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Uma mãe desesperada insiste em ler uma carta que escreveu sobre o seu filho Marco, morto às 6:

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Page 1: A carta

A CARTA

TONI MARTIN

Page 2: A carta

A Carta

Uma mãe desolada...

Perambula atordoada, verso a rampa do Planalto, Moradora indignada da Ceilândia Brava, como tantos que sonharamnuma vida melhor na capital inventada,

Ali encontra um velho cego,Sentado no único banco da praçaOrnado por uma viola,E chapéu de palhaEla, sem forças...senta-se ao seu lado..E lhe diz:

...Eis aqui uma mãe feridaSeu filho único, morto no assaltoDo ônibus da madrugada!

Seus passos a levaram solitáriaAo encontro do Gigante da praçaDo candango de ferroDos poderes desta grande Brasilis,

Ela, armada de uma rosa branca,Lhe conta emocionada a vida Do filho amado que a deixou,Obra de um tiro que partiuSeu coração e derramou SangueNa avenida da cidade planejada.

Page 3: A carta

..A quem posso pedir auxílio?Sussurra ao vento do cerrado.Peço apenas um consolo,Um pedido de retorno...Ontem meu filho me deixou,Sem se despedir de mim.

Colocou uma roupa surrada,Ai fiquei brava com ele,Mas apenas sorriu,Deixou de lado os sapatos novos,Usou os mais feios,Queria guardar para impressionarA namorada no final de semana. Ele partiu e nem mesmo me deu um beijo,Nem mesmo um olhar final de despedida,Um cheiro ou mesmo um toque,Um abraço, aquele que tanto lembroDe quando era criança no meu colo,Que saudade... E aqui meu Deus,Um filho teu partiu de vezSem criar coragem de dizer a sua mãeQue não voltaria mais, Já que seu destino estava marcado. Meu filho me deixou de vez,Apenas ao acordar pediu

Toni Martin

Page 4: A carta

Logo um pouco de café saboreou,E nem mesmo comeu,Estava atrasado,A cidade não perdoa,As ruas fervem pela manhã,E sempre me falava que dormia Um pouco no Ônibus.O sono que se sonha e se lembra ao acordar...

Um dia contou-me O sonhou precioso:Que me daria uma casa nova,Linda, perfeita, de jardim de rosas E quartos com banheiros como sempreLhe falava que sonhara ter.Neste sonho somente me entristeceuAo escutar dizer:Mãe um dia farei isto se tornar realidade! E hoje, ele partiu sem completar a promessa!

Para o diabo a casa!Eu quero você meu amor!!!Volta te peço!A quem suplicar a volta do meu menino?A Deus? A nossa pátria que permite tanta violência?

...Sonolenta embriagada pela alba,Abri a porta para nunca mais ser a mesma,

A Carta

Page 5: A carta

João da padaria tomará coragem,E me despertará para a notíciaQue destruiu-me por completo. O silêncio marcou os minutos seguintesApenas dor profunda, coração ofeganteMal lembro se saí vestida descenteO que ainda tinha em mim,levei comigo. Dor muita dor,Profunda ferida verso a cena do crime... Não pude reconhecer seu rosto,Ninguém me deixou vê-lo,O ônibus que pegava era amarelo e branco Sempre às 5:45,Rasgava a alvorada do cerrado,Essa lotação que gostava de dormir No último banco..Parado estava no meio da estrada,Todos de lado de fora,As luzes piscavam,Policia e Samu ao lado. Quando sussurrei seu nome,Marco...Acordei desesperada,Do pesadelo verdade,

Toni Martin

Page 6: A carta

Meu coração parou,Eu morri de vez.

Ele, deitado no banco de trás, Coberto por um pano branco contornavaAquele pequeno que nasceu de mim,Que tanto o amo... Reconheço a sua silueta, Uma mancha vermelha Marcava a sua cabeça.Parecia dormindo, Parecia tão calmo,Suas mãos lindas estavam Pingando gotas de sua vida,Um pequeno lago se formou No corredor do ônibus.

Não senti nada, apenas pegueiUm pano a recolher seu Sangue derramado...O que mais poderia fazer?Minha alma não tem mais alma,Apenas um corpo sem corpo,Um ser sem ser, Pedindo a fome de amor, Aquele por quem sempre lutei.

...Sinto vazio em mim, Por isto venho aqui!A praça de tantos poderes hoje se cala,

A Carta

Page 7: A carta

O som tórrido do agreste se faz presente Percebo hoje aqui da realidade macabra, Da falta de flores,Do verde perfumado,De gente sem destino…

A praça hoje me consola,Feita de pedra e aço,É isso que sinto hoje,Sou esqueleto vivoQue esqueceram de enterrar,Morta, destruída,Sentenciada a sofrer pela eternidade.

Meus Deus, Por que não cuidaste do meu filho?Ele iria ao trabalho, Um cidadão de bem,Um filho da pátria, que tanto amava tuas cores.Por quê não cuidastes de mim?Que tanto lavei os corredores do senado,

Confesso: Ria do modo engraçado De comandar o país,Dos vaidosos de palitó, dos que sempreRiram do povo trabalhador…Que se dane! gente maldita,Povo é povo,

Toni Martin

Page 8: A carta

Nascem como vermesSempre estarão reclamando.Escutei um dia, do senador da Bahia….

Ontem meu filho se foi,Deixou a cama para ganhar a vida,Nem mesmo provou o bolo que fiz para ele.

Hoje, soube que o ônibus do crime,Corre de novo nas vias da agonia... Limparam o seu sangue, Voltou a rodar madrugada afora,Mais pessoas dormem,Como o meu Marco na alvorada,Verso a imprecisão da vida,Ele dormiu Não acordou mais.

Segundo os que estavam ao seu lado, No momento do disparo da bala, Abriu os olhos e disse: Mãe!logo se calou e seu rosto banhou-se em sangue.

Há mais tristeza que me consola, É saber que outra mãe também sofre,Pela insensatez do seu filho de menor Que atirou assustado,sem querer, segundo ele,Queria a grana do cobrador,Mas o medo da ação Lhe fez coçar o dedo, Apertou o revolver por engano,

A Carta

Page 9: A carta

Seu gatilho criou a bala vida.Dizem que a projétil Correu pelo ônibus Bateu duas vezes no teto e chão Até atingir ele, Meu filho abriu os olhos Disse: Mãe!

Meu Deus onde estava Nesse momento?Por quê não pedi para ele Me ajudar na cozinha?Maldita hora que o acordei Para o trabalho!Ele queria ficar, estava cansado, Queria dormir, “Sonho Bom” resmungou...Eu que pedi que levanta-se, A vida corre mocinho! Deixa de ser preguiçoso! lhe disse, Levanta!

Ah se pudesse voltar o Tempo,Talvez fui eu a culpada,Apenas Eu!

Sem prévio aviso a mulher se apartou do homem cego,Da praça, do poder, Rumo a vida que lhe restava...

Toni Martin