a civilização escolar como projeto político e pedagógico da modernidade - cultura em classes,...

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378 Cad. Cedes, Campinas, v. 23, n. 61, p. 378-397, dezembro 2003 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> A CIVILIZAÇÃO ESCOLAR COMO PROJETO POLÍTICO E PEDAGÓGICO DA MODERNIDADE: CULTURA EM CLASSES, POR ESCRITO CARLOTA BOTO * Leituras! Leituras! / Como que diz: Navios... Sair pelo mun- do / coando na capa vermelha de Júlio Verne. / Mas por que me deram para livro escolar / a ‘Cultura dos Campos’ de Assis Brasil? /... / Se algum dia, eu for rei, baixarei um de- creto / condenando este Assis a ler a sua obra. (Carlos Drummond de Andrade, Iniciação literária) RESUMO: Este artigo discorre sobre como, a partir da Idade Moder- na, estrutura-se um projeto político e pedagógico que, como tal, con- tribuiu para formar hábitos culturais da civilização ocidental. Preten- de-se estudar a estrutura da escola à luz de uma caracterização sócio- histórica que preside o debate contemporâneo sobre o tema. A for- ma com que a escola moderna vem a público dá a ver determinadas concepções de espaço e de tempo, além de um ritual cotidiano, que se apresentam como portas de entrada para a cultura letrada. De al- guma maneira, tratava-se de tornar a escola um instrumento de con- formação e confirmação de hábitos, valores, crenças e saberes consi- derados prescritos pela vida moderna ocidental. Palavras-chave: Educação. Escola. Pedagogia. Instrução. História. THE EDUCATIONAL CIVILIZATION AS A POLITICAL-PEDAGOGIC PROJECT OF MODERNITY: WRITTEN CULTURE IN THE CLASSROOMS ABSTRACT: This paper aims at focusing on the modern schooling based on some founding references of the Western world. It first ex- plores this modern school project, whose object is to modernize and * Doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e professora de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da mesma instituição. E-mail: [email protected]

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    A civilizao escolar como projeto poltico e pedaggico da modernidde: cultura em...

    A CIVILIZAO ESCOLAR COMO PROJETOPOLTICO E PEDAGGICO DA MODERNIDADE:

    CULTURA EM CLASSES, POR ESCRITO

    CARLOTA BOTO*

    Leituras! Leituras! / Como que diz: Navios... Sair pelo mun-do / coando na capa vermelha de Jlio Verne. / Mas por queme deram para livro escolar / a Cultura dos Campos deAssis Brasil? /... / Se algum dia, eu for rei, baixarei um de-creto / condenando este Assis a ler a sua obra.

    (Carlos Drummond de Andrade, Iniciao literria)

    RESUMO: Este artigo discorre sobre como, a partir da Idade Moder-na, estrutura-se um projeto poltico e pedaggico que, como tal, con-tribuiu para formar hbitos culturais da civilizao ocidental. Preten-de-se estudar a estrutura da escola luz de uma caracterizao scio-histrica que preside o debate contemporneo sobre o tema. A for-ma com que a escola moderna vem a pblico d a ver determinadasconcepes de espao e de tempo, alm de um ritual cotidiano, quese apresentam como portas de entrada para a cultura letrada. De al-guma maneira, tratava-se de tornar a escola um instrumento de con-formao e confirmao de hbitos, valores, crenas e saberes consi-derados prescritos pela vida moderna ocidental.

    Palavras-chave: Educao. Escola. Pedagogia. Instruo. Histria.

    THE EDUCATIONAL CIVILIZATION AS A POLITICAL-PEDAGOGIC PROJECTOF MODERNITY: WRITTEN CULTURE IN THE CLASSROOMS

    ABSTRACT: This paper aims at focusing on the modern schoolingbased on some founding references of the Western world. It first ex-plores this modern school project, whose object is to modernize and

    * Doutora em Histria Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas daUniversidade de So Paulo (USP) e professora de Filosofia da Educao da Faculdade deEducao da mesma instituio. E-mail: [email protected]

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    standardize the classrooms and the educative practices within schoolboth physically and symbolically. Finally, it studies the pedagogicaldebate about school. People are used to claiming for innovationsleading to the social efficiency of the schooling institution. Thus, theimage of a universal school was gradually created, which character-izes the occidental modernity.

    Key words: Education. School. Pedagogy. Instruction. History.

    A cultura escrita e sua traduo escolar

    ducar , por um lado, rememorar e, por outro, invariavelmenteprojetar utopias. Desde a Renascena e muito marcadamentea partir do Iluminismo a reflexo sobre o gesto de educar traz

    consigo a marca da utopia. J no Renascimento, a nova educao eraaquela que, negando a escola como proposta pedaggica, seria pautadapela projeo de tempos novos, nos quais estariam identificados po-tenciais inscritos na especificidade da situao-infncia. Principiava-seali a conferir uma inaudita identidade ao assunto da educao, comomatria social. Desde o sculo XVII, a marca estrutural dos colgiosreligiosos (tanto em pases protestantes quando nos pases catlicos)impusera um padro educativo pretensamente constitudo com o pro-psito de atuar como referncia civilizatria; estabelecendo-se, a seutempo, como severo paradigma institucional.

    O propsito iluminista de superar e fazer frente rigidez dapedagogia do colgio, em suas marcadas estruturas, acompanhadopor um desejo de transformao da vida social e poltica, em suas hie-rarquias e fronteiras. O sculo XIX assiste, finalmente, com a consci-ncia de quem pretende perpetuar o feito, institucionalizao dapedagogia como uma cincia especfica da educao, e, portanto, compatamares de autoridade; suas slidas razes firmadas mediante rgidosalicerces determinados estes a descompor hbitos e crenas anterio-res. Tratava-se aqui de firmar um novo modelo de educao: aquelaque se consolidaria como alternativa s convenes e tradio; aquelaque tomaria como verdade presumida irredutvel o valor intrnsecodos interesses da criana, como pressuposto operatrio para projetarsua educao. A pedagogia propunha-se, desde ento, como um cam-po do saber cuja meta seria o rompimento dos pilares da tradio, parafirmar conceitos tericos e procedimentos metodolgicos que se apresen-

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    tassem universalmente vlidos e cientificamente comprovados parapreparar o caminho das geraes vindouras.

    Durkheim, a propsito da ao educativa, apontava a ambigi-dade do gesto que, por um lado, cria a homogeneidade, e, por outro,age para consolidar distines: educao una e mltipla, dizia ele. Tra-tava-se referia sua clebre passagem sobre o tema de registrar naalma infantil certas similitudes essenciais (Durkheim, 1977, p. 42).Na outra margem continua Durkheim existe uma diversidade opor-tuna e necessria que particulariza e distingue os meios sociais entre si,alm de tornar progressivamente especializadas as funes do traba-lho. Para viver em sociedade, a educao teria por tarefa precpua a deadaptao para perpetuar o presente, rememorar o passado e tornarpensvel o futuro. Por isso que, irredutivelmente, educar supe inter-locuo entre geraes; uma confluncia assimtrica de duas tempo-ralidades que, ocasionalmente, esto postas frente a frente; situao naqual haver, por suposto, uma explcita tentativa de incorporar o jo-vem componente ao mundo. Como a sociedade faz isso? SupeDurkheim que tal movimento se expresse na definio da educaocomo atividade antropolgica: A educao a ao exercida pelas ge-raes adultas sobre as geraes que no se encontram ainda prepara-das para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na crian-a, certo nmero de estados fsicos, intelectuais e morais, reclamadospela sociedade poltica no seu conjunto e pelo meio especial a que acriana, particularmente, se destine (idem, ibid.).

    Pode-se dizer que a cultura escolar moderna, como projeto polti-co e pedaggico, vem tona no incio da Idade Moderna, quando aorganizao dos primeiros colgios conduz a uma inaudita institu-cionalizao de uma especfica temporalidade e de uma particular formade lidar com as disposies espaciais, pensadas para a formao das no-vas geraes. Como aponta Roger Chartier, para apreender a histria daeducao, fundamental proceder a uma sociologia das populaeseducadas (Chartier, 2001, p. 74). Trata-se de verificar, ainda, as formascomo diferentes populaes, em distintos momentos, lidavam com acultura escrita. Dos currculos, deve-se, pois, observar, para alm danorma, os procedimentos efetivamente usados na rotina de sala de aula;um livro escolar ou um caderno solto (idem, ibid.). Chartier assinalatambm que as prticas didticas que prescrevem os modos autorizadospor meio dos quais a escolarizao dever fazer uso do texto estaro,

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    contudo, sempre para alm daquela orientao normativa que pretendedefini-la, descrev-la e circunscrev-la.

    Eisenstein considera o advento da cultura impressa uma verda-deira revoluo intelectual dos primrdios da Europa moderna. O mes-tre impressor segundo a referida autora teria produzido

    um homem novo; (...) perito igualmente em lidar com mquinas ecomercializar produtos, ao mesmo tempo em que editava textos, fundava as-sociaes culturais, promovia artistas e autores ou fazia progredir novas for-mas de coletar dados e diversos ramos de disciplinas eruditas... Clssicos gre-gos e latinos, livros de direito, tradues da Bblia, obras de anatomia, livrosde aritmtica, herbrios, volumes de versos belamente ilustrados tudo issosado da mesma oficina. (Eisenstein, 1998, p. 158)

    A alfabetizao penetrava, naquela altura, sem a clivagem hege-mnica da escolarizao. A cultura da escola moderna como projeto deorganizao da sociedade, em alguma medida, interpelaria progressiva-mente e cada vez com maior fora a institucionalizao do aprendi-zado da cultura letrada. Nos sculos XVI, XVII e XVIII muitas daspessoas que aprendiam a ler no haviam passado pela escola (Furet &Ozouf, 1977). Eram almanaques, cartazes, manuais, literatura de cor-del, catecismos (Chartier, 1987); tudo isso chegava s mos das pessoascomuns, mesmo daquelas que no decifravam o cdigo escrito, mas que,eventualmente, tinham a leitura do outro como um recurso para suaprpria compreenso. Em seu conjunto, esse novo ethos social que sevinha organizando teria surtido o efeito de alterar inmeras formas cor-rentes de pensamento, j que a cultura do escrito levava o homem aconfiar mais nas suas prprias capacidades de decifrar o universo.

    No parecer de Eisenstein, a Renascena e a Reforma teriam apu-rado nos seres humanos caracteres distintivos da cultura escrita que,ento, firmava-se, voltada para o pensamento conceitual e para a lgicada abstrao: o recurso perspectiva, preciso, exatido, clareza, distino entre os usos da linguagem (talvez mesmo das diversas lingua-gens ento colocadas). Estruturava-se, pois, o conjunto de traos distin-tivos do pensamento renascentista, quando mediante o impulso dosreformadores protestantes o texto seria multiplicado e sua circulaoampliada; a tal ponto que a confiana at ento depositada na revelaodivina se deslocou para o raciocnio matemtico e para os mapas feitospelo homem (Eisenstein, 1998, p. 296).

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    Walter Ong tambm discutir as relaes entre a tecnologia e oprocessamento mental na produo da escrita. A palavra oral, manus-crita, impressa ou na tela de um computador agir de maneira dife-rente sobre os processos cognitivos. Ong alude ao fato de que, de mododistinto da oralidade que se pode reconhecer como intrnseca dispo-sio biolgica do homem , a escrita artifcio. A sociedade pode ouno registrar sua linguagem verbal, mas, em contrapartida, no devemosesquecer acrescenta Ong que a prpria artificialidade natural aosseres humanos (Ong, 1998, p. 98).

    Harvey Graff, a propsito, considera a existncia de mltiplas for-mas que expressam a organizao do pensamento humano, mobilizadas como tal no apenas no processo de leitura e de escrita, mas nos maisdiversos estilos de habilidades artsticas; as diferentes linguagens que,no sendo alfabticas, podem at ampliar a acepo do verbo ler. Es-tudando o fenmeno da Renascena, Graff considera que o grande im-pacto que havia ali consistia em uma substancial transformao da leitu-ra de mundo: ou o que ele compreende como fenmeno de aprimoramentodas formas de olhar o desenvolvimento de uma alfabetizao que no necessariamente alfabtica, mas que passa pelo registro das formas dever; da perspectiva. Essa dita alfabetizao visual teria obtido reper-cusso por camadas distintas das populaes europias, espraiando, des-sa maneira, novos golpes de vista... Pelas palavras de Graff: H espciesmuito diferentes de tipos de alfabetizao ou alfabetizaes: variando,ao que parece, do numerismo ao grafismo at vrios tipos de habilidadesartsticas, visuais, auriculares e at mesmo fsicas de e para ler e expressarde modo comunicativo e significativo (Graff, 1994, p. 174).

    David Olson como Graff interroga as origens do entusiasmoque as sociedades ocidentais desenvolvem pela forma escrita, luz deuma suposta superioridade que lhe seria inerente; como se a habilidadeda escrita se tornasse, cada vez mais e especialmente no mundo mo-derno , uma estratgia de distino. Neste sentido, Olson interpela odebate contemporneo no campo da histria da leitura, que costumasituar como faz Eisenstein um vnculo direto entre a competncia dahabilidade leitora e o pensamento conceitual e abstrato. Diz o referidoautor sobre o tema: A escrita no levou sempre e em toda parte demo-cracia, cincia e lgica; algumas culturas no-alfabticas produziramcincias abstratas e filosofias; a evoluo da cultura clssica grega deu-se

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    a partir do debate poltico, e no do estudo de documentos escritos(Olson, 1997, p. 32).

    Parece, contudo, inegvel que o texto escrito tem normas que lheso prprias: A disposio organizada das frases, combinada com mto-dos adequados de pontuao e normas textuais, imprescindvel in-vestigao (Bottro et al., 1995, p. 175). bastante provvel que sepossa, assim, anotar o vnculo entre o desenvolvimento das primeirasescolas calvinistas e dos colgios jesuticos ainda no sculo XVI e essacultura impressa que para o bem ou para o mal progressivamentealteraria as exigncias sociais, em termos de uma ampliao da comuni-dade dos leitores e das expectativas trazidas por estes quanto complexi-dade que, com o recurso ao impresso, supunha-se que o mundo ganha-va, quando viesse folheado pelas pginas do livro tipogrfico. Diz Bottro,a esse respeito, que a cultura moderna se caracteriza por sua capacidadede organizar e apresentar a evoluo do pensamento de forma que possi-bilita a organizao racional e o uso pedaggico ou didtico. Assim, aassociao entre o conhecimento e a organizao textual indispensvelpara a capacidade desta cultura quanto ordenao e codificao doconhecimento (idem, ibid., p. 191).

    A escola como projeto identitrio e prospecto cultural

    Definir a identidade da escola como instituio requer indagardela seu projeto, mas requer, como contraponto, interrogar tambm omeio social onde a instituio se coloca: o que esperam da escola seusdiferentes atores e seus contemporneos... Revelar a estrutura formal dainstituio no parece suficiente para apreender as operaes intelectu-ais e rituais das quais ela se vale para conferir significado ao mundo.Mannheim j observara na vida escolar, a seu tempo, os sentidos sociol-gicos das formas e do traado de um dado ritual que confere lugares,posies e jogos de linguagens, tanto verbais quanto gestuais e corpo-rais. A vida escolar dispe-se como se de uma arquitetura se tratasse.Pelas palavras de Mannheim, nota-se a capacidade de a instituio per-sistir ao tempo na liturgia que a caracteriza:

    Os alunos so reunidos numa sala de aula, de maneira que se lhes possamensinar certos dados (isso no quer dizer que eles os aprendam). So vigia-dos e corrigidos de vrias maneiras para que de fato trabalhem. A isso pode-

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    mos chamar, depois de Freud, o contedo manifesto da sala de aula. Por trsdesse aspecto flagrante, h a rotina da freqncia, pontualidade, auto-sub-misso autoridade, o silncio da classe, o reconhecimento da hierarquia. Es-ses fatores representam o contedo latente, o efeito subjacente da organiza-o da escola. O que tenho denominado contedo manifesto do trabalho es-colar representado pela aprendizagem ativa. O contedo latente represen-tado por aprendizagem passiva, os hbitos, dados, atitudes suscitados pelocontato firme, constante, familiar com um estado de coisas a respeito do qualno pensamos. H uma interao comum entre os trinta e cinco alunos emsuas carteiras e o nico professor diante deles. (...) Como adulto, ele est se-parado do conjunto dos seus alunos pelo fsico, experincia, responsabilida-de, competncia, status, vestimenta, modos, costumes e aparncia... Sua au-toridade repousa no tanto nele, enquanto pessoa, mas nas leis e tradiesdo seu cargo. Evidentemente, com um professor bem-sucedido, o elementode liderana pessoal crescer mais e mais medida que o tempo passa; pormele tem que procurar depois e merecer esta espcie de aceitao, pois isso im-plica a apresentao de uma personalidade que ultrapasse os limites da salade aula, que no se contenha inteiramente dentro desta. (Mannheim &Stewart, 1977, p. 133-134)

    Dominique Julia, reportando-se construo da cultura escolarno mundo moderno, diz que, efetivamente, a escola cria, propaga e re-percute um modelo cultural cujo habitus combina tradies do mundoclerical com tradies cvicas de referendo dos Estados Nacionais. A es-cola estabelece, reproduz e perpetua tradies: tudo ao mesmo tempo;e, mesmo assim, ao longo de geraes... Seja como for constata Julia , asituao da cultura escolar enfrenta e incorpora simultaneamente outrasculturas, expressas pelo impacto dos meios de comunicao de massa,pela famlia, alm de, especialmente, pelo que se tem hoje caracterizadocomo cultura juvenil, ou mesmo (por que no?) pela cultura das crian-as pequenas. Diz sobre o tema esse autor: Existe uma cultura dosjovens que resiste ao que se pretende inculcar: espaos de jogos e deastcias infantis desafiam o esforo de disciplinamento. Essa cultura in-fantil, no sentido antropolgico do termo, to importante de ser estu-dada como o trabalho de inculcao (Julia, 2001, p. 36-37). A despei-to de tal ressalva, Julia reconhece que a forma escolar, tal como ela se psno mundo moderno, desde os primeiros colgios traduzia:

    (...) no somente um lugar de aprendizagem de saberes, mas, ao mesmo tem-po, um lugar de inculcao de comportamento e de habitus que exige umacincia de governo transcendendo e dirigindo, segundo sua prpria finali-

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    dade, tanto a formao crist como as aprendizagens disciplinares (...) A cul-tura escolar desemboca aqui no remodelamento dos comportamentos, naprofunda formao do carter e das almas que passa por uma disciplina docorpo e por uma direo das conscincias. (Julia, 2001, p. 22)

    Na mesma direo, Frago e Escolano sublinham o tempo e o espaoescolares como artifcios ordenadores de uma dada forma cultural a serapreendida: aquela que nos toma parte da infncia e captura consigo nossoimaginrio, de tal maneira que julgamos natural a escola graduada, dividi-da por sries, por idades, com exames regulares, que avaliam sistematica-mente graus de aprendizado. Julgamos natural a reprovao daqueles queno acompanham a gradao dos estudos, como se perder o ano pudesseser um eficaz antdoto contra o desinteresse e um confivel estmulo parapropiciar aprendizado. A forma escolar de socializao forte porque ten-de at pela fora subjetiva da memria a captar todos ns. De algumamaneira, mesmo os estudantes universitrios, dispostos em salas de aula,costumam ocupar quase invariavelmente os mesmos lugares onde sehaviam sentado no dia anterior, na semana anterior, no ms anterior, nosanos anteriores. Embora ningum lhe houvesse prescrito um local espec-fico obrigatrio para sentar-se, o jovem universitrio incorporou, de talmaneira, a forma escolar de socializao (Vincent, 1994), que, no raro,podem-se observar amizades feitas e mantidas (por vezes durante todo operodo de vigncia de cursos de graduao) entre dois indivduos que,por mero acaso, sentaram-se juntos, pela primeira vez, no primeiro dia deaula; e mantiveram-se juntos, distantes dos que deles estavam sentadoslonge... Essa ordenao do espao facilita o controle do professor; como evidente. Facilita tambm o controle dos estudantes uns sobre os outros.Mas dificulta a interao dos alunos. O que interessa aqui no , porm,criticar, mas compreender a que fora corresponde esse modelo de escolaque resiste tanto a tantas propostas de mudanas, durante tanto tempo! evidente que, na longa durao na sua especificidade constitutiva deproduo da cultura , a escola ser modificada historicamente. De qual-quer modo, seus referentes silenciosos, seus universos simblicos, sua sub-jetividade, enfim, persistem pragmaticamente adotando emblemas e si-nais de sua constituio original:

    O relgio colocado na escola, que perpetua, alm disso, a cronometria apreen-dida durante a infncia na vida da comunidade, se constitui, assim, num sm-bolo cultural e num mecanismo de controle social da durao. A arquitetura

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    serve, mais uma vez, de suporte de um dos signos culturais de maior impactona organizao da vida coletiva. (...) A incorporao do relgio aos espaos es-colares tem, pois, alm de um significado cultural, uma clara funo pedag-gica que se acrescenta s intenes educadoras das estruturas espaciais das ins-tituies. Em resumo, a arquitetura escolar pode ser vista como um programaeducador, ou seja, como um elemento do currculo invisvel ou silencioso, ain-da que ela seja, por si mesma, bem explcita ou manifesta. A localizao da es-cola e suas relaes com a ordem urbana das populaes, o traado arqui-tetnico do edifcio, seus elementos simblicos prprios ou incorporados e adecorao exterior e interior respondem a padres culturais e pedaggicos quea criana internaliza e aprende. (Escolano, 1998, p. 44-45)

    A temporalidade escolar , pois, a do horrio do relgio; que tempressa, e que jamais pode olhar para trs. O ritmo deve ser simultneo:todos os alunos aprendendo, na mesma proporo, as mesmas matrias.Trata-se de cronometrar o tempo pela hora-aula. Trata-se de enquadrar oconhecimento na grade curricular. Parece at que estamos em um cam-po onde as medies podem ser exatas... Porm, como pondera a anlisede Viao, o prprio tempo prescrito na escola experimenta outras manei-ras de viver os momentos de ser escolar...

    O tempo escolar um tempo, simultaneamente, institucional e pessoal, cultu-ral e individual. Do ponto de vista institucional, revela-se como um tempoprescrito e uniforme. E efetivamente o , pelo menos em sua inteno. Con-tudo, sob uma perspectiva individual, um tempo plural e diverso. No exis-te apenas um tempo, mas uma variedade de tempos: no mnimo, o do profes-sor e o do aluno. Mas tambm o da administrao, o da inspeo, o temporegrado. Ademais, enquanto tempo cultural, o tempo escolar uma constru-o social historicamente cambiante, um produto cultural que implica umadeterminada vivncia ou experincia temporal. Um tempo que organizado econstrudo social e culturalmente como tal tempo especfico, mas que, simul-taneamente, vivido no apenas pelos professores e pelos alunos, mas tambmpelas famlias e pela comunidade em seu conjunto, mediante sua insero e re-laes com os demais ritmos e tempos sociais. (Viao, 1998, p. 5)

    O fato que, de alguma maneira, com todos os dispositivos acimareferidos, a escola cria convenes e consensos, em um linguajar tipica-mente escolar, para tornar o tempo e o espao artifcios postos sob seucontrole. Ao fazer isso, a escola cria cultura. Poder-se-ia, portanto, con-ferir um significado prprio quando o termo cultura vier acompanha-do pelo adjetivo que aqui se substantiva na idia do escolar. Quem ,afinal, a cultura escolar? As teorias do currculo h tempos j referenciam

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    a acepo de currculo que, a princpio, correspondia idia de ordeme de disciplina como o conjunto das aes e interaes manifestas ouimplcitas que acontecem na escola. Para tanto, h conceitos tipica-mente escolares, tanto na linguagem culta quanto na gria e em expres-ses insubstituveis que definem, de modo absolutamente original, situ-aes de escola. Disciplina por exemplo , a um s tempo, matriaestruturada e ordenao de comportamentos. O termo classe no dia-a-dia qualifica tanto o agrupamento dos alunos que compem um dadonvel de aprendizado quanto o espao fsico da sala de aula. Na lingua-gem dos escolares, quando o aluno cabula, ele mata aula. Dar cola entre colegas pode ser sinal de coleguismo, mas, para o professor, transgresso e por isso ele no pode perceber... O delator o escolarque apontou o dedo para alguma flagrante situao de desrespeito snormas estabelecidas, e dedou ou, ainda mais explicitamente,dedurou seus companheiros.

    A cultura escolar integra, sob tal perspectiva, a lio e o exerccioda sala de aula; a exposio do professor sobre a matria. Abarca tam-bm, por seu turno, os bilhetinhos que as meninas enviam umas soutras, abordando tantas vezes assuntos absolutamente alheios aoque se passa na aula. Cultura escolar a diviso das matrias; mas tambm o horrio de recreio: intervalo pleno em significados que esca-pam, em geral, de qualquer registro. Cultura escolar , como j se verifi-cou, uma dada distribuio do espao e do tempo escolares: mas com-pe-se tambm dos espaos e dos tempos de inscrio das transgresses.Cultura escolar a carteira enfileirada; mas o piscar de olhos de quemolha para trs (Azanha, 1992). a prova e sua correo; mas o colare o dar cola. a ordenao de comportamentos prescritos pelos adul-tos; mas , sobretudo, a apropriao diferenciada que novas e semprenovas geraes faro com aquilo que se pretende fazer delas. Finalmente,no podemos pensar a cultura escolar se no trabalharmos o impacto dasquestes do cotidiano: daquilo que responde pelo nome de indisciplina;dos alunos que perturbam a aula; dos que cabulam aula; dos que sesentam no fundo da classe (l atrs); dos que dedam os colegasque levaram cola. Existe um vocabulrio especfico na cultura escolar. necessrio lidar com ele para compreender seus usos.

    Como bem demonstrou Andr Chervel, o saber construdo nainstncia da escolarizao no se organiza como uma decorrncia filtradado conhecimento erudito. Trata-se, mais do que traduzir, de inventar

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    saberes escolares, que passam, como tal, a possuir uma existncia autno-ma naquele local que lhes especfico. Para reproduzir o j to conheci-do exemplo de Chervel:

    Contrariamente ao que se poderia acreditar, a teoria gramatical ensinada pelaescola no a expresso das cincias ditas, ou presumidas, de referncia, masela historicamente criada pela prpria escola, na escola e para a escola. Issopor si seria j suficiente para distingui-la de uma vulgarizao. Em segundolugar, o conhecimento da gramtica escolar no faz parte da cultura do ho-mem culto. (Chervel, 1998, p. 14)

    De alguma maneira, Chervel confere identidade epistemolgicaprpria s matrias ensinadas na escola, como se elas pouco representas-sem as suas reconhecidas e assumidas cincias de referncia. preciso, ameu ver, ter algum cuidado em radicalizar e levar ao limite tal perspec-tiva, sob o custo de deslegitimar todo o trabalho docente e o aprendiza-do tantas vezes trabalhoso que acontecem na ao educativa escolar, comoum ritual de iniciao do jovem no mundo das letras. De qualquer modo,trata-se de um tema e de um problema que para o bem ou para o mal interpelam-nos como educadores.

    A cultura escolar como projeto que tambm fala o escrito

    De alguma maneira, hoje, a historiografia da educao tem questio-nado a antiga pressuposio que pontua o desenvolvimento da escolamoderna como um contnuo desenrolar de metodologias e tcnicasdidticas que vm, invariavelmente, procura de procedimentos de inova-o capazes de romper e demarcar o campo contra o antigo e, por suposto,ultrapassado mtodo tradicional de ensino. O aprendizado da histriaescolar revela-nos que as mudanas so, na grande maioria das vezes, maissubterrneas do que se poderia, a princpio, supor. So, mesmo, quaseimperceptveis as verdadeiras alteraes que vo acontecendo, como ten-dncias, nas prticas escolares. A escola moderna cria, em alguma medida,seu ritual de organizao; trabalhando simultaneamente saberes e valores,estabelecendo rotinas e disciplina, hbitos de civilidade e de racionaliza-o. So tempos e espaos que se organizam de um modo todo prprio.Ao pretender romper com o tradicional, tambm as novas pedagogias cri-am suas especficas tradies. A despeito de algum voluntarismo renova-dor do discurso, a prtica escolar persiste, entre hesitaes e apostas, sendo

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    aquilo que, de algum modo, ela j era; at porque, como bem enfatizaAzanha, aludindo ao pensamento de Alain, aprender supe enfrentar odesconhecido. E o desconhecido difcil. No se deve, falsamente, apre-sentar como fcil aquilo que intrinsecamente difcil, o que, evidente-mente, no quer dizer que no devemos ter clareza, preciso e disposiopara tornar atraente o processo do ensino:

    (...) o estudo exige perseverana e no obstante o tdio. O equvocosubjacente a esse esforo para transformar a escola numa extenso do grupode brinquedo, e o ensino num jogo, repousa na idia de que o mundo in-fantil um mundo cuja autonomia deve ser preservada a todo custo. Umadelas a de que, sendo a brincadeira o modo mais vvido e apropriado decomportamento da criana no mundo, somente o que pode ser aprendidomediante o brinquedo faz justia a essa vivacidade. (...) A propsito, Alainobserva que h, sem dvida, uma frivolidade da criana, uma necessidadede movimento e rudo; a parte dos jogos, mas tambm necessrio que acriana se sinta crescer, quando passa do jogo ao trabalho. Esta bela passa-gem, longe de torn-la insensvel, eu a desejaria marcada e solene. Assimsendo, seria ilusrio, e de duvidoso resultado, acreditar que todo ensino pos-sa ser desenvolvido como se fosse uma brincadeira, uma distrao. (Azanha,1987, p. 55-56)

    Ao abordar as funes das geraes novas, Mannheim situa a ju-ventude como uma reserva vital; que dever ser suficiente e adequada-mente e integrada na sociedade de modo criador (Mannheim, 1977,p. 94). Educar, neste sentido, conduzir a integrao; estruturar ins-tncias do ser humano que se traduzam de potncia em ato para o viverpleno no mundo da cultura. Assim, so revelados e apropriados, no cir-cuito societrio, no apenas pensamentos, mas sentimentos e emoes(idem, ibid., p. 93). Por tal razo, as geraes mais jovens tendem a sertidas, por parte de algum imaginrio sociolgico, como progressistas.

    Se afirmamos que a juventude um agente revitalizante na vida social, serde bom alvitre indicar muito claramente aqueles elementos da adolescnciaque, se mobilizados e integrados, auxiliaro a sociedade a tomar uma novaorientao. Do nosso ponto de vista, a maior qualidade da juventude, no au-xlio para que a sociedade opere em nova direo, est no fato de que, almde seu maior esprito de aventura, ela no se acha ainda completamente en-volvida no status quo da ordem social. As modernas psicologia e sociologia doadolescente tm-nos ensinado que a chave do conhecimento da mentalida-de da juventude moderna no pode somente ser encontrada na fermentao

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    biolgica desse estgio do desenvolvimento humano. Alm do mais, isso universal, e no restrito a nenhum local ou tempo. O fato decisivo acerca dafase da puberdade est, do nosso ponto de vista, em que a juventude entra,nessa fase, para a vida pblica e, na sociedade moderna, ento que ela sedefronta, pela primeira vez, com o caos de valores antagnicos. Verificou-seque, nas sociedades primitivas, os conflitos mentais de nossa juventude sodesconhecidos por no haver separao radical entre as normas ensinadaspela famlia e as prevalecentes no mundo dos adultos. O maior conflito deconscincia de nossa juventude , apenas, o reflexo do caos reinante em nos-sa vida pblica; e a perturbao que ento aparece, uma reao natural damente inexperiente. Para a nossa discusso, no tanto o maior conflito deconscincia da juventude que assume relevncia; mas antes outro aspecto damesma situao em que esta se encontra. No contexto de nossos problemas,o fato relevante que a juventude vem de fora para os conflitos de nossamoderna sociedade. E esse fato que faz da juventude o pioneiro predesti-nado para qualquer mudana da sociedade. (Idem, ibid., p. 94-95)

    H originalidade nessa idia de que a juventude vem de fora paraintegrar o jogo social. Penetra nele, desavisadamente, sem pedir prviaautorizao, explicitando, por vezes, indagaes e desacordos quanto ordenao coletiva da vida. Faz isso basicamente porque est ainda alheias cristalizaes institucionais e civilizatrias. Refletir sobre a formao dasnovas geraes requer dos educadores que observemos essa psicologia soci-al da juventude; at mesmo como condio operatria para refletirmossobre a formao das novas geraes para fazermos projetos de educaodas crianas e dos jovens: para pensarmos, enfim, o desenvolvimento cul-tural daqueles que, de alguma maneira, no esto ainda atados s estrutu-ras vigentes, ocupando, no limite, os sentidos da estranheza e de algumaindignao perante situaes naturalizadas pelo artifcio social. A juventu-de observa Mannheim reserva latente; recordando-nos, com sufici-ente regularidade, de no nos esquecermos de nossas misrias, de nodeixarmos de estranhar nossas mazelas sociais. A juventude , pois, umalerta que a natureza e a cultura humana oferecem para que a sociedade sepossa dirigir no sentido da mudana. Pela mesma razo em outro traba-lho Mannheim sublinha a especificidade da relao pedaggica em salade aula; confluncia, a um s tempo, afetiva e racional, onde a classe seapresenta como padro privilegiado de relaes:

    E o campo das relaes humanas entre professor e alunos est neste terrenofronteirio, pois estamos interessados, de um lado, no contedo da atitude eexperincia humana e, de outro, na espcie de agrupamento e organizao

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    que d a direo queles processos psquicos. O professor traz para a sala deaula sua concepo de seu trabalho, seus preconceitos, seus receios e suas de-ficincias pessoais, suas ambies, sua humanidade e afeio. Os trinta e cin-co alunos de doze anos que ele tem de ensinar diferem entre si quanto a fsi-co, aparncia, inteligncia, sociabilidade, temperamento e experincia(background) social e pessoal. Tm a unidade ocasional de uma classe escolare aps certo tempo juntos comeam a desenvolver um sentimento de solida-riedade e um compromisso de trabalho com o professor, pessoa importantenesse grupo. A idade das crianas, suas posies ante outros alunos da escolae o grau de responsabilidade que lhes dado pelos professores fazem variarmuito a influncia que exercem sobre a escola e a que esta exerce sobre elas.(Mannheim & Stewart, 1977, p. 136-137)

    Enfrentar as perspectivas e os impasses da educao nos tempos quecorrem requer alguma remisso tradio pedaggica. Educao, comoconceito, significa conduzir e dirigir; significa tambm prover, entregar,assinalar. Em educao, assim, damos sinais, pretendemos propor pistas ecaminhos; rastros de trilhas j percorridas, mas a partir das quais o novopoder ser escrupulosamente criado. A sociedade adulta tende, neste sen-tido, a revelar-se e a projetar-se nos mais jovens; educar, de algum modo, mostrar o mundo ao jovem educando; traduzir a si prprio ensinando; entregar-se repartindo. Sendo assim, ao buscarmos apreender, em suaessncia, a particularidade da educao escolar, temos professores difi-culdade em visualizar aspectos comuns para alm da idia tacitamenteacatada de transmisso: transmisso de valores, partilha de significados;entrega de mapas e de roteiros, to incertos quanto cuidadosos. A lio navida vem sempre carregada de um duplo significado: deseja-se inevitavel-mente instruir transmitir conhecimentos e, ao mesmo tempo, preten-de-se cautelosamente preparar repertrios e cdigos de conduta apontardirees; observar costumes... Nesse entrelaamento est o ofcio primeiroda escola moderna: na histria que lhe constitutiva do passado; e tam-bm na histria de seu tempo presente.

    Em clssico artigo sobre a crise na educao nos anos de 1960 Entre o passado e o futuro Hanna Arendt referia-se dificuldade do tem-po que lhe era contemporneo desde os anos que imediatamente se segui-ram ao final da Segunda Grande Guerra no sentido de a sociedadecoletivamente projetar e prescrever critrios e normas pedaggicas para ajuventude. Segundo Hanna Arendt, a crise na educao concebida emtermos mundiais era um problema de ordem poltica, extrapolando,assim, o territrio exclusivamente educacional. O objeto da intriga da

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    autora remetia-se fundamentalmente j referida recorrente categoria donovo em matria educacional. Pensar a educao seria, poca no pare-cer da autora , enfrentar um dado entusiasmo que se tornara j quaseunnime quanto ao valor intrnseco conferido, na matria pedaggica, categoria do novo, do indito, da inovao, da mudana: o que velhocomo necessariamente ultrapassado e a novidade devendo ser imediata-mente abraada essa era a suposio bsica. Apontando os equvocos detal obsessivo desejo/delrio pela acepo do novo, Hanna Arendt declaraque o problema se colocava na ordem da poltica, extrapolando, assim, oterritrio exclusivamente educacional. O objeto de sua anlise reportava-se fundamentalmente compreenso pblica da matria pedaggica.

    Os pais humanos, contudo, no apenas trouxeram seus filhos vida medi-ante a concepo e o nascimento, mas simultaneamente os introduziram emum mundo. Eles assumem na educao a responsabilidade, ao mesmo tem-po, pela vida e desenvolvimento da criana e pela continuidade do mundo.Essas duas responsabilidades de modo algum coincidem; com efeito, podementrar em mtuo conflito. A responsabilidade pelo desenvolvimento da cri-ana volta-se em certo sentido contra o mundo: a criana requer cuidado eproteo especiais para que nada de destrutivo lhe acontea de parte domundo. Porm tambm o mundo necessita de proteo, para que no sejaderrubado e destrudo pelo assdio do novo que irrompe sobre ele a cadanova gerao. (Arendt, 1979, p. 235)

    Arendt considera, naqueles anos em que eram imensos os movi-mentos de contracultura, que as novas correntes educacionais teriamsido determinantes para a perda de crenas, usos e costumes que teriam,at ento, referenciado a criao das crianas e dos jovens. O que HannaArendt apreende com magistral perspiccia na abordagem do tema dizrespeito ao que ela denomina como pathos do novo na matria educa-cional. O discurso pedaggico continha, como tal, especial vocao pararemeter-se acepo fundadora: um novo mundo e o homem novo quenele habitar. Para tanto, discorre sobre originais traados e inditosprocedimentos de formao que, invariavelmente, deviam, por seu carterprescritivo, desafiar qualquer baliza de senso comum. Isso coloca a per-der, na sua integralidade diz Arendt o bom senso possivelmentepresente na base da tradio pedaggica.

    Na prtica, a primeira conseqncia disso seria uma compreenso bem clarade que a funo da escola ensinar s crianas como o mundo , e no ins-tru-las na arte de viver. Dado que o mundo velho, sempre mais que elas

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    mesmas, a aprendizagem volta-se inevitavelmente para o passado, no impor-ta o quanto a vida seja transcorrida no presente. (...) O que nos diz respeito,e que no podemos, portanto, delegar cincia especfica da pedagogia, arelao entre adultos e crianas em geral, ou, para coloc-lo em termos aindamais gerais e exatos, nossa atitude face ao fato da natalidade: o fato de todosns virmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo constantemente reno-vado mediante o nascimento. (Arendt, 1979, p. 246-247)

    Quando Snyders aborda em seu trabalho o mal-estar dos profes-sores, assinala o carter algo perturbador da vida em magistrio: os do-centes sempre a cada ano mais velhos, ao passo que lecionam todos osanos para uma populao que se nos afigura congelada invariavel-mente em uma cristalizao do tempo, o mesmo frescor; como em umaeterna juventude: ciclicamente em nascimento... Snyders destaca o riscoque corremos ns de nos tornarmos amargos e de reduzirmos medi-da que o tempo passa nossos sonhos, nossos ideais e, at mesmo, nos-sas convices e ambies profissionais. O paradoxo da tarefa de ensinar do ponto de vista de Snyders absolutamente evidente. O nossoestudante rompe, com o tempo, a grade da distncia que era guardadaentre o nosso conhecimento e o dele. Paradoxalmente o ofcio do magis-trio aquele cuja finalidade ltima pode residir em sua prpria supera-o. Simbolicamente, podemos dizer que cumprimos bem nosso papelde professores quando nosso aluno deixou de precisar de ns. Diz, sobreisso, Snyders:

    No princpio, o bom aluno inova, mas ainda no interior das grades do mes-tre, de seu modo geral de interpretao. Pouco a pouco, ele vai questionaroutros temas no os que o mestre previra, e vai romper as prprias grades. Deincio, ele tinha por ambio igualar o seu mestre; vem o momento em quesonha ultrapass-lo, retific-lo, desmenti-lo. E, mais prosaicamente, suplant-lo. (Snyders, 1995, p. 102)

    O bom professor, ento, confia aos discpulos seus mais preciosossegredos; confia aos estudantes o que foi capaz de incorporar de umatradio que lhe anterior e maior do que ele. Como se dissesse ao seualuno: o que eu sei daqui at aqui e isso eu me disponho a teensinar. Em tal disposio reside, talvez, a mais valiosa das atividadeseducativas existentes na instituio escola: a singeleza do ato de ensinar. o gesto intencional e proposital do ensino cuidadoso naquilo que osculo XIX j nomeara tato pedaggico o que torna o estudo e o contato

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    com o conhecimento formas muitos propcias para o encontro de mo-mentos de felicidade aspecto esse que Snyders qualifica de alegriacultural:

    Ser uma alegria essencial para muitos estudantes encontrar-se diante deuma pessoa uma pessoa que realiza, nos melhores casos, a unio de umacompetncia com um conjunto de convices e de uma experincia de vida,em suma, um avano de vida: eis a o que pode constituir a fonte de sua au-toridade. No caso mais favorvel, os alunos sero sensveis a um sopro, a umbrilho no ouso dizer uma radincia. Alegria desenvolvida por um ensinoverbal e personalizado; a comparao entre a profisso de ator e a de profes-sor ganha aqui todo o seu sentido: A palavra viva e o contato pessoal noso substituveis pela leitura, assim como uma pea teatral lida no substituiuma pea de teatro representada. Em ambos os casos, h a interpretao:um indivduo se envolve profundamente, presena fsica que se prolongaem presena individual e individualizante. A palavra e as atitudes podemmodular-se: nem sempre graves, s vezes ligeiras e rpidas, ousando mesmoa meia-voz nos instantes de extremo silncio. (Snyders, 1995, p. 106-107)

    De todo modo, a prpria noo de conhecimento parece acarretarconsigo o sentido das suas possibilidades de irradiao e, portanto, aviabilidade de sua comunicao. Existem, assim, repercusses pedaggi-cas nas distintas acepes de conhecimento assumidas. Peters (1979)destaca a configurao de uma gramtica lgica, que governaria a re-gncia, a concordncia enfim, a sintaxe dos diferentes projetoseducativos historicamente engendrados. Qualquer que seja a projeode nosso traado no campo da educao planos, projetos e roteiros deao , imprescindvel reconhecer na escola a intencionalidade da situ-ao de ensino, mediante a qual estamos dirigindo processos de constru-es mentais; mas estamos substancialmente colocando coisas diantedos olhos das pessoas (Peters, 1979). por isso que se ensina a partir deestruturas cognitivas e conceituais postas cultural e historicamente comoestratgias autorizadas e legitimadas de representao, informao e apro-priao do(s) saber(es). O significado cultural do conhecimento escolarsupe, por si mesmo, por parte dos profissionais do ensino, identifica-o, recordao, domnio, alm de, evidentemente, selees, recortes eescolhas prvias. As sociedades possuem cada uma em particular suas crenas tcitas, saberes compartilhados, horizontes de expectativas,expressos em alguma medida por reconstituies de ordem didticado universo da cultura conhecida por cada especfica formao social

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    historicamente dada. Ensinar nomear, indicar, oferecer pistas e sinais talvez indcios. Pelas palavras de Lauand, o professor, tudo o que faz en-signar (insegnire), apresentar sinais para que o aluno possa por si fazera eduo do ato de conhecimento (Lauand, 2000, p. 21). Em umapalavra ensinar marcar a alma; e desta responsabilidade nenhumeducador escapa...

    A escola da mestra Lili / era mesmo naquela velha esquina. / Casa velha ainda hoje a casa velha. / Janelas abertas para o beco / Sala grande. Amesa da mestra / Bancos compridos, sem encosto. / Mesa enorme dos me-ninos escreverem / lies de escrita. / De ruas distantes a gente ouvia, /quartas e sbados, cantada em alto coro / a velha tabuada. / O bequinhoda escola / lembra mestra Lili / lembra mestra Inhola /.../ ensinando o b--b s geraes./ O beco da escola uma transio. / Um lapso urbansti-co /.../ Tem janelas /.../ Simbolismo dos velhos avatares. (Cora Coralina, Obeco da escola)

    Recebido em agosto de 2003 e aprovado em setembro de 2003.

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