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A coleção fotográfica de Marcel Gautherot* Lygia Segala Faculdade de Educação e Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense RESUMO: Considerando o debate contemporâneo da antropologia sobre a fotografia, interessa compreender a constituição de uma das mais importantes coleções fotográficas sobre o Brasil do século XX, aberta à consulta pública, a do francês Marcel Gautherot (1910 -1996). São cerca de 25 mil fotogramas, adquiridos em 1999 pelo Instituto Moreira Salles e guardados em sua reserva técnica, no Rio de Janeiro. Comenta-se no texto o trabalho do fotógrafo, vinculado a projetos documentários de instituições como o Musée de l’Homme, em Paris, no final dos anos 1930, e no Brasil, o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, entre os anos 1940-1960. Tais compromissos e interesses definem eixos temáticos importantes na produção e na organização do seu acervo fotográfico pessoal. Procura-se discutir os critérios e os procedimentos técnicos que adota para a realização e a classificação de suas imagens, precisando séries, narrativas visuais sobre a diversidade cultural brasileira. Com a aquisição do seu acervo pelo IMS, ganha mais relevo, enquanto coleção institucional, sua qualidade estética. Redefinem-se modos de preservação e conservação, reprodução e circulação dessas fotografias. PALAVRAS-CHAVE: Fotografia etnográfica. Coleção fotográfica. Patrimônio cultural. Marcel Gautherot. Brasil. ABSTRACT: Considering contemporary Anthropology’s debate around photography, there is a keen interest in the understanding of one of the most important open to public consultation photographic collections on 20 th Century Brazil, that of Frenchman Marcel Gautherot (1910- 1996). The collection comprises around 25,000 photographs, purchased in 1999 by Instituto Moreira Salles and kept in its fund in the city of Rio de Janeiro. The text comments on the photographer’s work, linked to documentary projects under the patronage of institutions such as the Musée de l´Homme in Paris, at the end of the 1930s, and both the National Historic and Artistic Patrimony Service and the Brazilian Folklore Defence Campaign, in Brazil, between the years of 1940 -1960. Such commitments and interests define important thematic groupings in the production and organisation of his personal photographic archive. A discussion about * Este artigo faz parte de um projeto mais amplo sobre Marcel Gautherot financiado pela The Getty Foundation. 73 Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.13. n.2. p. 73-134. jul.-dez. 2005.

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A coleção fotográfica de Marcel Gautherot*

Lygia Segala

Faculdade de Educação e Programa de

Pós-graduação em Antropologia da Universidade

Federal Fluminense

RESUMO: Considerando o debate contemporâneo da antropologia sobre a fotografia, interessacompreender a constituição de uma das mais importantes coleções fotográficas sobre o Brasildo século XX, aberta à consulta pública, a do francês Marcel Gautherot (1910 -1996). Sãocerca de 25 mil fotogramas, adquiridos em 1999 pelo Instituto Moreira Salles e guardadosem sua reserva técnica, no Rio de Janeiro. Comenta-se no texto o trabalho do fotógrafo,vinculado a projetos documentários de instituições como o Musée de l’Homme, em Paris, nofinal dos anos 1930, e no Brasil, o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e aCampanha de Defesa do Folclore Brasileiro, entre os anos 1940 -1960. Tais compromissose interesses definem eixos temáticos importantes na produção e na organização do seuacervo fotográfico pessoal. Procura-se discutir os critérios e os procedimentos técnicos queadota para a realização e a classificação de suas imagens, precisando séries, narrativasvisuais sobre a diversidade cultural brasileira. Com a aquisição do seu acervo pelo IMS,ganha mais relevo, enquanto coleção institucional, sua qualidade estética. Redefinem-semodos de preservação e conservação, reprodução e circulação dessas fotografias.PALAVRAS-CHAVE: Fotografia etnográfica. Coleção fotográfica. Patrimônio cultural. MarcelGautherot. Brasil.

ABSTRACT: Considering contemporary Anthropology’s debate around photography, there is akeen interest in the understanding of one of the most important open to public consultationphotographic collections on 20th Century Brazil, that of Frenchman Marcel Gautherot (1910-1996). The collection comprises around 25,000 photographs, purchased in 1999 by InstitutoMoreira Salles and kept in its fund in the city of Rio de Janeiro. The text comments on thephotographer’s work, linked to documentary projects under the patronage of institutions such asthe Musée de l´Homme in Paris, at the end of the 1930s, and both the National Historic andArtistic Patrimony Service and the Brazilian Folklore Defence Campaign, in Brazil, between theyears of 1940 -1960. Such commitments and interests define important thematic groupings inthe production and organisation of his personal photographic archive. A discussion about

* Este artigo faz parte deum projeto mais amplosobre Marcel Gautherotfinanciado pela The GettyFoundation.

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criteria and technical procedures adopted by the photographer is attempted, detailing seriesand visual narratives about Brazilian culture’s density. With the photographs’ purchase by theIMS, the oeuvre’s aesthetic quality, now as an institutional collection, is highlighted. The collection’smanners of preservation and conservation, reproduction and circulation are redefined.KEYWORDS: Ethnographic Photography. Photographic Collection. Cultural Heritage. MarcelGautherot. Brazil.

Experimentos fotográficos e ciências sociais surgem enquanto técnicae campo disciplinar aproximadamente em uma mesma época e comprometem-se desde então, como já observou Howard Becker1, apesar da diversidade deprojetos, com a “exploração da sociedade”2. Nos debates contemporâneos daantropologia, a fotografia aparece como uma categoria particular de imagemou como objeto visual com valor de uso ou de troca em diferentes grupos sociais.Define-se mais largamente no trabalho de campo como modo de observação,registro descritivo ou de autentificação3, instrumento para coleta de dados.Desdobra-se, nas sínteses de gabinete, como ilustração etnográfica contrapontodo argumento textual ou do exercício interpretativo preocupado com a“focalização do detalhe particular”4. Insere-se também, em outras análises,contemplando várias ordens argumentativas e processos particulares de circulaçãoe apropriação, como objeto retórico, peça votiva ou identitária, lembrança,relicário, obra de arte, item de coleção.

Nessas notas, considerando essa dupla dimensão da expressãofotográfica, é interessante compreender a constituição de uma das maisimportantes coleções fotográficas sobre o Brasil do século XX, aberta à consultapública, a do francês Marcel Gautherot (1910 -1996). São 25 mil fotogramas,adquiridos em 1999 pelo Instituto Moreira Salles e guardados em sua reservatécnica no Rio de Janeiro5. Entre os anos 1940 -1980, Gautherot produz esseextenso trabalho focando, principalmente, o patrimônio cultural material e imaterialdo país6. Tratarei o assunto a partir das relações construídas por Gautherot comduas instituições públicas, o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacionale a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, que encomendam seus serviçose apóiam seus deslocamentos no país, nos anos 1940 -1950, principalmente,determinando roteiros fotográficos que interessavam a seus projetos de pesquisa,de preservação e de difusão.

Com formação em arquitetura, como já comentou minha colegaHeliana Salgueiro, o fotógrafo busca nas paisagens, nas comemorações e navida cotidiana, na história vivida das ruas, o equilíbrio minucioso das formas, ojogo com a profundidade de campo e o movimento, o registro calculado dasluzes. Previsualiza o momento particular em que as disposições do quadrosintetizam como trama gráfica e representação o acontecimento.

Esse tipo de síntese, porém, segundo Lévi-Strauss7, guarda umaplasticidade de contingência a contra-senso da abstração intelectual. Faz sentidona etnografia como foto resíduo – referência de testemunho e nostalgia e como

1. BECKER, 1986, p. 223-271.

2. A propósito, Marescaobserva que:“les termesde cette proximité sontindéniablement problé-matiques. Car l’une desoptions par lesquelles lessociologies ont cherchéà affirmer la scientificitéde leur discipline dans lecadre académique a été,précisément, de se dé-marquer de l’image docu-mentaire. Déjà, au tour-nant du siècle, les anthro-pologues de terrainavaient affiché dans lemode de construction etd’écriture de leurs mono-graphies spécialisées unerupture avec le récit devoyage traditionnel, quielle aussi était passé parun rejet de l’imagerie etdes descriptions exoti-santes”. MARESCA, 1996,p. 12.

3.As discussões recentessobre a produção etno-gráfica,como se sabe,co-locam em questão a exa-tidão e a transparênciadessas imagens docu-mentais, a crença na ca-pacidade mimética da fo-tografia. Ver MARESCA,1996; COLLEYN, 2004;ROUILLÉ,2005 (especial-mente a primeira partedo livro);BELTING,2004,p. 77-118.

4. PIETTE, 1996.

5. Segundo Sérgio Burgi,responsável pela reservatécnica de fotografia doInstituto Moreira Salles,há, desse total, cerca de18 mil negativos, 3 milcromos e cerca de 3 milimagens em contatos,sem os negativos origi-nais (entrevista realizadaem 17/5/2004).

6. É importante lembrar,como assinala ElizabethEduards, que “photo-graphy aided the reifica-tion process as creationsof the mind became con-crete, observed realities,

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foto resgate – uma reserva documental, onde está em foco a preservação, aobrigação moral da memória8.

Cabe relembrar que a formação fotográfica de Gautherot tem comoprimeira referência seus experimentos com a revelação fotográfica no laboratóriodo novo Musée de l´Homme, em Paris, onde participa, como arquiteto decorador,do projeto de reorganização das exposições etnográficas, sob a direção dePaul Rivet (1937-1938)9. Em notícia de jornal10 sobre a inauguração do Muséede l´Homme, recortada e guardada por Gautherot, aclama-se este “musée vivant”,sem equivalente nos Estados Unidos nem na Alemanha. Na reportagem, frisam-se os recursos técnicos da mostra, o mobiliário moderno, a iluminação, osmateriais de revestimento, a ordem das vitrines, a sinalização fotográfica, acenografia de efeitos. A exposição, conceitualmente, pretendia tratar a espéciehumana na sua totalidade, percorrendo os continentes explorados a partir demapas em relevo. A matéria aplaude a equipe do museu, especialmente as artesde Georges-Henri Rivière11 que já se destacara na organização da primeiraexposição popular de arte pré-colombiana na França, em 1928. Exalta acolaboração fecunda entre o etnólogo, o arquiteto e o decorador. MarcelGautherot aparece na lista dos nomes reverenciados.

Cabe notar que o novo Musée de l´Homme, concebido como parteda Exposição Internacional de 193712, reunia etnólogos como Alfred Métraux13,André Leroi-Gourhan14, Maurice Leenhardt15, Marcel Griaule16, Michel Leiris17,Jacques Soustelle18, freqüentadores dos seminários de Marcel Mauss no Institutd’Ethnologie, da Université de Paris, criado em 1925. Nesse contexto particularde discussão, precisavam-se estratégias metodológicas para o trabalho de campocom implicações nos projetos da museografia, considerada como ramo daetnografia descritiva.

No seu Manuel d’Ethnographie, publicado em 1947, Mauss insisteque “l’ethnographie doit avoir le souci d’être exact, complet; il doit avoir le sensdes faits et leurs rapports entre eux, le sens de proportion et des articulations”19.Sugere que “le collecteur s’attachera à composer des séries logiques en réunissantsi possible tous les échantillons d’un même objet”20. Era importante localizar aprodução desses objetos, seu uso social: “on ne fera jamais trop de photos, àcondition qu’elles soient toutes commentés et exactement situées: heure, place,distance”21. Tal recomendação extrapola o recurso complementar do registrotextual na coleta de dados ou nas exposições. Sublinha o uso da fotografia,enquanto método de observação material, recomendando que a documentaçãoda vida social seja feita sem pose.

Na nova ordem argumentativa do Musée de l´Homme, a preocupaçãocom o rigor documentário marca uma clara diferença com relação ao Muséed’Ethnographie du Trocadéro, que até os anos 1930 conservava e exibia ascoleções etnográficas francesas. Neste museu, a justaposição inesperada daspeças, na maioria das vezes mal classificadas e sumariamente identificadas,correspondia ao que James Clifford chamou de uma “estética do surrealismoetnográfico”22.

recorded in the mechani-cal eye of the camera.Through photography,for example,the ‘type’theabstract essence of hu-man variation was per-ceived to be an observa-ble reality”. EDUARDS,1992, p. 7. Ver tambémEDUARDS, 1990, p. 235-258;WRIGHT,1992,p.18-31.

7.Entrevista a Antoine deGaudemar (Libération),publicada no jornal Fo-lha de S. Paulo em15/1/1995.

8.André Bazin fala da fo-tografia como uma “en-treprise de sauvetage:sauver l’ être par l’appa-rence” (BAZIN, 1987).

9.Paul Rivet (1876-1958),antropólogo francês comtrabalhos de pesquisa,nos anos 1920,em paísesandinos. Em 1929 torna-se professor de Antropo-logia no Muséum Natio-nal d’Histoire Naturelle ediretor do Musée d’Eth-nographie du Trocadéro,em Paris. Em 1937, reor-ganiza com George-Hen-ri Rivière as coleções deantropologia física e deetnologia desses museus,no âmbito do novo Mu-sée de l´Homme, quepassa a dirigir. Militantesocialista, durante o regi-me de Vichy,refugia-se naAmérica Latina, criandoo Instituto de Etnografiade Bogotá e o InstitutoFrancés da América Lati-na,no México.Cabe indi-car que, em 1934, aindano antigo Musée d’Ethno-graphie du Trocadéro, ofotógrafo Pierre Vergerfora admitido como “co-laborador voluntário”,sendo encarregado do la-boratório fotográfico.Seu capital de experiên-cias, acumulado em vá-rias viagens como repór-ter fotográfico, qualifica-vam-no diante de antro-pólogos e etnólogos,pes-quisadores do museu.Seus primeiros trabalhos

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Paul Rivet argüiu essa ordem compilatória, o tratamento estético dosartefatos23. Tendia a ver a humanidade “sob uma perspectiva evolucionária edifusionista, enfatizando o desenvolvimento biocultural de longa duração e areconstrução de seqüências históricas através do colecionamento extensivo e dacomparação de traços”24. Alargava-se, no novo museu, a concepção estritamente“anatômica” da antropologia física, abrindo-se espaço para os “fatos culturais”25.Nas descrições reconstituídas, importavam os registros visuais e a linguagemdos objetos, “lembranças duráveis e precisas”26 das análises textuais.

No arquivo institucional, acumulavam-se dois grupos significativos defotografias sobre antropologia física, pré-história e etnologia: as que identificavamos objetos das diferentes coleções do museu e aquelas realizadas nas pesquisasde campo27. Destacavam-se entre estas as coleções de Alfred Métraux28, ClaudeLévi-Strauss29 e especialmente a de Marcel Griaule. No seu trabalho, Griauleutilizava a imagem de forma sistemática, definindo, sobretudo a partir da missãoDakar-Djibouti30, um verdadeiro “método fotográfico” na pesquisa etnográfica.Explora a multiplicação de pontos de vista, a construção de seqüências narrativaspara descrever um acontecimento da forma a mais completa possível31. A“observação visual” era tida como fundamental “para provocar, controlar everificar discursos confessionais”32. No exercício etnográfico, a câmera fotográficainstigava, segundo Griaule, de forma intrusiva, a “verdade”.33 Tais idéias marcama produção fotográfica de técnicos e pesquisadores ligados ao museu.

A organização das imagens coletadas articulava-se no arquivo àordem dos objetos expostos no museu34. Era estruturante o critério geográfico,secundarizando-se os registros de autoria, as datas, os contextos particulares derealização35.. Seguia-se uma classificação temática das imagens, contemplandoestudos de morfologia e fisiologia sociais, sublinhados nos sumários dasmonografias clássicas36.

Nas exposições, a fotografia era utilizada como título visual (imagemde síntese de segmentos da mostra), como contextualização ou substituição deobjetos que pela sua dimensão ou importância não podiam ser trazidos para omuseu37. As imagens escolhidas estabilizavam objetivações concorrentes esucessivas da vida social. A crença na máxima evidência fotográfica, nessecontexto, define uma conexão mais imediata, entre o visível – as fotografias – eo invisível – a totalidade de uma cultura específica38, produzindo valorestestemunhais, patrimoniais ou emblemáticos.

Provocado pelo debate dos cientistas e dos técnicos do museu sobreos modos de representação do outro, as relações entre observação, colecionismoe conhecimento, arte e etnografia, Marcel Gautherot decide lançar-se, nos limitesde sua especialidade técnica, sur le terrain. Com o apoio de Jacques Soustellee de George-Henri Rivière39, realiza alguns ensaios fotográficos no México, em1936. Cabe indicar que, nesse mesmo ano, Pierre Verger fotografa no mesmopaís, publicando seu trabalho no livro Méxique, editado por Paul Hartmann, em1938. A introdução e as notas do livro são de Jacques Soustelle que entãocolaborava com os etnólogos mexicanos para a criação da Sociedade Mexicanade Antropologia, na Cidade do México. O trabalho de Gautherot foi também

foram ampliações de cha-pas feitas por Alfred Mé-traux, na Ilha da Páscoa,para a exposição sobre ascivilizações no Pacífico,preparada por George-Henri Rivière. Em 1937,fotografa a ExposiçãoUniversal, publicando 48fotos na revista Arts etMétiers Graphiques(VERGER,1982,p.95).Asprimeiras relações entreVerger e Gautherot, es-treitadas, como se veráadiante, no Brasil, dese-nham-se nesse contexto.

10. Le Jour, Paris, 10/5/1938. Acervo InstitutoMoreira Salles.

11. Sobre o desenvolvi-mento da estética etno-museológica de Rivière,ver GORGUS, 2003.

12 O museu, indica Clif-ford, era um símbolo dosideais do Front Populai-re.Rivet,socialista,enten-dia, então, como funda-mental a articulação da“ciência com a educaçãodo público na perspecti-va de um humanismoprogressista”. Ver CLIF-FORD, 1998, p. 159. Poroutro lado, era um proje-to que colocava em foco,dentro de um contextode concorrência interna-cional,a dominação colo-nial. Benoît de l’Estoilechama a atenção para aconvergência, no perío-do, entre a racionalidadecientífica do Musée del´Homme e a racionalida-de burocrática e adminis-trativa da Escola Colo-nial.Ver L’ESTOILE,2002,p. 61-93.

13.Alfred Métraux (1902-1963),etnólogo suíço,na-turalizado norte-america-no. Escreveu inúmerostrabalhos sobre arqueo-logia,história e etnologiada América do Sul e da Po-linésia, destacando-se osestudos sobre cultos afro-americanos e o campesi-nato haitiano. Para umasíntese de seus trabalhos

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publicado e reconhecido em revistas francesas, como comentou HelianaSalgueiro, estimulando-o a redefinir interesses e projetos.

A fotografia – para Gautherot40 – surge do seu desejo de mobilidade,de ruptura41; “une espèce de réparation de soi par l’action et le mouvement”42. Éda viagem que ele constrói o sentido novo do seu ofício, a especificidade desua identidade profissional como fotógrafo.

Em 1939, visita o Brasil. Preocupava-se o fotógrafo em explorar aluz dos trópicos, os “aspectos tanto paisagísticos como humanos da região afim de enviá-los para a coleção do Museu”43. Define sua atividade como exercíciode “fotojornalismo científico”44, pela atenção que dá aos detalhes da vida socialobservada, às instruções da pesquisa etnográfica. Paul Rivet lhe dá carta derecomendação às autoridades francesas no Brasil e na América do Sul, atestandoos interesses do museu nesse ensaio fotográfico45. Com a guerra, porém,interrompe suas primeiras incursões documentárias na Amazônia46, voltando aoBrasil depois do primeiro armistício.

Diferentemente de Pierre Verger, que tinha sempre “le pied à l’étrier”,correndo o mundo (como dizia Alfred Métraux)47, Gautherot embrenha-se dentrodas fronteiras do país. É como viajante que se percebe e se apresenta, definindoum “olhar nômade” sobre o Brasil. Essa proximidade distante, dos que vêm defora, como sublinha Simmel48, engendra formas particulares de observação, demediação, de interação social49. A idéia de viagem, nos seus comentários,trança-se, de início à de fuga do espaço doméstico, da família francesa, dapobreza e dos impasses políticos na Europa50. Os interiores do Brasil, muitoespecialmente a região do Rio São Francisco, no Nordeste, têm especialrelevância na qualificação de sua experiência de mobilidade como estratégiade enraizamento simbólico para dentro e para longe. Seguindo a recomendaçãode Michel Leiris, que conhecia do Musée de l’Homme, interessa-se a “voyager‘non en touristes (ce qui est voyager sans cœur, sans yeux et sans oreilles) maisen ethnographes, de manière à devenir assez largement humains pour oublierleurs médiocres petites manières de blanc’”51.

Seus trajetos pelo país, com tempos e extensões particulares, paradasnegociadas, fazem-se em função de encomendas recebidas, de serviçosfotográficos arranjados durante percursos de viagem ou ainda de projetos pessoaisdo fotógrafo, desenvolvidos por conta própria.

No Rio de Janeiro, onde tem seu endereço52, conhece Rodrigo MelloFranco de Andrade, diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional(SPHAN), recém-criado em 1937, no âmbito do processo de centralizaçãoautoritária do governo Vargas53. O serviço, ligado ao Ministério da Educação eda Saúde, tinha por objetivo preservar e restaurar bens culturais representativospara a história oficial54. Nos seus quadros, os intelectuais de relevo, vinculadosao movimento modernista, tinham sua atuação pautada pelas tensões de umduplo compromisso. De um lado, com um projeto cultural renovador, interessadonas novas linguagens estéticas, na construção orientada da tradição brasileira.De outro, com as exigências de um governo autoritário, com as prescrições doEstado Novo (1937-1945)55. A posição de Gustavo Capanema no ministério

ver MÉTRAUX,1964, p.603-609.

14.André Leroi-Gourhan(1911-1986), etnólogofrancês. Deixou váriascontribuições no âmbitoda antropologia física (ahominização), da etnolo-gia (tecnologia e estéti-ca) e da pré-história (mé-todos de escavação, arterupestre,estrutura do ha-bitat, evolução das socie-dades).Em 1945,torna-sesubdiretor do Musée del´Homme onde funda oCentro de Formação pa-ra a pesquisa etnológica.Sobre sua trajetória pro-fissional ver BONTE-IZAR, 1991, p. 414-416.

15 Maurice Leenhardt(1878-1954), teólogo,missionário da Sociedadedas Missões Evangélicasde Paris, trabalha na No-va Caledônia de 1902 a1926. Dedica-se depoisaos estudos de etnologiae etnolingüística em Pa-ris, sucedendo MarcelMauss, em 1941, na Éco-le Pratique des HautesÉtudes, na cátedra de re-ligiões de povos não civi-lizados. É então, tambémresponsável pelo Depar-tamento de Oceania doMusée de l´Homme.Parauma revisão dos seus tra-balhos ver CLIFFORD,1998, p. 227-251.

16.Marcel Griaule (1898-1956), etnólogo francês,realiza suas primeiraspesquisas na Abissínia(1928). Destaca-se naMissão Dakar-Djibouti(1931-33), vinculada aoMuseu de Etnografia doTrocadéro, desenvolven-do a partir de então ex-tenso trabalho sobre osdogons do Sudão francês,atual Mali.Em 1943,é no-meado professor na Sor-bonne, como titular daprimeira cátedra de etno-logia geral. Para uma dis-cussão de suas referên-cias teóricas e de sua me-todologia de trabalho ver

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garantia-lhes, porém, nos limites dos jogos de poder, uma expressiva autonomiana produção de valores e significados novos para uma “política do passado”.Tomava corpo, segundo Sérgio Miceli, “a concepção de ‘cultura brasileira’ sobcuja chancela, desde então, se constituiu uma rede de instâncias de produção,distribuição e consagração de bens simbólicos, às custas das dotações oficiais”56.

O arquiteto Lucio Costa lembra-se de Gautherot “o mais artístico” dosfotógrafos do patrimônio chegando ao SPHAN, irrompendo “repartição a dentrosobraçando uma pasta com belas fotos da Acrópole, na companhia de PierreVerger”57. Rodrigo Mello Franco de Andrade entusiasmou-se com o material,acolhendo Gautherot como um de seus colaboradores, assegurando-lhe trabalhoscomissionados. Por seu intermédio, Gautherot freqüenta intelectuais modernistas dacidade como Carlos Drummond de Andrade, o próprio Lucio Costa, Alcides RochaMiranda e Mário de Andrade. Foi Mário de Andrade, segundo Turazzi58, queinstaurou no SPHAN

o que poderíamos chamar de “uma política de documentação fotográfica” das manifestaçõesculturais, históricas e artísticas, populares e eruditas, edificadas e não edificadas queconstituíam a identidade do Brasil e, por conseguinte, formariam através da iconografiauma visão do seu patrimônio59.

Em cartas a Rodrigo Mello Franco60 (1936-1945), Mário de Andrade61

sublinha, por diversas vezes, a importância da fotografia como documentaçãocomprovante nos processos de inventário e nas recomendações de tombamentoe restauração das “obras de arte patrimonial”. Indica a necessidade de ainstituição contar com um “serviço intensivo de fotografação”, um trabalhoprofissional bem instruído62 que precisasse informações para estudos comparativos“na reconstituição de monumentos da nação”. Insiste na idéia de um acervocumulativo – “um arquivo central único de negativos”63 – que objetivasse, poroperações seletivas e de transcrição, o repertório valorado de bens culturais dopaís.

Cabe notar que a atenção de Mário de Andrade à documentaçãofotográfica afirmara-se desde suas viagens etnográficas (1927-1929), comobem mostrou a professora Telê Ancona Lopez, estendendo-se às discussões daSociedade de Etnografia e Folclore (1936 -1939), ligada ao Departamento deCultura da Prefeitura de São Paulo, sob a sua direção (1935 -1938). Tal empenhose objetivou ainda no representativo trabalho fotográfico realizado pela Missãode Pesquisas Folclóricas, que organizara em 193864.

No SPHAN, era o Brasil do barroco, da arquitetura e da imagináriareligiosa que interessava especialmente preservar dos escombros e da ruína.Percebia-se o barroco, frisa Marisa Veloso, “como a primeira manifestaçãocultural tipicamente brasileira, possuidor portanto da aura da origem da culturabrasileira, ou seja, da nação”65. As idéias de autenticidade e excepcionalidadebalizavam os procedimentos de escolha, de tombamento. Sugeriam a produçãode “continuidade, totalidade e essência”, evocando, como sugere Thiesse66,

CLIFFORD, op. cit., p.179-226.

17. Michel Leiris (1901-1990), escritor e etnólo-go francês, participa domovimento surrealistanos anos 1920 e mais tar-de, com Marcel Griaule,da Missão Dakar-Djibou-ti. Colabora ativamentena reformulação do Mu-sée de l´Homme em1937. Ligado ao CentreNational des RecherchesScientifiques, realiza pes-quisas etnográficas naÁfrica subsaariana(1945) e nas Antilhasfrancesas (1948 e 1952).Ver PRICE; JAMIN, 1988,p. 29-56.

18. Jacques Soustelle(1912-1990), etnólogofrancês. Entre 1932 e1940 encarregou-se devárias missões científicasno México especializan-do-se no estudo de civili-zações pré-colombianas.

19. MAUSS, 1967, p. 7.

20. Id., p. 17. No mesmotexto, o autor observaque: “Pour être precise,une observation doit êtrecomplète.[…] Il s’agit dereproduire la vie indigè-ne, non pas de procéderpar des impressions; defaire des séries, et nondes panoplies”, p. 21.

21. Ibid. p. 21.

22. A esse respeito verCLIFFORD,op.cit..Comoobserva o autor,o surrea-lismo partilhava essa si-tuação irônica com a et-nografia relativista doperíodo entre guerras,“al-terando, diante de alter-nativas exóticas, hierar-quias de valor do real”(p.148). O autor argumentaque a etnografia nesse pe-ríodo estava referida auma predisposição cultu-ral mais geral, que atra-vessa a antropologia mo-derna e que esta ciênciapartilha com a arte a es-crita do século XX (p.

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uma comunidade atemporal, marca identitária, cuja legitimidade residiria napreservação de uma herança comum.

Gautherot fotografa para o SPHAN santuários mineiros, fazendas ecasas coloniais das cidades. Articula a expectativa dos “inventários do mundovisível”, apregoada desde meados do século XIX, à “utilidade prática” de umprojeto oficial, vinculando circunstancialmente o ver e o dever.

Em função dos usos específicos da fotografia na instituição, comodocumentação elucidativa, as encomendas de serviços eram pormenorizadas,os enquadramentos estipulados67. A preocupação complementar em distinguir esolenizar monumentos definia instruções para a construção de pontos de vista àvocação emblemática68. Essas fotografias eram reproduzidas, quando deinteresse, em publicações69 e exposições.

Gautherot, para além das prescrições dos encomendantes, marcauma especificidade autoral por sua composição calculada no detalhe, acontrapelo do instantâneo fotográfico. Como bem observa Ana Luiza Nobre,

pouco ou nada em suas fotografias de arquitetura parece produto do impulso, do acaso ouda surpresa, mas antes de um princípio formal, uma intenção compositiva resolvida comrigor matemático e sujeita à ponderação de uma série de fatores, nos quais a incidênciada luz, a distância focal, a posição, altura e distância do observador somam tanto quantoa forma, o volume, as coordenadas de cada um dos elementos enquadrados, sejam eles assombras, as linhas horizontais e as verticais, todos os elementos, enfim, são simultaneamentemobilizados e regulados em favor da estruturação de um real impalpável que a sensibilizaçãoda película, naquele momento exato e irrepetível, consubstancia e torna definitivo. Obcecadopelo pormenor, Gautherot exige de cada um desses componentes rendimento máximo natrama de relações espaciais que institui70.

As encomendas feitas por Rodrigo Mello Franco definiam estruturalmente,nos anos 1940 -1950, a direção dos seus deslocamentos, apresentando-lhe ainstituições e pessoas de referência que organizavam ou apoiavam seus serviços eque, por sua vez, abriam contatos para percursos e visitas mais distantes. Aconstrução dessas redes de relações permitia outros acertos locais de trabalho comórgãos da administração pública, com empresas diversas. Essas negociaçõesconformam no seu arquivo séries fotográficas particulares.

É importante sublinhar que o alinhamento institucional para a realizaçãoda documentação fotográfica não era, naqueles anos, uma questão residual.Lévi-Strauss, nos Tristes trópicos, relata problemas que teve quando retratoucrianças de rua na Bahia, sendo interpelado por inspetores da polícia e chamadoa esclarecer seus intuitos71. Reclama ainda das agências de controle do Estado,como o Conselho de Expedições Artísticas e Científicas, que suspeitavam desua viagem de estudos como ameaça ao patrimônio nacional.

Nesses anos 1940, Gautherot viaja pelo país, produzindo, além dosregistros sobre a arquitetura colonial e moderna, um repertório de imagens definidoentão, na geografia humana, como “tipos e aspectos” do país72, em que asconfigurações sociais associam-se à paisagem e os espaços se redefinem comomarcadores culturais73 (Figura 1). Destacam-se nessas compilações, dos “quadros

136). Relativizando o ar-gumento de Clifford, Ni-na Gorgus (op.cit.p.43.)chama a atenção para as“afinidades eletivas” en-tre o movimento surrea-lista e o trabalho dos et-nólogos do Museu de Et-nografia: “affinités életi-ves, dans la mesure où ils’agit dans les deux casde mouvements qui ontdéveloppé, chacun dansleur domaine, des straté-gies non conventionnel-les pour imposer leursobjectifs et qui ont rom-pu avec les anciennes tra-ditions.Affinités életives,parce que quelques sur-realistes commençaientmalgré tout à s’intéresserà l’ethnologie”. O fotó-grafo Pierre Verger(1982. p. 25) refere-se daseguinte forma a essas re-lações: “gravitava em vol-ta do museu dirigido porPaul Rivet e George-Hen-ri Rivière uma simpáticaequipe composta de an-tigos membros das expe-dições Dakar-Djibouti,deMarcel Griaule, e para aGroenlândia,de Paul-Emi-le Victor. Foi a época emque se acotovelavam noscorredores do velho mu-seu do Trocadero,AndréSchafner com uma parti-tura de Debussy debaixodo braço; Germaine Die-terlen, transportandocom êxtase um objetodogon; Michel Leiris, ela-borando algum manifes-to surrealista; JacquesFaublée, que passava fre-qüentemente suas noitesem uma sala do museu,enrolado em um tapeteberbere tomado empres-tado de uma vitrine; De-nise Paulme,Helène Gor-don que se tornou Laza-reff em seguida; Gessain,entre duas viagens àGroenlândia; Alfred Mé-traux, na iminência departir para Honolulu...”.

23. CLIFFORD, op. cit., p.137.

24. Id., p. 159-160.

79Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

humanos” – metonímias etnográficas74 – , exclusivamente cenas exemplares dotrabalho, como mostrou Heliana Salgueiro. O fotógrafo alarga esse recorte jáconsagrado que essencializa grupos sociais, incluindo figurações novas, tiposde rua, artes e festas populares, devocionais e profanas (Figuras 2 e 3).

Uma seleção dessas imagens é publicada, em 1950, por Paul Hartmanem Paris, no livro Brésil75, do qual também participam como fotógrafos AntoineBon e Pierre Verger76. O texto, com introdução de Alceu Amoroso Lima – membroda Academia Brasileira de Letras, líder intelectual católico –, sublinha, dasdiferenças locais, o sentido de uma unidade nacional, distinguindo o país diantedo “desmembramento” colonial espanhol na América. Por esse argumento, asdiversidades explicam-se como estágios culturais, territorialmente circunscritos eestreitamente imbricados por uma lógica evolucionista que acompanha aeconomia e a política das frentes de expansão. Em uma apresentaçãoesquemática em que hierarquiza “gêneros de civilização”, as fotografias (217imagens) deixam ver e prever, no entusiasmo do autor, o país que se transformacomo totalidade e se moderniza77.

Já anunciadas no livro, as séries sobre o folclore78 têm uma importânciaparticular na produção fotográfica de Gautherot, destacando-se no pavilhãobrasileiro da Exposição Internacional de Bruxelas de 1958. Entre centenas denegativos, o fotógrafo distingue, pela exaustividade e apuro técnico, duas séries

25. DIAS, 1991, p. 251.

26. RIVET, apud DIAS,op. cit., p. 251.

27. Nos anos 1940 são in-corporadas à instituiçãoas coleções fotográficasdo século XIX do Labora-toire d’Anthropologie doMuséum National d’His-toire Naturelle.Ver BAR-THE; PIERRE, 1999, p.107-111.

28. Métraux produziuuma das mais importan-tes coleções fotográficasdo Musée de l´Homme,sobre o Chaco, Ilha daPáscoa e Haiti,mantendocom o fotógrafo PierreVerger intensa corres-pondência. Ver MÉ-TRAUX;VERGER, 1994.

29. Reúne fotos realiza-das durante suas pesqui-sas no Brasil sobre os bo-roro, guarani, kaingang ekadiweu. Algumas delasforam publicadas em LÉ-VI -STRAUSS, 1955.

30. Michel Leiris (1934)informa sobre a produ-ção detalhada de algunsdesses clichês fotográfi-cos.

31. BARTHE; PIERRE, op.cit., p. 109.

32. CLIFFORD, op. cit., p.195.

33.Para Clifford (1998, p.207), aqui “fica-se tentadoa falar de uma ‘ethnogra-phie vérité’análoga ao ‘ci-néma vérité’ pioneira-mente defendido por JeanRouch, posteriormenteassociado a Griaule: nãouma realidade objetiva-mente registrada pela câ-mera,mas provocada porsua presença ativa”.

34.Pelo plano estabeleci-do por Georges-Henri Ri-vière,“les salles accessi-bles au public devaientsuivre un classementd’abord géographique,puis par tribus, et enfin

80 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

Figura 1 – Vaqueiro, Ilha Mexiana/PA, c. 1943. Colheita de carnaúba, Messejana/CE, 1950-1952. Limpeza de café, Itaquera, São Paulo/SP, c. 1943-1948. Garimpeiro, Tocantins/PA, c.1944-1948. Vaqueiro, Ilha Mexiana/PA, c. 1943. Processamento de látex, Ilha de Marajó/PA,c. 1967-1970. Fotografias de Marcel Gautherot. Acervo do Instituto Moreira Salles.

par matériel ”. GORGUS,op. cit., p. 53.

35. Christine Barthe(2000, p. 71-90) observaque:“cette primauté ducontexte géographique acontribué à exclure lesconditions de produc-tion des photographies.L’identification de la pho-tographie au lieu où ellea été prise semble parfoistémoigner du désir d’in-sérer la scène représentédans un scénario de l’ori-gine. [...] Le rangementphysique des documentsaccentue cet effet simpli-ficateur puisque toutesles images concernant unmême pays étaient re-groupées sans distinc-tion de date: la juxtaposi-tion immédiate de photo-graphies du XIXe et duXXe siècle contribuait àabolir toute notion detemps ”.

36.Ver ODDON,Y.“Cadrede classement pour laphototèque d’un Muséed’ethnographie ”, apudBARTHE, op.cit., p. 73.

37. No acervo do Institu-to Moreira Salles, há umafotografia de um dos pai-néis da exposição, vincu-lado à antropologia física(tâche pigmentaire con-génitale), feita por Gau-therot. São conhecidasainda, do período, outraspoucas fotografias suasde exposição como a daentrada da mostra CasaRural Francesa e as do Pa-vilhão da Espanha,na Ex-posição de 1937,mencio-nadas por Heliana Sal-gueiro. Os arquivos doMusée de l´Homme es-tão no momento fecha-dos à consulta o que difi-culta o levantamento dedados sobre o trabalhode Gautherot na institui-ção.

38.Sobre a discussão dosobjetos de coleção comointermediários entreaqueles que os olham e omundo que representam

81Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

Figura 2 – Procissão de Nosso Senhor dos Navegantes,Salvador/BA, c. 1940-1945. Fotografia de Marcel Gautherot.Acervo Instituto do Moreira Salles.

Figura 3 – Carnaval, Salvador/BA, c. 1965-67. Fotografia deMarcel Gautherot. Acervo do Instituto Moreira Salles.

ver POMIAN,1987, p.15-60; 1993, n. 6. p. 1381-1401; 1984. p. 51-86.

39.Archives du Musée del’Homme, Paris. Corres-pondance. Lettre de Jac-ques Soustelle à MarcelGautherot (22/4/1936);Lettre de Marcel Gauthe-rot à George-Henri Riviè-re (14/11/1936).Agrade-ço essas indicações e asda nota 45 a Patricia Pe-ralta.

40. “A fotografia surge an-tes de tudo do meu dese-jo de viajar” afirma Gau-therot em entrevista queme concedeu, no Rio deJaneiro, em 7/12/1989, apropósito do projeto dereorganização dos arqui-vos fotográficos do entãoInstituto Nacional de Fol-clore (Funarte), sob mi-nha responsabilidade. Ostrechos de depoimentoscitados, sem outras refe-rências,são desse mesmodocumento.

41. “Minha vida é viajar[...], é meu trabalho, mi-nha profissão. Eu tiveuma família muito pobre.Eu não gostava de ficar nafamília, fugia. Aprendi aviajar, a fugir” afirma ementrevista (ver nota aci-ma) Marcel Gautherot.

42. COGEZ, 2004, p. 30.

43.“No Recife, o fotógra-fo do Serviço do Patrimô-nio Histórico e Artístico”,notícia de jornal sem re-ferência de título. Recife[1947]. Documentaçãoparticular do fotógrafo.Acervo Instituto MoreiraSalles (IMS).

44. A Folha, Belém,21/6/1939.

45.Archives du Musée del’Homme, Paris. Corres-pondance. Marcel Gau-therot. Lettre de Paul Ri-vet (20/4/1939).

46.Lélia Coelho Frota,naIntrodução do álbum Ba-

82 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

Figura 4 – Bumba-meu-boi, São Luiz/MA, c. 1948-1950. Fotografias de Marcel Gautherot.Acervo do Instituto Moreira Salles.

hia, Rio São Francisco,Recôncavo e Salvador:fotografias de MarcelGautherot (Nova Fron-teira, 1995), registra queo fotógrafo viaja “em umvapor rumo à boca do rioParu, afluente do Amazo-nas, com o engenheiroAugusto Numa Pinto, doDepartamento Nacionalde Produção Vegetal e oprefeito de Almerin, Pe-dro do Carmo Ramos”.Realiza, com sua Rolley-flex, um trabalho intensi-vo de documentação daspaisagens locais.

47. METRAUX;VERGER,1994.

48.SIMMEL,1983,p.182-184.

49. Nas fotografias, Gau-therot expressa essa ten-são, trabalhando meticu-losamente seu objeto pa-ra descobri-lo, depurá-loda situação de co-presen-ça, perseguindo uma in-visibilidade.Volto a esseponto adiante.

50. Sobre a trajetória so-cial de Gautherot ver SE-GALA, 2001, p. 27-57.

51. Apud COGEZ,op.cit.,p. 118.

52. Em entrevista dada aLélia Coelho Frota, em1995, o artista plásticoCarybé conta ter conhe-cido Gautherot no Rio,nos anos 1940, morandoem Copacabana. Ele eVerger foram seus hóspe-des por um tempo. Fre-qüentavam um grupo deamigos formado porNewton Freitas, a histo-riadora Lydia Besouchet,o escritor e poeta ManuelBandeira. Cf. FROTA,1995, p. 11.

53. Apreciações sobre es-se contexto do naciona-lismo como política deEstado, nos anos 1930-1940, estão no texto deHeliana Salgueiro.

83Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

emblemáticas: a do bumba-meu-boi no Maranhão e a do Reisado e Guerreirosem Alagoas, ambas no Nordeste do Brasil. Nas primeiras imagens mostradassobre o bumba (Figuras 4 e 5), a composição e o sentido dos planos e aprofundidade de campo trazem o lugar e a história para o foco. A representaçãofaz-se em torno de um enredo central que narra a morte e a ressurreição do boiou o seu extravio criminoso em que se intercalam, satirizando relações de prestígioe de poder, cantos, danças e recitativos cômicos79. No Reisado e nos Guerreirosde Alagoas (Figuras 6-8), explora-se a tradição portuguesa das janeiras, festasdo ciclo natalino.

Como já indiquei80, Gautherot trabalha na fronteira entre a respostaestética que absolutiza a cena e as especificidades dos lugares, das expressõese das interações sociais temporalizadas. Nesses ensaios, ele revela a“autenticidade” naquilo que observa, tramando a sua invisibilidade, o seu passar-se despercebido. Na sua perspectiva, a idéia de autenticidade, comosingularidade e permanência, liga-se à crença na nitidez documentária, nafidelidade da observação e da fixação do acontecimento, evitando-se neleintervir por recursos da técnica fotográfica, recriando o sentido dos fatos. Nessadistância calculada, fugindo das poses armadas pelos participantes, diz Gautherotquerer perseguir o registro objetivo que emociona (Figura 9).

54. Como observa Cecí-lia Londres Fonseca(2005, p. 23), as políticasde preservação eram“conduzidas por intelec-tuais de perfil tradicionalque se [propunham] aatuar no Estado em nomedo interesse público, nadefesa da cultura, identi-ficada com os valores dascamadas cultas.Ao prote-gerem a cultura dessesgrupos, convertida emvalor universal, não te-riam dificuldades emconciliar, sem maioresconflitos, sua identidadede intelectuais e de ho-mens públicos. No casodo Brasil, essa foi a situa-ção dos intelectuais mo-dernistas que participa-ram do SPHAN, desde1937, e que instauraramuma política cuja conti-nuidade e prestígio semantiveram durantemais de trinta anos.Entre-tanto, diferentemente doque ocorria então na Eu-ropa, esses intelectuaiseram figuras que, nosseus respectivos camposde atuação, tinham posi-ções de vanguarda,o queconferiu a sua atuação naárea do patrimônio umaautoridade diferencia-da”.

55. Id., p. 82.

56. MICELI,2001,p.216.

57.COSTA, 1986, p. 9.

58.TURAZZI, 1998, p. 14.

59. Participaram desseempreendimento fotó-grafos como o húngaroKazys Vozylius e o alemãoErich Hess, Benício Dias,Edgar Jacinto (no Rio deJaneiro) e Germano Grae-ser (em São Paulo).A pro-dução publicada dessesfotógrafos, em revistas eálbuns especializados so-bre patrimônio culturalbrasileiro, nas conexõesespecíficas com o traba-lho de Gautherot,será ob-jeto de estudo futuro.

84 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

Figura 5 – Bumba-meu-boi, Curupuru/MA, c. 1948-1950. Fotografia deMarcel Gautherot. Acervo do Instituto Moreira Salles.

Na produção dessas séries documentarias, o fotógrafo aproxima-sedas perspectivas que animavam os estudos de folclore no país. No debate dosfolcloristas, os folguedos populares (danças, desfiles, autos e jogos), conservadospela tradição oral e realizados como empreendimento coletivo, eram entãoprivilegiados para a observação e a identificação dos processos de formaçãoda “cultura brasileira”. Representavam para o movimento folclórico que então searticula, seu “próprio objeto em ação”81.

O movimento folclórico se formaliza, no bojo de políticas nacionalistaspopulistas, com a criação da Comissão Nacional de Folclore, em fins de 1947.Seu diretor, Renato Almeida, folclorista e musicólogo, funcionário do Ministériodas Relações Exteriores, consegue reunir estudiosos de todo o país, centralizandoredes de comissões nos Estados e municípios. Vinculado ao debate internacionalcapitaneado pela Unesco, define um programa centrado na pesquisa maisqualificada e na proteção do folclore. Interessa como medida de preservação,o aproveitamento do folclore na educação, de maneira a consolidá-lo diantedas mudanças sociais e culturais geradas então pela industrialização, aurbanização crescente e as migrações internas. Na década de 1950, omovimento chega ao seu paroxismo, desdobrando-se, como ação comum eurgente, na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (1958). Sob a direçãode Edison Carneiro (1961-1964), cria-se a Revista Brasileira de Folclore,patrocinam-se cursos em alguns estabelecimentos de ensino superior e inicia-sea composição de documentários fonográficos e fotográficos82.

É por meio de Edison Carneiro, sociólogo e folclorista, de quem setorna amigo e compadre, que Gautherot liga-se ao movimento. Suas fotografias,realizadas principalmente no Nordeste do país, são por vezes adquiridas porCarneiro para estudos, publicações ou exposições folclóricas. Gautherotcomparava seu trabalho ao de conhecido figureiro nordestino, mestre Vitalino,que do barro criava cenas marcantes da vida cotidiana, das comemorações.Tais peças, reconhecidas, passavam a fazer parte da própria realidade descrita.

O próprio Edison Carneiro, nas suas recomendações para a pesquisado folclore83, insiste sobre a importância desses “registros mecânicos” na construçãoetnográfica, na medida em que “constituem um documento vivo da observação.[...] A fotografia ilustrativa de aspectos do folclore deve ter sempre caráter dinâmico– um movimento, uma ação e não uma pose”84. Desdobrando essa argumentaçãosobre a imagem – já afirmada, como já se viu, nos seminários de Mauss –, Carneirodefende uma idéia de folclore que se opõe às compilações inertes, às cristalizaçõesdo arcaico e do tradicional. Fiel ao ideário marxista, próximo a folcloristas soviéticos,advoga que “o folclore reflete, à sua maneira, as relações de produção criadasentre os homens”, em permanente processo de “recomposição”; “nutre-se dosdesejos de bem-estar econômico, social e político do povo e por isso tem implicaçõesno futuro, como instrumento rudimentar de reivindicação social”85. “Através dofolclore, o povo se faz presente na sociedade, se afirma no âmbito da superestruturaideológica e nela encontra a sua tribuna” 86.

Gautherot, simpatizante do partido proletário, compartilha dessasidéias e desse entusiasmo. Nas suas fotografias busca articular dialeticamente

60. ANDRADE, 1981.

61. Mário de Andrade fo-ra diretor do Departa-mento de Cultura da Mu-nicipalidade de São Pau-lo (1935 -1938) e assis-tente técnico do SPHANem São Paulo (1937-1938). Cria a Sociedadede Etnografia e Folclore(1936-1938),em São Pau-lo, reunindo intelectuaiseminentes como EmilioWillens,Fernando de Aze-vedo e alguns estrangei-ros, contratados para aUniversidade de São Pau-lo,como Pierre Monbeig,Claude e Dinah Lévi-Strauss, Roger e Paul Ar-bousse Bastide. Foramrealizadas, nessa socieda-de, cursos e pesquisascom a participação ativade Dinah Lévi-Straussque fora pesquisadora as-sistente no Musée del´Homme. Nos Boletinsda Sociedade (foram pu-blicados sete números),a professora define “ins-truções e questionários”para a pesquisa de cam-po,orientando o trabalhode localização, observa-ção e registro textual eiconográfico. Há um es-pecial interesse na repre-sentação cartográfica defenômenos humanos.Co-mo nos estudos geográfi-cos,recomendam-se foto-grafias e desenhos na co-leta de dados. Cf. MARIOde Andrade... 1983.

62. Nas Cartas de traba-lho (ver nota 60), defen-de que, nas incursões detrabalho, se levasse o fo-tógrafo,“(um excelente ebem pago) para tirar asfotografias possíveis(questão da luz) e indus-triá-lo bem sobre as ou-tras a tirar, quando refi-zesse a viagem sozinho,buscando luz mais propí-cia...” (p. 67).

63. Id., p. 76.

64.A missão reuniu 1.126fotografias, hoje deposi-tadas no Centro Cultural

85Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

São Paulo, realizadas, nasua maior parte, por Ger-mano Graeser, Luis Saia,Edison Carneiro, MozartGuarnieri, Donald Pier-son.A esse respeito ver:AZEVEDO, 2000, p. 78-129.

65. Cf. VELLOSO, 1992,p. 26.

66. Cf. THIESSE, 1999,p. 16.

67.Na listagem dos monu-mentos em Ouro Pretoque deverão ser fotogra-fados (Ministério da Edu-cação e Saúde/SPHAN, c.1945) pode-se ler: “[...]Igreja Santa Ifigênia do Al-to da Cruz: armar andai-me e fotografar a imagemdo nicho no conjunto,vendo-se a data 1762, enos pormenores as cabe-ças dos anjos, da Santa edo menino. Matriz do Pi-lar: fotografar o oratóriosobre a cômoda da sacris-tia e, separadamente, as 2cabeças de querubins; oconjunto da sacristia,trin-dade no retábulo da cape-la mor: primeiro visto defrente e depois vista de ca-da lado, das sacadas dastribunas.São Francisco deAssis: conjunto do arcocruzeiro com os dois púl-pitos, vendo-se ao fundoo retábulo da capela-mór;os dois púlpitos separada-mente inclusive porme-nores dos baixos-relevosdas taças; o conjunto doretábulo da capela-mórvisto um pouco de lado ede baixo;novo pormenorda coluna inteira do chãoao entablamento (inclusi-ve) e bastante de lado pa-ra acentuar-lhe o perfilconstrutivo.Conviria nes-ta foto, afastar o consolopara a parede. Pormenordo coroamento do retábu-lo com a Santíssima Trin-dade, o conjunto da igre-ja vista do coro, vendo-seo forro e a capela-mór aofundo; o lavatório da sa-cristia sem os anjos [...].Nova Lima [...] o sacrárioabrangendo as respecti-

86 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

Figura 6 – Guerreiros, Maceió/AL, c. 1943. Fotografias de Marcel Gautherot. Acervo doInstituto Moreira Salles.

vas volutas laterais (desar-ticular primeiro o supor-te da cortina afim de re-movê-la completamente);uma das colunas dos retá-bulos dos altares lateraisvista de baixo e de lado,inclusive a mísula com omesmo propósito de aten-tar a sinuosidade caracte-rística (retirar primeiro osocket da lâmpada do seufuste), o púlpito sem sever a grade da escada[...].”MINISTÉRIO, 1945-1956.

68. Do mesmo documen-to anterior,seguem as ins-truções para o trabalhoem Catas Altas (MG):“fo-tografar o Cristo que seachava no corredor da tri-buna da capela-mór do la-do do Evangelho, procu-rando acentuar-lhe o ca-ráter possante e domina-dor, sem contudo defor-mar o braço próximo daobjetiva. Pormenores dasmãos e dos pés”.

69. Interessa ver, adiantena pesquisa, o uso dessasimagens na Revista doSPHAN e outras, a recor-rência das fotos escolhi-das, os cortes de edição,a retangularização daimagem, (originalmentequadrada), na relaçãocom o texto.

70. NOBRE, 2001, p. 16.

71.“Je suis tout occupé àphotographier des dé-tails d’architecture,pour-suivi de place en placepar une bande de négril-lons à demi nus qui mesupplient: tira o retrato !tira o retrato ! A la fin,tou-ché par une mendicité sigracieuse – une photoqu’il ne verraient jamaisplutôt que quelques sous– j’accepte d’exposer uncliché pour contenter lesenfants. Je n’ai pas mar-ché cent mètres qu’unemain s’abat sur monépaule:deux inspecteursen civil, qui m’ont suivipas à pas depuis le débutde ma promenade, m’in-

87Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

forment que je viens deme livrer à un acte hosti-le au Brésil: cette photo,utilisée en Europe, pou-vant sans doute accrédi-ter la légende qu’il y a desBrésiliens à peau noire etque les gamins de Bahiavont nu-pieds. Je suis misen état d’arrestation,pour peu de temps heu-reusement, car le bateauva partir ”. (LÉVI-STRAUSS, 1955,p.29-30).

72.A Revista Brasileirade Geografia, desde1939, abre uma seçãocom esse título, onde “osmatizes naturais e huma-nos mais característicose típicos das diferentesregiões do país ‘são entre-vistos através de magnífi-cas ilustrações de PercyLau’”.Nota explicativa da5ª edição. IBGE/Conse-lho Nacional de Geogra-fia. Tipos e aspectos doBrasil. Excerto da Revis-ta Brasileira de Geogra-fia. Rio de Janeiro, 1956.

73. EDWARDS, op. cit., p.7.

74. CLIFFORD, 1994, p.72.

75. Foram incorporadasao livro, complementar-mente, algumas poucasfotografias de R. P. Secon-di e Hesse, do Rio de Ja-neiro; do Office du Bré-sil, de Paris e de PierreMonbeig.

76.Trata-se da mesma co-leção em que fora publi-cado o trabalho de Vergersobre o México, indicadoanteriormente. Certa-mente foi Verger que in-termediou a publicaçãodesse novo título.A tradu-ção do livro é publicadano Brasil, em 1952, pelaLivraria Agir Editora, Riode Janeiro. Incorpora, àrelação de imagens já pu-blicadas em Paris, fotosde José Medeiros e deBoer, de São Paulo.

88 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

Figura 7 – Guerreiros, Maceió/AL, c. 1943. Fotografias de Marcel Gautherot. Acervo doInstituto Moreira Salles.

77. Esse livro e o Brazilda Life World Library, pu-blicado em 1962, tam-bém com algumas fotosde Gautherot, são títulosde referência sobre a re-presentação iconográficado país, para leitores es-trangeiros, dentro do re-corte cronológico (1940-1960) dessa pesquisa emandamento.Terão um es-tudo comparativo adian-te que contemplará ain-da outros trabalhos do fo-tógrafo feitos para o Mi-nistério de Relações Ex-teriores do Brasil.

78.Um estudo específicosobre o trabalho fotográ-fico de Gautherot, ligadoà Campanha de Defesado Folclore Brasileiro, foipor mim apresentado noseminário do projeto – jáindicado por Heliana Sal-gueiro – realizado em ju-nho de 2005,na École desHautes Études en Scien-ces Sociales, Paris.

79. CARNEIRO, 1950.

80.SEGALA,op.cit.,p.47.

81.VILHENA,1997,p.173.

82. VILHENA, op.cit., p.106.

83. CARNEIRO, 1965, p.131-156.

84. Id., p. 131-156.

85. Ibid, p. 57.

86. Ibid, p. 22.

89Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

90 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

Figura 8 – Guerreiros, Maceió/AL, c. 1943. Fotografias de Marcel Gautherot. Acervo doInstituto Moreira Salles.

91Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

essa dimensão mais celebrativa e poética, à documentação da dinâmica dessascriações populares87.

É importante refrisar que as séries fotografadas por Gautherot, comooutras feitas por fotógrafos dos anos 1930 -1940, interessados em enquadrar oBrasil, com o apoio de certas instituições públicas, recriam e estabilizamrepresentações que vinham sendo escolhidas e convencionalizadas88 nasdescrições textuais e iconográficas desde o século XIX. São referências para aspaisagens e para os sítios urbanos, roteiros de observação e de registroapresentados em álbuns litográficos e fotográficos oitocentistas. Da mesma forma,os tipos regionais, as artes e festas populares, as “infiltrações entre o tipo humanoe as paisagens”, nos termos de Antonio Candido, definem-se em redes deapropriações calçadas na literatura romântica89, nos estudos de folclore e dastradições populares90, nos trabalhos emblemáticos de Euclides da Cunha (1902),de Roquete Pinto (especialmente Rondônia de 1917), em projetos expositivosdo Museu Nacional, nos “quadros” da geografia humana, no temário da pinturamoderna, no trabalho de ilustradores e copistas das coleções de títulos sobre opaís, nos anos 1930 -1950, como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, ClóvisGraciano, Di Cavalcanti, Portinari, Tomás Santa Rosa entre outros91.

No arquivo de Gautherot, há séries – algumas encomendadas, ligadas

87. Com o afastamentode Edison Carneiro daCampanha pelo golpemilitar de 1964, Gauthe-rot passa a ter com o mo-vimento laços mais even-tuais.

88.Sobre convencionali-zação e poder de convic-ção ver CANDIDO,2004,p. 70-80.

89.Especialmente nos es-critos de José de Alencar.A destacar O gaúcho(1870) e O sertanejo(1875).

90. A destacar, os dese-nhos de Flumen Juniusno livro de Mello de Mo-raes Filho, Festas e tradi-ções populares do Bra-sil, de 1895.

91.PONTES,2001,p.419-476.

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Figura 9 – Guerreiros, Maceió/AL, c. 1943. Fotografia de MarcelGautherot. Acervo do Instituto Moreira Salles.

provavelmente a projetos de exposições – em que essas conexões podem serapreendidas. Fotografa o trabalho de gravadores, litógrafos, fotógrafos, pintorese escultores já consagrados ou em processo de consagração como intérpretesautorizados do Brasil. Apresentam, por um princípio de diferenciação, a naçãoilustrada, fixando hierarquias de significado e de valor, produzindo seus referentescomo “testemunhos” visíveis de uma história e de uma tradição a serem aprendidase compartilhadas92.

Gautherot revela de suas viagens fotográficas centenas de negativos,um acervo de referência para outros investimentos que faz nas áreas dofotojornalismo, da documentação arquitetônica e etnográfica. Investe duranteanos na produção e na organização do seu acervo fotográfico pessoal93. Aoordenar e classificar, ele edita o seu material eliminando redundâncias, a partirde um sistema enunciador que rege a aparição singular de seqüências factuaise simbólicas que importam ver. Na organização física do arquivo, os negativosforam separados, escolhidos e descartados. Da mesma forma, os seus contatos– imagens indiciais de consulta – foram recortados, corrigidos um a um e colados,definindo uma orientação de leitura 94. Ainda que algumas de suas fotos tenhamse tornado ícones do patrimônio cultural brasileiro, reproduzidas em diferentesgalerias e publicações institucionais, o estudo das folhas de contato, organizadaspelo fotógrafo é fundamental para a compreensão do seu trabalho autoral, dalógica relacional de suas imagens, das expectativas suas quanto aos usos dasimagens (Figuras 10 -14).

A distância, porém, entre o tempo de produção e acumulação denegativos, marcado pela lógica particular das encomendas, das viagens e dosrecursos disponíveis e o tempo de organização do arquivo, possibilitou a recriaçãode séries fotográficas. Qual seja, esse seu trabalho retrospectivo, pautado peloexercício presente das lembranças e de projetos, redefine a experiência ordenadado registro, a precisão da cronologia, abrindo certos segmentos de “ficçãodocumentária”, reconstituições a posteriori, do senso explicativo das imagens95.

Gautherot volta várias vezes aos mesmos lugares, completandoinformações de maneira exaustiva, precisando, na sua edição, séries96, narrativasvisuais (Figuras 15-17). O itinerário refletido pela fotografia aguça a observação.Essa insistência em mesmos percursos, realizados em tempos diferentes, às vezesmuito próximos, embaraça o sentido, no acervo, das séries originais, sua dataçãoprecisa. Por vezes, é possível desmontar esses ensaios seqüenciais quandodiferenças técnicas de produção, características do filme ou da câmera ou aindaespecificidades de luz e de formas flagradas indicam registros fotográficos nãoseguidos no tempo. Esses arranjos de certa forma se autorizam porque a fotografiapor princípio atualiza o “presente etnográfico”.

Do ponto de vista conceitual, a produção do acervo – os procedimentosde separar, identificar, reunir, descartar – segue uma ordem particular, cruzandoirregularmente os critérios geográfico, temático e cronológico97.

Gautherot dividiu os negativos e seus respectivos contatos por Estadobrasileiro. As viagens de exploração, os lugares revisitados definem umacartografia que privilegia o Norte e sobretudo o Nordeste do Brasil, também

92. A construção identi-tária da nação modernapressupõe, como mostraThiesse (op. cit., p. 14),operações de escolha ede articulação de ele-mentos materiais e sim-bólicos proclamados co-mo sinais diacríticos noquadro das representa-ções internacionais e ain-da a produção de sua le-gitimidade como patri-mônio comum.

93. As observações a se-guir, sobre o acervo deGautherot, calçam-se nasinformações prestadaspor Sérgio Burgi, em en-trevista que me conce-deu em 17/5/2004, noIMS, Rio de Janeiro e nacomunicação que fez najornada de estudos, coor-denada por Heliana Sal-gueiro e por mim,no Pro-grama de Pós-graduaçãoem Antropologia da Uni-versidade Federal Flumi-nense, em 14/12/2004.

94. Sérgio Burgi indicaque “além da qualidade fo-tográfica sempre muitoboa, Gautherot fazia cor-reções inclusive na quali-dade dos fotogramas queele coloca nos contatos.Os contatos, via de regra,não têm nenhum defeitode sub ou super exposi-ção na imagem que vocêestá vendo. Ele trabalhouos contatos individual-mente. Não são tiras co-piadas, recortadas e cola-das.Tem correção de ex-posição. Ele voltou ao la-boratório, corrigiu. Elepassou 10 anos da vida or-ganizando o arquivo. Issoé raro” (entrevista em17/5/2004). Essa atençãoparticularizada aos foto-gramas permitiu,como as-sinala Burgi, a realizaçãode negativos de segundageração,com alta qualida-de, a partir dos contatosacumulados sem negativooriginal.

95. Conforme Burgi,“elemonta os contatos deuma forma super editada.

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Começa com as vistas ge-rais da praia, depoisacompanha o jangadeiroque está chegando demanhã para sair, começaa preparar a jangada,abreas velas, ganha o mar…Evidente que ele fotogra-fava de uma forma muitoplanejada, sistemática,mas certamente ele nãoplanejou a série exata-mente daquela maneira.Quando colocamos jun-tos todos os negativospodemos ver onde é se-qüência mesmo pelo cor-te e onde estão faltandotrechos. É um quebra-ca-beça.”Até o momento,se-gundo Burgi, não foramfeitos exames sistemáti-cos nos cortes dos nega-tivos originais para a ve-rificação de encaixes emseqüências.É importantenotar que no período, osnegativos não tinham nu-meração de fábrica o quedificulta o controle pre-ciso das ordens seriais dofilme e dos contatos.

96. A noção quantitativade série se articula à pro-dução, à geração e justa-posição de imagens ouobjetos fotográficos en-quanto a de coleção reme-te à acumulação ordena-da de imagens preexisten-tes. As séries, segundoRouillé, recobrem doisconjuntos: o que definevistas em torno de ummesmo tema ou objeto eo que expõe reproduçõesde um mesmo clichê. Cf.ROUILLÉ,1991,p.6.

97. Parece incorporaraqui as referências para aorganização de fotogra-fias,utilizadas na fototecado Musée de l´Homme,indicadas anteriormente.A atenção privilegiada aoscritérios geográfico e te-mático dificulta a percep-ção clara dos momentosde produção.

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Figura 10 – Jangadas, Aquiraz/CE, c. 1950-1952. Fotografias de Marcel Gautherot. Acervo do Instituto Moreira Salles.

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Figura 11 – Jangadas, Aquiraz/CE, c. 1950-1952. Fotografias de Marcel Gautherot. Acervo do Instituto Moreira Salles.

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Figura 12 – Jangadas, Aquiraz/CE, c. 1950-1952. Fotografias de Marcel Gautherot. Acervo do Instituto Moreira Salles.

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aclamado nas disputas da literatura regionalista e moderna como o locus de“maior autenticidade” na definição emblemática da nação. Do Sul do país comexpressivos contingentes de imigrantes europeus, principalmente italianos ealemães, guardam-se registros esparsos.

Dentro de cada Estado define séries temáticas. No conjunto do arquivo,destinguem-se quantitativamente as séries temáticas sobre a cultura popular. Aapreciação das séries, concebidas desde o ato fotográfico, afirma o sensodocumentário do trabalho, a desconstrução de representações cristalizadas. Asséries são, em geral, narrativas, como recorrentemente acontece na documentaçãoetnográfica ou na fotorreportagem, partindo das tomadas gerais ao detalhe, nomais das vezes o portrait (Figuras 18-20). A ordem regular de registro – do geralpara o particular e por vezes o inverso – permite comparativamente certos recortestemáticos, por exemplo, séries de retratos, explorados em livros e exposições.Diferentemente do ensaio American Faces98, de 1939, que mostra a diversidadedos tipos americanos, os brasileiros de Gautherot são quase sempre negros oumestiços. O anonimato dos retratados sublinha, por operação simbólica, umaidéia genérica, uma identidade coletiva de povo brasileiro. As diferenças sãolocalizadas, afirmam-se pelas representações do trabalho, das festas ou daspaisagens. No registro de processos de trabalho, há uma atenção às suasdiferentes etapas, aos instrumentos, à indumentária de quem produz. A câmeraacompanha a seqüência demonstrativa dos fatos. Nas feiras (Figura 21), dentrode uma mesma lógica de localização, importa flagrar, no mesmo tempo, adiversidade, a descontinuidade dos motivos, dos produtos, percebidos, elesmesmos, na sua repetição, muitas vezes, como séries. A doca e o mercado, nasérie do Ver-o-Peso, em Belém do Pará (Figuras 22-24), explorados comrecorrência nas séries fotográficas sobre o “Brasil característico”, fornecemplasticamente visibilidade aos processos de circulação de gentes, de mercadorias,de informações, lugar privilegiado da vida social nessa capital amazônica.

Para além da dimensão relacional das imagens, a arquiteturafotográfica cuidada de Gautherot imprime um ritmo, uma dinâmica descritivaem cada quadro. Tal efeito calculado, sabemos, é difícil de ser realizado como filme 6 x 6, quadrado, que ele utiliza. Enquanto o de 35 mm, retangular, temuma maior horizontalidade e portanto um movimento maior na leitura, o 6 x 6centraliza o objeto.

Há de se ressaltar ainda o grande conhecimento do fotógrafo sobreo trabalho no laboratório. Tal saber técnico certamente lhe permitia prever, desdeo ato fotográfico, certas possibilidades expressivas a serem exploradas nosprocessos de revelação e reprodução da imagem.

Nas séries sobre as festas, as danças dramáticas, os ritos populares,perdem-se com freqüência, no aglomerado e nos movimentos, os nexos internos,a seqüência temporal do acontecimento (Figuras 25 e 26). Na fragmentaçãodo exercício fotográfico, os motivos focados se relativizam, no jogo de imprevistos,diante das exigências de enquadramento, de tempo e de luz. Nessascomposições, abre-se uma estreita circularidade entre os corpos vivos e as coisas,exigindo-se do observador uma atenção particular para desentranhar dessa

98. [Farm Security Admi-nistration] Survey Gra-phic, v. 28, n. 2, 1939.Apud LUGON, 2001, p.274.

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trama formal, desse jogo de superfícies, a dimensão humana e a espessurahistórica. Por vezes, o tratamento em profundidade reverte para uma relaçãobidimensional que abstrai o acontecimento e insiste na solução gráfica. Asuperposição dos corpos, em algumas imagens, aparece quase como um trabalhode fotomontagem, distinguindo-se os planos, evitando-se a desordem da tensão(Figuras 27 e 28). Nos aglomerados, adensa-se o sentido da cena, que emoutros momentos se decompõe na aproximação das figuras, no silêncio doportrait, do detalhe do rosto que joga o olhar para longe da câmera, eternizandoa pessoa.

No arquivo organizado por Gautherot, atravessando a classificaçãotemática, há séries numéricas seqüenciais, por vezes intervaladas. As váriasviagens fotográficas que realizou, ainda não completamente mapeadas, parecemdeterminar algumas dessas descontinuidades. Nesse sentido, é possível perceberséries numeradas situadas em Estados diferentes. A numeração crescente éinsuficiente, porém, para estabelecer uma ordem rigorosamente cronológica deprodução99. Não há legendas específicas para cada negativo.

Essa atenção ainda que não especializada na conservação eidentificação dos negativos e contatos é reveladora do modo pelo qual Gautherotusava sua produção e valorava o seu acervo. A acumulação dos negativos,imobilizando-os no mercado fotográfico, sustenta seu interesse de preservar umatotalidade, pressuposto à monumentalização de sua obra.

Os contatos têm nessa sua estratégia um lugar especial comoreprodução positiva, corrigida dos negativos. Do ponto de vista técnico enarrativo, são provas de sua interpretação, marca de autenticidade100. Definem-se como objetos fotográficos indiciais e ao mesmo tempo materializam eminiaturizam a leitura completa da coleção. Esse exercício cuidado de autoriaarticula a produção do acervo ao seu próprio reconhecimento como fotógrafo.A inscrição biográfica atravessa a ordem interna do arquivo. Gautherot mostrae guarda nas séries compiladas seu próprio trajeto, senso fundamental da suatrajetória, sua mobilidade no espaço, no tempo, na hierarquia social.

Ainda em vida, o fotógrafo tentou vender seu acervo a instituiçõespúblicas: ao IPHAN, à Funarte, ao Museu de Folclore Edison Carneiro, no Rio deJaneiro. Não houve acordos. Depois de sua morte, em 1996, seu único filho chegoua pensar em fundar uma espécie de associação de amigos, com o intuito de cuidardo acervo. Em 1998, o Instituto Moreira Salles o adquiriu, incorporando-o aoconjunto das suas coleções fotográficas101.

Nesse processo, o acervo pessoal fotográfico – como conjuntodocumental produzido e acumulado por Gautherot ao longo de sua vida, pautadopor uma economia e por usos específicos das imagens – redefine-se como coleçãoinstitucional, em que ganha relevo sua qualidade estética102.

Cabe esclarecer que, na sua política de aquisição, o IMS buscacoleções ou arquivos autorais completos. Na obra de fotógrafo, ressalta SérgioBurgi, contam as “características mais orgânicas do seu desenvolvimentoprofissional”. Respeita-se a sua ordem original e a sua proveniência.

99. Sérgio Burgi explicaque a equipe do IMS “es-tá fechando a ordem se-qüencial dos negativos efazendo cruzamentocom as divisões temáti-cas. Aparecem algumasquestões que ainda nãoestão claras, as questõesdas viagens de volta aoslugares que normalmen-te estão expressas por sé-ries mais adiantadas. Emalguns momentos vocêtem séries que estão si-tuadas em vários estadosdiferentes” (Entrevistaem 17/5/2004).

100. Seguindo Moulin aidéia de autenticidade,nomercado e nos saberesautorizados da arte, vin-cula-se à verdadeira auto-ria enquanto a de origi-nalidade liga-se à obraúnica.Cf.MOULIN,1978,p. 241-258.

101. A documentação so-bre a compra do acervofotográfico de Gautherotnão está aberta à consul-ta pública. É certo que asnegociações em torno decada coleção guardam es-pecificidades. Os interes-ses circunstanciais de co-lecionadores, as experti-ses, os leilões de arte sãoreferências na produçãode valor.

102. Coleção é aqui umacategoria utilizada pelainstituição para designara proveniência dos arqui-vos ou séries fotográficasno momento de aquisi-ção.

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Figura 18 – Corte da cana-de-açúcar, PE, c. 1952-1955. Fotografias de Marcel Gautherot.Acervo do Instituto Moreira Salles.

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Figura 19 – Corte da cana-de-açúcar, PE, c. 1952-1955. Fotografias de Marcel Gautherot.Acervo do Instituto Moreira Salles.

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Essa transferência do privado para o público requalifica o acervo doponto de vista material e simbólico. Redefinem-se modos de preservação econservação, reprodução e circulação de imagens. No caso, a instituiçãocompradora procedeu ao inventário, à higienização e à estabilidade químicados originais (alguns negativos têm problemas de deterioração da base plásticaou da base de acetato celulose), que estão sendo digitalizados.

No tratamento e na difusão da coleção estão em foco a produção ea reprodução da notoriedade do fotógrafo e do próprio valor da coleção,promovendo no mercado de arte e de bens patrimoniais também a instituiçãoque coleciona. O deslocamento para a reserva técnica, a limitação de oferta,o controle sobre o uso da coleção revalida o sentido da fetichização do único

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Figura 20 – Corte da cana-de-açúcar, PE, c. 1952-1955. Fotografias de Marcel Gautherot.Acervo do Instituto Moreira Salles.

e suas extensões controladas que instruem dominantemente os interesses nomercado contemporâneo das coleções fotográficas103.

Essa raridade cultivada, no entanto, como bem observa Maresca104,aproxima-se menos daquela contemplada nos objetos artísticos e mais daquelaatribuída a objetos etnográficos que entram em museus, ao termo de uma duplaoperação de tempo: “de início, a sua profusão se reduz porque se degradamrapidamente e são menos bem conservados que a obra de arte; em seguida, àmedida que eles perdem sua funcionalidade primeira prestam-se mais largamenteà contemplação do esteta”.

Como nos objetos etnográficos, a raridade na fotografia alimentaintimamente as práticas seletivas das artes do múltiplo. Distinguindo-se dasimagens em série, de multiplicação do idêntico, vocação da reprodutibilidadetécnica, a produção fotográfica limitada pode tornar-se significante no planoestético pela sua desfuncionalidade, rutura do seu senso corrente105. A validação

103. É bom frisar que aatenção à raridade foto-gráfica, por parte dessemercado, vai a contra-senso da criação artísticacontemporânea que bus-ca o múltiplo, o suporteefêmero, as instalações eas performances, a nãoprodução de objetos de-finitivos.

104. MARESCA, 1995, p.57-59.

105.Rouillé chama a aten-ção para esses desloca-mentos da fotografia dodomínio da curiosidadepara o da utilidade (emque as imagens não sãocontempladas, mas con-sultadas) e o da estética.Cf.ROUILLÉ,2005.

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Figura 21 – Feira, Penedo/AL. Fotografias de Marcel Gautherot. Acervo do Instituto MoreiraSalles.

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Figura 22 – Mercado Ver-o-Peso, Belém/PA, c. 1954-1957. Fotografias de Marcel Gautherot.Acervo do Instituto Moreira Salles.

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Figura 23 – Mercado Ver-o-Peso, Belém/PA, c. 1954-1957. Fotografias de Marcel Gautherot.Acervo do Instituto Moreira Salles.

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Figura 24 – Mercado Ver-o-Peso, Belém/PA, c. 1954-1957. Fotografias de Marcel Gautherot.Acervo do Instituto Moreira Salles.

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Figura 25 – Quilombo, Maceió/AL, c. 1943. Fotografias de Marcel Gautherot. Acervo doInstituto Moreira Salles.

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Figura 26 – Quilombo, Maceió/AL, c. 1943. Fotografias de Marcel Gautherot. Acervo doInstituto Moreira Salles.

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Figura 27 – Quilombo, Maceió/AL, c. 1943. Fotografiade Marcel Gautherot. Acervo do Instituto Moreira Salles.

Figura 28 – Quilombo, Maceió/AL, c. 1943. Fotografiade Marcel Gautherot. Acervo do Instituto Moreira Salles.

desse deslocamento sugerido pelo mercado pressupõe, porém, uma certificaçãode especialistas e uma definição social da obra de arte106.

Nessa perspectiva, a opção do IMS de adquirir a obra completa defotógrafos envolve um outro tipo de relação e de valor (para além dos valoresunitários). O cálculo do valor econômico se compõe com contrapartida deinvestimentos simbólicos associados à preservação e à difusão, ao reconhecimentoautorizado e à permanência da obra no tempo.

Após a aquisição da coleção, produz-se, regularmente uma exposiçãoque é uma primeira leitura institucional do acervo. Publicam-se catálogos e livros,avivando-se interesses de estudiosos e colecionadores. Disponibiliza-se a vendade séries contemporâneas de fotografias numeradas, a partir dos originais doacervo. No procedimento de aquisição a fotografia é considerada um bem deuso com restrições de direitos de reprodução. Estimula-se, por um processo deoposição complementar, a singularização da imagem e a comodificação conjuntados objetos fotográficos.

A dupla imobilização na fotografia e na coleção dos objetos flagradosconfere às imagens compiladas, registros reconhecidos do nosso patrimôniocultural material e imaterial, um sentido narrativo particular de produção danação como “comunidade observada”. Instiga, enquanto “sistema deretrospecção”107, formas particulares de relações entre o ver, o imaginar e olembrar o Brasil.

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Artigo apresentado em 10/2005. Aprovado em 10/2005.