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A CHEGADA DE UM COMBOIO À CIDADE

de

Luís Mestre 2ª versão

valsa lenta

2018

1

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Personagens:

TÂNIA (T) - uma mulher nos seus quarentas, com fato de banho, roupão e

touca

SÍLVIA (S) - a sua esposa, trinta e poucos. veste fato de banho, roupão, touca.

usa chinelos de piscina e óculos de natação

ANA (A) - outra mulher, quarenta e poucos. recém-chegada, veste-se de tons

escuros

O ARQUITECTO (Q) - homem, quarentas. é o arquitecto e gestor do arranha-

céus. usa sempre fato e gravata

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Q (para o público)

Naquela manhã, TÂNIA sobressaltou-se com uma explosão que se fez ouvir da

varanda. Uma garrafa caíra de um piso acima, e após ter feito ricochete

transformara-se em mil pedaços salpicando o salão. TÂNIA ficou parada,

descalça, entre os fragmentos brilhantes. Após um longo instante, caminhou

sobre os estilhaços em direcção à varanda. Debruçou-se no parapeito e olhou

para cima, observando cuidadosamente as varandas à procura de movimento

até que a dimensão do arranha-céus lhe provocou uma síncope. (pausa) A

sólida construção é uma cidade vertical com uma enorme variedade de

serviços. Uma máquina de servir sem fim suportada pela mais recente

tecnologia, com o objectivo de substituir o contacto humano. A área onde se

encontra é uma estância balnear, distribuída por vários andares de betão,

carbono e silício.

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(silêncio muito longo)

T

é este silêncio.

ouves?

S

e tu,

estás a ouvi-lo?

T

o quê?

S

o silêncio.

T

é claro que sim.

S

claro...

(pausa)

sim.

talvez seja possível

ouvir o silêncio.

T

quando é ruidoso.

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como este.

(silêncio)

mesmo na cidade é possível ouvir o silêncio.

no meio de todo aquele tumulto.

(pausa)

mas lá há qualquer coisa de morto.

de vazio ou... uma pressão estranha.

(pausa curta)

densidade, talvez.

(pausa)

sim. densidade.

(silêncio)

S

não pareces muito contente por estar aqui.

T

tu estás?

S

eu?

(pausa)

sim.

estou.

qual de nós as duas fez questão em vir para aqui,

este Verão?

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T

bom... tu.

(pausa)

porque não escolheste um cruzeiro?

ou uma praia qualquer.

S

porque haveríamos de nos enfiar nesses espaços doentios?

(pausa)

imaginas a quantidade de doenças...

aqui estamos bem.

o ar é mais puro.

os elementos são cuidadosamente escolhidos.

seleccionados.

está tudo estrategicamente colocado, organizado.

no local certo, à hora certa.

que mais podemos querer?

(pausa)

até o silêncio é melhor.

tu própria reconheceste isso.

T

devia ter trazido uma câmara.

S

isto não é um documentário.

é agora.

aqui.

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as duas.

eu, tu, nós. aqui.

agora.

(pausa curta)

é a vida real.

(pausa longa)

porque é que não estás contente por estar aqui?

(silêncio)

podias,

simplesmente,

estar contente por eu estar contente.

T

não sei...

sinto-me completamente alheia a isto tudo.

S

és realmente muito estranha.

T

não quero ficar a passear,

para cima e para baixo,

neste lugar.

S

querida,

também oiço o mesmo silêncio.

(pausa)

lembras-te daquela noite que passámos no comboio?

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na viagem para cá.

dormiste o tempo todo.

T

o tempo todo não.

S

em cada paragem,

em cada estação,

eu ficava a ouvir o silêncio.

((como tu.))

foi assim que percebi que tínhamos passado a fronteira.

(pausa)

sabias que na maior parte das estações não acontece nada?

T

nada?

S

absolutamente nada.

o comboio fica parado

e não acontece nada.

T

porque é que o comboio parava e ficava à espera?

S

não faço ideia.

nenhum passageiro descia,

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ninguém embarcava.

e o comboio à espera.

uma eternidade.

(pausa)

por vezes,

via dois funcionários

que andavam pela plataforma.

e quando se cruzavam,

murmuravam qualquer coisa.

no meio daquela penumbra toda.

nunca percebi o quê.

T

sim.

há sempre funcionários nas plataformas.

S

à espera.

T

será que conseguem ouvir o silêncio?

S

já chega de silêncio.

(em tom alto para a Inteligência Artificial do arranha-céus)

Bach!

bem temperado.

(começa a ouvir-se Das Wohltemperierte Klavier, Präludium Nr.1 C-dur BWV

846, de Johann Sebastian Bach)

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T (após uns instantes, em tom alto para a Inteligência Artificial do arranha-

céus)

pausa.

(a música pára)

S (em tom alto para a Inteligência Artificial do arranha-céus)

fim de pausa.

(a partitura sonora continua. em tom alto para a Inteligência Artificial do

arranha-céus)

pôr-do-sol.

(a luz transforma-se num tom quente)

T (após uns instantes, em tom alto para a Inteligência Artificial do arranha-

céus)

nova pausa.

(a música pára de novo. silêncio)

S

preferes o silêncio?

T

afinal, porque estamos aqui?

S

em comparação com...

10

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T

outro sítio qualquer.

S

achas que uma viagem de barco é melhor para ti?

T

mas eu não estou a sentir nada.

S

estás sim.

sabes bem que estás.

T

o quê?

S

o quê?

diz-me tu.

(pausa)

vagueias sem rumo.

constantemente.

T

reparaste nisso?

S

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eu sou a tua mulher.

e amo-te.

(pausa)

é impossível não notar.

(pausa curta)

nem no trabalho encontras conforto.

e como trabalhavas: de manhã à noite.

T

foi-se o tempo.

S

lembras-te do que me prometeste?

T

quando?

S

no dia em que concordámos em casar.

T

vagamente.

S

disseste que me levarias ao topo do mundo.

T

disse-te isso?

((também a ti?))

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S

prometeste isso a mais alguém?

T

o quê? não.

(pausa curta)

estou confusa.

é esta... luz.

S (em tom alto para a Inteligência Artificial do arranha-céus)

dia polar.

(a luz transforma-se num tom claro e frio. pausa)

consegues lembrar-te do que me prometeste nessa altura?

T

vagamente.

S

falaste-me do topo do mundo.

prometeste-me.

T

nessa altura,

eu usava essas palavras.

S

eram só palavras?

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(pausa)

não vais levar-me ao alto de uma montanha

e

mostrar-me as maravilhas do mundo.

T

eram apenas palavras.

S

só palavras?

nada mais.

(silêncio)

T

tu não nasceste para grandes escaladas.

S

sou assim tão entediante?

T

vamos embora daqui.

agora.

S

não.

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T

o tempo custa-me.

cada vez mais.

S

não te vou aborrecer mais.

(SÍLVIA levanta-se e dirige-se para a saída)

T

não me deixes sozinha.

(SÍLVIA pára. silêncio)

durmo mal,

de há um tempo para cá.

(pausa curta)

tenho tido um sonho recorrente.

(silêncio curto)

estou acordada.

não consigo dormir.

penso em ir ver a paisagem.

o horizonte.

mas está tudo fechado.

as janelas, as portadas.

e decido passear pelo arranha-céus.

consegue-se ouvir um silêncio sepulcral.

é medonho.

então,

encosto o ouvido a uma parede

e aí oiço qualquer coisa.

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mecânico.

é... o coração deste animal.

são pequenos ruídos.

tic-tic-tic-tic.

um número infinito de pulsações.

é algo incrível.

e não lhe sentes o cansaço.

percebes que será imortal.

e que nunca parará de bombear energia,

uns e zeros.

((quem criou este monstro?))

aquilo hipnotiza-te,

sabes?

toda aquela energia.

aqueles pequenos sons.

e fico dormente.

numa espécie de sonho

dentro de um sonho.

(pausa)

então,

de repente,

sinto um vulto.

ou algo parecido.

eu não estava suficientemente perto

para ver o que era.

(pausa)

um vulto pálido.

sim,

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foi o que vi.

no meio de todo aquele ruído silencioso.

S

estranho...

T

movia-se como uma sombra.

negra.

(pausa)

era uma mulher,

sem dúvida.

pálida.

S

uma mulher.

pálida e negra.

como uma sombra?

T

sim, isso.

(pausa curta)

sim.

S

quem era?

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T

não sei... ninguém.

é um sonho.

S

então é isso que tens feito todas as noites.

T

não percebo.

S

será que é mesmo um sonho?

T

claro.

que outra coisa poderia ser?

S

tu sais do nosso quarto,

noite após noite.

e depois regressas.

(pausa longa)

agora sei o fazes:

vagueias por aí.

(SÍLVIA sai. pausa)

T (em tom alto para a Inteligência Artificial do arranha-céus)

nocturno.

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(escuro)

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Q (para o público)

Naquela noite, TÂNIA vagueou de novo pelos corredores do arranha-céus.

Embora tudo lhe parecesse um sonho, sabia agora que estava acordada. Decidiu

procurar o vulto. Percorreu quilómetros nas entranhas daquele animal artificial.

Mas sem sucesso. Com as forças que lhe restavam, regressou ao quarto para

encontrar a cama vazia. SÍLVIA já lá não estava.

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(silêncio muito longo)

T

reparei que não estavas no pequeno-almoço.

S

conheci o criador.

T

quem?

S

o criador.

(pausa)

o homem que desenhou isto tudo.

T

o Arquitecto.

S

sim.

(silêncio)

T

e então?

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S

vive nos pisos superiores.

isolado.

(pausa)

é lá que monitoriza o arranha-céus.

sabias que só são necessárias

cinco pessoas

para manter tudo isto a funcionar?

(silêncio curto)

é inacreditável.

(silêncio longo)

T

como é que o conheceste?

S

acordei a meio da noite e tu não estavas.

fui à tua procura e perdi-me.

ele encontrou-me.

(pausa curta)

aonde foste?

T

estive a vaguear.

S

estavas à procura do vulto.

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T

não.

(corrigindo-se)

sim.

S

quem é essa mulher?

T

não sei...

(silêncio curto)

S

porque é que tenho a sensação

de que estás a mentir?

(pausa)

vê se te lembras.

(pausa curta)

alguém com quem trabalhaste,

talvez.

T

é apenas um vulto.

provavelmente nem é real.

(pausa)

não existe.

é uma combinação de luz e sombra.

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S

ela existe.

T

como sabes isso?

S

ele disse-me.

T

o Arquitecto...

S

...contou-me que ela deu entrada aqui

poucas horas depois de chegarmos.

deve ter viajado no comboio seguinte.

T

é estrangeira?

S

sim. mas fala a nossa língua.

T

como se chama?

S

não sei.

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T

de onde veio?

S

não faço ideia.

(silêncio)

T

viajou no mesmo comboio?

(silêncio curto)

S

ele disse-me que lá em cima,

no topo,

podemos ver a curvatura do planeta.

e que o ar é muito rarefeito.

só se pode lá ficar uns minutos.

é muito acima das nuvens.

mesmo de dia,

é possível ver as estrelas,

os planetas.

distinguem-se claramente os satélites

e a estação espacial.

uma constelação de metal e poeira cósmica.

(pausa)

quase podes tocar na Lua.

como se estivesse à distância de um braço.

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(silêncio)

ele vai levar-me ao topo do mundo.

literalmente.

(silêncio muito longo)

...o silêncio.

T

querida...

vamos embora daqui.

S

agora que estou a começar

a apreciar este Verão...

T

eu quero sair daqui.

S

pois eu não.

(pausa)

o que receias?

T

o meu sonho acordado.

a noite.

(silêncio curto)

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S

ele contou-me coisas inacreditáveis.

sabias que...

nos primeiros milhões de anos,

após o Big Bang,

((ou será milhares de milhões de anos?))

o Universo continuou a expandir e a arrefecer

com toda aquela matéria a gravitar?

ele disse que se formaram

quase cem mil milhões de galáxias,

e que cada uma contém

centenas de milhares de milhões de estrelas.

é fantástico, não é?

(pausa curta)

como é possível?

(silêncio curto)

e que há carbono em abundância no Cosmos.

há mais moléculas à base de carbono

do que todas as outras juntas.

(pausa curta)

nós somos feitas de carbono.

somos poeira cósmica.

transportamos matéria e energia do Universo

dentro de nós.

somos uma sopa do Cosmos.

(ri-se. pausa)

perguntei-lhe o que aconteceu antes de tudo.

antes do início.

disse-me que não sabia.

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que ninguém sabia.

((nem os astrofísicos fazem a menor ideia.))

(silêncio)

acreditas em Deus?

T

não.

S

tem de existir.

T

porquê?

S

não pode ser só espaço e física,

não achas?

tem de haver uma espécie de magia

que liga isto tudo.

T

e o carbono?

a energia.

S

mais do que isso.

algo intangível.

(pausa longa)

quero muito subir ao topo.

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ver tudo.

sentir tudo.

(silêncio)

vou procurar o Arquitecto.

(SÍLVIA sai. silêncio)

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Q (em tom alto para a Inteligência Artificial do arranha-céus)

Variações Goldberg. (começa a ouvir-se Goldberg Variations, BWV 988, de

Johann Sebastian Bach. pausa. para o público em tom normal) TÂNIA não

dormiu naquela noite. O seu corpo viu-se consumido por um torpor que

desconhecia. Pensou por momentos no Conde von Keyserling, que tinha

frequentes acometimentos de doenças e ficava noites sem dormir. Nessas

ocasiões, Goldberg passava a noite na antecâmara a tocar piano para ele. Certa

vez, o Conde mencionou a Bach que gostaria de ter algumas obras para

Goldberg executar. Estas deveriam ser de carácter suave e algo vigoroso de

modo que ele pudesse ser consolado nas noites de insónia. Bach compôs

variações, cuja escrita ele considerava ser uma tarefa ingrata devido ao

fundamento harmónico semelhante, repetido. O Conde presenteou-o com um

cálice de ouro com 100 luíses. (pausa) O estado de TÂNIA não a impediu de

percorrer, de novo, as profundezas daquele monstro. Já sem forças, viu-se na

estância balnear. O vulto não apareceu. O sono nunca chegou.

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(silêncio muito longo. as Variações Goldberg continuam. ANA entra

silenciosamente)

T (num impulso, volta-se rapidamente e vê ANA. em tom alto para a

Inteligência Artificial do arranha-céus)

pausa.

(a música pára. silêncio sepulcral)

A

sabes quem sou.

(silêncio)

vejo que te lembras de mim.

T

estás viva.

A

viva?

(silêncio curto)

quem é a...

T

a minha mulher.

A

percebo.

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alguém que encontraste

quando eu já não estava viva.

T

quando já não estavas viva?

A

tens filhos?

T

só o meu trabalho.

A

lembras-te...

T

do nosso trabalho?

A

sim,

o que fizemos juntas.

T

como podia esquecer?

A

foi o que te tornou famosa.

32

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T

sim, e devo-te isso.

(pausa)

devo-te muito.

(pausa longa)

porque desapareceste assim?

A

eu devia ter destruído tudo.

transformar tudo em pó.

T

o quê?

A

nunca ninguém devia ter visto

o nosso trabalho.

T

tu nunca farias isso.

A

faria.

T

não terias tido coragem.

A (pausa curta)

sim, tens razão.

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(pausa)

não tive coragem.

por isso faço-o na minha cabeça.

dia e noite.

sem cessar.

T

porque é que te foste embora?

sem te despedires.

A

tudo isso está enclausurado.

T

onde é que estiveste?

(silêncio)

o que fazes aqui?

A

viajei muito.

por muitos países.

T

e o que fizeste?

A (pausa longa)

andei sem rumo.

passei fome,

dependi da bondade de estranhos.

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vendi-me. muitas vezes.

demasiadas vezes.

ganhei muito dinheiro.

mais do que ganhei contigo.

((porque nunca tiveste dinheiro nenhum.))

estive com homens que perderam a cabeça por mim.

enlouqueci-os.

(pausa)

casei com um deles.

T

onde está ele agora?

A

foi-se.

T

morreu?

A

com uma bala no crânio.

T

matou-se?

A

poupou-me a esse trabalho.

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T

tiveste filhos?

A

matei-os.

T

continuas a mentir-me.

A

matei-os, já o disse.

mal nasceram.

(silêncio curto)

T

há um sentido oculto

em tudo o que dizes.

A

cada palavra foi-me soprada ao ouvido.

T

e eu tenho de adivinhar o sentido delas.

(pausa longa)

partiu-se alguma coisa em ti.

A

estive morta muitos anos.

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(silêncio)

mas agora...

(interrompe-se)

sinto que começo a despertar

de entre os mortos.

T

sou eu a culpada?

A

sim.

T

fui a culpada dessa tua morte.

(silêncio)

não podia ser diferente,

naquela altura.

A

não?

T

tinha de haver uma certa distância

entre nós.

A

dei-te tudo o que sabia.

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T

tens toda a razão.

e eu nunca te fiz mal.

(pausa curta)

nunca.

A

fizeste.

deixaste-me mortalmente ferida.

T

não estou a perceber.

(pausa curta)

que te fiz eu?

A

não é essa a pergunta que deves fazer.

T

qual é a pergunta, então?

diz-me.

A

o que é que não me fizeste?

(pausa)

dei-me completamente,

sem reservas,

e tu não me tocaste uma única vez.

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T

não compreendes que

muitas e muitas vezes eu...

A

porque é que não o fizeste?

T

porque eu não sou assim.

A

eu queria ter-te.

(pausa)

e que tu me tivesses.

completamente.

(silêncio)

eu sentia cada olhar teu

como uma torrente de forças.

era algo monstruoso

que me agarrava e me sacudia.

como se fossem braços longos e fortes.

eu pertencia-te.

todas as minhas células te pertenciam.

(pausa)

e eu queria pertencer-te.

ser tua.

(silêncio curto)

todo o meu corpo vibrava

com essa possibilidade.

39

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e com isso afastei-me de tudo.

de todos.

toda a minha vida

convergia para ti.

tu venceste-me.

transformando-me num animal.

numa presa.

e eu queria ser essa presa.

a tua presa.

(pausa)

e tu

o predador.

(silêncio)

e fiquei à espera.

simplesmente à espera.

como numa longa insónia.

(pausa curta)

enquanto que o meu corpo

era atravessado por aquela sensação.

esta sensação.

(silêncio)

nestes anos todos,

perguntei-me muitas vezes

o que estarias a fazer.

(SÍLVIA entra e pára. silêncio. TÂNIA vai junto a ela. em tom baixo)

S

quem é?

40

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T

uma velha amiga.

S

o teu vulto pálido.

T

já a tinha esquecido.

S

tenho a certeza que a conheceste,

muito bem,

antes de me encontrares.

T

já a tinha esquecido antes de ti.

S

consegues esquecer com facilidade?

T

consigo.

quando quero.

S

mesmo uma mulher que...

41

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T

quando já não preciso dela,

sim.

(silêncio)

S

ficaste tão séria,

de repente.

T

é melhor para nós.

S

o que queres dizer com isso?

T

no outro dia,

disseste que andava instável

de há uns tempos para cá.

S

é verdade.

T

o que achas que pode ter causado isso?

(pausa)

42

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S

como posso saber?

(silêncio)

estás cansada de estar constantemente comigo?

T

devias dizer interminavelmente.

S

diariamente.

(pausa)

nos últimos quatro ou cinco anos,

dificilmente passamos mais de uma hora

longe uma da outra.

vivemos juntas.

trabalhamos juntas.

T

constantemente.

nunca quis...

desperdiçar a minha vida desta forma.

S

dizes comigo?

T

com tudo.

sinto-me esmagada.

43

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consumida.

esgotada.

(silêncio)

S

tens razão.

o tempo passa e deixa-nos dormentes.

(pausa)

entorpecidas.

T

eu não vou aguentar esta vida

por muito mais tempo.

S

se te queres livrar de mim,

é só dizer.

T

querida...

S

é só dizeres claramente

e eu vou-me embora na mesma hora.

(silêncio)

44

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T

tu e eu não podemos continuar a viver assim.

S

o que queres de mim?

(pausa)

diz.

T

eu sinto que...

(interrompe-se)

o que preciso

é de ter alguém comigo

que esteja verdadeiramente

próximo de mim.

S

mas eu estou.

aqui.

T

não da maneira que eu desejo.

quero alguém que me preencha,

que se una a mim

em todas as minhas aspirações.

S

se pões as coisas assim...

não te sirvo de muito.

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T

não.

S (pausa)

vejo pelo teu rosto

que estás a pensar noutra pessoa.

(pausa. indicando ANA)

naquela pessoa.

(silêncio)

o Arquitecto acha que ela é louca.

T

de uma maneira ou de outra,

somos todos loucos.

(pausa)

olha à nossa volta...

S

vejo apenas um vulto pálido.

(pausa)

((o original, eu a fotocópia.))

fui uma espécie de substituta.

T

foi mais ou menos isso.

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S

então...

porque não nos separamos?

(silêncio curto)

T

se não houver outra saída.

S

para quê tanta confusão

por uma coisa tão simples?

T

achas simples?

S

liga-te a quem te é mais útil.

(pausa)

encontrarei um lugar para mim.

T

para onde vais?

S

para o alto de uma montanha

e ver todas as maravilhas do mundo.

47

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T

que amarga...

(pausa)

não fazes ideia como funciona

a minha cabeça.

S

nem sei como funciona a minha...

(silêncio)

((hei-de encontrar alguma coisa nova

e livre para mim.))

(pausa longa)

a partir de agora

sigo o meu próprio caminho.

(SÍLVIA sai. TÂNIA regressa para junto de ANA)

T

há anos que estou à tua espera.

A

estive mergulhada num sono longo,

profundo.

T

finalmente despertaste.

A

ainda me pesam as pálpebras.

48

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T

o nosso dia está a chegar:

nós as duas.

A

não.

T

sim.

agora que te reencontrei,

tenho a certeza.

A

não compreendes nada.

tu arruinaste a minha vida.

T

como é que podes dizer isso?

(pausa)

aquele trabalho reunia-nos

todos os dias.

A

e não deverias criar mais nada

depois de mim.

T

o quê?

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A

odeio-te.

T

isso não é verdade.

A

odiava-te pela tua frieza.

(pausa)

lembras-te da palavra que usaste

quando terminaste o trabalho?

T

usei alguma palavra especial

de que tu ainda hoje te lembras?

A

usaste sim.

disseste:

foi um episódio feliz para mim.

T

eu disse episódio?

não tenho por hábito usar essa palavra.

A

disseste episódio.

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T

vamos esquecer tudo isso.

(silêncio curto)

A

quero rever a nossa criação

uma última vez.

T

porquê?

A

o que receias?

(pausa)

estava terminada quando te deixei.

foi por isso que parti.

T

não, não estava.

tornou-se em algo diferente.

A

o que fizeste?

T

nos anos que se seguiram,

aprendi com o mundo.

o que fizemos

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começou a significar algo maior

e mais complexo.

fiz alterações

para mostrar o que via.

A

destruiste-a.

T

chamo-lhe agora

remorso de uma vida desperdiçada.

((como que condenada a ficar para sempre

no seu próprio inferno.))

(silêncio)

A

deixámos aquela vida escapar-nos

por entre os dedos.

T

e agora estás transfigurada.

A

ressuscitada apenas.

mas em ti vejo uma transfiguração.

(silêncio longo)

oiço o silêncio.

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(pausa)

fala.

T (silêncio)

não suportar...

(interrompe-se. pausa)

não consigo suportar o momento.

este instante.

esta era.

este mundo fluído e móvel,

miniaturizado,

desmaterializado.

cheio de expectativas,

desejos,

obsessões.

(silêncio)

o nosso Cosmos...

é agora uma miniatura.

tornou-se aligeirado,

transistorizado

e nómada.

(pausa)

small is better:

micro-organismo,

micro-electrónica,

micro-robótica,

micro-memória,

micro-cirurgia,

micro-nutrientes,

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micro-fotografia,

micro-flora,

micro-física,

micro-decisões,

micro-código,

micro-clima,

micro-tudo.

(pausa curta)

nano-universo.

(pausa)

o infinitésimo,

o imensamente pequeno impôs-se:

a conquista do minúsculo

é a grande corrida do século.

os átomos são alterados,

os genes manipulados,

há novos materiais,

a matéria viva é transformada e

submetida à matéria inerte.

existe um novo mundo nano

que afecta a nossa vida

em todos os territórios.

(pausa curta)

um sistema fútil,

uma cultura lipófoba.

o universo light

onde o leve impera.

nada é melhor que a magreza

em todos os domínios.

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com o corpo:

as dietas tornaram-se

uma práctica das massas,

os ginásios e o fitness prosperam,

as imagens de corpo liso e esguio

estão em todo o lado.

com a mente:

gadgets,

os anúncios já não vendem um produto,

mas um estilo de vida que nunca teremos,

o mundo virtual do gamming,

as músicas leves,

a literatura feel good,

a animação perpétua.

a realidade confunde-se com...

(interrompe-se. pausa)

já não sabemos o que é fútil

e o que é necessário.

fundiram-se.

e o leve é a convergência,

literal e metaforicamente.

há uma cultura de diversão permanente

que nos incita ao gozo

dos prazeres imediatos e fáceis.

nesta era,

a nossa vida é marcada pela instabilidade,

está refém da mudança perpétua, do efémero.

há uma relação individual com o mundo

que oblitera a vida colectiva.

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((todos estão alienados.))

construiu-se uma nova civilização:

(pausa curta)

a civilização leve.

ironicamente cheia de angústias,

com um mal-estar profundo e oculto.

com desejos impossíveis.

onde não ser feliz

tem um peso incomensurável

e incomparável

com outra sociedade qualquer.

(silêncio)

o sofrimento é esgotante.

obscuro.

como uma sombra.

(silêncio)

A

eu sou a minha própria sombra.

T

somos perseguidas por sombras.

(pausa curta)

um crepúsculo sem fim.

(silêncio)

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A

vi uma vez um nascer do sol maravilhoso.

T (pausa)

como foi?

A

no alto de uma montanha vertiginosa.

(pausa)

consegues lembrar-te do que me prometeste nessa altura?

T

continuas a exprimir-te de um modo estranho.

A

tu atraíste-me até lá

e disseste que me mostrarias

todas as maravilhas do mundo.

T

eram palavras,

apenas.

A

não...

falaste-me do topo do mundo.

prometeste-me.

(silêncio)

uma noite de Verão.

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no alto de uma montanha.

contigo.

(pausa curta)

T

a nossa vida podia ter sido assim.

foi o que deitámos fora.

tu e eu.

A

só nos iremos aperceber do irreparável

quando...

(interrompe-se)

T

quando?

A

quando nós, os mortos, despertarmos.

(silêncio curto. ANA dirige-se para a saída)

T

aonde vais?

A (pára)

para o alto de uma montanha.

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T

e aí veremos o quê?

A

veremos que nunca vivemos.

(ANA sai. silêncio. TÂNIA sai, seguindo-a)

59

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(no topo do arranha-céus. SÍLVIA e O ARQUITECTO observam a Lua, que

tem uma dimensão gigantesca. devido à altitude elevada e à falta de oxigénio, a

frequência da respiração de SÍLVIA aumenta. vai falando cada vez mais

depressa, não controlando a dispneia)

S

não dou nem mais um passo.

(pausa)

é incrível.

está tão perto.

consigo ver tudo:

mares vulcânicos,

montanhas cristalinas.

as crateras. são tantas.

(pausa)

tão perto que consigo sentir

uma força a puxar-me.

(pausa curta)

sinto-me sortuda.

(pausa longa)

ah, falta-me o ar.

(silêncio longo)

existe um Deus...

um Deus pessoal

barba branca

intemporal.

sem dimensão

com a sua divina...

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apatia divina.

atambia divina

afasia divina.

que nos quer bem

salvo algumas excepções

por razões desconhecidas.

só o tempo o dirá.

e que sofre com aqueles

que por razões desconhecidas

se encontram mergulhados em tormentos

em tormentos mergulhados num fogo.

quem pode duvidar que as chamas deste fogo

queimam o firmamento

e que vai continuar a queimar

ou seja

por outras palavras

a rebentar com o inferno

para que o céu

azul suave

agora negro breu

mas calmo

tão calmo

com uma calma

apesar de intermitente

é bem melhor que nada.

é muito mais do que simples

trabalhos inacabados.

é

sem qualquer dúvida

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fica estabelecido

sem qualquer dúvida

excepcional

a dúvida sempre

inerente a qualquer trabalho

humano ou outro...

os trabalhos inacabados.

fica estabelecido

daqui em diante

mais devagar

por razões desconhecidas

que como do resultado

dos trabalhos

fica estabelecido

sem qualquer dúvida

tendo em conta os trabalhos acabados

por razões desconhecidas...

há estudos

verdadeiramente estudos

estudos cada vez

mais verdadeiros

que para muitos é inaceitável

que o homem

que o homem

que o homem em resumo

o homem em síntese

apesar de todos os progressos

é ainda visto a definhar

a diminuir e a definhar

62

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simultâneamente

por razões desconhecidas

apesar dos progressos

do ioga

do feng-shui

do budismo

da velocidade

do design

dos desportos com prancha

dos parapentes

das pistas de neve

das pistas de dança

de todas as espécies

concomitantemente a encolher

apesar de todos os desportos

radicais

e outros

ainda para mais

por razões desconhecidas

o tempo o dirá

aproximadamente isto

mais ou menos

tirando e pondo

em valores arredondados

não truncados

correctos

totais.

parece que é muito grave

cada vez mais grave

63

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eu repito

por razões desconhecidas

nas montanhas verdejantes

bem longe

nos fiordes

os seus misteriosos promontórios

as árvores antigas

frondosas e antigas

perto do grande frio

das grandes profundezas

onde a água que corre

fogo

corre ar

na escuridão imensa

quem pode duvidar

e quem duvida

a cabeça a encolher

a diminuir

as lágrimas aparecem

a pele

as unhas

os lábios

azuis.

enfim

adiante

com

concomitante

concomitantemente

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tão calmo...

inacabado.

Q

está na hora.

S (silêncio. tenta recuperar a respiração)

estás a sentir?

(pausa)

a pulsação acelerada.

a consciência intensificada.

Q

vamos.

(pausa curta. O ARQUITECTO sai. pausa. SÍLVIA dirige-se para a saída.

TÂNIA e ANA entram. ficam especadas. silêncio)

S

finalmente no topo do mundo.

T

de agora em diante,

seguimos o mesmo caminho.

(pausa curta)

dia e noite.

S (silêncio curto)

é de deixar qualquer um tonto.

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(pausa curta)

vou descer.

(SÍLVIA sai. pausa. TÂNIA e ANA observam a Lua. silêncio)

T

parece o prelúdio da ressurreição.

A

sim, como uma mortalha húmida.

T (pausa)

ouves?

é este silêncio.

A

sim.

(pausa curta)

sonhos mortos. perdidos.

(pausa longa)

é… magistral.

tudo.

(silêncio curto)

eu. tu.

(pausa curta)

isto é real?

hiper-real?

(silêncio)

nós aqui,

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somos reais?

(silêncio curto)

é tudo tão detalhado,

tão perfeito.

(pausa curta)

só pode ser um simulacro.

(silêncio longo)

T

apenas algumas vezes,

poucas vezes,

tive na minha vida

momentos de uma precisão

absoluta.

durante alguns instantes

o silêncio abafa o barulho

e tudo parece tão puro.

como se tudo começasse.

como se estivesse no seu início.

sem o peso do tempo.

(pausa curta)

e sinto apenas.

sem pensar.

(pausa longa)

esses momentos não perduram no tempo

como a luz das estrelas.

tento agarrá-los

mas eles fogem-me.

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Page 69: A CHEGADA DE UM COMBOIO À CIDADE de Luís Mestre V2c · afinal, porque estamos aqui? S em comparação com... 10 . T outro sítio qualquer. S achas que uma viagem de barco é melhor

desaparecem

e puxam-me de volta para o presente.

(silêncio)

tudo é exactamente como deveria ser.

(silêncio longo)

somos pó celestial.

(pausa curta)

somos apenas pó.

(silêncio longo)

ficamos aqui.

até que o tempo se acabe.

(escuro lento)

68