a cidade dos mortos no mundo dos vivos

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93Revista de História Regional 11(2): 93-108, Inverno, 2006

A cidade dos mortos

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Maura Regina Petruski1

Introdução:

As informações apresentadas no presente texto fazemparte de uma pesquisa que tem por objetivo recuperar atrajetória da edificação dos cemitérios, em distintos contextoshistórico-temporais, para analisar e registrar o perfil dosdiversos comportamentos humanos diante da morte. O recortetemporal escolhido tem como foco a Baixa Idade Média e aIdade Moderna, em função de que nesse período, foramencontradas significativas mudanças em relação a essesespaços, como também verifica-se a criação de umalegislação específica a esse respeito na qual encontramoscaracterísticas muito próximas às cidades dos vivos, sendomuitas delas prevalecendo até os dias de hoje.

As construções funerárias estabelecem vínculos entrepassado, presente e futuro, evidenciando uma das formascomo cada sociedade operava e mantinha sua tradição emrelação às incertezas e incógnitas relacionadas à morte.Estudar a respeito da temática cemitério é trabalhar com asubjetividade de seus signos entrecortados de silêncio, queaos poucos temos suas significações reveladas. Importantefonte iconográfica que ultrapassa suas questões estatísticase demográficas, revelando o estético através dosmonumentos, afrescos, fotografias e lápides. Estudos a elesrelacionados possibilitam a compreensão de sistemasculturais não mais existentes, pois é “em torno dos túmulos

1 Professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Doutorandana Universidade Federal do Paraná.

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que esposos, parentes e amigos irão se reunir para velaremos seus, como em volta de um marco”2 . Espaço sagrado quefaz parte da vida cotidiana, cujo reflexo dos vivos é transportadopara os túmulos, demonstrando representações individuaisou familiares de distintas formas. Parecido com pequenascidades, sendo regidos por uma lógica de organização,cuidadosamente planejados, os cemitérios movimentamnegócios e mostram estratificações sociais identificadosatravés de suas ruas que separam os túmulos. Há, tambémexposição representativa de anjos, santos e esfinges quelançam olhares inexpressivos aos visitantes como se fossemguardiãs. Suas construções feitas de pedras e tijolos, frias eduráveis, ecoam com alicerce da eternidade, mas abaixo delasencontram-se corpos em processo de decomposição.

A história dos cemitérios também pode ser lida comoum processo de implantação de uma ordem culturaldesenvolvida por grupos sociais e a sua inter-relação com aexistência humana e sua finitude. Nesse caso, a culturaenquanto categoria de análise é pensada de acordo com aperspectiva que certas sociedades elaboram e partilham seussímbolos, signos, práticas e valores como expressões etraduções da realidade. Uma sensibilidade refletida, emmaterialidade, no espaço construído para retratar o real e oimaginário do ser humano, frente ao que ele sabe edesconhece da vida.

O interesse pela temática da Morte:

Diversas foram as formas e representações construídaspelos homens diante da morte. Mesmo sendo um fato singulare concreto, a temática suscita interpretações variadas poraqueles que procuraram analisar esse assunto semprepresente em diferentes sociedades ao longo do tempo. Arelação do homem com a morte tem sofrido variações ao longo

2 BRAET, Herman & VERBEKE, Werner. A morte na Idade Média.

Tradução de Heitor Megale, Maria Clara Cescato e Yara F. Vieira.SP:EDUSP. 1996, p.31.

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da história, revelando, assim, sua cultura através de suaspráticas funerárias.

Objeto de estudo escolhido por alguns historiadores dogrupo dos Annales, a partir da segunda metade do século XX,os quais se propuseram a enfocar aspectos relacionados aoalém-túmulo, fazendo com que o tema se consolidasse noseio da história social.

No limiar dessa fase, destaca-se o nome de PhilippeAriés que direcionou seus estudos na relação natureza-cultura na perspectiva da longa duração. Em O homem diante

da morte, este pesquisador apresentou trajetórias e relaçõesdos homens face à morte, salientando formas pelas quaisuma cultura vê e classifica esse fenômeno onipresente.

Dentre as formas culturais apresentadas por Áriesdestaca-se a Morte Domada, identificada pelo autor como ainterpretação mais antiga relacionada ao tema. Nestaperspectiva, a morte anunciava sua proximidade através desonhos e pressentimentos, premonição essa aceita comonatural por àqueles que a recebiam. Dessa forma,acreditando-se que ela estaria próxima, providênciaspoderiam ser tomadas para que a passagem fosse realizadade acordo com a vontade do “morto”.

Outro modelo apresentado por Ariés é a Morte

romântica, interpretação essa desenvolvida em meados doséculo XIX. Nesse caso, a chegada da morte passou ser vistae acreditada como o momento de reencontro, de reunião comos familiares já falecidos no além-túmulo.

Um segundo autor que também teceu reflexões dianteda morte foi Michel Vovelle, que se utilizou dos testamentoscomo fonte, o autor “quis mensurar mudanças no pensamentoe no sentimento. Deu atenção às referências feitas à proteçãodos santos padroeiros, ao número de missas que o testadorencomenda para a salvação de sua alma, aos arranjos feitospara os funerais e mesmo ao peso das velas acendidasdurante a cerimônia”.3 Procurou, dessa forma, evidenciar oque ficou conhecido como a “pompa barroca”, presente nos

3 BURKE, Peter. A escola dos Annales 1929-1989. A Revolução Francesa

da Historiografia. SP: Editora da UNESP. 1991.

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funerais do século XVII, bem como as mudanças que essesrituais sofreram quando passaram a simples cerimônias noséculo XVIII. Nessa perspectiva, o testamento servia comogarantia para obter o além, pois o morto decidiaantecipadamente sobre o seu próprio funeral e como deveriaser a composição do seu epitáfio. Era o momento em queprevalecia o individualismo, quando o próprio indivíduoorganizava a sua passagem para a outra vida. A esse respeito,Áries4 denominou de Morte de si mesmo.

Segundo Peter Burke5 , o trabalho desenvolvido porVovelle instigou Pierre Chaunu a investigar a respeito dasatitudes coletivas diante da morte, na cidade de Paris, noinício da época moderna, usando os métodos utilizados porVovelle.

Seguindo o caminho aberto pelos integrantes dosAnnales, porém especificamente em território brasileiro, umdos autores que também trilhou pela temática foi João JoséReis6 , que em seu trabalho A morte é uma festa – ritos fúnebres

e revolta popular no Brasil do século XIX, o autor descreve acultura funerária desenvolvida na região da Bahia,apresentando elementos de descontentamento por parte dealguns setores da população, contra as novas posturassanitárias que estavam sendo incorporadas em solobrasileiro.

Práticas de enterramento e a implantação doscemitérios:

Fazendo um recuo cronológico, a respeito da edificaçãodos cemitérios na antiguidade, constatou-se que os primeiroscemitérios cristãos foram as catacumbas. Eram nas paredesdessas galerias subterrâneas, que se faziam as tumbas paraenterrar os mortos e também o local utilizado pelos primeiroscristãos para se reunirem secretamente no período em que

4 ARIES, P. O homem diante da morte. RJ: Francisco Alves, 1989. p 214.5 BURKE, Peter. Op cit . p6 REIS, João José. A morte é uma festa – ritos fúnebres e revolta popular no

Brasil do século XIX. SP: Cia das Letras, 1991.

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ainda eram perseguidos. O sepultamento em terra tinha umsignificado importante, pois perspectiva religiosa levava àpreservação dos lugares considerados santos, e o cemitérioera um desses espaços. Isso se efetuou em face da fé doscristãos, podendo ser identificada como elemento responsávelpela mudança de comportamento de muitas pessoas emrelação a prática de enterramento. Outro elemento quetambém contribuiu para que o incentivo aumentasse foi avalorização do culto aos mártires, concedido por parte dainstituição eclesiástica, que atraía para seus túmulospessoas de distintos lugares. Diante disso, ser enterradopróximo a esses túmulos significava proteção para o momentodo despertar, tendo esse pensamento fundamentado nacrença de que os santos possuíam lugar garantido no paraíso.Com o passar do tempo, em muitos desses locais, foramedificadas Basílicas, que além da sua função religiosatambém serviam para alojar os mortos.

Essa prática de enterrar em solo sagrado foi seampliando ao longo do medievo e muitos cemitérios emespaços abertos foram sendo deixados de lado, passando alocalizarem-se próximos às igrejas. Todavia nem todas aspessoas poderiam ter seus corpos depositados nesses locais,reservados aos mais abastados como também a aqueles quepossuíam influência na sociedade local. Eram ossepultamentos denominados ad sanctos cujos corpos ficavam“no coro ou na cave, ou no exterior, à sombra das paredes, ouainda no cemitérios em lugares privilegiados, os maispróximos do santuário: perto da entrada das capelassepulcrais, das estátuas, cruzes de pedra, estações paraprocissões” 7 .

O desenvolvimento dessa prática se organizoufundamentando-se na crença da ressurreição dos corpos nodia do julgamento final, pois se acreditava que a proximidadefísica entre o cadáver e as imagens divinas, contidas nointerior das igrejas, representava um modelo de continuidade

7 HEERS, Jacques. Festas de Loucos e Carnavais. Lisboa: PublicaçõesDom Quixote. 1987, p 40.

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espiritual que se desejava obter na relação mágica existenteentre o ser humano e Deus. Dessa forma, ser enterrado nointerior da igreja era uma forma de não romper totalmentecom o mundo dos vivos.

Assim, cada vez mais as igrejas foram sendo utilizadascomo cemitérios, criando-se uma representação de sociedade“em que coabitavam os vivos e os mortos, em que o cemitériose confundia com a igreja no coração da cidade”.8

Dessa maneira, os túmulos individuais foram setornando raros durante a Alta Idade Média, quando não seconsiderava necessária a especificação da sepultura nem asua individualização por um epitáfio ou inscrição qualquer,9

pois nas igrejas os corpos eram colocados no mesmo espaçosem identificação alguma.

Com o passar do tempo, os espaços no interior dasigrejas foram ficando escassos, chegando ao limite nasegunda metade do século XIV, quando a Peste Negra assolouo território europeu, provocando a morte de milhares depessoas em poucos meses, deixando os cemitériosabarrotados de corpos. A única saída para aquele momentoera enterrar os corpos, também, no pátio das igrejas, o quegerou a criação dos cemitérios ao lado ou aos fundos delas.Assim, entre os séculos XII e XIV, os enterros foram setornando cada vez mais religiosos, até chegarem ao seu augeno século XVII.

As crises de mortalidade, acontecidas na Baixa IdadeMédia, em função de epidemias e pestes, interferiram nocomportamento relacionado à morte, pois nesses momentosde fatalidade, os homens se viram desobrigados emcumprirem os rituais fúnebres. Boccaccio relata essasituação quando escreveu sobre a peste em Florença.

A principal mudança de comportamento, identificadanos testamentos desse período, foi revelada através daspreocupações dos testadores: pedidos de celebrações

8 VOVELLE, Michel. Ideologia e mentalidades. SP: Brasiliense. 1987. p73.9 Os túmulos individuais eram um hábito romano e estavam ligados aosescravos.

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litúrgicas a serem realizadas pelos seus familiares,estipulação de número de missas e orações que deveriamser feitas após o sepultamento, além da determinação daperiodicidade desses rituais, pois se acreditava que tudo issoajudaria no seu julgamento final. Nesse caso, o testamentopassou a ser categorizado no imaginário social como garantiade salvação.

Transformações de forma mais significativa, a respeitodos cemitérios, ocorreram a partir da primeira metade doséculo XVIII, quando foram levados para fora dos jardins e dointerior das igrejas. Com isso, os mortos passaram a servelados e enterrados no circuito íntimo da família. Essapostura veio acompanhada pela redefinição da noção de rituale da intensificação para individualizar a sepultura, antesprivilégio da nobreza e do clero. Além disso, novos critériosmédicos foram desenvolvidos, pois a grande quantidade detúmulos, no convívio com os vivos, preocupava os higienistas,que passaram a alertar a população para o grande perigo dessaproximidade. Coube a ‘doutrina dos miasmas’ fundamentaressa nova maneira de pensar e agir.

Desenvolvida principalmente na Alemanha, surgirampreocupações por parte de alguns médicos, quanto aosproblemas causados pelos corpos que estavam em processode decomposição, uma vez que “emanavam das sepulturasvapores ou fumaça que transtornava o ar10 , e que interferiadiretamente na saúde do ser humano, causando alguns tiposde doenças. Por essa nova perspectiva, a presença do mortose tornava inconveniente e representava perigo aos vivos.

Na França, a nova postura diante da morte e dos mortosse delineou ao longo do século XVIII, no rastro do iluminismoe da secularização da vida cotidiana, criando-se uma atitudehostil à proximidade com pessoas moribundas e com osmortos. Além disso, os médicos também recomendavam queessa aproximação fosse evitada por motivo de saúde pública.O primeiro alvo desse novo discurso foram os cemitérios,especialmente o Cemitério dos Inocentes, localizado em

10 BRAET, Herman & VERBEKE, Werner. Op cit p.71

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Paris, pois ele era,

uma dessas veneráveis necrópoles incrustadas no coraçãoda cidade, que servia a mais de vinte paróquias, numa áreade 120 x 60 m, formando uma espécie de anexo do vizinhomercado de Halles. Esse cemitério recebia há oito séculospobres e ricos, e dizia-se que seu solo consumia cadáverescom fantástica rapidez, daí ser conhecido como “come-carne”e que seu ossuário continha os restos mortais de um milhãode parisienses11 .

A preocupação com esse espaço justificava-se emfunção de que os corpos nele depositados eram colocados unssobre os outros, sem grandes preocupações com questõessentimentais ou mesmo sanitárias, principalmente, no quese refere àqueles que não possuíam recursos, cujoamontoamento,

era tanto que os cadáveres se empilhavam acima do murodo claustro e caíam do lado de fora. Em torno desse mesmoclaustro foram construídas casas cuja pressão devido aoamontoamento dos cadáveres foi tanto que algumas casasdesmoronaram e os esqueletos se espalharam em suascovas, provocando pânico e doenças. O medo disseminadoentre as pessoas da época, em relação à infecção causadapelo cemitério, foi tanto que, elas acreditavam que emfunção da proximidade dos mortos, o leite talhavaimediatamente e a água apodrecia12 .

Esse olhar negativo, direcionado aos cemitérios, surgiucom o desenvolvimento do conceito da “medicina urbana”13 ,culminando com inúmeros protestos por parte da populaçãofrancesa que não concordava com a mudança,principalmente entre o decênio de 1740 – 1750. Como reflexode tais manifestações ocorreram as primeiras grandesemigrações dos campos santos para a periferia da cidade, apartir de 1780. A partir daí, o individual substituiu o coletivo,

11 REIS, João José. Op cit p 77.12 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. RJ:Graal Edições. 1988. p87.13 A medicina urbana não é verdadeiramente uma medicina dos homens,corpos e organismos, mas uma medicina das coisas: ar, água,decomposições, fermentos; uma medicina das condições de vida e domeio de existência.

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ou seja, o caixão individual e as sepulturas familiares foramsendo incorporados ao ritual funerário.

Sob esse aspecto Michel Foucault destaca que, emrespeito aos vivos, as razões teológico-religiosas foramsubstituídas pelas políticas sanitárias, pois

foi assim que na periferia das cidades, no final do séculoXVIII, um verdadeiro exército de mortos tão bem enfileiradosquanto uma tropa que passa em revista. Pois é precisoesquadrinhar, analisar e reduzir esse perigo perpétuo queos mortos constituem. Eles vão, portanto, ser colocados nocampo e em regimento, uns ao lado dos outros, nas grandesplanícies que circundam as cidades.14

Esse modelo descrito por Foucault, referente àdisposição dos túmulos, fazia parte das normatizaçõesdefendidas pela medicina urbana, que tendo por base ométodo de arejamento das cidades, largas avenidas foramabertas para melhorar a circulação do ar. Esse modelotambém foi sendo aplicado na cidade dos mortos, acreditandoque a divisão em quadras e espaços mais definidos poderiammelhorar aspectos de saúde pública, inclusive de fiscalizaçãopor parte dos órgãos competentes.

O espaço funerário passou a ser cercado, chegando aser estipulado a altura da divisória que separaria os doismundos, sendo esquadrinhado de forma que a vigilânciapudesse ser viabilizada. Introduziram-se quadras esepulturas com números, nomes dos falecidos foram colocadosnos túmulos, fixando também a data de falecimento. Atravésdessas medidas, a saúde pública e a higiene entrelaçaram àvida dos vivos com os corpos mortos.

A partir de então, contando com o apoio derepresentantes da igreja e tendo como suporte o conteúdo dotexto bíblico do Livro de Esdras que diz: “Numerosostestemunhos nos ensinam que a ala deve habitar umamorada mais nobre”15 , acrescido da idéia defendida pelos

14 Idem p. 90.15 No capítulo 2, versículos 34-35 que diz: Numerosos testemunhos nosensinam que a alma deve habitar uma morada mais nobre.

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higienistas, a questão estética dos cemitérios começou areceber mais atenção, passando a prevalecer túmulosindividuais e jazigos familiares, contra o coletivismodesenvolvido até então. A partir daí, autoridades,principalmente francesas, passaram a estabelecer leis queproibiriam enterros ad sanctos, recomendando a construçãode novos espaços que serviriam de cemitérios inseridos nasnovas regulamentações estabelecidas. Regras defuncionamento, então, passaram a ser impostas: aberturasomente durante o dia, inspeções por parte de funcionáriosdevidamente contratados para esse fim e registros em livrospróprios de aspectos relacionados à morte. Entretanto, oscemitérios permaneceram sob a tutela da Igreja Católica porse tratar de um espaço reconhecido como sagrado. Assim,pureza e perigo agora se definiam a partir de critériosmédicos, mais do que religiosos.

Se na França urbana a aceitação das novas regras desepultamento se deu de certa forma de maneira pacífica, omesmo não aconteceu com algumas das suas comunidadesrurais, que promoveram manifestações contrárias a essanova imposição. Todavia, isso de nada adiantou, pois tiveramque se enquadrar às novas determinações.

Aos poucos, outros países foram seguindo os novosprocedimentos franceses no que se refere aos cemitérios.Na região da Inglaterra, não se tem conhecimento demanifestações contrárias às novas decisões em relação aoscampos santos. Acredita-se que a aceitação estejarelacionada ao rompimento, nesse país, da tradição católicae ao desenvolvimento do protestantismo, doutrina nova ebastante difundida entre os ingleses, razão pela qual nãoencontraram resistência, pois os protestantes inglesesveneravam menos o local da sepultura, se comparado aoscatólicos. Isso se dava em função de que nesse país já haviamsimplificado os rituais dos funerais e estavam dando poucaatenção ao corpo morto e ao local do enterro.16 Assim, com o

16 Essa postura justifica-se em função da crença na doutrina daPredestinação que afirma: “na hora da morte não haveria ritual quepudesse alterar o destino do morto”.

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processo da Reforma Religiosa, encontra-se uma outramudança concernente à criação de cemitérios: a criação doscemitérios públicos, iniciando, dessa forma, a rupturacemitério-igreja católica.

Em Portugal, somente em 1835, é que uma lei passoua vigorar, proibindo enterros nas igrejas, como tambéminstruiria as autoridades locais a construírem cemitériosfora dos limites urbanos, no prazo de quatro anos. Pela novanormatização, os cadáveres deveriam ser enterrados emcovas individuais e os padres que, por ventura, permitissementerrá-los fora dos cemitérios públicos poderiam até perdersua função. Nessa época, o governo português criou uma redede autoridades sanitárias para vigiarem as práticas desepultamento.

Assim, aos poucos, o espaço dos mortos foi seenquadrando às novas determinações sanitárias e sofrendosignificativas mudanças.

Jacques Heers e uma novaleitura dos cemitérios franceses:

Aparentemente, os cemitérios franceses eram comooutros quaisquer: espaços sagrados onde corpos sem vidaeram depositados em túmulos dos mais variados tipos etamanhos, com cruzes que identificavam a sacralidade doespaço, capelas e oratórios nos quais se faziam orações,manifestando-se suas crenças e devoções.

Todavia, Jacques Heers, em Festas de Loucos e

Carnavais, mostra que aparentemente não era somente issoque se visualizava nos cemitérios franceses durante grandeparte da Idade Média. O autor apresenta o lado profano dessesespaços, aproximando-os a um centro de intensa vida socialmais do que qualquer outra coisa, ao descrever as suassituações que evidenciam o sentido nada sacro.

Estudando especificamente os cemitérios franceses,o autor expõe que estes não serviam apenas para abrigarcorpos sem vida, mas também apresenta uma diversidadede funções, onde o culto aos mortos, ligados diretamente ao

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culto divino, parecia ser a última coisa que se fazia nesselocal, demonstrando uma função muito mais leiga para ocemitério.

A imagem que o autor nos apresenta não é a de umjardim de paz, muito menos a de um lugar santo, mas sim, ade um espaço de convívio e divertimento, demonstrando dessaforma a familiaridade dos homens com o campo sagrado.Dessa forma, a morte não estaria ligada ao medo, pavor ouqualquer outra coisa relacionada, pois com muitanaturalidade esse lugar era freqüentado por distintaspessoas, sendo considerado o centro de vida coletiva: lugarde comércio, reuniões, passeios, encontros espirituais etemporais.

Heers procurou mostrar que esse “espaço santo”aproximava-se à sociedade dos vivos, pois além das suasavenidas e jardins, das placas indicativas, dos túmulosindividualizados ou coletivos, da existência de umaadministração e alguns até com capelas, muitas decisõeseram tomadas dentro dos limites dos cemitérios, entresepulturas planas e algumas mal-acabadas ao lado de outras,verdadeiros imóveis de luxo, grandes monumentosconstruídos com mármore. Realmente, era um espaçomultifacetário como destaca o autor.

Até o ano 1000, os cemitérios ficavam juntos das igrejasparoquiais das cidades e, algum tempo depois, perto dosconventos17 . Até, então, neles era permitida a entrada depessoas em qualquer horário, durante o dia ou à noite, nãoexistindo restrições alguma a esse respeito. Era um localque servia de passagem para as pessoas, animais de carga emercadorias. Representantes de vários ofícios disputavamespaços, nas galerias existentes entre os túmulos, paravenderem seus produtos, além da existência de pequenaslojas de propriedade dos cônegos18 . Como era um local decomércio, passou a ser alvo de vários ataques por parte doscomerciantes da cidade, que não viam com bons olhos aconcorrência estabelecida. Sentiam-se prejudicados, pois

17 Das 35 paróquias existentes em Paris, 29 possuíam cemitérios.18 Especialmente o cemitério de Ruão.

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eram obrigados a pagar impostos pelos seusestabelecimentos comerciais, fato esse que não aconteciacom os estabelecimentos ligados à Igreja, pois estavamisentos de tais taxas.

Escribas públicos possuíam bancas expostas entre asconstruções mortuárias e ali ficavam esperando a chegadada clientela. Em Órleans, os escribas que possuíam seu pontocomercial no campo santo fundaram a Confraria Religiosa eProfessional denominada “Fraternidade dos Escribas”. Até asegunda década do século XII, esta confraria eraresponsabilizada em administrar os lugares santos, e contavacom o apoio da igreja para a qual eles prestavam contas aobispo responsável. Também era o local no qual feirasitinerantes montavam suas tendas durante determinadosperíodos do ano em função do fluxo de pessoas. Assim, aolado dos mortos, a vida social seguia seu caminho e, com aconivência de representantes da igreja, os cemitérios podiamser identificados, nessa época, mais como pontos comerciaisdo que espaços santos.

Em Paris, o Cemitério dos Inocentes, o mais tradicionalde todos, localizado em pleno centro da cidade, foi descritopor Heers como “acolhedor e activo”19 . Todavia, era o localem que se colocavam à venda cavalos e forragens, onde todosos dias capelistas, livreiros e ferrageiros expunham, entreos túmulos, seus artigos para serem comercializados.

Desde o século XV, os lugares sob as galerias eramdisputados pelos comerciantes e serviam de motivo paradiscussões, porque alguns eram reservados para casasespecializadas e, também, a diversas corporações de ofícios,para venderem suas antiguidades, roupas, malhas, quadros,livros e imagens.

Dentre as edificações do cemitério, o púlpito era o quemais se destacava entre todas as demais ali construídas,pois era desse pequeno espaço que pronunciamentos eramfeitos, decisões anunciadas e as homilias realizadas pelosreligiosos ao longo do ano, principalmente, durante os

19 Idem p. 41.

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funerais. Confeccionado com estrado de pedra ou madeira,poderia ser utilizado por outras pessoas que não estivessemligadas à instituição eclesiástica, para tanto bastava ver quevárias vezes por dia ele era ocupado por oradores queabordavam temas variados, em especial sobre a fragilidadeda condição humana.

Os cemitérios faziam parte do roteiro obrigatório depassagem das procissões realizadas ao longo do ano. Elasatravessavam o espaço santo, tendo como local de paradaobrigatória as estações sacras e a grande cruz de madeirapara as pessoas ouvirem pronunciamentos dos religiosos erealizarem suas orações.

Devido à familiaridade com esse espaço, os homens oidentificavam como um prolongamento da vida cotidiana, poisnele realizavam-se espetáculos com temas bíblicos ourelacionados à vida dos santos. Havia, também, encenaçõese representações profanas de grande aparato. Além disso,servia como local para as reuniões da justiça eclesiástica,que ali se encontrava, para julgar e decidir aspectos da vidae comportamento das pessoas. O autor destaca que a sentençade Joana D’Arc tenha sido pronunciada no cemitério de Ruão.

Na região oeste e central do território francês havia oque eles chamavam de “a lanterna dos mortos”. Uma colunaconstruída com um dossel que abrigava uma luminária acesapara clarear o espaço do cemitério, principalmente nas noitesfestivas, bem como em determinadas épocas do ano em quenele eram realizadas atividades noturnas.

Tais práticas desenvolvidas no espaço santo não eramvistas com bons olhos por muitos, para tanto basta ver asdenúncias realizadas junto ao poder civil que consideravamtais atitudes abusivas. Todavia, isso pouco adiantava, poissomente mais tarde é que mudanças efetivas realmenteocorreram.

Alguns cemitérios próximos à região de Reims, emfunção do crescimento e do fluxo de pessoas, transformaram-se em bairros, tais como: Santo Hilário, São Martinho e SãoSisto.

Esses testemunhos, acima descritos, pertencem a de

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uma cultura que não se preocupava em profanar o espaço docemitério e, que, sem grandes constrangimentos, os signossagrados nele contidos, que deveriam receber reverência erespeito por parte dos cristãos eram vistos com indiferença,ou quem sabe nem notados. Como se constata, a morte antesconsiderada como tabu, séculos depois passou a ser tratadacom indiferença, visto que não causava mais a sensação de

medo ou pavor.

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cemitérios

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Resumo: Este artigo procura apresentar elementosconcernentes à trajetória da edificação dos cemitérios nummomento histórico específico, bem como mostrar outrasfunções desse espaço santo, especificamente em solo francês.

Palavras-chave: morte, cemitério, comportamento.

Abstract: This article tries to present elements regardingthe way cemitery building has changed in time, as well as tpexplore some other functions of this holy space, particularlyin France.

Key words: death, cemitery, behavior

Artigo recebido para publicação em 16/08/2006

Artigo aprovado para publicação em 13/03/2007