a categoria “mulata” e a negação de sua própria libertação...

18
250 _____________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 2010: 250-267. A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação como negra e como mulher. Ana Rita Mayer * RESUMO: O presente artigo tem o propósito de relacionar algumas teorias sociais do século XX com aspectos atuais das relações raciais e de gênero no Brasil. Considerando as obras de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes como idéias centrais nessa discussão, a proposta é analisar, a partir delas, a construção das representações sociais da mulata e do mulato no país como produto da ideologia da democracia racial e de branqueamento. Através de pesquisa de alguns setores midiáticos como televisão, literatura, periódicos e internet, encontro a imagem positiva do mulato como produto de uma ideologia da miscigenação; no entanto, a categoria mulata, em diversos espaços, remete ao branqueamento, representando a negação da mulher negra, e a passividade do gênero feminino. Palavras-chave: Democracia Racial; Branqueamento; Pensamento Social Brasileiro; Gênero; Mídia. A proposta deste artigo é, primeiramente, analisar dois momentos distintos da teoria social no Brasil, no que tange às questões raciais. A análise, como representantes destes dois momentos, algumas concepções da obra de Gilberto Freyre da década de 1930, e as pesquisas desenvolvidas por Florestan Fernandes na década de 1950. A partir desta análise, pensa-se de que maneira estas idéias orientaram possíveis discursos e práticas sobre raça e discriminação no país. A idéia principal que busco abarcar é a de que o Brasil, através de aspectos históricos e culturais construídos em tempos de colonização, alcançou o que Freyre chama de “democracia racial”, identificando-se como um país caracterizado pela ampla aceitação de diferentes etnias em suas mais variadas relações sociais. De influência culturalista, o autor sustenta que a configuração de nossa identidade territorial estaria marcada pela mestiçagem entre as raças índígena, * Graduanda em Ciências Sociais (UFSC).

Upload: others

Post on 05-Nov-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

250

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação como negra e como mulher.

Ana Rita Mayer*

RESUMO: O presente artigo tem o propósito de relacionar algumas

teorias sociais do século XX com aspectos atuais das relações raciais e

de gênero no Brasil. Considerando as obras de Gilberto Freyre e

Florestan Fernandes como idéias centrais nessa discussão, a proposta é

analisar, a partir delas, a construção das representações sociais da

mulata e do mulato no país como produto da ideologia da democracia

racial e de branqueamento. Através de pesquisa de alguns setores

midiáticos como televisão, literatura, periódicos e internet, encontro a

imagem positiva do mulato como produto de uma ideologia da

miscigenação; no entanto, a categoria mulata, em diversos espaços,

remete ao branqueamento, representando a negação da mulher negra,

e a passividade do gênero feminino.

Palavras-chave: Democracia Racial; Branqueamento; Pensamento

Social Brasileiro; Gênero; Mídia.

A proposta deste artigo é, primeiramente, analisar dois

momentos distintos da teoria social no Brasil, no que tange às

questões raciais. A análise, como representantes destes dois

momentos, algumas concepções da obra de Gilberto Freyre da década

de 1930, e as pesquisas desenvolvidas por Florestan Fernandes na

década de 1950. A partir desta análise, pensa-se de que maneira estas

idéias orientaram possíveis discursos e práticas sobre raça e

discriminação no país.

A idéia principal que busco abarcar é a de que o Brasil, através

de aspectos históricos e culturais construídos em tempos de

colonização, alcançou o que Freyre chama de “democracia racial”,

identificando-se como um país caracterizado pela ampla aceitação de

diferentes etnias em suas mais variadas relações sociais. De influência

culturalista, o autor sustenta que a configuração de nossa identidade

territorial estaria marcada pela mestiçagem entre as raças índígena,

* Graduanda em Ciências Sociais (UFSC).

Page 2: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

251

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

branca e negra, as quais contribuiriam, em conjunto, para a construção

de uma só cultura – uma “mescla” de seus valores e costumes. Dessa

forma, não haveria mais a identificação de um povo com sua própria

raça, e sim apenas com a cultura brasileira, o que acabaria com

qualquer indício de discriminação racial.

Cerca de vinte anos depois, a idéia disseminada por Freyre é

contestada. A partir de estudos teóricos e empíricos, Florestan

Fernandes sustenta o mito da democracia racial no Brasil como um

fator que possibilita a perpetuação da hegemonia ideológica branca no

poder, e inviabiliza ao negro a libertação de sua condição de sub-

cidadão.

No sentido de dar atualidade à discussão, analiso o fato de que,

ainda hoje, muitos discursos são orientados pela idéia da democracia

racial, enquanto as práticas, ao contrário, denotam uma ideologia de

branqueamento. Analiso os padrões de beleza transmitidos pela mídia

brasileira contemporânea, observando como é construída a imagem da

feminilidade relacionada às etnias branca e negra, e a forte imposição

de traços brancos / europeus quando se fala em beleza ou estética

(SCHWARCZ, 2000). Tais imposições acabam por negar à negra

brasileira o lugar de “mulher” e de “bela”. Penso então no surgimento

da “mulata” como uma categoria aparentemente construída com o

propósito de “erradicar” o racismo no país, sendo ela ícone da

democracia racial brasileira. No entanto, por trás de sua positividade

há uma forte imposição de seu papel sexualizado, fator retratado por

Freyre. Desta forma, sustento que o racismo contemporâneo brasileiro

é produto não só de relações coloniais cuja estrutura ainda não foi

rompida por completo, mas faz parte de um sistema complexo de

relações, no qual também se encontram discriminações de gênero e de

classes sociais.

O pensamento de Gilberto Freyre

Casa-Grande & Senzala, obra iniciada em 1928 e publicada em

1933, é filha de uma época em que o Brasil passava por uma “crise de

identidade”. Com a revolução de 1930 e as políticas de Getúlio

Vargas, o país se voltava para uma forte ideologia desenvolvimentista,

conjugada ao nacionalismo, que valorizava o território e “seu povo”.

O momento se caracteriza por um rechaço às políticas culturais e/ou

econômicas de absorção do estrangeiro. No entanto, o “povo”

brasileiro não estava configurado como tal, se mostrando muito

heterogêneo. Começa, assim, a busca pela construção de nossa

Page 3: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

252

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

identidade: afinal, o que temos todos em comum? O que nos une

como nação? Nesse sentido, foram estabelecidos ícones de identidade

positiva para o país: o samba, a capoeira, o arroz e feijão - antes

aspectos da cultura negra -, passam a ser vistos como manifestações

culturais genuinamente brasileiras (SCHWARCZ, 2000). O

modernismo, corrente artística que surge na década de 1920,

demonstra uma tentativa de negação dos valores europeus e da arte

estrangeira: é preciso que os próprios brasileiros retratem o Brasil.

O pensamento social do país seguiu a lógica da Semana de

Arte Moderna: via-se necessária a construção de uma identidade

nacional a partir de um discurso propriamente brasileiro, uma outra

interpretação da história, a partir de nossa própria experiência.

Gilberto Freyre lança-se, então, ao desafio de encontrar características

que unificassem um território tão extenso e diversificado.

No início dos anos 1920, Gilberto Freyre tem aulas com o

antropólogo culturalista Franz Boas, na Universidade de Colúmbia,

Estados Unidos. Seus estudos determinaram fortemente a perspectiva

pela qual Freyre interpreta a identidade brasileira, a partir da temática

racialista (PEREIRA, 2000).

A corrente culturalista busca explicar cada cultura através de

sua própria história, sem comparar com outras sociedades, nem

estabelecer uma única linha evolutiva, à qual todas as culturas

responderiam. Nesse sentido, Boas buscava romper com o

determinismo biológico de seu tempo, defendendo que nenhuma raça

é superior a outra. A corrente não despreza os fenômenos biológicos,

mas repensa a relação entre raça e cultura, questionando de que

maneira o meio social influencia os aspectos biológicos. João Baptista

Borges Pereira inclusive aponta que “[Freyre] encontra uma

justificativa social e cultural para a feiúra do brasileiro, mas não altera

a sua desfavorável avaliação estética” (PEREIRA, 2000, P. 87). Nas

palavras do próprio Gilberto Freyre,

foi o estudo de antropologia sob a orientação do professor Boas que

primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural.

Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura, a

discriminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de

influências sociais, de herança cultural e meio (FREYRE, 2006, p.

32).

A partir do pensamento culturalista, pode-se identificar no

discurso de Freyre uma tentativa de construir o que seria a “cultura

Page 4: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

253

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

brasileira”, pois tal corrente possibilita pensar que numa sociedade

construída por três distintas raças, estas compartilhem os mesmos

costumes e valores, os quais formariam a figura do mestiço. É a partir

dessa perspectiva que Freyre interpreta o país. Ele não busca traços

raciais dos povos que formaram nossa história, mas sim os traços

culturais que, ao entrarem em contato, foram se adaptando uns aos

outros.

No caso dos africanos vindos para o Brasil, dos

princípios do século XVI a meados do século XIX,

devemos procurar surpreender nos principais estoques de imigrantes não só o grau como o momento de cultura

que nos comunicaram. [...] Importa determinarmos a

área de cultura de procedência dos escravos, evitando-se

o erro de vermos no africano uma só indistinta figura de

'peça da Guiné' ou de 'preto da Costa' (FREYRE, 2006,

p. 381)

Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e

negros criaram um processo de alteração das relações sociais e

culturais, forjando um modo de vida próprio desse território. Tal

processo foi constituinte de uma única cultura que reúne mais de uma

raça: a cultura brasileira (DAMATTA, 1984). Para retratá-la, o autor

utiliza a figura do mestiço, e a diligência da miscigenação como

principal fator de influência em nosso sistema de relações sociais. O

mestiço carrega em seu próprio corpo a criação de uma “democracia

racial”, traço preponderante de nossa nação. Embora interpretasse o

sistema colonial como patriarcalista e de forte dominação portuguesa

perante as outras raças, o autor vê em nossas antigas relações a

formação de uma sociedade de cultura homogênea, de maneira que o

meio social compartilhado torna-se fator de orientação de suas práticas

e pensamentos, em detrimento da influência de sua etnia.

Freyre explica a miscigenação tomando como ponto de partida

a sociedade portuguesa do período pré-colonial. Segundo o autor, sua

cultura encontrava-se entre as menos rígidas em questão de valores

morais; a igreja, embora muito presente, não determinava tanto os

modos de agir e pensar. O povo português seria então orientado por

certa “malemolência”, uma flexibilidade moral, fomentada

principalmente pelo contato com os mouros, que levaram à sociedade

ocidental novos costumes artísticos, econômicos, sexuais.

Ao chegar o português malemolente em território americano, e

encontrar-se com a comunidade indígena, não seria ele tão rígido na

Page 5: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

254

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

imposição de seus costumes, ao contrário da invasão e colonização de

outros territórios, onde o índio é puramente inimigo, sendo seu

extermínio imprescindível para a ocupação. Freyre não nega a

violência causada a milhões de indígenas em território brasileiro, no

entanto, realça as relações pacíficas. É interessante lembrar que o

“não-extermínio” baseia-se também nos objetivos do Estado: ao

contrário da Espanha, que visava apenas explorar a riqueza material já

existente em suas colônias, Portugal buscava povoar o território, visto

que, a priori, a região não estava contemplada com uma quantidade

significante de metais preciosos.

Assim, os homens indígenas haveriam sido poupados e

aproveitados para o trabalho e o cultivo de riquezas. Já as mulheres

indígenas, seguidas das negras, ficaram encarregadas de suprir a falta

que faziam as mulheres brancas. O autor aponta a sexualidade

avançada como fator significante dos hábitos da sociedade colonial,

resultado, entre outros aspectos, dessa malemolência portuguesa em

conjunto com a “facilidade” das mulheres índias e negras: “As

mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais

ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses”

(FREYRE, 2006, p. 161). A “entrega” das mulheres à relação sexual

dava-se também em função de uma espécie de contrato estabelecido:

era uma maneira de ganharem favores, status, regalias, presentes. É

necessário indicar aqui a dominação portuguesa também no aspecto

sexual, fator que ajuda a estabelecer a imagem da branca e da negra na

sociedade atual.

Assim, pode-se observar que, para o autor, as relações que

surgem em meio a antagonismos da colônia – o senhor e a escrava, a

casa-grande e a senzala, brancos e negras – vão também caracterizar-

se pela convivência cotidiana, articulação e favorecimentos

recíprocos, ou seja, relações de proximidade. Tais relações paradoxais

vão construir uma atmosfera que pode ser interpretada como uma

“democracia racial”.

Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a

que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça:

dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural, que resultou

no máximo de aproveitamento dos valores e experiências dos povos

atrasados pelo adiantado, no máximo de contemporização da cultura

adventícia com a nativa, da do conquistador com a do conquistado

(FREYRE, 2003, p. 160).

O mestiço, nesse sentido, se constrói como a figura ícone de tal

Page 6: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

255

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

democracia e de tal cultura, demonstrando imageticamente a tese do

autor: do contato entre índios, brancos e negros surge um quarto

personagem, que não vai ser caracterizado enquanto raça, mas sim,

enquanto cultura.

Antônio Sérgio Guimarães (2010) e João Baptista Borges

Pereira (2000) apontam a importância do pensamento freyreano para o

desenvolvimento do pensamento social brasileiro da época em

questão. No momento em que era possível encontrar o estereótipo

fenotípico alemão em terras brasileiras, e utilizar sua estética como

fundamento de características culturais (como a disciplina e a

organização), o culturalismo mostrou-se um dos primeiros passos de

um pensamento anti-racista, que defendia que a indisciplina do

mestiço nada tem a ver com sua condição racial.

Nas décadas de 1940 e 1950, contexto pós-Segunda Guerra

Mundial - quando a questão racial começou a ser contestada

mundialmente - construía-se a imagem de que o Brasil era o “paraíso

racial do mundo” (GUIMARÃES, 2010). A idéia de democracia

racial, no entanto, não tardou muito a ser superada no meio

intelectual. Em busca de uma solução para os muitos conflitos

racialistas da época - nos Estados Unidos, na África do Sul, entre

outros -, a UNESCO promoveu a tentativa de utilizar a imagem do

Brasil para propagar a democracia racial. O “Programa de pesquisas

sobre relações raciais no Brasil” é aprovado em 1951, contratando

pensadores sociais que pudessem observar cientificamente as relações

raciais no país. Dentre eles, encontravam-se Florestan Fernandes,

Roger Bastide, Oracy Nogueira, entre outros (PEREIRA, 1981).

O pensamento de Florestan Fernandes

Os estudos de Florestan acerca dessa temática começam em

meados da década de 1940. Em 1953 publica “Brancos e Negros em

São Paulo”, junto ao sociólogo Roger Bastide; em 1965, “A

integração do negro na sociedade de classes”. Sua contribuição com a

pesquisa da UNESCO conta com dados estatísticos de condições

sociais de brancos e negros no país. O autor observa a ocorrência de

um processo de exclusão do negro, o que relaciona com a ordem

capitalista e sua lógica competitiva.

A década de 1960 é caracterizada pelo crescimento de uma

sociologia propriamente brasileira, que pense os conflitos sociais que

o país enfrenta. Muitos sociólogos se propõem a entender o processo

de industrialização no Brasil, e as transformações sociais

Page 7: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

256

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

desencadeadas por ele (OLIVEIRA, 1995). Florestan elabora um

estudo sociopolítico buscando entender as transições econômicas e

políticas que levaram o país a uma lógica e ordem burguesa. O

pensamento do autor no que tange ao dilema racial caminha junto com

sua construção teórica do que chama de “revolução burguesa no

Brasil”: relaciona o processo de exclusão dos negros na história do

país à transição da sociedade estamental para a sociedade de classes.

Suas ideias são fortemente orientadas pelo método marxista, embora

de maneira não determinista – ele não reduz a totalidade dos fatores

sociais à lógica capitalista, mas, sim, busca compreender as relações

raciais a partir da perspectiva de uma sociedade de classes

(FERNANDES, 1978; GUIMARÃES 1999).

Partindo dessas reflexões críticas, Florestan defende que os

fatores de “branqueamento” ou “mestiçagem” de nossa sociedade não

podem ser considerados indícios de igualdades sociais reais. O autor

trabalha com a questão da ideologia hegemônica brasileira,

contrapondo-a a aspectos que de fato retratem nossa realidade,

buscando desmitificar a noção que o brasileiro tem de suas próprias

relações raciais. “Negando uma realidade racial pungente, ladeava-se

a dificuldade maior, de ter de enfrentá-la e superá-la” (FERNANDES,

1978, p. 257). O pensamento de Florestan Fernandes segue claramente

sentido oposto ao de Gilberto Freyre, pois sustenta que, ao invés de

proporcionar uma sociedade realmente igualitária, a mestiçagem

característica do país somente maquiava o forte preconceito incrustado

em nossa cultura, formando uma ideologia que não permitia ao negro

a tomada de consciência necessária para libertar-se de sua condição

social inferior.

O autor inicia sua argumentação questionando se a ausência de

tensões raciais abertas pode ser indício de boa organização de nossas

relações sociais. Para ele, houve anteriormente a confusão entre

miscigenação e ausência de uma estratificação social, e assim

contraria a idéia de Freyre de que a união das três raças e a construção

de uma única cultura faria com que os brasileiros não considerassem

mais a raça em suas relações. Há ainda, sustenta Florestan, a

idealização de um branqueamento que origina relações de poder.

Segundo o autor, o brasileiro tem uma forma particular de

racismo: um “preconceito de não ter preconceito”, e foi dessa maneira

que se proporcionou o mito da democracia racial no campo

ideológico. Somos muito críticos à discriminação, fator relacionado ao

ethos católico, o qual ajudou a construir nossa ideologia: Tal ethos

havia concedido ao escravo um caráter humano. Há discrepância entre

Page 8: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

257

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

os fundamentos ético-jurídicos da república e as relações sociais na

prática: nossas leis garantem ao negro a mesma posição jurídica que

ao branco, fator que sustenta a representação ilusória de uma

democracia racial. No entanto, tal igualdade perante a lei não nos

permite avaliar que a real condição social do negro é orientada por

práticas sociais não institucionalizadas, herança de seu passado; pelo

contrário, as oportunidades “iguais” de competição sugerem que os

diferentes grupos encontram-se em um nível igual de condições

(FERNANDES, 2007).

Para analisar o processo de exclusão do negro em nossa

sociedade, Florestan remonta à transição brasileira de Império para

República, e à abolição da escravatura. Segundo ele, não houve um

medo branco de que o negro ascendesse, ou impedimentos nesse

sentido; foi a maneira como a sociedade de classes se configurou que

resultou na preservação da antiga ordem racial.

Na fase de extinção final do antigo regime, as concepções ideológicas

e utópicas do núcleo de origem senhorial aplicáveis à ordenação e à graduação das relações raciais, governaram o reajustamento dos

'negros' e 'brancos' entre si, como e enquanto tais, à nova situação

histórico-social (FERNANDES, 1978, p. 251).

Na medida em que surgiam tensões sociais, os brancos

apelavam a atitudes autoritárias, buscando ocultar as agitações acerca

do “problema do negro”. Isso, no entanto, não se dava de maneira

consciente no sentido de prejudicar os negros, pois a discriminação

explícita era reprovada - segundo Florestan, a repulsa ao negro dava-

se como uma prática herdada do escravismo. A idéia dominante é de

que os negros deveriam integrar-se aos brancos, o que significa que os

valores negros não seriam assimilados pelos brancos, mas sim,

substituídos. O paradigma da democracia racial facilitou este

processo, pois a idéia de que nos unimos através de uma única cultura

leva à hegemonia da cultura branca, fator relacionado à posição de

superioridade branca nas relações econômicas. Além do mais, a

abolição foi um processo coordenado por brancos a partir da ideologia

de “sociedade com direitos iguais”, o que nunca significou que eles

deixariam de ser dominantes. O próprio processo tinha como objetivo

interesses seus, de ordem capitalista, os quais iriam continuar

orientando a modelação de nossa estrutura racial (FERNANDES,

1978).

Pensando a sociedade pós-abolição, Florestan vê o mito como

uma maneira de perpetuar o sistema de relações sociais do passado

Page 9: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

258

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

sem romper com o ethos católico da igualdade, isentando as elites da

culpa pela exploração do negro. Dessa forma, não seria necessário

inovar relações em direção à democracia, garantindo a posição dos

patrimonialistas no poder.

Em “O negro no mundo dos brancos” (1972), Florestan

Fernandes demonstra como a lógica racista foi absorvida pela

sociedade capitalista no Brasil. A relação “negro – escravo” (a qual

surgiu da condição racial do negro) transforma-se em “negro – pobre”

(que por sua vez surge da condição social do negro). Neste sentido, é

propagada a idéia de que o preconceito é contra o pobre, não contra o

negro, sem levar em consideração a primeira relação “negro –

escravo” existente em nossa história. A posição social do negro foi

absorvida pelo sistema de classes: algum grupo deveria ocupar esse

lugar, e a “escolha” se deu baseada nas estruturas sociais do passado.

No momento em que estas eram, na verdade, raciais, é possível

desbancar o mito da democracia racial e da “unidade” das raças no

Brasil.

A discussão da qual participam idéias de Gilberto Freyre e

Florestan Fernandes nos permite compreender muitos aspectos das

relações raciais no Brasil hoje, pois embora tenha sido desconstruída

no meio intelectual, a ideologia da democracia racial ainda orienta

muitos discursos e práticas. Proponho-me a pensar de que maneira

esta ideologia opera nos dias atuais, através da análise do processo de

“branqueamento ideológico” no país, e do papel da imagem do mulato

e da mulata nesse processo. Tomo os discursos da mídia e da literatura

brasileira como reprodutores de valores sociais, de maneira que,

através de imagens construídas e altamente propagadas, de

personagens idealizados e desejos criados, impõem determinadas

representações de diferentes grupos sociais do país. A comunicação de

massa, dessa forma, é responsável por transmitir valores tidos como

universais, os quais, no caso brasileiro, demonstram ser provenientes

de uma perspectiva europeizada e branca (SCHWARCZ, 2000;

OLIVEIRA, 2005).

Para Nucia Silva de Oliveira, “a beleza é também uma questão

histórica, cuja análise mostra relações de poder, em que se alternam a

construção e desconstrução de valores, a criação e a circulação de

determinadas representações, entre outras tensões” (OLIVEIRA,

2005, p. 188). A mídia apresenta-se como um espaço onde é possível

observar a “imagem” dessas relações de poder – Redes de televisão,

filmes, revistas carregam em suas imagens padrões de beleza bem

definidos, fortemente marcados pela ausência do elemento negro. Ora,

Page 10: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

259

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

num país onde 44% da população se consideram negra ou parda

(Censo Demográfico – 2000, IBGE), fica clara a tentativa de

branqueamento da imagem racial do país.

Esta diligência escancara-se ainda mais quando alguns projetos

midiáticos - como, por exemplo, as telenovelas - propõem-se a retratar

“fielmente” a realidade social brasileira, impondo representações de

classe, família, gênero, etc. Podemos pensar também as revistas de

beleza femininas: em uma análise das últimas 50 capas da revista

“Nova”, 20 capas da revista “Cláudia”, 30 capas da revista “Marie

Claire” observa-se apenas uma mulher negra, sendo as outras 99

mulheres de etnia branca. É possível concluir, portanto, que as

mulheres negras não se encontram dentro do padrão de “mulher

bonita” no Brasil, ou ainda: não se encontram dentro do padrão de

“mulher” segundo a mídia, pois a grande maioria das publicações

voltadas ao público feminino não apresenta em suas páginas

personagens negras, mesmo quando a estética não é a temática central.

Outra análise bastante interessante é de como as revistas voltadas ao

público negro (“Raça Brasil”, “Beleza Negra”) desenvolvem os traços

de negritude como “problemas” a serem resolvidos: numa falsa defesa

da beleza negra, da autoafirmação racial, tais revistas trazem em seu

conteúdo, muito frequentemente, orientações de como alisar o cabelo

ou maquiar-se buscando uma boca menor, etc. (figuras 1, 2 e 3).

Guerreiro Ramos, em seu artigo “Contatos Raciais no Brasil”,

publicado em 1948, analisa o padrão estético da população brasileira

como um fenômeno patológico. Segundo ele, a adoção de valores de

beleza europeizados, impondo o branco como norma e ideal,

desenvolve em nossa sociedade um critério artificial de beleza,

inexistente. Trata-se da criação de uma falsa identidade, à qual os

negros devem incorporar-se. Desta forma, o negro acaba assimilando

padrões da cultura dominante, tomando para si os ideais da beleza

branca – ele próprio acaba reproduzindo tais padrões (sintoma da

patologia). Como indica Florestan Fernandes: o “preconceito de não

ter preconceito” não permite ao negro a necessária tomada de

consciência para libertar-se de sua condição social inferior

(FERNANDES, 2007).

No entanto, como relacionar o fenômeno de “branqueamento”

com a ideologia da democracia racial e mestiçagem corrente no país?

Onde encontramos a figura do mulato como “ícone da sociedade e

cultura brasileira”? O mesmo ator que venera a beleza “mulata” das

brasileiras, não aceita recepcionistas negras, e espera ter um filho de

olhos azuis. Estamos falando da mesma categoria de “belezas”? O que

Page 11: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

260

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

divide essas duas belezas, tão idealizadas e tão distantes em seus

significados? Tais indagações me levaram a abordar uma terceira

questão.

A construção social do mulato e da mulata.

De Gregório de Matos a Guimarães Rosa, na prosa e na poesia, no

universo do carnaval (ou do samba), através do rádio, do teatro

rebolado e da televisão, a mulata, assim construída como um objeto de

desejo, tornou-se um símbolo nacional. No discurso de alguns críticos

literários (José Veríssimo, Silvio Romero), no de alguns historiadores

(Capistrano de Abreu), no discurso médico (Raimundo Nina

Rodrigues e muitos outros) e no literário (repito, de Gregório de

Matos a Guimarães Rosa) que serviu de lastro para a construção dessa

figura mítica, a mulata é puro corpo, ou sexo, não "engendrado"

socialmente. O mulato, do mesmo Aluísio Azevedo, os mulatos de Sobrados e Mucambos e os de Jorge Amado são agentes sociais,

carregam o peso da ascensão social, ou do desafio à ordem social, nas

suas costas espadaúdas (MOSER, 2009, grifo da autora).

Tal relato nos permite perceber a construção da mulata e do

mulato na literatura brasileira como símbolos nacionais de diferentes

representações, as quais remetem à condição social do homem e da

mulher no país. Como relacionar, então, a construção dessas imagens

com sua ausência na indústria cultural? Como uma sociedade que se

caracteriza pela ideologia branca pode ter como símbolos personagens

mestiços? É necessário repensar, portanto, a conclusão de Gilberto

Freyre de que o mulato é símbolo justamente por representar a

miscigenação brasileira, a qual comprova a unicidade nacional através

de uma única cultura (ORTIZ, 1985). Se a cultura brasileira fosse

mesmo representada pelo mulato, este estaria presente em todos os

espaços sociais, e em todos os campos do imaginário da população

brasileira, no entanto não é o que de fato ocorre.

Para pensar tais questionamentos, é preciso considerar o fato

de que há uma diferença entre a figura do homem mulato e da mulher

mulata. A construção dessas figuras engloba a maneira como são

representadas pela literatura brasileira, pela mídia, e também pelo

discurso de Gilberto Freyre. Casa Grande & Senzala, nas palavras de

Renato Ortiz, “transforma a negatividade do mestiço em positividade,

o que permite completar definitivamente os contornos de uma

identidade que há muito vinha sendo desenhada” (ORTIZ, 1985, p.

41). No entanto, ao definir a imagem e o papel da mulher negra e

Page 12: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

261

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

mulata, Freyre a coloca como objeto sexual, como personagem que

representa a sexualidade avançada que caracteriza o país desde os

tempos coloniais. “Trazemos quase todos a marca da influência negra.

[...] Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e

de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé

de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos

transmitiu, ao ranger da cama de vento, a primeira sensação completa

de homem” (FREYRE, 2006, p. 367, grifo meu).

A história do Brasil, até o século XX, é a história dos homens

brancos brasileiros construída por eles próprios. Esse fator deve ser

considerado ao resgatarmos o lugar social que a mulher ocupa nessa

história. Freyre remonta a relação entre portugueses e negras pela

visão dos próprios portugueses: a utilidade da mulata da época era o

entretenimento sexual, visto que os homens não trabalhavam, e estas

ganhavam recompensas ao servi-los. Dessa forma, a figura da mulata

torna-se símbolo da beleza sexualizada do país. Seu estereótipo na

literatura brasileira - boca carnuda, cintura fina, seios fartos, quadril

avantajado - é reprodutor de um discurso no qual a mulata é dotada

apenas de atributos físicos, sendo negada a ela uma posição ativa na

sociedade. Já a construção do homem mulato, como é possível

observar em obras de Jorge Amado e Aluisio de Azevedo, se dá no

sentido de um agente social, ativo: um homem comum, trabalhador,

portanto um elemento representativo do que seria “o povo” brasileiro

(MOSER, 2010).

Essa dupla construção, como observado, se dá pela posição

dominadora em que se encontrava o homem ocidental nos séculos

XVI, XVII, XVIII e XIX, conjugada ao fato de que o Brasil foi

primeiramente colonizado por homens portugueses, que, na falta de

suas esposas brancas, utilizaram de outras mulheres para satisfazer-se.

A imagem que ficou, no entanto, foi a da “facilidade” da mulata para

render-se ao sexo, negando o papel patriarcal e dominador em que se

encontravam os homens.

Analisando o filme “Princesas, lobos e príncipe encantado”

(2009), de Joel Zito, percebo que o símbolo feminino brasileiro

continua mantendo sua representação: homens do mundo inteiro

seguem à caça de brasileiras para realizar turismo sexual – e é

fundamental que sejam mulatas. Eles explicam: “As mulatas são mais

quentes, mais doces, seduzem mais”, etc. Ou seja, são fáceis. Parece-

me óbvio o motivo pelo qual uma prostituta é “fácil”, entretanto, só as

mulatas carregam essa imagem, inclusive no discurso das próprias. O

que, aparentemente, é um fator de positividade da raça negra, traz

Page 13: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

262

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

consigo, na verdade, heranças das relações sociais da colônia. Para o

homem branco, a negra não é nada mais do que um objeto, um ser

passivo. Pode ser dominada, enquanto mulher; e explorada, enquanto

negra.

De que maneira o termo “mulata” é coerente com o advento da

miscigenação? Para além do conceito, as mulatas existem de fato? São

elas diferentes das mulheres negras? Analisando muitas imagens de

mulheres que se afirmam mulatas – como, por exemplo, a Globeleza,

uma das mulatas mais midiáticas – é possível perceber que sua cor,

sua etnia, não difere da de mulheres que se afirmam negras. Por que,

então, se fez necessária a construção de um novo conceito para

caracterizar o objeto sexual da colônia? Analisemos a citação de

Freyre: “Com relação ao Brasil, que o diga o ditado: 'Branca pra casar,

mulata pra f..., negra pra trabalhar'; ditado em que se sente, ao lado do

convencionalismo social da superioridade da mulher branca e da

inferioridade da preta, a preferência sexual pela mulata” (FREYRE,

2006, p. 72). Defendo aqui a hipótese de que, na sociedade colonial, o

fator de construção da mulata foi a junção da falta de mulheres

brancas com a discriminação às mulheres negras. Era necessário um

novo elemento, que não se comprometesse com as categorias

negativas que carregavam as escravas. Criou-se assim, uma mulher

aparentemente livre da discriminação racial, que trazia consigo apenas

características sexuais, ganhando um novo papel social em relação às

negras exploradas. Primando pela sexualidade, seu corpo também foi

construído, de maneira que ganhasse atributos interessantes ao homem

português. A mulata representa, portanto, a negação da negra. Sua

construção surge do próprio racismo e do machismo incrustados nas

relações sociais brasileiras.

A mulata atravessa a história brasileira mantendo seu cargo de

símbolo sexual até os tempos atuais (figura 4). Seu lugar está no

samba, no carnaval, categorias também sexualizadas, transformadas

em ícones brasileiros da democracia racial. Enquanto o mulato –

agente ativo - traz ao Brasil o título de campeão da Copa do Mundo,

ela – agente passivo - apenas se exibe, buscando o cortejo dos

homens. Sua própria existência mantém o mito da democracia racial, a

partir do qual lhe é negada a consciência para a libertação. A negra,

por sua vez, tornou-se um personagem de traços masculinos, marcada

pelo trabalho que lhe nega feminilidade e beleza. A ideologia do

branqueamento trabalha nesse sentido: impõe às negras que busquem

atributos de mulata, e a todas às mulheres que busquem traços

brancos. A mulata, portanto, nada mais é do que uma negra

Page 14: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

263

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

esbranquiçada.

A aparente positividade da mulata mascara o racismo ainda

existente. Por outro lado, valores estéticos ainda recorrentes em nosso

país explicitam, a partir de determinados padrões, quão forte e

propagado é o movimento de branqueamento, e como damos

significado a nossa imagem e etnia. É necessário encarar o mito da

democracia racial como um obstáculo às reais transformações, e

pensar de que maneira estamos reproduzindo o “preconceito de não ter

preconceito”. Outra questão importante é como as relações raciais se

identificam com demais tipos de relações – de gênero e de classe, por

exemplo. Para uma libertação plena, é preciso pensá-las em conjunto,

e relacioná-las com suas origens. O pensamento de Gilberto Freyre,

Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos certamente foi fundamental

para que sigamos em busca de repostas para um país mais livre e

igualitário.

Figura 1: Capa de revista: A negra com traços brancos.

Fonte: http://img1.mlstatic.com/jm/img?s=MLB&f=133326444_6890.jpg&v=O

Page 15: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

264

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

Figura 2: Capa de revista: A negra com traços brancos II.

Fonte: http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/113/sumario.asp

Figura 3: Publicidade de xampu para alisar os cabelos.

Fonte: http://hbtl.files.wordpress.com/2008/07/dove-simpson.jpg

Page 16: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

265

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

Figura 4: Resultado da busca de imagens relacionadas à palavra

“mulata” no website google imagens.

Fonte: http://www.google.com.br/images?hl=pt-

BR&lr=&tbs=isch%3A1&sa=1&q=mulata&aq=f&aqi=g10&aql=&oq=&gs_rfai=

Referências

BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Relações raciais entre

negros e brancos em São Paulo. São Paulo: UNESCO-Anhembi,

1955

DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia

social. Petrópolis: Vozes, 1984.

FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2.ed. São

Paulo: Global, 2007.

_______. A integração do negro na sociedade de classes. v. 1. 3. ed.

São Paulo: Ática, 1978.

Page 17: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

266

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos: decadência do

patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 1985

_______. Casa-Grande & Senzala. 51 ed. São Paulo: Global, 2006.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio. Racismo e anti-racismo no Brasil.

São Paulo, Editora 34, 1999.

______. Democracia Racial. Disponível em:

<http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/> Acesso em 1 out. 2010.

_______. Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito. Novos Estudos

Cebrap, v.XX, n.61, São Paulo, 2001, p.147-162.

LEITE, Ilka Boaventura. A mulher negra e a mulata na literatura

de viagens do século XIX. (s. d.). ?? (Não consta no lattes).

MOSER, Magali. A estética da mulata na literatura brasileira.

Disponível em: <http://www.bc.furb.br/sarauEletronico/

index.php?option=com_content&task=view&id=58&Itemid=34>.

Acesso em 1 jul. 2010.

OLIVEIRA, Lucia Lippi. A sociologia do guerreiro. Rio de Janeiro:

UFRJ, 1995.

OLIVEIRA, Nucia Alexandra Silva. Representações da beleza

feminina na imprensa: uma leitura a partir das páginas de O Cruzeiro,

Claudia e Nova (1960/1970). In: FUNCK, Susana Bornéo;

WIDHOLZER, Nara. Gênero em discursos da mídia. Florianópolis:

Ed Mulheres, 2005.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 3.ed. São

Paulo: Brasiliense, 1985.

PEREIRA, João Baptista Borges. Estudos antropológicos e

sociológicos sobre o negro no Brasil. Aspectos históricos e

tendências atuais. São Paulo: USP, 1981.

______. A linguagem do corpo na sociedade brasileira: do ético ao

estético. In: O corpo do brasileiro: estudos de estética e beleza. São

Page 18: A Categoria “Mulata” e a negação de sua própria libertação ...€˜mulata’-e-a-negação-de...Para o autor, os antagonismos em que viviam índios, brancos e negros criaram

267

_____________________________________________________________________________

Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 250-267.

Paulo: Editora SENAC/SP, 2000

RAMOS, Guerreiro. Contatos Raciais no Brasil. Quilombo, São

Paulo, dez. 1948. p.2.

_______. Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo. Rio de

Janeiro: UFRJ, 1995.

RUFINO, Alzira. Mulher negra: uma perspectiva histórica. São

Paulo: EBOH Editora e Livraria, 1987.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas,

instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo:

Companhia das Letras, 1993.

______. No país das cores e nomes. QUEIROZ, Renato da S. (Org.).

O corpo do brasileiro: estudos de estética e beleza. São Paulo:

Editora SENAC, 2000, p. 95-127.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; QUEIROZ, Renato da Silva (Orgs.). Raça

e diversidade. São Paulo: EDUSP, 1996.

SOUZA, Jessé. Democracia racial e multiculturalismo: a ambivalente

singularidade cultural brasileira. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de

Janeiro, n. 38, dez. 2000

Arquivo: <http://nova.abril.com.br/revista/arquivo/> Acesso em 1 jul.

2010

Arquivo: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/

censo2000/populacao/cor_raca_Censo2000.pdf> Acesso em 1 jul.

2010