1 o rapaz, o comboio e a tapeÇaria...1 o rapaz, o comboio e a tapeÇaria max mcdaniels encostou a...

13
1 O RAPAZ, O COMBOIO E A TAPEÇARIA Max McDaniels encostou a fronte à janela do comboio e olhou para as nuvens pesadas que deslizavam rapidamente pelo céu amarelado. Com um tamborilar leve, a chuva começou a cair no vidro e o céu escureceu até ficar com o tom de uma nódoa negra. Embaciando a janela com a respiração, Max pestanejou rapidamente quando viu o seu reflexo no vidro molhado e este lhe mostrou o seu próprio piscar de olhos; na janela, viu um rapaz de olhos escuros, com cabelo preto ondulado e as maçãs do rosto salientes, iguais às da mãe. A voz do pai ribombou ao lado de Max e este virou-se. — Qual preferes? — perguntou o pai com um sorriso entusias- mado no rosto. Segurava com os seus dedos grossos dois folhetos impressos em papel fotográfico. Max olhou para os anúncios publicitários e o seu olhar fixou- -se na imagem de uma mulher elegante que estava ao lado de um lava- -loiças e tinha a cabeça inclinada para trás, numa pose de puro deleite. 11

Upload: others

Post on 25-Jan-2020

7 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

O RAPAZ, O COMBOIO E A TAPEÇARIA

Max McDaniels encostou a fronte à janela do comboio e olhou paraas nuvens pesadas que deslizavam rapidamente pelo céu amarelado.Com um tamborilar leve, a chuva começou a cair no vidro e o céuescureceu até ficar com o tom de uma nódoa negra. Embaciando ajanela com a respiração, Max pestanejou rapidamente quando viu oseu reflexo no vidro molhado e este lhe mostrou o seu próprio piscarde olhos; na janela, viu um rapaz de olhos escuros, com cabelo pretoondulado e as maçãs do rosto salientes, iguais às da mãe.

A voz do pai ribombou ao lado de Max e este virou-se.— Qual preferes? — perguntou o pai com um sorriso entusias-

mado no rosto.Segurava com os seus dedos grossos dois folhetos impressos em papel

fotográfico. Max olhou para os anúncios publicitários e o seu olhar fi xou --se na imagem de uma mulher elegante que estava ao lado de um lava --loiças e tinha a cabeça inclinada para trás, numa pose de puro deleite.

11

— Esse não — respondeu ele. — É muito piroso.O sorriso rasgado do Sr. McDaniels desapareceu. Grande como um

urso, o pai de Max tinha olhos azul-claros e um queixo pequeno, comuma pequena cova.

— Não é piroso — contra-argumentou ele, olhando atentamentepara o anúncio e alisando o cabelo castanho ralo. — O que tem depiroso?

— Ninguém fica assim tão feliz por ter de lavar a loiça — respon-deu Max, apontando para a mulher sorridente que tinha os braçosmergulhados em água com espuma até aos cotovelos. — E ninguémlava a loiça usando um vestido elegante…

— Mas a ideia é mesmo essa! — interrompeu o pai de Max, aba-nando o folheto fino. — O Ambrosia é o primeiro detergente topo degama! A sua espuma celestial é suave nas mãos, mas também sufi-cientemente forte para os mais exigentes…

— Pai… — interrompeu Max, corado de vergonha.O Sr. McDaniels parou de falar alguns segundos e reparou que os

outros passageiros olhavam curiosamente pelo canto do olho para elee Max. Abanando a cabeça, colocou novamente os folhetos publicitá-rios no bolso da gabardina. O comboio parou numa estação, alguresnos subúrbios da cidade.

— Não é assim tão mau — disse Max, para o alegrar. — Talvezpossas pedir-lhe para sorrir menos.

O Sr. McDaniels deu uma risadinha e deslizou no seu traseiroamplo pelo banco, para dar um abraço apertado ao filho. Max afas-tou-o com os cotovelos, enquanto entravam mais pessoas no com-boio, fechando guarda-chuvas e afastando o cabelo molhado dosolhos.

Da locomotiva saiu um som pesado e o comboio recomeçou aandar. Os passageiros soltaram pequenos gritos e gargalhadas quandoaquela carruagem ficou às escuras. Max apertou o braço do pai, masas luzes amarelas acenderam-se lentamente poucos segundos depois.A chuva caía com maior intensidade agora que se aproximavam deChicago, que ao longe viam erguer-se imponentemente em aço etijolo, com a tempestade estival como fundo.

Max ainda estava a sorrir quando viu o homem.Este estava sentado do outro lado do corredor, num banco atrás do

seu; era pálido, tinha um aspecto desmazelado e cabelo preto, curto e

12

molhado pela chuva. Parecia estar exausto, pestanejando de sono eencolhendo-se no casaco sujo, balbuciando silenciosamente algo como rosto encostado ao vidro.

Max virou-se para trás para melhor olhar para ele. O que viu fê -loficar sem fôlego.

O homem estava a olhar fixamente para ele.Imóvel, focava-se em Max com os seus dois olhos de cores dife-

rentes. Um era verde e o outro brilhava molhado e branco como umovo cozido descascado. Max não conseguia desviar o olhar, fascinado.Aquele olho parecia algo cego e morto… algo saído de um pesadelo.

Porém, Max tinha a certeza, apesar de não saber como, de que oolho não era cego ou morto. Sabia que estava a ser analisado por ele,avaliado, da mesma maneira que a mãe costumava avaliar um copo devinho ou uma fotografia antiga. Sem desviar o olhar de Max, o homemdesencostou a cabeça da janela e inclinou-se para o corredor que haviaentre os bancos.

O comboio entrou num túnel e a carruagem ficou às escuras. Maxsentiu-se invadido por uma onda de medo e escondeu o rosto no casacoquente do pai. O Sr. McDaniels exclamou e deixou cair vários folhe-tos publicitários. O comboio parou e Max ouviu a voz do pai.

— Estás a adormecer, Max? Pega nas tuas coisas; chegámos, rapaz.Max ergueu a cabeça e viu que a carruagem estava iluminada e que

os passageiros se apressavam para sair. Olhou apressadamente de rostoem rosto. Não havia sinal do estranho. Corado, Max pegou no guarda --chuva e no caderno de esboços e apressou-se, seguindo o pai.

A estação estava apinhada e várias pessoas entravam e saíam dasgares. Um rumor de vozes mescladas ouvia-se acima dos altifalantes;pessoas que aproveitavam o fim-de-semana para fazerem compras pas-savam rapidamente com sacos, apressando os filhos. O Sr. McDanielslevou Max até às escadas, que desceram, chegando à saída da estação.Parara de chover, mas o céu tinha ainda nuvens ameaçadoras e jornaisesvoaçavam pela rua quando sopravam rajadas súbitas de vento.Chegando a uma praça de táxis, o Sr. McDaniels abriu a porta de umdos carros e recuou, para deixar Max entrar e passar para o outro ladodo banco de vinil.

— Para o Instituto de Arte, se faz favor — disse o pai.Max esticou o pescoço para tentar ver o topo dos arranha-céus,

enquanto o táxi avançava para a zona leste, na direcção do lago.

13

— Pai — disse Max —, viste o homem que estava no comboio?— Qual homem?— Estava sentado no outro lado do corredor, no banco atrás do

nosso — respondeu Max, estremecendo.— Não, acho que não — respondeu o pai, dando um piparote num

pedaço de cotão que tinha no casaco. — O que tinha o homem deespecial?

— Não sei. Tinha um aspecto assustador e estava a olhar fixamentepara mim. Pareceu-me que ia dizer qualquer coisa ou que queriaaproximar-se quando entrámos no túnel.

— Bem, se estava a olhar fixamente para ti, deve ser porque esta-vas a olhar fixamente para ele — respondeu o Sr. McDaniels. — Vaisencontrar muitos tipos diferentes de pessoas na cidade, Max.

— Eu sei, pai, mas…— As aparências iludem, não é?— Eu sei, mas…— Ouve, há um tipo que trabalha no meu escritório. É um rapaz

novo, ainda um pouco inexperiente. Bem, quando comecei a traba lhar lá,vi o miúdo perto da máquina do café; tinha os olhos maqui lhados, umanzol espetado no nariz e música aos berros a sair-lhe dos auriculares…

Max olhou pela janela, enquanto o pai recontava uma história jáconhecida. Max reparou finalmente naquilo que ansiava ver: dois leões debronze imponentes e orgulhosos, um de cada lado da entrada do museu.

— Pai, chegámos ao Instituto de Arte.— Pois chegámos, filho. Ah, antes que me esqueça — disse o Sr.

McDaniels, virando-se para Max com um sorriso triste no rosto —,obrigado por vires comigo, Max. É muito importante para mim. E para a tua mãe também.

Max acenou de forma solene e apertou a mão do pai com força. A famí lia McDaniels sempre comemorara o aniversário de BrynMcDa niels visitando o seu museu favorito. Apesar de a mãe de Maxter desaparecido há já dois anos, ele e o pai mantinham essa tradição.

No interior do museu, perguntaram a uma jovem que usava umapequena etiqueta com o seu nome onde podiam encontrar os quadros dealguns dos artistas favoritos de Bryn McDaniels. Max ouviu o pai ler atra-palhadamente os nomes que escrevera numa folha: Picasso, Matisse e VanGogh soaram bem, mas, quando chegou ao último, o pai parou.

14

— Gáu-guin? — perguntou ele, contorcendo a fronte e olhandopara o papel.

— Gauguin. É um pintor incrível. Acho que vai gostar muito dosseus quadros — respondeu a mulher, sorrindo e apontando-lhes umaescadaria de mármore que dava acesso ao segundo andar.

— A tua mãe conhece-os todos. Não tenho jeito para isto, nãointeressa quantas vezes cá venhamos — disse o Sr. McDaniels, rindoe batendo levemente no ombro de Max com o guia do museu.

As galerias do andar superior estavam repletas de cor… grandespinceladas de tinta espessa cobriam as telas. O Sr. McDaniels apon-tou para um quadro grande onde se via peões a caminharem por umarua chuvosa de Paris.

— Parece o dia de hoje, não parece?— A chuva parece, mas, para ficares parecido com ele, precisavas

de um bigode e de uma cartola — respondeu Max, olhando pensati-vamente para uma figura que via no primeiro plano.

— Eh! Costumava usar bigode. A tua mãe fez-me cortá-lo quandocomeçámos a namorar.

Alguns quadros ocupavam paredes inteiras, enquanto outros assen-tavam modestamente em pequenas molduras douradas. Pai e filho pas-saram mais ou menos uma hora apreciando os quadros e tendo o cuidadode se demorarem mais nos que a Sr.ª McDaniels preferia. A Max agra-dava especialmente um Picasso em que um homem de idade tocava gui-tarra. Estava a apreciar o quadro quando ouviu o pai a exclamar.

— Bob? Bob Lukens! Como está?Max virou-se e viu o pai a apertar vigorosamente a mão a um

homem magro e de meia-idade, que usava uma camisola preta. Comele vinha uma mulher e ambos sorriam de forma hesitante, vendo-seencurralados pelo Sr. McDaniels.

— Olá, Scott. É um prazer vê-lo — respondeu educadamente ohomem. — Querida, este é o Scott McDaniels. Está a trabalhar naconta Bedford Bros…

— Oh, que boa surpresa. É um prazer conhecê-lo, Scott.— Vão mudar a sua opinião acerca da sopa! — disse o Sr. McDaniels

numa voz ribombante, com o indicador apontado para o tecto.A Sr.ª Lukens soltou um grito de susto e deixou cair a carteira.— Imagine um dia de Inverno — continuou o Sr. McDaniels, bai -

xan do-se para apanhar a mala, enquanto a senhora recuava para se

15

escon der atrás do marido. — Está constipado, o vento sopra com forçae a única coisa que tem para aquecer a barriga é uma daquelas sopasaborre ci das de pacote. Bem, não há sopas aborrecidas com as bolachasesta la diças para sopa da Bedford Bros.! O seu formato chique e massaestaladiça vão dar vida à sopa e fazer as suas papilas gustativas bate-rem continência!

O Sr. McDaniels levantou depois a mão aberta e tocou na têmpora,pondo-se em sentido. Max sentiu vontade de ir para casa.

O Sr. Lukens deu uma pequena risada. — Já te tinha dito que o Scott é fanático, querida?A Sr.ª Lukens esboçou um sorriso tímido quando o pai de Max lhe

apertou a mão; depois, o Sr. McDaniels virou-se para o filho.— Max, apresento-te o senhor e a senhora Lukens. O senhor

Lukens é o director da agência onde trabalho… é o chefão. Eu e oMax viemos ao museu para absorvermos uma dose de cultura, não foi?

Max sorriu nervosamente e estendeu a mão para cumprimentar oSr. Lukens, que a apertou de forma amigável.

— É um prazer conhecer-te, Max. É bom ver um jovem longe dosjogos de vídeo e da MTV! Viste algum quadro de que gostasses?

— Gosto deste Picasso — respondeu Max.— Sempre gostei desse. Tens um bom olho…O Sr. Lukens deu uma palmada amigável no ombro de Max,

virando-se para o Sr. McDaniels.— Gostava que o comparasses com um dos meus preferidos, mas

infelizmente o quadro desapareceu.— Desapareceu? — perguntou o Sr. McDaniels.— Foi um dos três quadros que foram roubados deste museu na

semana passada — respondeu o Sr. Lukens, franzindo o sobrolho. — Li no jornal que roubaram outros dois no Prado na noite passada.

— Oh — surpreendeu-se o Sr. McDaniels. — Que horror.— É mesmo um horror — disse o Sr. Lukens, de forma conclusiva,

olhando depois para Max. — Scott, traga o Max lá ao escritório, umdia destes. Tenho um poster de um dos quadros roubados e veremos seRembrandt dá cabo de Picasso!

— Está combinado — respondeu o Sr. McDaniels, rindo e ajoe -lhando-se para ficar da altura de Max.

«Olha, rapaz — disse ele, piscando o olho —, o pai tem de falarde negócios e não quero que morras de tédio. Porque não vais esbo-

16

çar aquelas armaduras que tu e a mãe costumavam desenhar? En con -tramo-nos na livraria do andar de baixo daqui a meia hora. Que tal?

Max assentiu e despediu-se do Sr. e da Sr.ª Lukens, que rapida-mente se encolheram quando Scott McDaniels começou a gesticularenergicamente. Max pegou no caderno de esboços e no lápis e cami -nhou pelo corredor com passos pesados, sentindo-se invadido por umafúria silenciosa por o pai nunca perder uma oportunidade de falar denegócios, mesmo no dia de aniversário da mãe.

A galeria onde estavam as armaduras era mais escura do que as res-tantes e os artefactos reluziam com um brilho suave atrás das vitrinaspolidas. Nesta galeria havia menos pessoas e Max ficou contente porpoder desenhar em paz e sossego. Caminhou em redor de um cordãode veludo, parando de vez em quando para olhar atentamente paraum arco ou um cálice. Havia toda a espécie de armas nas paredes:maças pretas de ferro, machados de lâminas largas e espadas compri-das. Max parou diante de alabardas cerimoniais, antes de se depararcom o objecto ideal para desenhar.

A armadura era enorme, fazendo as que estavam ao seu lado pare-cerem minúsculas, e brilhava como prata no interior de uma vitrinaespaçosa. Max deu alguns passos para a observar de outro ângulo einclinou a cabeça para ver melhor o elmo. Alguns minutos depois,Max já fizera um esquisso da armadura.

Quando se esforçava por desenhar a couraça, que era especialmenteelaborada, o barulho que lhe chegou vindo do extremo do corredorchamou-lhe a atenção. Max espreitou pela vitrina e ficou petrificado.

O homem do comboio estava ali.Max agachou-se e viu o homem, que era muito mais alto do que

o segurança do museu, a conversar com este, na entrada daquelagaleria. O homem gesticulava, fazendo gestos firmes com a mão. A sua voz tornava-se mais ruidosa e os seus movimentos cada vezmais rápidos.

— Desta altura — dizia severamente o homem, que tinha pronún-cia da Europa de Leste. Tinha a palma da mão virada para baixo, mais oumenos à altura de Max. — Um rapaz de cabelo preto, com mais ou me nos doze anos; tem um caderno de esboços.

O guarda estava encostado à porta e olhava para o homem de altoa baixo. Depois esticou a mão para pegar no rádio, mas o estranho

18

aproximou-se e sussurrou algo que Max não conseguiu ouvir. O guar da,estranhamente, acenou que sim e apontou com o polegar gordo porcima do ombro, na direcção das armaduras atrás das quais Max seescondia.

Aterrorizado, Max olhou em volta e reparou numa porta escura àsua direita. Um cordão de veludo e um aviso, onde se lia: SOB REPA-RAÇÕES, ENTRADA PROIBIDA, impediam a passagem.

Ignorando o aviso, Max passou sob o cordão e escondeu-se nocanto. Ficou rigidamente encostado à parede, esperando a qualquermomento que o homem o encontrasse. Nada aconteceu. Max só selembrou de que deixara o caderno de esboços na outra galeria quaseum minuto depois. Ficou em pânico; o homem seguramente encon-traria o caderno e adivinharia onde Max se escondera.

Passou-se um minuto, depois outro e mais um. Max ouviu passosa aproximarem-se e conversa informal de pessoas que passavam dianteda porta. Espreitando, viu que o homem já se fora embora e que ocaderno também desaparecera. Deslizando pela parede até se sentar nochão, Max lembrou-se do seu nome e morada distintamente escritosna parte de dentro da capa. Levantando a cabeça, olhou desmoraliza-damente em volta para a sala onde se escondera.

Esta era surpreendentemente pequena para uma galeria. O ar estavaabafado e havia um brilho âmbar e suave por toda a divisão. Na salahavia apenas uma tapeçaria esfarrapada pendurada na parede em frentea Max. Estranhamente, a luz suave irradiava da própria tapeçaria. Maxaproximou-se.

A tapeçaria era antiga. A luz do Sol e os séculos haviam-na des-botado e agora os únicos vestígios de cor eram algumas manchas deocre ténue. Quando se aproximou, Max reparou que, sob a superfíciepobre, vibravam algumas cores.

O estômago de Max começou a formigar como se ele tivesse engo-lido abelhas vivas. Os pêlos dos seus braços levantaram-se um a ume ele ficou imóvel, respirando rapidamente.

Pim! Um fio acendeu-se com uma luz dourada e forte. Max gritou e sal-

tou para trás. O fio brilhava como fogo, fino e delicado como a sedadas aranhas. Vibrou como a corda de uma harpa, soltando uma únicanota musical que ecoou pela galeria, antes de se desvanecer e tudo ficarnovamente em silêncio. Max olhou para trás, para a porta. As pessoas

19

que visitavam o museu continuavam a passar, mas pareciam estarlonge e nem sequer reparavam naquela pequena galeria, na única pes-soa que lá estava e naquela estranha tapeçaria.

Outros fios ganharam vida, sendo acordados do seu sono eerguendo-se num festival de luz e música. Alguns ganhavam cor e somindividualmente, outros emergiam numa harmonia tecida de prata,verde e ouro. Max sentiu-se como se tivesse descoberto um instru-mento antigo e estranho que agora recomeçava a tocar uma cançãodesconhecida e esquecida. A canção tornou-se mais rica. Quando oúltimo fio ecoou, Max soltou uma exclamação de dor. A dor que sen-tia era mais contundente do que uma mera pontada e era causada poralgo que estava bem fundo nele.

Esse algo sempre vivera em Max. Era uma presença oculta, enormee selvagem e Max temia-a. Max fizera grandes esforços, durante todaa sua vida, para a manter enclausurada dentro de si. Estes esforços ti -nham-lhe causado dores de cabeça, algumas das quais tinham duradovários dias. Max soube que esses dias haviam terminado quando sen-tiu que a presença se libertara. Finalmente solta, deslizou lentamentepela consciência de Max, antes de soar nas profundezas do seu ser, paraagitar os sedimentos que lá repousavam.

A dor desapareceu. Max respirou fundo e escorriam-lhe livrementelágrimas quentes e grossas pela face. Passou então os dedos pela super-fície tecida.

A luz e as cores transformaram-se e formaram padrões dourados eentre laçados que emolduravam três palavras estranhas, que brilhavamperto do topo.

TÁIN BÓ CUAILNGE

Centrada, sob as palavras, estava uma imagem tecida que repre-sentava um touro a pastar, rodeado por dezenas de guerreiros, que dor-miam. Pela direita, aproximava-se uma legião de homens armados;um trio de aves negras voava em círculo no céu. Observando a cenano cume de um monte próximo, estava a silhueta de um homem alto,que tinha uma lança na mão.

Max observou toda a imagem, mas o seu olhar fixava-se sempre nafigura que estava no cume do monte. Lentamente, a luz da tapeçariacomeçou a brilhar com maior intensidade; as imagens tremeluziram

20

e dançaram sob ondas difusas de calor. Numa cacofonia crescente desom, a tapeçaria acendeu-se com uma radiância tão quente e clara queMax temeu que esta o consumisse.

— Max! Max McDaniels!A sala estava novamente escura. A tapeçaria, pendurada na parede,

parecia desbotada, feia e ficara imóvel. Max recuou, confuso e assus-tado, e passou por cima do cordão de veludo, voltando à galeria deartefactos medievais.

Viu então o seu imponente pai, acompanhado por dois seguranças,caminhando no extremo oposto da galeria. Max chamou-o. Quando oSr. McDaniels ouviu a voz do filho, correu para onde ele estava.

— Oh, graças a Deus! Graças a Deus! — exclamou o Sr. McDa niels,limpando as lágrimas, baixando-se e agarrando as mangas do casaco dofilho. — Max, onde raios estiveste? Ando à tua procura há duas horas!

— Desculpa, pai — respondeu Max, confuso. — Estou bem. Fuipara a sala ali ao lado, mas só lá estive vinte minutos.

— O quê? Qual sala? — perguntou o Sr. McDaniels numa voz tré-mula, olhando por cima do ombro de Max.

— A que está em obras — respondeu Max, virando-se para apon-tar para o aviso.

Max calou-se, começou a falar e calou-se novamente. Não haviaqualquer porta, aviso ou cordão de veludo.

O Sr. McDaniels cumprimentou os guardas com apertos de mãofirmes. Quando estes se afastaram e já não o podiam ouvir, ajoelhou --se ao lado de Max. Os seus olhos estavam inchados e espelhavamapreensão.

— Max, diz-me a verdade. Onde estiveste nas últimas duas horas?Max respirou fundo.— Estive numa sala desta galeria, pai, juro que não me pareceu

ter passado lá tanto tempo.— Onde é a sala? — perguntou o Sr. McDaniels, desdobrando o

guia do museu.Max sentiu-se subitamente enjoado.A sala onde vira a tapeçaria simplesmente não constava do mapa.— Max… é a última vez que te pergunto. Estás a mentir?— Não, pai. Não estou a mentir.Antes que Max tivesse acabado a frase, o pai puxava-o rapidamente

em direcção à saída. Algumas raparigas da idade dele soltaram risa-

21

dinhas e sussurraram quando o viram a ser arrastado, caminhandopesadamente e com a cabeça curvada pela entrada do museu e des-cendo as escadas.

O único som que se ouviu durante a viagem de táxi para a estaçãode caminhos-de-ferro foi o que o Sr. McDaniels fez ao folhear rapida-mente os panfletos publicitários. Max reparou que alguns estavam aocontrário ou de pernas para o ar. O vento soprava mais intensamentee a chuva voltara a cair quando o táxi parou perto da estação.

— Certifica-te de que trazes as tuas coisas — disse o Sr. McDaniels,suspirando e saindo pela outra porta.

Parecia estar cansado e triste. Max ficou cabisbaixo e achou me -lhor não dizer ao pai que também perdera o caderno de esboços.

Quando entraram no comboio, dirigiram-se em silêncio para umcompartimento almofadado. O Sr. McDaniels mostrou o bilhete deregresso ao revisor e depois encostou-se ao banco, fechando os olhos.O revisor olhou então para Max.

— O seu bilhete, por favor.— Ah, tenho-o aqui — balbuciou Max distraidamente. Pondo a mão no bolso, procurou-o, mas acabou por encontrar um

pequeno envelope. Quando viu o seu próprio nome escrito claramenteneste, parou.

Confuso, Max tirou o bilhete do outro bolso e entregou-o ao revi-sor. Olhando para o lado, certificou-se de que o pai continuava a des-cansar e depois concentrou-se no envelope. À luz amarelada e ténueeste parecia pardo e o papel grosso era agradável ao toque. Virando oenvelope, olhou para a caligrafia elegante, escrita a azul-marinho.

Sr. Max McDaniels

O pai respirava agora pesadamente e Max passou o dedo pela abado envelope. Dentro deste estava uma carta dobrada.

Caro Sr. McDaniels,

Os nossos registos indicam que provou ser um Potencial estatarde, às 15.37, do calendário C&T, hora dos Estados Unidos.Parabéns, Sr. McDaniels, deve ser um jovem extraordinário eestamos ansiosos por conhecê-lo. Um dos nossos representantes

22

regionais contactá-lo-á dentro em breve. Até lá, agradecíamos asua completa discrição e silêncio no que diz respeito a esteassunto.

Com os melhores cumprimentos,Gabrielle RichterDirectora Executiva

Max leu a carta várias vezes, antes de a colocar novamente no bolso.Sentia-se completamente esgotado. Não sabia como o envelope lheviera parar às mãos e não fazia a mais pequena ideia do que era um«Potencial» ou porque lhe estava a acontecer tudo aquilo. Desconfiavaque estivesse relacionado com a tapeçaria escondida e com a presençamisteriosa que agora se movia livremente dentro de si. Max olhou pelajanela. Raios fortes de luz brilhavam a oeste, fazendo os farrapos denuvens desaparecerem. Exausto, encostou-se ao pai e mergulhou len-tamente no sono, agarrando firmemente o envelope misterioso.

23