitucionalidade, mas, com base neste, à própria remodelação, em conformidade, da decisão já proferida. A nosso ver, a perspectiva não tem necessariamente de ser esta, podendo pesar aqui o facto de, à altura em que o autor escreve este texto (1979) não ter tido ainda lugar a revisão constitucional de 1982, que viria a implantar, em substituição da Comissão Constitucional, um verdadeiro tribunal constitucional. De facto, como nota Cardoso da Costa, a competência do Tribunal Constitucional português é, sobretudo cassatória (destinada a anular- “cassar” - as decisões dos restantes tribunais e não a substituí-las, como prevê o modelo de substituição) não se prevendo, em caso algum, que possa emitir ele próprio alguma sentença –na resolução de um caso concreto- em nome de qualquer outro tribunal. Assim, proclama ainda o art. 80º, nº2 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) que «se o Tribunal Constitucional der provimento ao recurso, ainda que só parcialmente, os autos baixam ao tribunal de onde provieram, a fim de que este, consoante for o caso, reforme a decisão ou a mande reformar em conformidade com a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade». O modelo é, então, no essencial, uma fiel reprodução do já consagrado no Estatuto da Comissão Constitucional, já aqui referenciado. Parece-nos, pois, que este sistema, para além de perfeitamente concebível no que respeita ao funcionamento de um tribunal constitucional, tem o mérito de evitar conflitos entre este último e os restantes tribunais, mormente o Supremo Tribunal de Justiça, sem deixar de consagrar a superioridade normativa da constituição e a superioridade hierárquica do TC. Um modelo de tipo substituição conduziria a inevitáveis conflitos entre estes dois tribunais ( e, provavelmente, também com o Supremo Tribunal Administrativo) o que produziria duradouras sequelas no ordenamento jurídico nacional.

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veremos, este ponto ainda hoje suscita controvérsias entre alguma doutrina, que apresenta algumas reservas ao conceito funcional de norma adoptado pela CC e seguido pelo TC

2) Desenvolvimento de uma jurisprudência aberta, mas também racional e metódica, no domínio específico do Princípio da Igualdade e em geral dos direitos fundamentais

3) A inconstitucionalidade por omissão. Jurisprudência em torno de uma figura inovadora no direito português

4) Autonomia Regional e interesse específico das regiões autónomas. A coexistência com o princípio do Estado unitário

5) Interpretação e aplicação integradoras da constituição económica, à luz do corpo constitucional global e dos princípios estruturantes do ordenamento jurídico, bem como dos modelos de desenvolvimento vigentes, suas necessidades e características peculiares

I

Em todos estes pontos, procuraremos demonstrar, se tal se afigurar possível, como recuperou o Tribunal os trabalhos e as orientações – conceptuais e metodológicas – da Comissão, por vezes invocando-a directamente como sua antecessora. Claro que não nos cingiremos, de forma estrita, a estes tópicos, desbravando, sempre que o mesmo se mostre útil, outros lugares de actuação da Comissão cujo impacto seja significativo e mais enriqueça este estudo. Não é portanto fácil, nem talvez possível, delimitar um ponto específico (ou uma área temática, se quisermos) em que a jurisprudência da Comissão se apresente como a mais importante. Porém, se opinião pessoal nos fosse por qualquer acaso solicitada não hesitaríamos em responder: a precisão feita (ou talvez até a construção) em torno do conceito de “norma” jurídica, esta o objecto do sistema de fiscalização da constitucionalidade38, representou um contributo decisivo para o desenvolvimento e eficácia quer do sistema de fiscalização instaurado, quer da própria noção de “constituição viva”39, verdadeira Law in Action, isto é, como um bloco de juridicidade verdadeiramente superior e actuante sobre todo o ordenamento jurídico e não apenas Law in the books. Relativamente a esta matéria – conceito de “norma”- impõe-se analisar, pela sua dimensão paradigmática, o Parecer nº 3/7840 da Comissão Constitucional. No âmbito processual já apresentado, o Presidente da República requereu ao Conselho da Revolução a apreciação da inconstitucionalidade dos arts. 1º a 3º do Decreto-lei nº 147-D/75, de 21 de Março, e arts. 1º e 2º do Decreto-Lei nº 42/76, de 20 de Janeiro.

Os Decretos-Lei nº 147-D/75 e 42/76 revestem, como a própria Comissão o reconhece, natureza claramente administrativa, com um teor punitivo referente a alguns membros das Forças Armadas portuguesas.

38 Assim dispunha o art. 280º da Constituição de 1976. Cfr. Miranda, Jorge, As Constituições…, cit., p. 528. De resto, ainda hoje a CRP limita o objecto de fiscalização da constitucionalidade a “normas” (art. 277º da CRP), sendo actualmente, porém, pacífico, o sentido e alcance de tal conceito. 39 Constituição viva no sentido de verificar que “os tribunais souberam, por fim, assumir, com proficiência, a sua função de guardas e aplicadores da Constituição, agora quotidianamente invocada na vida jurídica”. Cfr. Miranda, Jorge, Manual…,VI, cit., p. 191 40 Ver em Pareceres da Comissão Constitucional, III, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa (1978), pp. 220 e segs.

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Dispõe o art. 1º do primeiro decreto que “são expulsos das Forças Armadas os autores do golpe contra revolucionário de 11 de Março que se furtaram ou se venham a furtar às responsabilidades fugindo do país”. O segundo artigo do mesmo decreto apresenta depois as consequências –essencialmente administrativas- do conteúdo normativo do primeiro artigo. De forma semelhante, o art. 1º do segundo decreto estatui a expulsão “das fileiras das forças armadas dos implicados no golpe contra- revolucionário de 2 de Novembro que se furtaram ou venham a furtar às suas responsabilidades ou que deixem de se apresentar quando para tal sejam convocados. Tal como no decreto anterior os seguintes artigos referem-se no essencial às consequências de tal disposição. É a própria Comissão que identifica o problema nos seguintes termos: «...o de saber se tal competência- de fiscalização- do Conselho da Revolução se mantém para normas (...) que não revistam carácter geral e abstracto, características que os dois diplomas em apreço não possuem por regularem especialmente acontecimentos concretos (os golpes de 11 de Março e 25 de Novembro), não sendo, pois, de carácter abstracto e por terem destinatários pessoas certas e determinadas ou determináveis (os autores de tais golpes), e até, num deles, perfeitamente identificados pelos seus nomes e postos, não sendo, assim, de carácter geral. Trata-se de saber, pois, se as chamadas leis-medida ou leis-providência são aqui abrangidas e em que medida» A primeira abordagem é feita no sentido de acentuar que tais “normas” se contém num decreto-lei (os decretos-lei referidos) e, como tal, se integram no art. 282º da Constituição de 1976 que exige que se trate, em sede de fiscalização concreta, de “norma constante de lei, decreto-lei, decreto regulamentar, decreto regional ou diploma equiparável”. Mudará alguma coisa o facto de se tratar de normas materialmente administrativas? Entende a Comissão que não se verificará qualquer distorção estrutural nem ser afectada a designação de “norma” aplicada a tais disposições, na medida em que não deixam de ser, apenas por isso, «obrigatórias, imperativas para todos (tribunais, autoridades administrativas) que as hajam de aplicar ou executar e não apenas para os sujeitos abrangidos nas suas previsões». E reforça esta posição afirmando que «são ainda normas jurídicas, com a sua força obrigatória geral, dada a competência da entidade de que dimanam e a forma que revestem».

Poderemos, então, delimitar teoricamente o conceito de norma apresentado pela CC. Parecem surgir três critérios na apreciação feita e que configuram bem o conceito, essencialmente funcional, de norma jurídica na óptica da Comissão. Por um lado o critério da forma: se determinada disposição se integrar num dos diplomas enunciados pela Lei Fundamental toma parte nele, é intrínseco à “norma”. Por outro lado, o critério dos efeitos: tem carácter normativo o que vincula necessariamente as autoridades a agir em conformidade com ele, independentemente dos sujeitos que a norma visa atingir. E finalmente o critério da competência: é norma jurídica o que, tendo a forma prevista, dimane da autoridade com competência para tal- para a produção normativa.

A Comissão acrescenta ainda que a letra da lei não deixa qualquer margem para interpretações fortemente restritivas na medida em que o próprio art. 281º [da Constituição de 1976] fala no seu nº1 em “quaisquer normas”, parecendo até abrir a possibilidade de interpretações mais amplas.

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Mas a questão não se encerra numa questão meramente formal relativamente ao que poderá preencher o conceito de norma. É até uma questão de evidência jurídica ou de justiça, bastante próximo do alcance da dimensão do Estado constitucional de direito. A consequência de se subtrair este tipo de normas ao controlo constitucional é claramente identificado pela própria comissão, em palavras que consideramos da maior utilidade acompanhar:

«Normas desse tipo podem incorrer nos vicíos de incompetência, por serem

emanadas de órgão constitucionalmente incompetente, ou de forma, por se não ter observado o processo que a constituição prescreve para a sua válida formação, ou mesmo até vícios materiais, mais facilmente até do que as normas jurídicas com os clássicos atributos d abstracção e generalidade.

Tais vícios não poderiam ser expurgados do mundo jurídico uma vez por todas a não ser pela via indicada e subsistiriam em vigor e teriam de ser aplicadas, ao menos pelos órgãos executores do direito que não disponham constitucionalmente do poder de as desaplicar, poder que a constituição só confere aos tribunais. A constituição poderia ser violada impunemente, o que estará em desarmonia com o sistema apertado de fiscalização e garantia criado pela actual constituição.»

São portanto critérios de justiça material que levam a CC a recusar uma

definição doutrinária e apriorística de “norma”, identificada com os critérios tradicionais da generalidade e abstracção41. Esta linha de pensamento [e de actuação jurisprudencial] enfrentava mesmo a oposição de alguma doutrina de relevo na literatura jurídica portuguesa. O caso mais paradigmático é o de JORGE MIRANDA, que surge em defesa da noção tradicional e doutrinária de norma afirmando que “norma implica, na acepção comum da Ciência e da experiência jurídicas, generalidade e abstracção, ou, pelo menos (por causa das leis-medida), generalidade, embora sejam admissíveis diferentes gradações de exigência constitucional”. Portanto, afirma o mesmo autor, “se um acto sob forma de lei tiver conteúdo não normativo, maxime se for um acto administrativo, escapa, logicamente, ao regime de fiscalização”.42

Porém, foi a doutrina vincada pela Comissão Constitucional que prevaleceu e foi conquistando, de forma quase unânime, quer a jurisprudência quer a doutrina portuguesas. A comprová-lo está a jurisprudência feita já pelo Tribunal Constitucional, que apenas sedimentou, acerca desta matéria, a doutrina fixada pela CC. A exemplificá-lo está o Ac. nº 157/88 de 7 de Julho43, visando apreciar a constitucionalidade do Decreto-Lei nº 336/84 de 18 de Outubro, que cria duas

41 Para confirmar de facto estas características na concepção tradicional de norma ver Àlvarez Conde, Enrique, Curso de Derecho Constitucional, I, 2º Edição, Ed. Tecnos, Madrid (1996), pp. 212 e segs.; Afonso Vaz, Manuel, Lei e Reserva de Lei – A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, Teses, Porto (1996), pp. 103 – 107; Blanco de Morais, Carlos, As Leis Reforçadas, Coimbra Editora, (1998), pp. 30 e segs.; Entre nós atente-se em Oliveira Ascensão, José de, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 11º edição, Almedina, Lisboa (2001), pp. 490 e segs.; Rebelo de Sousa, Marcelo e Galvão, Sofia, Introdução ao estudo do Direito, 4º edição, Europa – América, Mem – Martins (1998), pp. 191 e segs.; De forma diferente, mas em todo o caso coincidente veja-se Benda, Maihofer, Vogel, Hesse e Heyde, Manual de Derecho Constitucional, Marcial Pons – Ediciones Juridicas y Sociales S.A., Madrid (1996), pp. 728 – 730. 42 Cfr. Miranda, Jorge, Manual…, VI, cit., p. 156. Ver também, do mesmo autor, Manual…, V, cit., pp. 144 e segs. 43 Incluído em Acórdãos do Tribunal Constitucional, XII, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, pp. 107 e segs.

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empresas de transportes marítimos e aprova os respectivos estatutos. Informado pela CC do processo em curso, o Primeiro-ministro responde que “os dois diplomas em apreço, enquanto integram materialmente um acto administrativo e não um acto normativo- estando assim em causa factos e não normas- são insusceptíveis da fiscalização constitucional que vem requerida”.

Tentativa infrutífera, mas possivelmente consciente, de alterar o sentido dominante da jurisprudência, à qual o TC responde, de forma clara que “cumpre agora apenas, basicamente, recordar e sublinhar, em termos sumários, o que de essencial tem dito o Tribunal Constitucional, na esteira já da Comissão Constitucional”. E, continuando, de acordo com a expressamente referida doutrina da Comissão, o Tribunal estatui:

«O conceito de “norma”, com que tem de operar-se para o efeito em vista,

há-de antes ser, por conseguinte, um conceito funcional, ou seja, funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade instruído pela lei fundamental, e consonante coma sua justificação e sentido.

Ora, o que se tem em vista com esse sistema é o controlo dos actos do poder normativo do Estado (latu sensu), e em especial do poder legislativo; daí que todos os actos desse poder (de um qualquer poder normativo público) devam ficar e fiquem abrangidos por semelhante sistema de fiscalização, independentemente do seu conteúdo.

(…) Eis porque também os preceitos legais de conteúdo individual e concreto, ainda mesmo quando dotados de eficácia consumptiva, devem considerar-se “actos normativos”, ou “normas”, como tal sujeitos aos específicos procedimentos do controlo da constitucionalidade.»

No fundo, aproximamo-nos aqui com o que foi apresentado no Parecer nº

3/78, mesmo em relação àquilo que chamámos critérios de justiça material: não se compreenderia que um acto de um poder público, com carácter claramente normativo (nomeadamente quanto aos seus efeitos vinculativos) escapasse ao controlo da constitucionalidade pelo seu conteúdo mais restrito. O sentido e o objectivo do próprio sistema de fiscalização ficariam gravemente afectados.

Poderia ainda ser defendida a integração, para efeitos de garantia e impugnação, deste tipo de normas no âmbito do recurso contencioso, escapando assim à fiscalização da constitucionalidade. Porém, o próprio TC explicou já a diferença de ambos os processos em causa, bem como as divergências, quanto às condições de admissibilidade, pressupostos e efeitos, entre ambos, com a expressa conclusão de que a admissão de ambas as formas de garantia jurisdicional não representa, pois, qualquer paradoxo.

A doutrina da CC nesta matéria não se ficou pelo referido Parecer nº 3/78. Cremos até que, num cero sentido, o Parecer 13/8244 apresenta traços de maior clareza e desenvolvimento. Começa então a Comissão por avançar que “a nossa Constituição não fornece qualquer apoio para uma definição material de lei, como acto legislativo geral e abstracto” e “a própria distinção entre os conceitos de lei em sentido material e lei em sentido formal se revela em crise na doutrina”. Porém, de forma prudente, e na salvaguarda do super princípio da separação de poderes, a CC considera que, se o sistema de fiscalização da constitucionalidade das “normas” tem em vista o controle dos poderes públicos e da sua actividade, não deixa de ser verdade que se vocaciona

44 Ver em Pareceres ..., cit., XIX, Lisboa (1984), pp. 148 e segs.

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para “apenas um sector dela – dessa actividade -, a saber, o que se traduz na emissão de regras de conduta ou padrões de valoração de comportamentos: deste modo, fora deste controle ficam os puros actos de aplicação dessas regras ou padrões, que são os actos jurisdicionais e os actos administrativos, strictu sensu”.

Ora, como corolário deste raciocínio, afirma a Comissão que “ainda quando o preceito em causa não represente qualquer desvio ao direito anterior, e nada lhe acrescente prima facie, não deixa ele de produzir também um efeito normativo: o de tornar de antemão certo e indiscutível esse direito, no caso concreto, pelo que também aqui vai implicitamente contida uma norma que não há razão para subtrair […] à possibilidade de controlo previsto no art. 281º, nº1 da Constituição de 1976”.

Como se verifica, estas considerações apenas reforçam e clarificam a doutrina pela qual a CC pugna desde o início da sua actividade e que o TC, referindo-se expressamente a ela, considerou manter uma “fundamental validade”.45

Em todo o caso, a verdade é que esta linha de pensamento marcou e influenciou decisivamente a literatura juspublicista portuguesa, sendo hoje claramente maioritária na doutrina a adopção de um conceito “funcional” de norma jurídica, designadamente para efeitos de fiscalização da constitucionalidade46. E é, em nosso entender, evidente que o mérito desta consolidação no direito português em geral pertence quase integralmente à Comissão Constitucional, que assim contribuiu decisivamente para uma jurisdição constitucional mais ampla e, portanto, mais eficaz e coerente com os seus próprios objectivos e propósitos. Fê-lo (em nosso entender bem) numa altura em que o contexto político (ou algumas forças políticas) tendiam a encará-la como uma real força de bloqueio. Fê-lo, e por isso o seu mérito é acrescido, quando a jurisdição constitucional estava ainda embrionária no nosso país, e um estímulo à sua importância e impacto – como representava a adopção desta noção funcional de norma, que assim alargava o âmbito da fiscalização da constitucionalidade – foi, de facto, fundamental.

II

Uns dos domínios essenciais que caracteriza as democracias modernas são os

direitos fundamentais, quer pela nova sensibilidade emergente da segunda guerra mundial e deste período trágico vivido pela humanidade, quer pelo acervo axiológico em que assenta e se baseiam sobretudo as sociedades ocidentais modernas47. Eles

45 Na esteira do raciocínio seguido no Ac. nº 157/88 de 7 de Julho, já estudado. Esta posição não foi, como sabemos, perfilhada por Jorge Miranda, que preferiu salvaguardar as características tradicionais de norma, não obstante a grande maioria da doutrina ter aceite a doutrina da Comissão. 46 Sobre este ponto, são de ter em conta os trabalhos de Gomes Canotilho, J.J., Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5º edição, Almedina, Lisboa (1997), pp. 922 e segs., 978 e 982; Vital Moreira, “O Tribunal Constitucional Português: a fiscalização concreta no quadro de um sistema misto de justiça constitucional” in Revista Sub Judice nº 20/21, (2002), p. 99; Temos ainda por particularmente interessante a «definição positiva e estrutural do acto legislativo» em Blanco Morais, Carlos, As Leis..., cit., pp. 113 e segs.; finalmente, uma perspectiva contrária, mas a nosso ver arcaica e desactualizada, em Galvão Telles, Inocêncio, Introdução ao Estudo do Direito, 11º edição, Coimbra Editora, (1999), pp. 71 - 72 47 Esta realidade é bem apresentada em Cruz Villalon, Pedro, “Formación y evolucion de los derechos fundamentales”, in Revista Española de Derecho Constitucional, 1989, pp. 36 e segs. Ver ainda Miranda, Jorge, Manual…, IV, 3º edição, Coimbra Editora, 2000, pp.12-32; Pinelli, Cesare, “Judicial protection of Human Rights and the limits of a judge – made system” in Perspectivas Constitucionais, cit., III, pp. 263 e segs.; Anabitarte, A. Gallego, Derechos Fundamentales y garantias institucionales: Analisis Doctrinal y Jurisprudencial, Ediciones de la Universidad autonoma de Madrid, (1994), pp. 51 – 60; Peces, Gregorio e Martínez, Barba, Curso de Derechos Fundamentales (Teoria Geral), Cursos

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representam, por isso, um património inalienável da humanidade e uma conquista - assim o cremos – irreversível em (quase) todos os ordenamentos jurídicos, mesmo onde o seu núcleo é amplamente reduzido. A par deles – e em estreita correlação- surge a problemática da igualdade, aturadamente analisada nas várias correntes de pensamento, desde a antiguidade clássica (Aristóteles, por exemplo) até ao moderno pensamento filosófico de Jonh Rawls. Conceitos como igualdade, autonomia privada e direito à diferença (de construção contemporânea) debatem-se hoje com uma forte intensidade, nomeadamente com referência aos ordenamentos jurídicos cuja Lei Fundamental consagrou (como aconteceu na maioria das constituições ocidentais) um princípio geral da igualdade. A sua simples consagração positiva não exclui (pelo contrário, impõe) uma posterior configuração, delimitação e limitação do âmbito de actuação de tão genérico princípio. De facto, a numerosa doutrina sobre a matéria, que não é necessário aqui referir, denota bem as múltiplas confusões e os potenciais perigos que poderiam emergir de um entendimento – e sobretudo de uma aplicação – incorrecta deste princípio da Igualdade, consagrado no art. 13º da Constituição de 1976. Também neste domínio, a acção da CC se revelou crucial, não só na referida delimitação do âmbito e alcance da Igualdade, mas também na sua aplicação prudente e moderada – de resto, em perfeita consonância com o alcance definido – de forma a evitar que se tornasse num real e incontornável bloqueio a toda e qualquer acção governativa. Exemplo paradigmático desta acção é o Parecer nº 2/81, em resposta à solicitação feita ao Conselho da Revolução, pelo Provedor de Justiça, para apreciar e declarar inconstitucional o art. 52º da Lei nº 2135 de 11 de Julho de 1968 (Lei do Serviço Militar). Dispunha a referida norma que “em igualdade de classificação ou de graduação para provimento, por concurso, em cargos do Estado e das demais pessoas colectivas de utilidade pública administrativa ou dos organismos de coordenação económica, têm preferência os indivíduos que hajam cumprido serviço efectivo nas Forças Armadas.” Estabelecia-se depois, no nº2 do mesmo artigo, a ordem de prioridade dentro dos critérios de preferência já apresentados neste nº1. A questão era, pois, como não seria difícil prever, saber se esta preferência dada aos indivíduos que tivessem cumprido serviço nas Forças Armadas entrava, ou não, em colisão com o Princípio da Igualdade, consagrado no art. 13º da CRP. Na apreciação feita pela CC não importará tanto o resultado final a que chegou, mas uma série importante de elementos que deixou no decorrer do seu Parecer. Nele, retomando a doutrina de Marnoco e Sousa, citando-o expressamente, afirma-se: «A democracia muitas vezes não se inspira no verdadeiro conceito da igualdade, considerando-a o nivelamento absoluto de todos os indivíduos, sem atenção alguma pelas qualidade especiais e pelos seus merecimentos. Não é deste modo que se deve entender a igualdade que serve de base ao conceito de democracia moderna. As desigualdades naturais entre os homens não se podem por forma alguma fazer desaparecer, visto se fundarem na diversidade das suas qualidades intelectuais Colección, Madrid (1995), pp. 197 – 199; Queiroz, Cristina M.M, Direitos Fundamentais (Teoria Geral), Coimbra Editora, (2002), pp. 13 - 19

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e morais. O direito até se converte numa injustiça, quando é atribuído em proporções iguais a indivíduos que se encontram em condições diversas. O direito de igualdade unicamente se pode admitir no sentido de uma paridade de direitos numa correspondente paridade de condições.» A Comissão deixa então claro que, no seu entender, apenas se consubstanciará uma violação do Princípio da Igualdade “se a lei estabelecer privilégios em benefício de alguns indivíduos, quando todos estavam previamente titulados de um idêntico direito protegido, isto é, de um direito que a todos permitia, em igualdade de circunstâncias, o acesso a este mesmo privilégio”. Três tópicos, portanto, essenciais, parecem apontar a acção da CC nesta matéria, que bem podem ser esquematizados na síntese feita por JORGE MIRANDA: igualdade jurídica não é igualdade naturalística; igualdade significa, antes de mais, intenção de racionalidade; a igualdade não deve ser isoladamente entendida, mas em inter-relação com o conjunto global dos valores e dos princípios da constituição material.48 Sobretudo, impõe-se prudência na aplicação concreta deste super-principio constitucional no sistema de fiscalização da constitucionalidade. Ora, a Comissão revelou desde sempre uma enorme dose de prudência na sua aplicação: mesmo no tocante ao estudado Parecer nº 2/81, em que foi proposto ao Conselho da Revolução a declaração de inconstitucionalidade da norma em causa, as divisões [e os correspondentes votos de vencido] no seio da própria CC ilustram de forma clara a assimilação desta exigência quando em causa o princípio da igualdade. Neste sentido, um dos “vencidos”, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS,49 argumentava com convicção: «…trata-se de uma regulamentação proporcional ou adequada, no sentido do princípio da igualdade. Adequada, antes de tudo, à ordem constitucional dos valores: a Constituição dá seguramente um altíssimo lugar, dentro daquela ordem, às Forças Armadas (…). (…) E se é assim, como inevitavelmente será, que sentido tem retirar, por inconstitucional, uma preferência baseada no cumprimento efectivo se um serviço ao qual a própria constituição dá lugar de proeminência na sua ordem axiológica, para deixar valer, em vez dela uma preferência formal, subjectiva e incontrolável?» Curioso, ou talvez não, será notar que a própria Comissão parece ter tomado definitivamente este raciocínio apresentado por FIGUEIREDO DIAS para como uma linha de actuação. A comprová-lo está a sua consideração, no Parecer nº 32/8250, de que “o princípio da igualdade não funciona por forma geral e abstracta, mas perante situações ou termos de comparação que devam reputar-se concretamente iguais – e, antes de tudo, à luz de padrões valorativos ou da ordem axiológica constitucional”. Esta última parte da disposição revela, de facto, uma comunicação de grande relevo, por duas ordens de razões: por um lado, o tratamento desigual somente é aceitável com base em “padrões valorativos”, ou por outras palavras, com fundamentos racionais razoáveis ou justificáveis à luz dos valores da colectividade; por outro, a distinção em função de uma qualquer categoria social ou humana é admissível se derivar do próprio húmus axiológico da Constituição. 48 Cfr. Miranda, Jorge, Manual…, VI, cit., pp. 237-238 49 O outro “vencido”, que ilustrou igualmente a sua contestação com argumentos válidos, foi Joaquim da Costa Aroso. Cfr. Pareceres da Comissão Constitucional 50 Ver em Pareceres..., cit., XXI, Lisboa (1984), pp. 63 e segs.

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Mas, ao mesmo tempo, importa explicar que o legislador constituinte, ao descrever no art. 13º, nº2 uma série de categorias segundo as quais qualquer tipo de discriminação (e apenas em função delas próprias) seria inadmissível, não abriu aos poderes públicos a possibilidade de estabelecerem todas e quaisquer discriminações no referente a outras categorias. O nº1 deste mesmo artigo, e o espírito global do mesmo, deixam antever que qualquer tipo de tratamento juridicamente desigual se enquadre em factores de necessidade, seja dotada de fundamentos de justificação e possa esta ser classificada de racional à luz da “razão social” e da ordem axiológico-constitucional. Isto mesmo adiantará a CC no Ac. nº 458, de 25 de Novembro de 198251, nas seguintes palavras: «…se o art. 13º, nº2 da Constituição já enuncia uma série desses elementos- recte, uma série de circunstâncias insusceptíveis de fundamentar, em princípio, uma desigualdade de tratamento jurídico ou de “cláusulas de não discriminação” – não se segue daí que, no mais, o legislador fique inteiramente livre para estabelecer todas e quaisquer distinções: antes lhe estão vedadas as distinções arbitrárias, e por isso discriminatórias, isto é, desprovidas de justificação racional, ou fundamento material bastante, atenta a especificidade da situação e dos efeitos em causa…» O que fica dito não deve transmitir a ideia de que a CC, envolta na ideia de prudência na aplicação deste princípio, esgotou, na prática, os seus efeitos irradiadores no ordenamento jurídico. Nada mais falso! Em plena época de reforma do Direito Civil português, nomeadamente do Direito da Família, em 197752, a Comissão compreendeu a importância do Princípio da Igualdade no referente à posição do homem e da mulher na sociedade portuguesa e, em particular, no ordenamento jurídico português. Em suma, a igualdade, agora consagrada como um dos princípios – valores – fundamentais da ordem axiológico – constitucional tinha de implicar efeitos jurídicos concretos, independentemente das reformas a fazer pelo legislador ordinário. Isto mesmo o demonstra com particular interesse o Ac. n.º 95 de 3 de Maio de 197853, destinado a apreciar a sentença de desaplicação emitida pelo juiz do 2º juízo do Tribunal de Vila Nova de Famalicão. Nela, o mesmo juiz recusa aplicar, por inconstitucional, o art. 1601º, alínea a) do Código Civil, que estabelece a idade de aquisição da capacidade núbil feminina aos 14 anos, em contraste com os 16 anos para o sexo masculino, violando assim o art. 13º, nº2 da Constituição. O fio condutor do acórdão é reflexo, em certa medida, de tudo aquilo que expusemos acerca desta matéria. Retomando a sua tradição de pensamento a Comissão adianta desde logo, como que para evitar equívocos, que “a semelhança das situações da vida nunca pode ser total: o que importa é distinguir quais os elementos de semelhança que têm de registar-se para além dos inevitáveis elementos diferenciadores (...), o princípio da igualdade implica que sejam tratados igualmente os que se encontram em situações iguais e tratados desigualmente os que se

51 Boletim do Ministério da Justiça, nº 325, Abril (1983), pp. 335 e segs. Cit. em Miranda, Jorge, Manual…, cit., IV, p. 227 52 Sobre a reforma, nomeadamente nesta matéria de igualdade ver, entre outros, Carvalho Fernandes, Luís A., Teoria Geral do Direito Civil, 2º edição, Lux, Lisboa (1995), p. 47 e segs.; Menezes Cordeiro, António, Tratado de Direito Civil Português, Almedina, Coimbra (1999), p. 73 e segs. 53 Cfr. Miranda, Jorge, Jurisprudência Constitucional Escolhida, I, Univ. Católica Editora, Lisboa (1996), pp. 27 e segs.

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encontram em situações desiguais, mas de maneira a não serem criadas diferenciações arbitrárias (...) ”. Mas, posto isto, a nosso ver com uma incomparável clareza e razoabilidade, considerou a CC que os elementos [empiricamente verificáveis] psicológicos e biológicos que distinguem o homem e a mulher, não esgotam a problemática em torno da idade mínima para o casamento, pois há toda uma ordem de elementos sociais, económicos e culturais que será necessário ter em conta e que, antecipa-se desde logo, “tendem a não justificar a diferenciação” ou, por outras palavras, a consubstanciar-se como uma incontornável discriminação. Ponderam-se então todo um conjunto largo de elementos que serão decisivos para a conclusão do acórdão: a dimensão social do casamento (onde têm relevo a assunção de responsabilidades mútuas pelos cônjuges bem como a reciprocidade de direitos e deveres conjugais), a elevação progressiva da escolaridade obrigatória, a necessidade, na sociedade moderna, de uma formação profissional sólida e especializada, a realização profissional e a suficiência económica são factores em estreita relação com a fixação de um limite mínimo para a aquisição de capacidade núbil. A Comissão considera então ser a alínea a) do art. 1601º do Cód. Civil inconstitucional, não apenas na medida em que, potenciando um tratamento jurídico desigual de forma injustificada, viola o princípio da igualdade, mas também enquanto consagração de uma norma verdadeiramente discriminatória da condição da mulher na sociedade portuguesa. Norma essa que, segundo a CC, a própria Constituição afasta quando garante às mães a sua realização profissional e a sua participação na vida cívica do país (art. 68º da Constituição de 1976), quando reconhece a todos os cidadãos o direito ao acesso ao ensino, à cultura e ao trabalho (art. 70º) e quando prescreve a igualdade de oportunidades na formação escolar (art. 74º). Repare-se então na habilidade discursiva e argumentativa da Comissão, capaz de, como dissemos, conferindo ao princípio da igualdade um alcance e uma eficácia notáveis, ao mesmo tempo que garante a sua aplicação racional e no quadro do “bloco” constitucional: «A esta luz, a questão da idade para casar não se configura como o exercício de um direito de liberdade como qualquer outro; é, tanto como isso, a questão de uma protecção conferida às pessoas para melhor realizarem os seus interesses de índole cultural, profissional e económica. Assim como, ao impor a frequência obrigatória das escolas até certo grau, o Estado não violenta ninguém, do mesmo modo, fixando determinada idade como núbil, a lei tem em vista defender e promover as condições mais adequadas para que, afinal, com mais liberdade e perspectivas de felicidade, o casamento venha a ser celebrado.» Portanto, definido o sentido da norma como essencialmente uma protecção, a conclusão, como fundamenta a Comissão, não poderia ser outra. «Ponto que se discute sempre que uma lei estabelece tratamento desigual para situações iguais é o de saber qual o preceito a aplicar e qual o preceito a não aplicar por inconstitucional. Várias hipóteses se distinguem, mas é nítido que, sendo a lei originariamente a estabelecer diferentes preceitos, deve ser aplicado o mais favorável ou o que melhor se integrar no espírito do sistema jurídico. Vale isto dizer , no caso sub judice, que deve ser aplicado o preceito que fixa a idade núbil aos 16

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anos também às mulheres e não aplicando, por inconstitucional, o que fixa aos 14- como fez o 2º Juízo de Vila Nova de Famalicão (...)». Porque foi também este o objectivo a que nos propusemos, logo no início desta empresa, caberá agora verificar em que medida esta abordagem da Comissão, no referente ao Princípio da Igualdade, se manifestou na jurisprudência do Tribunal Constitucional, principalmente em termos metodológico – conceptuais. Desempenha aqui um papel relevante o Acórdão n.º 44, de 22 de Maio de 198454, destinado a apreciar, na sequência do pedido do Provedor de Justiça, a constitucionalidade do Decreto – lei nº 310/82, que fixa os critérios de preferência na colocação de clínicos gerais. A preocupação primeira do Tribunal é transparecer precisamente um aspecto que não sendo devidamente apresentado, poderia levar a alguns equívocos indesejáveis: aquele não entende tal princípio na construção teórica do novecentismo liberal, mais próximo do domínio da política do que do Direito. Assim, diz-se no mesmo Acórdão, “o princípio jurídico – constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei (…) constitui um dos esteios fundamentais do constitucionalismo moderno”, de tal forma que “um dos principais textos proclamados pela Revolução Francesa, iniciadora da actual era constitucional, isto é, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lhe tenha reservado o lugar cimeiro: o seu artigo 1º”. Mas, se ainda assim o Tribunal considera haver sérias dúvidas quanto “à sua definição concreta” ou ao seu “alcance real”, a sua atitude, em termos de aplicação do Direito, vai assemelhar-se indiscutivelmente à CC. Recorrendo e citando inclusivamente o mesmo mestre que os pareceres da Comissão Constitucional haviam feito, Prof. MARNOCO E SOUSA, os juízes sublinham de antemão que “o princípio da igualdade não reclama que todos sejam tratados, em quaisquer circunstâncias, por forma idêntica, mas sim, que sejam semelhantemente tratados os que se acham em condições semelhantes”. E, continuando, professará palavras que não são já de forma alguma estranhas à justiça constitucional portuguesa (se é que aqui poderemos integrar a actividade da Comissão Constitucional), antes bastantes frequentes na jurisprudência da Comissão, segundo as quais “ o princípio da igualdade não deve nem pode ser interpretado em termos absolutos, impedindo nomeadamente que a lei discipline diversamente quando diversas são as situações que o seu dispositivo visa regular”. No fundo, a mesma lógica e o mesmo método. Não recusando a natureza jurídico – constitucional do princípio da igualdade, o TC conhece, porém, dos inconvenientes e dos graves perigos de uma interpretação (e sobretudo uma aplicação) demasiado amplas, mesmo totalitária, deste princípio que, no extremo, poderia conduzir à completa irracionalidade social ou, noutra perspectiva, a um perfeito bloqueio de qualquer iniciativa ou acto legislativo. Note-se que a primeira dimensão mantém-se com plena eficácia: a função do princípio da igualdade é impedir o arbítrio no estabelecimento de tratamentos jurídicos desiguais, é impedir que situações idênticas recebem tratamento diferenciado sem um fundamento racional e credível que o justifique. Mais, a constitucionalidade deste tratamento [desigual] está ainda sujeito à análise dos fundamentos que o sustentam, mesmo que racionais e credíveis, segundo o parâmetro constitucional ou a constelação de valores que enformam a Lei Fundamental. Nisto, poderemos concluir que apenas é admitido um tratamento jurídico desigual quando estejam em causa situações diferenciadas, segundo um

54 Cfr. Miranda, Jorge, Jurisprudência..., cit., III, PP. 133 e segs.

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critério de razoabilidade e racionalidade e ainda plenamente integrados no padrão axiológico – constitucional. É esta também a síntese apresentada pelo Tribunal no presente acórdão. «(…)Mas, inversamente, há violação do princípio da igualdade quando o legislador estabelece distinções discriminatórias. Assim é quando tais distinções são materialmente infundadas, quando assentam em motivos que não oferecem um carácter objectivo e razoável; isto é, quando o preceito em apreço não apresenta qualquer fundamento material razoável. Nesta perspectiva, o princípio da igualdade consagrado pelo artigo 13º, nº1 da Constituição identifica-se com uma proibição de arbítrio, quer dizer, com uma proibição de medidas manifestamente desproporcionadas ou inadequadas, por um lado, à ordem constitucional dos valores e, por outro, à situação fáctica que se pretende regulamentar ou ao problema que se deseja decidir». Resta acrescentar uma nota final: como assume o Tribunal Constitucional, e talvez seja este um ponto não referido explicitamente pela Comissão, não lhe cabe, em sede de aplicação do princípio da igualdade, “indagar sobre a bondade, a justeza ou a oportunidade dos preceitos em causa”, mas apenas “se a concreta aplicação dos preceitos conduz ou não a uma discriminação inconstitucional”. É um juízo jurídico que se pede ao TC, e não qualquer consideração moral, ética e muito menos religiosa sobre o sentido de igualdade. É, podemos dizê-lo, a igualdade constitucional que verdadeiramente está em causa e é sobre esta que o órgão jurisdicional se deverá pronunciar55. Igualdade constitucional que se manifesta sobretudo, nas palavras de GOMES CANOTILHO, “de proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais”56. Deixando agora um pouco de lado a matéria da igualdade, não deveremos esquecer, numa análise que se pretenda reveladora da acção da CC, a jurisprudência desenvolvida em torno dos direitos fundamentais, que já caracterizámos como aberta e moderada. A Comissão entendeu, desde logo, que os direitos fundamentais, ocupando um papel primordial no novo ordenamento constitucional (eles seguiam-se, em termos de disposição, logo a seguir aos princípios fundamentais) não poderiam deixar de ser aplicados e efectivados numa lógica de racionalidade e adequação sob pena de, maxime, se tornarem num real obstáculo ao exercício dos poderes. Impunha-se, portanto, tal como anteriormente, firmeza, é certo – na defesa intransigente destas

55 Neste mesmo sentido se pronuncia Jorge Miranda, que afirma que a «igualdade é identidade e igualdade jurídica ( não igualdade natural ou naturalística), que a igualdade significa intenção de racionalidade ou intenção de justiça, que a igualdade não é uma “ilha”, antes de encontra conexa com outros princípios, tendo de ser entendida, também ela, no plano global dos valores, critérios e opções da Constituição material» Cfr. Miranda, Jorge, Manual..., cit., IV, p. 213 56 Ver Canotilho, Gomes, e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3º edição revista, Coimbra Editora, Coimbra (1993), p. 127. Cabe-nos aqui acrescentar uma nota: de facto, o princípio da igualdade comporta esta dimensão fundamental, muito bem identificada no voto de vencido de Figueiredo Dias – no Parecer nº2/81 –, de proibição do arbítrio, ou, por outro lado, imposição de critério, de objectividade, de ponderação e justificação. Pensamos que esta dimensão poderia, de algum modo, passar despercebida, pelo que não hesitámos em apontá-la como essencial, factor já notório na jurisprudência da Comissão.

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garantias – mas racionalidade e moderação (elementos que os tempos revolucionários tendem a ignorar) na sua aplicação. Recorrendo de novo à jurisprudência como objecto de análise e paradigmatização do panorama teórico que queremos apresentar, suscita-nos particular interesse o Parecer n.º 3/81 de 5 de Fevereiro57, em que a CC é chamada a apreciar a constitucionalidade do Decreto-Lei n.º 463/79, de 30 de Novembro, que cria o n.º fiscal do contribuinte. São várias as questões que se apresentam como parâmetro da análise constitucional deste decreto – lei, pelo que salvaremos aqui unicamente aquela que maior relevo assume no quadro conceptual em que nos movemos e que consiste em saber se uma identificação deste tipo feita ao cidadão pela administração violará os direitos, liberdades e garantias daquele. Recorrendo a uma expressão empregue pela própria CC, a questão essencial é a de saber se este número fiscal será “susceptível de colocar o cidadão “a nu” perante a administração. Revelando mais uma vez uma enorme dose de racionalidade e equilíbrio, a Comissão identificou o lugar preciso do perigo deste tipo de informação (por parte da administração) como resultante “da aproximação feita pela máquina de dados dispersos, cada um dos quais isoladamente pode ser um dado não contestável, mas cuja conexão permite reconstituir dados sensíveis, de natureza eventualmente confidencial”. O perigo, continua, “reside na concentração, interconexão, tratamento e difusão das informações que o computador permite efectuar. Ou seja, o problema cardeal que o computador coloca em matéria de informações sobre as pessoas situa-se não tanto na natureza dos dados recolhidos (...) mas no facto de a máquina permitir estabelecer interligações entre os dados(...)”. Desta premissa derivará a Comissão a conclusão segundo a qual a instituição do n.º fiscal do contribuinte, por si só, não representa nenhum alargamento abusivo dos poderes da administração nem tão pouco uma violação dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente estabelecidos. A constituição de uma administração fiscal eficaz e célere nos procedimentos que pretende efectuar não ficou assim paralisada pela invocação dos direitos fundamentais, que bem poderiam sê-lo de forma radical e simplista. É neste sentido que argumenta então a Comissão em defesa do referido n.º fiscal, de tal forma que consegue, de forma simples, dimensionar o problema real: «Assim, o sistema automático de processamento do número fiscal de contribuinte não conduz à atribuição de um número nacional único aos cidadãos, não contravindo, consequentemente, o n.º 3 do art. 35º da Constituição. Ao invés, o número fiscal do contribuinte é mais um número destinado a identificar os cidadãos, agora perante a administração fiscal, ao lado de outros, tais como o bilhete de identidade, o da previdência, o do sindicato, o do estabelecimento escolar, o da associação desportiva, o de consumidor de gás e electricidade, o da carta de condução, etc. E coexiste com eles, sem possíveis interconexões.» E não se diga com isto, mais uma vez, que a Comissão se aproxima aqui da concepção novecentista liberal das disposições constitucionais, autênticas prescrições atípicas, mais próximas do bloco de politicidade do que do bloco de juridicidade. Pelo contrário, nas palavras que acabamos de acompanhar, é rigorosamente explicitado em que termos se poderia colocar o problema jurídico e, então sim, o confronto com os direitos, liberdades e garantias. Não se afirma impossível uma violação das referidas

57 Ver Pareceres..., cit., XIV, Lisboa (1983), pp. 163 e segs.

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normas, mas configura-se o contexto real em que tal ocorreria, segundo uma perspectiva racional e adequada. De tal forma assim é, que o próprio Parecer em causa suscita ainda outro problema (verdadeiramente jurídico) que poderá decorrer da utilização, pela administração, do instituído n.º fiscal do contribuinte: é que, em todos os casos, deverá ser respeitada a “regra, geralmente aceite, segundo a qual os dados obtidos para um determinado fim não devem ser usados para um fim distinto, tendo em vista proteger os diversos bens jurídicos face aos perigos da informática”. A violação desta regra, aqui sim, deverá ser considerada uma violação [inadmissível] dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, mas não a mera instituição daquela figura [o n.º fiscal entenda-se].

III A inconstitucionalidade por omissão, diz-se por vezes, é uma criação do direito constitucional português, tendo sido entre nós consagrada na Constituição de 1976. E assim parece ter sido, não obstante a consagração, já em 1974, na Constituição da Jugoslávia58, de uma figura semelhante, ainda que com contornos diferentes. Em todo o caso, certo é que esta figura jurídico – constitucional revela inlutavelmente a natureza da nossa própria Constituição, quer do ponto de vista jurídica, como uma Constituição programática, quer do ponto de vista político, na medida em que reflecte igualmente o contexto político - partidário que lhe serviu de base lhe esteve subjacente. Esta era, no entanto, uma das matérias em que mais se impunha uma atitude de prudência por parte da Comissão, bem como uma delimitação teórica mais ou menos precisa do seu âmbito efectivo de aplicação. Tanto mais que numa Constituição com uma voracidade textual como a nossa, e com um carácter intensamente programático em inúmeras disposições, uma aplicação desordenada e ametódica deste instituto conduziria, na prática, a uma banalização da situação de inconstitucionalidade, com efeitos claramente perversos. O primeiro momento em que foi analisada uma questão a envolver esta figura jurídica foi o Parecer nº 4/77, de 8 de Fevereiro59, na sequência do pedido do Conselho da Revolução à Comissão Constitucional para se pronunciar sobre a eventual inconstitucionalidade por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis a alínea d) do art. 56º e a alínea a) do nº2 do art. 58º da Constituição60.

58 Dispunha assim o artigo 377º da Constituição da República Socialista Federativa Jugoslava: “Se o Tribunal Constitucional verificar que o órgão competente não promulgou as prescrições necessárias À execução das disposições da Constituição da República Socialista Federativa Jugoslava, das leis federais ou das outras prescrições federais e actos gerais, dará do facto conhecimento à Assembleia da República Socialista Federativa da Jugoslávia”. Cfr. isto mesmo em Miranda, Jorge (Org.), Constituições de diversos Países, II, 3º EDIÇÃO, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa (1987), p. 166 59 Ver em Pareceres..., cit., I, Lisboa (1977), pp. 77 e segs. 60 Apenas por curiosidade, transcrevemos aqui os respectivos artigos da Constituição de 1976. A alínea d) do art. 56º dispunha o seguinte: Constituem direitos das comissões de trabalhadores “participar na elaboração de legislação do trabalho e dos planos económico – sociais que contemplem o respectivo sector”. Já a alínea a) do nº2 do art. 58º dispunha: Constituem direitos das associações sindicais “participar na elaboração da legislação do trabalho”. Cfr. ambos os artigos em Miranda, Jorge, Constituições…, cit., pp. 440 - 441

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A primeira tarefa a desempenhar com êxito seria sem dúvida, até porque se tratava do primeiro Parecer com esta figura em causa, delimitar teoricamente o seu âmbito de aplicação. Ao fazê-lo a CC não dispensou certamente a doutrina [escassa, por sinal] existente sobre a matéria, mas a sua construção fez jurisprudência e deixou um importante legado doutrinário para o futuro. São os chamados “pressupostos ou requisitos de funcionamento do instituto” isto é, o conjunto de ingredientes que será necessário reunir para configurar uma situação de omissão inconstitucional.

a) Que o não cumprimento da Constituição consiste na violação de certa e determinada norma

b) Que se trate de norma constitucional não exequível por si mesma c) Que, nas circunstâncias concretas da prática legislativa, faltem as

medidas legislativas necessárias para tornar exequível aquela norma Repare-se que o primeiro requisito será essencial para que o instituto funcione de acordo com o desejado e não comine os efeitos perversos que a sua natureza pode originar. A inconstitucionalidade por omissão afere-se em relação a uma determinada norma constitucional (ou várias, entenda-se, desde que devidamente individualizadas) e não a toda a Constituição, pela invocação do seu “espírito”, fundamentos ou os seus princípios gerais como um bloco axiológico. É que, a não ser assim, “introduzir-se-ia um elemento de insegurança e incerteza, o juízo de inconstitucionalidade seria indefinido e fluido e o órgão de garantia poderia ficar remetido ao arbítrio ou à paralisia”. A CC esclarece, de certa forma, os objectivos da sua própria atitude: evitar a “paralisia” e o “arbítrio”, fundamentais para garantir uma saudável coabitação funcional entre órgãos políticos e jurisdicionais e também para salvaguardar o princípio constitucional da separação de poderes. Mas o Parecer nº 4/77 desenvolveu ainda uma consideração com indiscutível importância. Se o segundo requisito apresentado era óbvio (pois se a norma constitucional fosse exequível por si mesmo, não seriam necessárias quaisquer medidas legislativas para a tornar exequível, pelo que nunca se verificaria omissão inconstitucional) já o terceiro revela alguma ambiguidade de interpretação mas, correctamente interpretado, traduz essa mesma lógica de prudência e moderação na aplicação deste instituto. De facto, não basta que faltem as medidas legislativas necessárias para tornar exequível a norma constitucional: é requisito obrigatório que elas faltem “nas circunstâncias concretas da prática legislativa”. Mas o que significará realmente esta expressão na aplicação concreta do direito? Em que medida poderão as “circunstâncias concretas da prática legislativa” determinar, ou não, a aplicabilidade de um instituto jurídico como a inconstitucionalidade por omissão? Poderíamos, num primeiro momento, pensar ser esta uma previsão completamente vazia de conteúdo. Não o será, porém, se tivermos em conta o contexto material em que detectamos omissão das medidas legislativas, e que é no fundo o alcance da expressão referida. Será este precisamente o raciocínio da Comissão, sendo ao abrigo desta previsão que decide não verificar inconstitucionalidade por omissão no caso concreto. Fá-lo porque, não havendo as referidas medidas legislativas (acto legislativo formal) “acha-se desencadeado um processo legislativo tendente à edição de normas jurídicas que integrem os comandos dos artigos 56º e 58º da Constituição”, isto é consideram-se existir “elementos ou

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fases do acto completo do qual poderá resultar; e sendo assim, importa ponderar qual o significado e quais as consequências da existência desse processo”. Tudo isto deve ser tido em conta para configurar essas “circunstâncias concretas”, o que se compreende se tivermos em conta a verdadeira função do instituto: como se adiantou já, ele destina-se a pressionar o legislador a emitir medidas legislativas (para efectivar o cumprimento da Constituição) quando elas sejam devidas, na sequência da verificação (ou não) de certas condições, e não a um juízo simples de omissão que, como se explicou já, representaria potencialmente um perigo e contornaria inclusivamente as características originárias do instituto. É isto mesmo que afere a Comissão, em palavras que iremos acompanhar. «Poderia, porventura, defender-se que o facto de ter sido apresentado o referido projecto de lei em nada altera a situação omissiva pré – existente. A omissão deveria apurar-se sempre independentemente de qualquer iter conducente ao seu suprimento, porquanto só darão exequibilidade a normas constitucionais medidas legislativas actuais e não futuras ou potenciais, cujo conteúdo, embora determinável, está longe de ser determinado. Esta maneira de ver afigura-se demasiado rígida e, além disso, contraditória com a função do instituto criado pelo artigo 279º da Constituição. (…) Vistas as coisas de outro prisma: justificar-se-ia a formulação de uma recomendação ao órgão legislativo competente para que fossem emitidas medidas legislativas em tempo oportuno quando neste órgão já está a correr o respectivo processo? Que efeito útil poderia vir a ter a recomendação se aquele que teria de ser o seu objectivo – provocar uma iniciativa de lei – já se produziu? Atente-se portanto na lógica duplamente importante da CC: moderada, antes de mais, porque capaz de se desprender de uma análise meramente formal e analisar elementos materiais que possam conduzir, em última análise, ao elemento formal pretendido (as medidas legislativas que tornem exequíveis as normas constitucionais, entenda-se); racional porque a sua abordagem acaba por desvendar o sentido real e profundo do instituto no ordenamento jurídico português61. Esta atitude perante este instituto jurídico marcou de facto a jurisprudência portuguesa posterior. No Parecer nº 11/7762 retoma – se esta questão (obviamente num contexto bastante diferente) que deixará transparecer, como veremos, as mesmas linhas de pensamento sobre a matéria, não obstante o resultado final ter sido diverso. Está aqui em causa a emissão de parecer sobre a eventual inconstitucionalidade por omissão das medidas legislativas que tornem exequíveis o nº4 do artigo 46º da Constituição de 1976, segundo o qual “não são consentidas associações armadas nem

61 Será importante salientar este aspecto de integração da figura da inconstitucionalidade por omissão no conjunto do direito constitucional português. Ao explicitar a inutilidade de uma verificação desta figura no presente caso, em que não existindo ainda lei – elemento formal pretendido – existem já importantes elementos materiais que a prefiguram – iniciativa e projecto de lei - , a Comissão Constitucional atinge o âmago deste instituto e das suas finalidades no ordenamento português. Sublinhamos propositadamente no ordenamento português, na medida em que a Comissão (e mais tarde o Tribunal Constitucional) mais não podem fazer do que recomendações ao órgão legislativo competente. Se houvesse a possibilidade de serem emitidas injunções – injunctions - ao órgão legislativo, como acontece no Brasil, por exemplo, a situação seria radicalmente diferente, mas não tem sido esta opção do legislador português. 62 Ver em Pareceres..., cit., II, Lisboa (1977), pp. 2 e segs.

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de tipo militar, militarizadas ou paramilitares fora do Estado ou das Forças Armadas, nem organizações que perfilhem a ideologia fascista”63. Aqui, e segundo os requisitos apresentados já no Parecer anterior, a Comissão apressa-se a referir que o referido preceito não é exequível por si mesmo (na medida em que não caracteriza suficientemente o conceito de “ideologia fascista” nem atribui aos órgãos competentes quaisquer meios para tornar efectiva esta proibição) e que não existem, à altura, medidas legislativas que o tornem exequível. A questão seria então saber se a verificação simples destes requisitos seria suficiente para concluir, logo, a existência de inconstitucionalidade por omissão. A resposta afigura-se negativa e a sua base assenta em dois patamares distintos, ambos referenciados no presente Parecer. Por um lado, para além da não exequibilidade da norma e da existência de respectivas medidas legislativas, é necessário haver uma violação efectiva (jurídica, portanto) da obrigação de produzir esses actos legislativos ou, por outras palavras, as da Comissão, “é necessário que o órgão competente para editar tais medidas haja violado a obrigação de as emitir, em termos de frustrar o cumprimento da norma constitucional”; por outro lado, e este revela-se um patamar de raciocínio assaz sofisticado, só haverá esta obrigação de emitir as normas (não frustrando, assim, o seu alcance real) quando se verificar efectivamente violação da Constituição ou, no caso concreto em análise, “que, depois, da entrada em vigor da Constituição, já se tenham constituído, ou estejam a desenvolver actividades, organizações que perfilhem aquela ideologia”. Este último argumento exige alguns comentários, nomeadamente para não se chegar, no limite, a considerar a inconstitucionalidade por omissão como uma espécie de inconstitucionalidade por acção, embora em sentido lato. Dizê-lo, não obstante algumas semelhanças, seria simplista e ingénuo64. O que se poderá dizer, e veremos como isso fica claro na jurisprudência da CC, é que só fará sentido verificar-se inconstitucionalidade por omissão se houver a possibilidade real (poderemos chamar-lhe possibilidade técnica) de a constituição ser violada. Isto porque, mais uma vez, a Comissão recorda a finalidade jurídica deste instituto, que é a de impedir a violação da Constituição (derivada de uma omissão, esta consequentemente inconstitucional) e não qualquer outro. Em termos simples, a construção pode ser feita do seguinte modo: não é a simples falta ou insuficiência de medidas legislativas que determina a inconstitucionalidade por omissão. É necessário que a Constituição esteja

63 Cfr. Miranda, Jorge, As Constituições Portuguesas, cit., p. 435 64 Um nota deveremos aqui acrescentar. Não se quer dizer com isto que a inconstitucionalidade por omissão e a inconstitucionalidade por acção são institutos radicalmente diferentes e sem qualquer possibilidade de aproximação jurídico – processual. Pedimos aqui de empréstimo as palavras de Jorge Miranda, que se revelam altamente úteis para clarificar o que pretendemos significar. «De certo modo, pode aventar-se que a inconstitucionalidade por omissão se reconduz a uma inconstitucionalidade por acção numa acepção latíssima – por reverter na persistência de regras legislativas e de comportamentos em contradição com o sentido objectivo da norma constitucional ou da Constituição. Por outro lado, algumas omissões parciais implicam, desde logo, inconstitucionalidade por acção, por violação do princípio da igualdade, sempre que acarretem um tratamento mais favorável ou desfavorável (…) Para além disso, contudo, em vários casos em concreto, ocorre uma estreita interpenetração da inconstitucionalidade por acção e da inconstitucionalidade por omissão, em consequência da forma como se acha organizado e se dinamiza o sistema jurídico.» Mas jamais se quererá dizer, com isto, que ambos os institutos se fundem num só, inclusivamente com o fim que visam obter. O próprio Jorge Miranda conclui dizendo que, para além da sua diferença conceptual, “a distinção dos dois institutos entre nós exige uma diferenciação de iniciativas e de processos”. Cfr. Miranda, Jorge, Manual…,VI, cit., pp. 288 – 289.

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efectivamente a ser violada por omissão das medidas legislativas necessárias para conferir exequibilidade à norma constitucional. Daí o esforço da Comissão em delimitar cientificamente o conceito de “ideologia fascista”, para que seja possível averiguar se alguma organização poderá, de alguma forma, ser nela integrada65. Tendo-o feito, e com as reservas que em nota inferior apresentamos, conclui não lhe competir verificar se há ou não violação efectiva da Constituição, o que significa, na prática, não lhe ser legítimo rotular uma qualquer organização como “fascista”. Com isto, não conclui a CC a inexistência da referida omissão legislativa, deixando antes este juízo ao órgão político competente. Não o fez, porém, sem deixar claro poder “concluir-se, seguramente, pela existência de risco de violação da Constituição”. Poderá dizer-se, com segurança, que a abordagem da Comissão acrescentou mais um requisito aos três já anunciados no Parecer nº 4/77, deixando assim o conceito de inconstitucionalidade por omissão bastante composto e suficientemente claro para uma correcta interpretação, e aplicação, do mesmo, capaz de impedir efeitos perversos e certamente indesejados. E isto mesmo é dito, de forma clara, nas palavras da Comissão (ainda no Parecer nº 11/77) quando afirma categoricamente: «Se existir, hoje, na sociedade portuguesa, alguma organização desse tipo, a Constituição não estará a ser cumprida e verificam-se todos os pressupostos fixados no artigo 279º, necessários para o Conselho da Revolução, se assim o entender, formular uma recomendação aos órgãos legislativos competentes. Se tal hipótese, pelo contrário, se não verificar, não existirá incumprimento da Constituição e, consequentemente, não se encontram reunidos os pressupostos que permitem a formulação de uma tal recomendação.» Os trabalhos da Comissão revestiram-se, neste domínio, de uma especial importância: é que, com uma nova figura no nosso ordenamento jurídico – constitucional, era indispensável trabalhar o mais rapidamente possível sobre ela. E não se julgue que o foi apenas para evitar potenciais perigos ou um uso indevido deste instituto, que consideramos sinceramente ser um elemento bondoso do Estado de Direito democrático. É que a sólida e racional jurisprudência da Comissão Constitucional sobre a matéria impediu provavelmente que, como alguns propunham à altura da primeira Revisão Constitucional (em 1982), fosse extinta a inconstitucionalidade por omissão da Constituição Portuguesa. E ainda bem que assim foi.

IV

65 A Comissão, neste Parecer nº 11/77 determina quatro características da “ideologia fascista”: 1) concepção autoritária do Estado e culto da hierarquia 2) recurso sistemático à força e à violência 3) nacionalismo exacerbado 4) doutrina corporativista. Quanto a nós, consideramos desnecessária esta caracterização teórica feita pela Comissão, aliás sem quaisquer referências doutrinárias, pelo menos expressas. Parece-nos não só de duvidosa legitimidade que seja a CC a densificar este conceito, assemelhando o Parecer a uma espécie de tratado ou manual, como impróprio fazê-lo assim de forma tão simplista. Ficam portanto as nossas reservas quanto a esta atitude e, embora não seja aqui essencial, quanto aos próprios elementos caracterizadores apontados. Porém, a própria Comissão acaba por reconhecer, e bem, que “não pode pronunciar-se no sentido de existir, ou não, efectivamente, tal violação, visto que, pela sua própria natureza e estrutura, não tem a possibilidade de verificar se existem organizações que devam subsumir-se naquele conceito, tal como foi, em traços gerais, atrás interpretado”.

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Outra matéria em que a jurisprudência da CC foi vital, não só em termos jurisprudenciais mas também no que toca à própria organização político – institucional da República, prende-se com questões, por vezes altamente meticulosas, da autonomia regional, consagrada constitucionalmente em 1976. Este é, porém, um dos temas mais tratados, quer em termos de jurisprudência, quer mesmo ao nível da doutrina. O que não impede, contudo, a jurisprudência da Comissão nesta área de ser classificada de muito importante, desde logo por lhe ter sido confiada a tarefa de integrar e concretizar em plenitude o princípio da autonomia regional no ordenamento jurídico português, fruto do sistema de fiscalização da constitucionalidade instaurado no período pós – revolucionário. Não poderemos ignorar a especial dificuldade enfrentada pela CC, consequência da nossa caracterização constitucional de Estado unitário regional, o que obrigava a uma harmoniosa articulação entre os valores da autonomia regional e da unicidade do Estado. O problema não era, pois, estritamente jurídico: por detrás dele entravam em confronto intensos diálogos políticos, com expressão directa não apenas ao nível do discurso académico (como por exemplo, a questão do conceito de “norma”) mas ao nível do quotidiano, de um debate público amplamente alargado a toda a sociedade. Este último facto, apesar de natural, dados os factores em jogo, introduzia uma forte pressão na entidade competente para conjugar, em casos concretos ou em termos de fiscalização abstracta (através da emissão de Parecer), as duas ordens de valores, com consequências incontornáveis, mais uma vez, quer no esquema político – institucional nacional, quer ao nível do dia-a-dia dos cidadãos do continente e das ilhas. Antes de mencionarmos alguma jurisprudência feita neste âmbito, cremos ser útil referenciar algumas disposições constitucionais mais relevantes no que respeita à autonomia da Regiões autónomas, para uma melhor contextualização jurídica de alguns problemas que serão levantados na Comissão. Na Constituição de 1976 encontramos várias disposições relevantes. «Artigo 6º. Nº 1: O Estado é unitário e respeita na sua organização os princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública Nº 2: Os arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem regiões autónomas dotadas de estatutos político – administrativos próprios Artigo 227º Nº 1: O regime político – administrativo próprio dos arquipélagos dos Açores e da Madeira fundamenta-se nos condicionalismos geográficos, económicos e sociais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares Nº 2: A autonomia das regiões visa a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico – social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade de todos os portugueses. Nº3: A autonomia político – administrativa regional não afecta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição.

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Artigo 229º Nº 1: As regiões autónomas são pessoas colectivas de direito público e têm as seguintes atribuições, a definir nos respectivos estatutos:

a) Legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matéria de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania

b) (…) Artigo 230º: É vedado às regiões autónomas: a) (…) b) Estabelecer restrições ao trânsito de pessoas e bens entre elas e o restante território nacional c) Reservar o exercício de qualquer profissão ou acesso a qualquer cargo público aos naturais ou residentes na região Artigo 231º Nº 1: (…) Nº2: Os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente às questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de governo regional»66 Tempo, mais uma vez, para análise jurisprudencial, onde referimos antes de mais, como objecto de apreciação, o Parecer nº 7/77, de 24 de Fevereiro67, destinado a apreciar a constitucionalidade do Decreto Regional nº 1/77 referente à gestão de estabelecimentos de ensino secundário e preparatório na região dos Açores. Demonstrando mais uma vez uma sólida compreensão do espírito constitucional e certamente de alguma doutrina que começava já a trabalhar o tema, a CC foca, desde logo, o problema essencial, “determinar a validade do acto em face dos limites do poder legislativo das regiões: respeito da Constituição e das leis gerais da República, exclusão de matéria da competência própria dos órgãos de soberania e interesse específico da região”. No fundo, a questão é saber se a regulamentação da gestão (e não do regime geral de gestão, sublinhe-se) das escolas de ensino secundário e preparatório da Região autónoma dos Açores se compatibiliza com este parâmetro de avaliação. É precisamente para sublinhar a questão central (e essencial) que a Comissão frisa que “a gestão dos estabelecimentos de ensino secundário e preparatório não pode reputar-se matéria de exclusiva competência legislativa da Assembleia da República”, pois deve ser claro que “as bases do sistema de ensino embora não possam deixar de compreender linhas fundamentais acerca do sistema de gestão das escolas, incontestavelmente não se confundem com a própria regulamentação dessa gestão”. Esta asserção permite-nos extrapolar duas conclusões distintas: por um lado, a distinção entre “bases gerais” e o desenvolvimento das mesmas, salientando assim a intenção do legislador de subtrair aquelas às regiões mas lhes conferir a possibilidade de legislar sobre a última; por outro, destacar a ideia de que não basta tratar-se de regulamentação concreta, chamemos-lhe assim em oposição à definição do regime geral, para que seja legítimo às regiões legislar sobre ela, sendo necessário ter em conta outros critérios, que adiante identificaremos. 66 Cfr. Miranda, Jorge, Constituições…, cit., p. 419 e 508 e segs. Note-se que a Constituição reserva todo o Título VII para as regiões autónomas. É o correspondente aos artigos. 227º a 236º. 67 Ver em Pareceres..., cit., I, pp. 113 e segs.

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E são precisamente esses critérios que a Comissão se esforçará por apontar e definir, o mais rigorosamente possível, em função da interpretação da Constituição. A sua importância será não só a de facilitar a actuação futura dos órgãos jurisdicionais sobre esta matéria, mas fornecer um material fundamental para o trabalho da doutrina e, em geral, para a compreensão do significado jurídico – político da autonomia regional. O primeiro deles será o interesse específico que a Comissão considera ser “porventura, o cerne da autonomia conferida pela Constituição às regiões dos Açores e da Madeira”. De tal forma que, conclui-se, “é porque há matérias de interesse específico de cada uma destas regiões, as quais, na perspectiva democrática e descentralizadora da Constituição, devem ser objecto de normas dimanadas dos seus órgãos, que essa autonomia adquire sentido”. O primeiro critério a ter em conta na apreciação da validade de norma emanadas de órgãos regionais é a sua correspondência devida ao interesse específico da respectiva região. O problema, porém, não se esgotava nesta constatação, que aliás a própria Constituição confirmava, em disposição que atrás transcrevemos. Como densificar o conceito de interesse específico e matérias a ele referentes, adquiria o mesmo grau de problematização, ou superior, o que era substancialmente agravado pela novidade do problema na jurisprudência portuguesa e na doutrina. Recorrendo ao artigo 227º da Constituição (ver acima) a CC procurará delimitar o conceito tendo em conta os fundamentos e os objectivos da autonomia constitucional das regiões autónomas. Ao fazê-lo, acaba por traçar metodologicamente a questão. «O que seja o interesse específico de cada região há-de resultar assim, do entre-cruzamento de todos estes aspectos; e, antes de mais, da conjugação dos condicionalismos insulares e do direito de Açorianos e Madeirenses, em face deles, promoverem o seu próprio desenvolvimento, por um lado, com as estruturas essenciais de um Estado unitário como é o Estado Português, por outro.» Claro que, dentro deste parâmetro, caberá sempre ao órgão jurisdicional competente uma certa margem de livre apreciação, até porque a Constituição não elencava, na altura, esse rol de matérias consideradas de interesse específico das regiões.68 O que não quererá dizer, por sua vez, que a actividade normativa regional se conjuga unicamente com a concepção de interesse específico, remetendo-se depois ao jogo da atribuição de competências. Como se nota no presente Parecer “nem por isso pode supor-se que [a Constituição] abandona ao arbítrio ou ao jogo de forças entre os órgãos de soberania e os órgãos regionais a definição dessas matérias. Com efeito, a Constituição tem de ser vista, na parte relativa Às regiões autónomas, integrada com os estatutos próprios que terão de ser elaborados segundo o processo complexo previsto no artigo 228, com participação das respectivas assembleias regionais e decisão final da Assembleia da República.”.

68 Desde a Revisão Constitucional de 1997 que o art. 228º elenca o conjunto de matérias consideradas de interesse específico das regiões, fruto essencialmente de jurisprudência. Este conjunto, devemos acrescentar, não é taxativo mas enunciativo, o que é comprovado pela utilização do termo “designadamente” no início da disposição. Ver sobre este interessante tema o brilhante estudo de Amaral, M. Lúcia, “Questões regionais e jurisprudência constitucional; para o estudo de uma actividade conformadora do Tribunal Constitucional”, in Estudos em memória do Prof. Castro Mendes, Lisboa (1993), pp. 510 e segs.

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Em termos simples, a Comissão apresenta a competência legislativa das regiões de duas perspectivas diferentes: positiva, na medida em que afirma a competência legislativa dos órgãos regionais na prossecução do interesse específico das regiões; negativa na medida em que essa prossecução não pode colidir com o esquema organizatório – institucional das competências dos órgãos de soberania. Esta última consiste, mais precisamente, nas limitações dessa competência legislativa regional, que a Comissão sintetiza bem nas seguintes palavras: «Na definição das matérias de interesse específico das regiões ou no desenvolvimento ou concretização deste conceito, a Assembleia da República está, porém, sujeita a duas ordens de limitações: uma limitação geral implícita, decorrente do princípio da unidade do Estado, e as limitações explícitas decorrentes das competências próprias dos órgãos de soberania». A conclusão da Comissão, que considerará estar o Decreto Regional nº1/77 ferido de inconstitucionalidade, assentará basicamente sobre estas duas perspectivas. Na medida em que o Governo Regional dos Açores se arroga de prosseguir o interesse específico da região responde a CC que “não é de crer que os condicionalismos geográficos, económicos e sociais dos Açores, ou as aspirações autonomistas das suas populações, ou a participação democrática dos cidadãos açorianos, ou o desenvolvimento económico –social, o a promoção e defesa dos interesses regionais (…) justifique a existência de um decreto regional que modifica o regime ou, de outro prisma, subtrai a gestão das escolas preparatórias e secundárias na região ao domínio de aplicação de um decreto – lei dimanado do Governo, posteriormente ratificado pela Assembleia da República”. E a questão não termina por aqui. Tenta-se ainda abordá-la numa outra óptica: se considerarmos ser esta uma matéria de interesse específico das regiões, dada a ampla margem de indeterminação deste conceito. Entra aqui a segunda perspectiva anunciada, que, conjugada com o primeiro raciocínio, permitirá sedimentar finalmente a conclusão tornando-a, de facto, inatacável. Repare-se: Analisando o diploma sob outro aspecto, ressalta ainda mais claramente esta conclusão. Na verdade, para além dos casos de interposição e de justaposição a seu tempo referidos, o decreto regional retira certas competências ao Ministério da Educação e Investigação Científica para as atribuir à Secretaria Regional da Educação e Cultura. (…) Ainda quando se sustente que a gestão das escolas é ou pode ser de interesse específico da região, o que nunca pode ser de interesse específico dela é a transferência de competências. Tem de ser uma lei dimanada de um órgão de soberania a promovê-la, o seja, a reduzir a sua área de acção». O Parecer nº 16/82, de 6 de Maio de 198269 retoma este raciocínio e, para uma realidade diferente, aplica a mesma lógica metodológico – conceptual. Destina-se este a apreciar a constitucionalidade do despacho [de 3 de Julho de 1981] do Secretário Regional da Educação e Cultura da região autónoma da Madeira referente à regulamentação do concurso para preenchimento de vagas supervenientes durante o ano escolar corrente.

69 Ver em Pareceres..., cit., XIX, Lisboa (1984), pp. 233 e segs.

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A questão centra-se, ou melhor, a norma que se impugna, consagra prioridade no preenchimento dessas vagas (e dentro do mesmo escalão de habilitações) para “os candidatos que residam nos locais onde se situam os respectivos estabelecimentos de ensino”. Vários foram os vícios apontados ao diploma (o referido despacho, mais precisamente), mas a solução encontrada foi, porque assente já em postulados jurídicos sólidos, relativamente simples. De facto, a Comissão começou por recordar que perfilha do “entendimento de que o Governo reservou para si próprio o exclusivo da regulamentação desta lei geral da República70, como resulta dos seus artigos 7º, nº 3 e 4, e 40º”, pelo que, segue-se a conclusão, “o Secretário Regional da Educação e Cultura da Madeira carecia de competência constitucional para editar um regulamento delegado, através de despacho normativo, contendo normas disciplinadoras do concurso para preenchimento de vagas supervenientes durante o ano escolar de 1981 – 1982”. Integrando aqui o quadro metodológico desenhado no Parecer nº 7/77, de 24 de Fevereiro, diremos que mesmo que na prossecução do interesse específico da região, o despacho em causa viola o quadro de competências constitucionalmente estabelecido, invadindo as competências próprias de um órgão de soberania – neste caso o Governo. Ora, recordando ainda o mencionado Parecer nº 7/77 poder-se-á dizer que, ainda que se sustente que a matéria em causa integra o conceito de interesse específico da região, o que nunca poderá integrá-lo é a transferência de competências”. A questão é, então, como avançámos, bastante simples, não sendo sequer necessário analisar as várias particularidades que o problema comporta, ou melhor, os diversos vícios invocados pelo Procurador - Geral da República para impugnar a norma em causa. O quadro de competências é fundamental, em estreita correlação com o princípio do Estado unitário e com a salvaguarda dos direitos fundamentais, para a garantia da correcta aplicação da autonomia regional no quadro da Constituição da República. A conclusão da Comissão é inequívoca: «Resta qualificar o vício que afecta de forma global o respectivo despacho e as consequências daquele decorrentes. Não suscita dúvidas que o despacho normativo em causa está afectado de inconstitucionalidade orgânica. Na verdade, este regulamento provém de órgão diverso daquele a que a Constituição, em conjugação com o diploma legal em concreto, confere competência para a respectiva elaboração (...). (...)Aceitando que, além deste vício, ocorreria também uma ilegalidade por violação da norma do decreto – lei que prevê e disciplina a elaboração de regulamentos delegados, a inconstitucionalidade prevalecerá sobre a ilegalidade, e as consequências daquele vício implicarão a declaração de inconstitucionalidade (...). Estando todo o despacho normativo afectado de inconstitucionalidade orgânica, nos termos acima indicados, forçosamente se tem de concluir que a norma especificamente impugnada pela entidade peticionária igualmente se acha afectada por inconstitucionalidade orgânica.» 70 Trata-se do Decreto – Lei nº 581/80, que confere competência regulamentar. Ora, o entendimento da Comissão é de que esta competência é exclusiva do Governo, devendo ser exercida pelos seus membros, individualmente – através do próprio Ministro – ou colectivamente no Conselho de Ministros

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O que fica dito no presente Parecer reforça a ideia de que as duas perspectivas que devem valer na competência legislativa dos órgãos regionais são, por assim dizer, cumulativas. Não interessa enveredar pela primeira se a segunda está, de antemão, viciada ou incumprida, não é necessário averiguar se o despacho do Secretário Regional da Educação e Cultura prossegue, ou não, o interesse regional específico se assenta, ao mesmo tempo, numa competência que não possui ou a transfere ilegitimamente. Incontestavelmente, a jurisprudência feita neste domínio pela CC teve o mérito de salientar a subsistência, após a Revolução, do princípio da unidade do Estado, conciliando a autonomia regional com esta mesma ideia. Ao mesmo tempo, ao preencher conceitos indeterminados de elevadíssima importância jurídico – política, a Comissão clarificou o sentido real daquela autonomia, o quadro legal e constitucional em que devia ser exercida, bem como o processo metodológico para averiguar da validade de cada situação concreta. E hoje, não obstante alguns resquícios, inevitáveis dizemos nós, de pretensões independentistas ou fragmentárias, o princípio da unidade do Estado, e também os méritos incontestáveis da autonomia regional, estão pacificamente instalados entre nós, convivendo ambos lado a lado num ordenamento jurídico solidamente instituído e assimilado.

V Se pudéssemos eleger uma área onde a acção levada a cabo pela Comissão Constitucional tenha sido mais relevante, quer em termos de jurisprudência futura do Tribunal Constitucional, quer em termos do nosso rumo colectivo, seria certamente relacionada com a denominada constituição económica. Pela importância objectiva que o tema assume, pelos conflitos ideológicos que nele se resumem e atingem eventualmente o seu ponto exponencial e por dizer respeito, em maior ou menor grau, a cada cidadão individual, a jurisprudência desenvolvida em torno deste pólo seria, necessariamente, fulcral e polémica. Não deveremos esquecer, a propósito disto, que a Constituição Portuguesa de 1976, na senda da sua exponencial voracidade textual e também da sua ampla natureza programática, continha, referente a esta matéria da constituição económica, um rol bastante extenso de normas, o que impunha, desde logo, o desenvolvimento de uma jurisprudência sólida e prudente. Acresce a este facto, como sabemos, o carácter intensamente restritivo que as normas constitucionais impunham à actividade privada e a finalidade, também constitucionalmente estabelecida, de construção de uma sociedade e de uma economia socialistas. Podemos dizer, após aturada análise dos trabalhos da Comissão, que esta assumiu com bastante êxito a tarefa que se lhe deparava. Não apenas enquanto capacidade de trabalhar com as normas jurídicas que deveria aplicar, mas também na medida em que conseguiu transmitir ao poder político e legislativo, como veremos, importantes mensagens com um conteúdo claro de necessidade de mudança. Escolhemos para uma abordagem inicial aquele que consideramos, se é que a isso estamos autorizados, ser o mais importante Parecer da Comissão ao longo dos seus seis anos de vida. Trata-se do Parecer nº 15/77 de 16 de Junho71, destinado a

71 Ver em Pareceres..., cit., II, pp. 67 e segs.

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apreciar a constitucionalidade do Decreto nº 57/I, de 12 de Maio de 1977, da Assembleia da República, por sua vez destinado a cumprir o artigo 85º, nº2 da Constituição, segundo o qual “a lei definirá os sectores básicos nos quais é vedada a actividade a empresas privadas e outras entidades da mesma natureza”. O texto em causa consegue, então, deixar dois extraordinários legados: uma decisão (referente ao caso concreto) que resolve uma das mais importantes questões da organização económica do País e a configuração de uma doutrina que, de forma lapidar e definitiva, clarificou o quadro jurídico – político em que devem ser entendidas as normas constitucionais programáticas, especialmente neste domínio. Antes de mais, começa o referido Parecer por esclarecer que, não obstante ficar a cargo da lei ordinária a definição dos sectores básicos da economia, estes devem ser vistos “na perspectiva global dos seus princípios preceptivos e objectivos programáticos”. A questão central situa-se em torno do art. 9º do Decreto nº 57/I, cujo nº 1 dispõe da seguinte forma: «A exploração e gestão de empresas referidas no art. 2º poderá, ouvidos os trabalhadores, ser confiada pelo Governo, em termos a definir por decreto-lei, a entidades privadas em casos excepcionais e nunca com carácter definitivo, desde que tal se mostre necessário para uma melhor realização do interesse público e dos objectivos do Plano». São essencialmente três as objecções levantadas quanto à constitucionalidade do preceito em causa: a irreversibilidade das nacionalizações operadas com o 25 de Abril de 1974, a existência de três sectores (privado , público e cooperativo) em função da sua titularidade e modo social de gestão, e os princípios constitucionais que apontam o caminho para o socialismo. Atentaremos apenas à primeira e última objecção, pela especial importância ideológica e política que revestem. Aliás, a própria Comissão o entendeu assim, limitando-se, em relação ao segundo ponto, a afirmar que “mesmo verificada esta cessão, as empresas continuam sujeitas ao Plano nos termos do artigo 92º” e que “este tipo de gestão não põe em causa a integração das empresas dele objecto no sector público”. Quanto à questão da irreversibilidade das nacionalizações, enquanto conquistas irreversíveis da classe trabalhadora, a Comissão deixa claro que não estamos perante um modelo rígido, mas flexível, em que a própria Constituição permite desnacionalizações de pequenas e médias empresas (art. 83, nº2) e opta por não definir ela própria os sectores básicos da economia (art. 85º). Nesta medida, é indiscutível, que o Decreto nº 57/I se enquadra neste espírito, pois apenas confere ao Governo a possibilidade de entregar a actividade de gestão e exploração a empresas privadas “em casos excepcionais”, “nunca com carácter definitivo” e “desde que tal se mostre necessário para a realização do interesse público e dos objectivos do Plano”. E, acrescenta a Comissão, “nem se diga que esses requisitos são insuficientes, porque precisamente virão a ser desenvolvidos e clarificados por novo acto legislativo” que, nessa qualidade, poderá ser apreciado quanto à sua conformidade com a Lei Fundamental. Não poderá pois a Comissão pronunciar-se relativamente a um regimen legal ainda inexistente, nem sequer antecipar-se a defini-lo (ou mesmo propor algumas linhas fundamentais), devendo antes fazê-lo o Governo no exercício das suas atribuições legítimas.

A grande questão de fundo é apenas uma. Afrontará as disposições constitucionais que consagram o caminho para o socialismo, a possibilidade de o

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Governo, nas circunstâncias e nas condições indicadas, poder confiar a gestão de empresas nacionalizadas a entidades privadas?

A resposta da Comissão, que viria a ser negativa, determinou não só a dinâmica económica e a organização empresarial portuguesas, como marcou decisivamente uma linha de interpretação moderada e sobretudo democrática da Constituição da República. E devemos, podemos dizê-lo sem exageros, a esta actividade hermenêutica, uma importante dimensão da nossa identidade política, económica e social, uma decisiva orientação no caminho que, como colectividade, viríamos a percorrer. Em resposta a todas as forças que pretendiam institucionalizar a Revolução (onde o programa constitucional de transição para o socialismo assumia um papel central, devendo ser cumprido em curto espaço de tempo), a Comissão opta por uma actuação metodológico – conceptual que realça precisamente a institucionalização da democracia.72 O texto que insistimos dar a conhecer é rosto visível disso mesmo e, portanto, dotado de um valor histórico, mas sobretudo jurídico e político, inestimáveis.

«Poderia também afirmar-se que o artigo 9º ofende os princípios

constitucionais que apontam para a transição para o socialismo e que, indirectamente, estariam a ser diminuídas as conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras ou que em vez de se avançar para o predomínio da propriedade social se estaria a retroceder no sentido da recuperação capitalista.

A resposta a estas objecções depende de saber que socialismo está contemplado na Constituição: se um socialismo a realizar num curto prazo histórico ou um socialismo a realizar progressivamente, se um socialismo autocrático ou democrático, se um socialismo de colectivização total ou um socialismo pluralista e não burocrático, etc.

Neste caso, parece indiscutível que o socialismo da Constituição portuguesa é um socialismo a realizar no respeito da vontade do povo português, sendo este que determinará o ritmo e o modo de o construir. A Assembleia Constituinte ao votar o artigo 2º expressamente rejeitou a menção num “curto prazo histórico” que chegou a ser proposta, por entender isso mesmo.

Sem dúvida que se pretende que a propriedade social venha a ser predominante (...). Todavia, predominante não é o mesmo que exclusivo e fala-se aí quanto a esta última evolução “na medida do possível”, o que não pode deixar de levar a tomar em conta as condições objectivas da economia nacional.

Poderá dizer-se que o artigo 9º do Decreto nº 57/I contraria o espírito da Constituição? 72 Este intenso confronto ideológico torna-se patente, por exemplo, na argumentação de Fernando Anâncio Ferreira, em exposição de voto de vencido. Este manifesta a visão exactamente oposta à da Comissão quando refere: «(...) o Estado deve impulsionar o desenvolvimento das relações de produção socialista, mediante a apropriação colectiva dos principais meios de produção e o exercício do poder pelas classes trabalhadoras (...). O Estado, no desempenho dessa sua missão, deve subtrair à apropriação privada os principais meios de produção que, uma vez colectivizados, devem ficar sob o poder ou, pelo menos, sob o controlo dos trabalhadores. (...) Dentro deste contexto, compreende-se que o art. 83º da Constituição considere conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974. E sê-lo-ão em plenitude, quando a posse útil e a gestão das empresas lhe pertencer. Antes de se atingir tal meta, exercerão os trabalhadores o controlo de gestão, através das suas comissões.» Cfr. Pareceres..., cit., II, pp. 77-85

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Parece bem que não: só contrariaria se o socialismo fosse para fazer já e o regime do mencionado preceito fosse geral e não excepcional, definitivo e não temporário.»

Problemática diferente, mas igualmente relevante, esteve na origem do Parecer

n.º 16/79, de 21 de Junho73, em que a Comissão, entre outras considerações, “é do parecer de que a exigência, contida no Decreto nº 208/I, de que a cessação da intervenção seja efectuada por decreto-lei, infringe o disposto na Constituição e os princípios nela consignados”.

Poderá parecer, à primeira vista, que se trata de matéria irrelevante. Mas uma análise mais atenta demonstra-nos precisamente o contrário: a exigência deste acto legislativo, num sistema em que a Assembleia da República tem poderes de ratificação dos decretos-lei, representaria uma controlo reforçado sobre os actos administrativos (como o são necessariamente os actos de cessação de intervenção) praticados pelo Governo. Para além disso, sendo um acto legislativo, ainda que materialmente administrativo, ele estaria sujeito, como vimos já em capítulo anterior deste estudo, ao respectivo controlo da constitucionalidade.

Repare-se que a intenção inequívoca do legislador foi só uma: dificultar ao Governo o processo de cessação de intervenção, submetendo-o ao controle de um órgão colegial e a uma eventual fiscalização de constitucionalidade. Se assim não fosse, como justificar que a exigência feita para a cessação da intervenção de um acto legislativo, não se aplicasse igualmente à iniciação ou modificação do processo de intervenção? De facto, ciente da significativa massa normativa constante da Constituição relativamente a esta matéria, e do peso ideológico (eventualmente, mais do que em qualquer outro domínio) da mesma, o legislador intentou impedir que o Governo decidisse e actuasse autonomamente numa matéria que se afigurava da sua inteira competência.

Ora, esta pretensão colide frontalmente, como nota a CC, com o “conteúdo essencial da divisão dos poderes”, que continua válido e actuante, de forma fundamental, no nosso ordenamento jurídico. De facto, a existência, salutar num Estado de Direito democrático, de uma sólida interdependência e cooperação institucional entre os diversos órgãos ou “poderes”, não afasta a eficácia do princípio da separação de poderes. Atentemos nas palavras da Comissão: «Do facto de os artigos 113º e 114º falarem, antes que em “poderes”, em “órgãos de soberania” e na sua “separação” e “interdependência”, não é legítimo concluir que a nossa Constituição recusou e afastou o conteúdo essencial da ideia de divisão de poderes. Bem pelo contrário, o sistema de poder político nela consignado, como sistema próprio de um Estado de Direito democrático, só se deixa apreender na sua essência e na sua desejável harmonização quando interpretado à luz do núcleo essencial daquela ideia: ela foi, é, e por certo continuará a ser um dos “essentialia” do conceito de Estado de Direito democrático e a sua violação uma tentativa ilegítima de reabilitação do princípio da concentração de poderes. Nesta medida, bem poderá continuar a afirmar-se – com o art. 16º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 – que “qualquer sociedade em que não esteja estabelecida a separação de poderes não tem Constituição”. (...) Aqui, interessará só acentuar que hoje se lhe atribui não apenas sentido negativo – como limitação de um poder estadual originariamente unitário, em nome

73 Ver em Pareceres..., cit., VIII, Lisboa (1980), pp. 205 e segs.

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da garantia de uma esfera de liberdade do indivíduo – mas também um sentido positivo. O sentido, nas palavras paradigmáticas de Konrad Hesse, “de criação de uma ordem de actuação comunitária dos homens, que constitui os diferentes poderes, determina e delimita as suas competências, regula a sua cooperação e, deste modo, deve conduzir à unidade – limitada – do poder do Estado.» Repare-se que as palavras particularmente violentas da Comissão destinam-se a recordar ao legislador que o Governo é também um órgão de soberania, revestido de poderes e competências próprias, não devendo estas ser esvaziadas sem uma deturpação grave e ilegítima da separação de poderes, na dupla acepção apresentada74. Isto não impede, o que é importante sublinhar, que algumas competências típicas de determinado órgão ou poder sejam partilhadas por outro no actual sistema organizatório – institucional , isto é, que o princípio não seja entendido em termos absolutos, mas de forma flexível, em nome de uma superior eficiência do sistema. Duas ideias, pois, deverão ficar ressalvadas: por um lado, as denominadas variações em relação ao eixo da separação de poderes, apenas serão legítimas se resultado de uma clara intenção do legislador, com expressa consagração constitucional; por outro lado, não deverá ser afectado núcleo essencial do princípio, estrutural do próprio constitucionalismo. Acompanhemos mais uma vez o Parecer nº 16/79: «É em plena consonância com estas palavras que deve aceitar-se, à luz da nossa Constituição, o princípio da divisão de poderes ou, o que desta perspectiva é o mesmo, o princípio da divisão de funções entre os diferentes órgãos de soberania. (...) (...) Nem haverá que negar, por outro lado, que a própria Constituição – como de resto, em maior ou menor grau, sucede com a generalidade das Constituições – não leva o princípio às últimas consequências lógicas, impondo ou sobrepondo, em certos casos, uma certa sobreposição (maxime, quando distribui funções legislativas pela Assembleia da República, pelo Conselho da Revolução e pelo Governo).

74 Será importante introduzir aqui uma nota. É indiscutível a importância da CC, especialmente deste Parecer, para a sedimentação do princípio da separação de poderes. Porém, a jurisprudência do Tribunal Constitucional – ver acórdão 1/97 - revelou-se um pouco mais prudente nesta matéria, inflectindo um pouco a jurisprudência constitucional da Comissão, sem alterar, porém, sublinhe-se, o essencial da filosofia subjacente ao Parecer nº 16/79. Isto mesmo diz Jorge Reis Novais, em palavras que vale a pena acompanhar: «Recorrendo a uma fundamentação baseada no princípio da divisão de poderes enquanto “um dos essentialia do conceito de Estado de Direito democrático” (…) a Comissão Constitucional pronunciou-se pela inconstitucionalidade daquela imposição, já que no seu entender, há inconstitucionalidade por violação da norma do art. 114º, nº1, ou do princípio constitucional da divisão e repartição de poderes entre os diferentes órgãos de soberania sempre que um deles se atribua, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite ou impõe, competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro e diferente órgão. (…) A Comissão Constitucional traça o quadro geral de resolução do problema que aqui nos ocupa dentro das seguintes balizas: à nossa Constituição, enquanto Constituição de Estado de Direito que acolhe o princípio da divisão de poderes, é inerente a perspectiva da existência de uma distinção material de funções do Estado, havendo inconstitucionalidade se um dos poderes se arrogar ou exercer competências que se inserem no núcleo essencial de competências da função atribuída a outro poder. (…) A jurisprudência do TC, que nos anos de 1986 e 1987 se veio de novo a debruçar sobre o problema, dá já mostras de alguma ambiguidade ou de alguma complacência face às competências reivindicadas pela Assembleia da República, mas, ainda assim, no essencial, não põe em causa os fundamentos teóricos do Parecer n.º 16/79 da Comissão Constitucional.» Ver Reis Novais, Jorge, Separação de Poderes e limites da competência legislativa da Assembleia da República, Lex, Lisboa (1997), pp. 15-16

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Nada disto, porém, impedirá a existência de largo consenso quanto ao núcleo essencial do princípio. Ele radica em duas direcções: por um lado, na de que a função legislativa é atribuída em princípio ao Parlamento, a função executiva ao Governo, a função judicial aos Tribunais; por outro, na de que os órgãos do Legislativo, do Executivo e do Judiciário se controlam ou limitam mutuamente, de tal forma que o poder do Estado resulte atenuado e a liberdade das pessoas protegida. E daqui já deverá concluir-se que haverá inconstitucionalidade – por violação da norma do artigo 114º, nº1 ou do princípio constitucional da divisão e repartição de funções entre os diferentes órgãos de soberania – sempre que um órgão de soberania se atribua, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite ou impõe, competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro diferente órgão.

Por isso mesmo, a conclusão da CC apenas poderia ser uma, após diferenciar a

fixação dos critérios jurídicos que devem presidir à cessação de intervenção e o acto propriamente dito (aquele como exercício da função materialmente legislativa e este último como exercício da função administrativa): o acto de cessação de intervenção (tal como caracterizado) está insíto nas competências específicas do Governo, pela que nada justifica a sua efectivação por intermédio de acto legislativo e respectivo processo.

Eis que chegamos, em pequenos passos, ao cume da nossa montanha. O Parecer nº 8/80, de 8 de Abril75, manifestando o mesmo confronto ideológico, situa-se já num ponto extremo, quer em termos da análise jurídica possível, quer mesmo em termos da nossa história nacional.

Vimos já a rigidez das normas constitucionais incidentes sobre a Constituição económica, bem como, nas anteriores análises de jurisprudência da Comissão, a interpretação jurídica desenvolvida no sentido da sua flexibilização, em nome da sua harmoniosa integração no espírito global do sistema constitucional. O Decreto-lei nº 39-G/80 da Presidência do Conselho de Ministros procurará jogar o máximo possível com essa flexibilização, o que desencadeará, uma vez suscitada a questão da sua constitucionalidade, uma interessante actividade jurisprudencial.

Destina-se o presente Decreto a alterar a Lei nº 46/77, que o Governo foi autorizado a alterar com a Lei nº 2/80, e que incide, mais uma vez, sobre os sectores económicos vedados à iniciativa privada. As alterações são profundas e evidentes, pelo que será útil apresentá-las de forma simples e sistemática, como o faz a própria Comissão:

- o artigo 3º da Lei nº 46/77 (que em diante designaremos

simplesmente por Lei) veda a empresas privadas e outras da mesma natureza a actividade bancária e seguradora. A alteração constante do Decreto-lei nº 39-G/80 (em diante, apenas Decreto-lei) substitui a vedação por um condicionamento, em condições a fixar por decreto-lei posterior e em harmonia com as directivas económico – financeiras do Governo

- o artigo 4º da Lei veda empresas privadas a actividade numa série imensa de áreas: grande maioria dos transportes (excepto dos transportes marítimos), produção e distribuição de energia eléctrica,

75 Em Pareceres..., cit., XI, Lisboa (1981), pp. 190 e segs.

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produção e distribuição de gás, captação, tratamento e distribuição de água, saneamento básico, comunicações postais, telefónicas e telegráficas, bem como exploração de portos e aeroportos. A alteração constante do Decreto alarga a possibilidade de iniciativa privada em torno das comunicações e de todas as espécies de transportes, mediante autorização do Governo

- o artigo 5º da Lei veda e empresas privadas o acesso, entre outras, à indústria de armamento, refinação de petróleo, siderúrgica e cimenteira. A alteração constante do Decreto permite ao Governo, em condições a fixar por Decreto – lei, autorizar a empresas privadas o acesso à indústria de armamento, refinação de petróleo e siderúrgica, deixando de contemplar as indústrias cimenteira e adubeira

- o artigo 9º da Lei confere ao Governo a possibilidade de entregar a empresas privadas a exploração e gestão de empresas nacionalizadas, desde que nas condições já vistas: em casos excepcionais, temporariamente e apenas quando tal se mostre absolutamente necessário para melhor realizar o interesse público e os objectivos do Plano. A alteração constante do Decreto elimina esses mesmos requisitos da Lei, mantendo apenas a intenção de prosseguir o interesse público e os objectivos do Plano.

Uma análise séria do diploma em questão não deixa dúvidas de que, como o compreende claramente a própria Comissão, estamos aqui perante uma radical diferença em relação à praxis legislativa até então seguida: agora, o que se estabelece é que, por um lado, “quaisquer empresas nacionalizadas, seja qual for o sector a que pertençam podem ter a sua exploração e gestão objecto de concessão”; por outro, “não se prescreve a definição do regime da concessão por decreto-lei e não se estatui que ela só possa ocorrer em casos excepcionais e sem carácter definitivo”. Sendo este o cenário, poderia a Comissão, na mesma lógica até então seguida, e que aqui já apresentamos, concluir pela constitucionalidade deste diploma? Cremos que não, sobretudo se tivermos em conta que a sua missão primordial e, obviamente, a sua vocação, é revelar o direito vigente, fazer análise jurídica e não perfilhar qualquer tipo de política legislativa, que incumbe especialmente ao poder democraticamente constituído. Por isso, as considerações do Governo (algumas das quais recordadas no mesmo Parecer) de que nada justifica o rigoroso regime vigente, tendo em conta critérios políticos e económico – financeiros, nada têm que ver com a actividade da Comissão, que deve apenas enquadrar constitucionalmente o problema a ela submetido. Esta age, portanto, com profunda consciência do seu papel e as sua função, recordando que é a própria Constituição que “concebe uma economia complexa, pluralista ou mista que garante os três sectores de propriedade dos meios de produção e que marca (ou prescreve) limites entre eles”, sendo que “um desses limites consiste na vedação de certos sectores básicos da economia à actividade privada”. É que, recorda ainda a Comissão, com apreço ou não do poder constituído, a “Constituição visa um objectivo transformador, que, mais especificamente, exclui a actividade privada em certos sectores básicos”. Ora, alargar a possibilidade de intervenção de empresas privadas e outras da mesma natureza em praticamente todos os sectores da economia

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seria um projecto de política legislativa absolutamente lícito e legítimo, mas inelutavelmente contrário à Constituição Portuguesa de 1976 que “confere à iniciativa privada um estatuto que não pode ser idêntico ao que teria numa Constituição inspirada num projecto diferente”. A conclusão só poderia, portanto, a de que se “afigura ineliminável a inconstitucionalidade do decreto em exame”, com uma importante mensagem destinada ao legislador: o grau de flexibilização da interpretação jurídico – constitucional atingiu o seu ponto máximo, cabendo agora ao poder legislativo, especialmente quando investido de poderes constituintes (o poder constituinte derivado), escolher o rumo a percorrer, em termos de política económica global, pela colectividade. É que, como nota ainda a Comissão, sendo certo que “a lei em democracia traduz a vontade maioritária do povo em cada momento, esta vontade não pode revestir forma ou conteúdo oposto à Constituição, expressão, por seu lado, de uma vontade do povo de força jurídica superior”. No fundo, é já um importante sinal deixado para a nova Revisão constitucional, que ocorreria em 1982, um autêntico sinal dos tempos da Comissão Constitucional, tão importante como hoje o podemos compreender, para um Portugal que se adivinhava facilmente em mudanças profundas, num futuro não muito longínquo. E a sua mensagem parece bem ter sido compreendida.76

76 De facto, a Revisão constitucional de 1982 viria a marcar um momento de autêntica ruptura com a Constituição económica vigente. Esta matéria é, a nossa ver, muito bem tratada por Eduardo Paz Ferreira, que aborda precisamente a “Evolução liberalizante da Constituição económica”. Cfr. Paz Ferreira, Eduardo, “A Constituição económica de 1976: Que Reste –T – Il de nous amours?”, in Perspectivas Constitucionais..., cit., I, pp. 383 – 398.

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4) CONSIDERAÇÕES FINAIS Restam-nos por ora umas breves palavras finais. Como sempre, simultaneamente alegres (uma alegria que brota da verificação de um projecto que cumpriu com os objectivos a que se tinha proposto) e contidas (por não ser possível, e talvez nunca o seja, ir tão longe quanto gostaríamos). Em todo o caso, ficou, assim o esperamos, bastante claro o papel crucial, tantas vezes esquecido ou ignorado, da Comissão Constitucional na nossa história político – constitucional recente. Neste âmbito, importa extrapolar algumas conclusões. Antes de mais, parece ser hoje uma evidência que a origem da Comissão Constitucional (nos termos que inicialmente apresentámos e segundo a interpretação que dela fizemos) bem como a sua natureza híbrida (também apresentada e explicada inicialmente) não constituíram um obstáculo a que a actuação desta se configurasse como primícias de uma verdadeira justiça constitucional. De resto, a jurisprudência que viria a ser desenvolvida pelo Tribunal Constitucional, incontestavelmente um tribunal na acepção própria do termo, com inúmeras referências aos acórdãos e pareceres da Comissão, representam a prova disso mesmo. Como tal, a sua actividade jurisprudencial foi fundamental para sedimentar decisivamente, na consciência jurídica colectiva, a necessidade de uma justiça constitucional independente, indubitavelmente caracterizada como uma actividade jurisdicional. Se a existência de um órgão central de fiscalização da constitucionalidade era, para alguns sectores das mais diversas áreas (não obstante a experiência de sucesso já verificada noutros países europeus), de duvidosa utilidade, em 1982, após seis anos de actividade da Comissão, ninguém (senão uma massa insignificante e altamente politizada) punha em causa a necessidade do mesmo, ainda que proposto em formas diferentes. Neste sentido, é hoje indiscutível que a Comissão Constitucional abriu o caminho, em todas as frentes, para a criação de um Tribunal Constitucional. Só por isto, o seu mérito seria de um valor histórico inestimável. Mas o seu papel não termina aqui, e adquire sobretudo relevo no conjunto macro da história de Portugal, mais precisamente na nossa história político – institucional recente. É que a actividade essencial da Comissão – a actividade interpretativa da [Constituição] – estava fortemente imbuída de uma pré – compreensão democrática e pluralista, o que terá sido um factor decisivo para a consolidação da democracia no nosso país, numa altura fortemente marcada por contrastes revolucionários. Repare-se: num período de conturbação permanente no seio dos poderes instituídos, no contexto de uma democracia recém – constituída, a existência de um órgão jurisdicional (ainda que com as particularidades conhecidas) que actuasse com firmeza na defesa dos valores da democracia pluralista, dificilmente pode deixar de ser um contributo essencial para a instituição e consolidação da mesma. Esta perspectiva é facilmente reforçada, se recordarmos o grau de importância de muitas questões submetidas à apreciação da Comissão, referentes ao essencial do nosso sistema jurídico e político77.

77 Recorde-se, por exemplo, o Parecer nº 15/77 de 16 de Junho, já aqui analisado, quando a Comissão Constitucional esclarece que o socialismo da Constituição é para cumprir no ritmo e segundo a vontade do povo português, configurando-o como um socialismo democrático e não autocrático ou totalitarista. Ou ainda o Parecer º 16/79 de 21 de Julho, também já analisado, quando se defende firmemente o

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Posto isto, gostaríamos de deixar um apelo: impõe-se estudar com maior intensidade, e certamente noutras perspectivas, a Comissão Constitucional. Não apenas, para cumprir os desígnios audazes daquele jovem autor que adivinhava numerosos trabalhos relacionados com a jurisprudência constitucional, em termos de análise jurisprudencial ou na óptica estritamente jurídica, mas numa óptica mais próxima da ciência histórica, seus pressupostos e metodologia próprios. Uma instituição desta índole não é certamente património exclusivo do mundo do Direito, mas de todos os domínios que compõe a nossa história colectiva contemporânea. E não apenas na história morta dos livros vive a Comissão Constitucional. As grandes batalhas travadas, tanto quanto o permitia a sua natureza e as suas competências e atribuições próprias, em torno de valores que hoje temos por essenciais, não devem nunca ser esquecidas. Elas não pertencem ao passado, nem ao presente de alguns que insistem em recordá-las, são de sempre, são História e Vida de todos os portugueses.

Lisboa, 25 de Abril de 2003.

Estado de Direito democrático como valor superior da nossa identidade constitucional, bem como um modelo económico pluralista.

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78 Somente se elenca neste rol a bibliografia citada ao longo do texto, o que, assim o entendemos, revestirá maior utilidade para todos aqueles que, partindo deste, se entusiasmem com empresas futuras do mesmo género

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