a campanha

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A Campanha /1/ O director geral entrou na sala com ar decidido e despacha- do. Contornou a mesa oval onde já estavam reunidos os colaboradores mais próximos, pousou a mala do computador e despiu rápido o casaco. E sem qualquer pausa, declarou, «Meus caros, temos uma nova campanha pela frente.» Os colaboradores guardaram o costumeiro silêncio comprometido enquanto o director geral abria o portátil sobre a mesa num gesto já de todos conhecido, ligeiramente curvado para diante de modo a pressionar simultaneamente os dois fechos com os polegares. E depois, já com o computador aberto a seu lado, debruçouse ainda mais para a frente, escorandose sobre as mãos na mesa, «Mais que qualquer outro projecto em que nos tenhamos envolvido», retomou o director geral, «este não só é econo micamente relevante para a empresa, como seria, caso o concretizássemos, fazer história. Sim, ouviram bem: fazer história.» Uma espécie de corrente eléctrica contagiou cada um dos membros da equipa numa apreensão de adrenalina. O director geral detectou com satisfação profissional o efeito da sua declaração; e, enquanto revirava com um lenço de seda as pontas do bigode curto, decidiu dar a estocada final,

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Um conto de Pedro Miguel Gon

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A Campanha

/1/

O director geral entrou na sala com ar decidido e despacha­do. Contornou a mesa oval onde já estavam reunidos os colaboradores mais próximos, pousou a mala do computador e despiu rápido o casaco. E sem qualquer pausa, declarou,

«Meus caros, temos uma nova campanha pela frente.»Os colaboradores guardaram o costumeiro silêncio

compro metido enquanto o director geral abria o portátil sobre a mesa num gesto já de todos conhecido, ligeiramente curvado para diante de modo a pressionar simultaneamente os dois fechos com os polegares. E depois, já com o computador aberto a seu lado, debruçou­se ainda mais para a frente, escorando­se sobre as mãos na mesa,

«Mais que qualquer outro projecto em que nos tenhamos envolvido», retomou o director geral, «este não só é econo­mi camente relevante para a empresa, como seria, caso o concretizássemos, fazer história. Sim, ouviram bem: fazer história.»

Uma espécie de corrente eléctrica contagiou cada um dos membros da equipa numa apreensão de adrenalina. O director geral detectou com satisfação profissional o efeito da sua declaração; e, enquanto revirava com um lenço de seda as pontas do bigode curto, decidiu dar a estocada final,

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«Meus caros, garanto­vos que se conseguirmos ligar o nosso nome a este novo produto, garantiremos a imortalidade.»

Não era todos os dias que se ouvia a palavra ‘imortalidade’ numa empresa de Comunicação e Marketing.

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«Não adivinham, pois não?», indagou o director geral.Os colaboradores acenaram a cabeça como canídeos

ames trados à espera da oportunidade de mostrar as suas proezas. O director geral torceu o lábio de gozo e resolveu rentabilizar ao máximo a sua efémera vantagem,

«O desafio da nossa nova campanha consiste…», fingiu distrair­se com o aprumo da gravata, «consiste em conseguir mostrar como…», a gravata parecia continuar sem o aprumo merecido, «como os bebés enlatados são muito melhores que os bebés electrónicos biomecânicos». Soltara a última informação como se solta um elástico esticado, produzindo em catadupa respostas de ricochete.

«Ora vejamos…», assegurou o Criativo.«Não sei, não sei não…», aventou o Filósofo.«Difícil», sustentou o Burocrata.O Moderador preferiu manter um silencio moderado,

o que foi suficiente para o Engenheiro ripostar,«Parece caro!»E o Crítico deliberar,«Vamos lá ver!»Mas nos instantes seguintes, a sala encheu­se de um

rumor impaciente de dedos de seis mãos a tamborilar na mesa. O Filó sofo encalhou num gesto repetitivo a cofiar a barba mal escanhoada; e o Moderador encravara o olhar lunático num ponto impreciso do tecto.

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«Vejo que temos de apreciar o produto», deslindou, por fim, o director geral.

A equipa criativa assentiu.O director geral pegou no telefone e deu instruções para

que entrasse o produto.O Crítico pôs­se subitamente amarelo; de olhar vesgo

e ausente. «Tenha calma, ò Mestamónides!», disse o director geral,

«Não vamos plantar aqui nenhuma dessas criaturas.»O Crítico soltou um sorriso de alívio muito mal disfarçado.

Os outros aproveitaram para rir à socapa; e o Crítico fingia não se aperceber de nada.

Entretanto um funcionário do armazém entrou na sala, empurrando um carrinho que continha uma embalagem de cartão duro. Foi o director geral quem abriu o embrulho,

«Ora cá está!»E lentamente, com um cuidado de parolo a lidar com os

cristais da esposa, retirou, uma a uma, as quatro latas,«Aqui um bebé moreno de inspiração mediterrânica, aqui

um bebé louro de inspiração nórdica, aqui um bebé mulato de inspiração meridional e o bebé negro de inspiração norte americana.»

As latas, que não tinham dimensão maior que um bidão de cerveja de dois litros, ficaram alinhadas em cima da mesa,

«Já há bebés enlatados?», suspirou retoricamente o Filó­sofo.

«Ainda nem há um ano apareceram os bebés electrónicos biomecânicos!», concordou o Engenheiro.

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Quando já tinha as mangas perfeitamente arregaçadas até ao cotovelo, o director geral disse,

«Vamos começar?»O Criativo, que tinha como tique criativo enfiar a ponta

de caneta ou lápis numa das narinas, rodando gentilmente de modo a gozar duma fricção cóceguenta nos pêlos do nariz, deparou subitamente com a presença inesperada de uma ranheta verde na ponta do ponteiro que usava para escrever na tela do computador e ficou arreliado.

«Bem», aproveitou o Filósofo, «vejo aqui a verdadeira democratização da descendência. Quem quer, quando quer, como quer… Ou seja, uma pessoa vai ao supermercado e traz um filho à escolha.»

«Sim, sim», aprovou o director geral guardando o lenço no bolso das calças, «até porque este produto estará de facto disponível em qualquer loja ou supermercado…»

«Mais fácil é impossível!», exclamou entusiasmado o Engenheiro, depondo nos gestos a teatralidade metalinguística de quem queria sublinhar uma frase.

«Esse slogan já está gasto! Não vamos usá­lo», replicou o Burocrata melindrado com o protagonismo do outro.

Mas o Engenheiro não ligou ao reparo e continuou,«Já viram isto? Chega­se a casa, abre­se a lata e de repente

uma pessoa torna­se pai ou mãe! É extraordinário!»«Não é necessário parceiros sexuais ou genéticos.

A escolha é um processo inteiramente individual», ajudou o Crítico.

«Ou seja, estamos perante uma revolução da maternidade e paternidade!»

«A propósito», interrompeu num tom insolente o Buro­crata, «Estes bebés nascem ou abrem­se?»

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Um silêncio de perplexidade pousou na sala.«Esperem!…», exaltou­se o Filósofo de súbito, «Acho

que vislumbro uma tagline. Ouçam isto: Abra a sua vida abrindo um novo bebé!»

«Vou apontar», disse o director geral, «é simples, breve, eficaz e com um leve toque poético.»

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«Este produto não concorre directamente com os bebés naturais, pois não?», perguntou o Engenheiro.

«Pelo menos a campanha dos electrónicos não foi nesse sentido», clarificou o director geral.

«Ora francamente!», comentou o Crítico, «Hoje em dia, quem é a pessoa sofisticada que tem disponibilidade de agenda para embarcar na aventura instável de produzir um bebé natural? Só os indivíduos desqualificados têm tempo para essa prática.»

«Além disso, devo dizer­vos», segredou o Engenheiro, «em certos círculos já não é bem visto descer a esse nível primitivo de procriação. Perde­se muito tempo e o processo envolve muita dor e ansiedade. É um comportamento com uma imagem muito negativa.»

«É verdade! Conheço, inclusive, pessoas que se viram marginalizadas, socialmente e profissionalmente, por terem escolhido a procriação primitiva.»

«Qual é o executivo que quer uma mancha dessas no seu currículo!»

«Mas este bebé é diferente. De certa maneira é o meio­ ­termo entre os biológicos e os electrónicos.»

«Sim, é uma espécie de produto biológico regula ri­zado…»

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O director geral aproveitou para colher qualquer coisa de concreto,

«Em resumo, orientamos a campanha contra os bebés electró nicos biomecânicos e não contra os bebés naturais. Certo?»

«Acho que sim, porque só esses são os verdadeiros rivais. Os potenciais compradores do bebé enlatado são os que comprariam um bebé electrónico biomecânico. E as vantagens sobre esses são imensas, senão vejamos…»

«Para começar, o bebé biomecânico é um produto muito monótono, já que nunca cresce. Em termos físicos está sempre na mesma.»

«Também já ouvi dizer que a sua capacidade de aprender é mais limitada do que apregoam nos anúncios.»

«Depois mais parece um robot que um bebé verdadeiro. Sei que há alguns modelos de topo de gama que até têm um botão para desligar o sistema de vez em quando.»

«É um abuso horroroso. Um interruptor!»

/6/

«Ora vamos cá ver uma coisa», interveio o Criativo elevando o olhar ao tecto, «Se estes bebés enlatados são biológicos, os compradores vão querer saber de onde vem o ADN, não é?»

«Quanto a isso não há segredos», acorreu o director geral, «a matéria de base foi produzida de acordo com o genoma patenteado pela Celera Genomics, que é a empresa mais experiente do sector.»

«Esses gajos são uns bandidos!», protestou o Filósofo, para espanto dos outros, com veemência excessiva.

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«Ò Xenofonte, o que é que isso interessa agora?», censurou o director geral.

«Só pergunto isto: o genoma é propriedade de quem? Heim?»

«Já todos conhecemos essa cantilena. Não voltemos e esses exercícios sofistas inúteis», respondeu o Criativo com impaciência.

«Não te impressiona que uma empresa explore comercial­mente, e com benefício próprio, aquilo que é de todos, o património genético da humanidade? Ó pá, isto faz­me muita confusão!»

O director geral elevou a voz como um mestre­escola,«Parem com isso!», e de seguida recompôs a dignidade do

bigode com auxílio do lenço.O Moderador, que se mantivera muito calado, resolveu

comentar,«Será que alguém quer realmente bebés biológicos?

A bio logia é uma chatice!»Era um argumento forte, muito em voga, que, aliás,

a campanha publicitária dos bebés biomecânicos electrónicos ajudara a fixar. O que obrigou os outros a reflectir,

«Deixa­me dizer­te que muitas pessoas, quando querem filhos, querem que o filho seja seu, que tenha o seu património genético e não uma base universal indiferenciada!», ponderou o Filósofo.

«Iludes­te. Já não é tanto assim. Os consumidores já não estão assim tão agarrados ao património individual, agora que sabem que há mais de comum que de individual em todos nós. Até em relação aos primatas, os primos mais chegados.»

«A propósito. Sabiam que uma minhoca tem mais genes do que um homem? Toda a gente é levada a supor que um ser complexo disporia de mais genes que um ser relativamente mais simples, mas não é bem assim.»

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«Então?»«Parece que a maneira como os genes funcionam, ou

seja, como gerem a informação é mais importante que a sua quantidade. Num ser complexo um gene comporta várias informações que se combinam com informações de vários outros genes, enquanto que num ser simples, cada gene domina somente uma unidade de informação e por isso são precisos muitos.»

/7/

Comodamente recostado na sua cadeira, o Engenheiro perguntou,

«Ali dentro está um bebé?», apontando para uma das latas.«Querias que estivesse o quê?», desdenhou o Buro­

crata.«Sim… mas a lata não vos parece pequena demais para

ter lá dentro um bebé? Um bebé normal não teria, ao nascer, um tamanho maior?»

«Tanto quanto sei», esclareceu o director geral, «a empresa fez um estudo de mercado e percebeu que se enlatassem bebés com cerca de 3 quilos, que é o peso comum num bebé saudável, a lata seria muito pesada e ninguém a levaria para casa. O peso ideal tinha que ser quilo e meio.»

«Mas a criatura está completamente formada, ou não?», insistiu o Engenheiro.

«Confesso que não sei, Nestaláquio», concedeu o director geral com cara de preocupado, «Ainda não tive tempo de ler o dossier todo.»

O Criativo, a quem o mau arranque deixara mal disposto, exaltou­se,

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«Então alguém que leia as instruções – murro na mesa – não deve ser difícil.»

«Onde estão?», engonhou o Engenheiro surpreendido com a explosão do outro.

O Moderador rodava as latas procurando rótulos com instruções, mas cada lata apresentava apenas o logótipo da empresa combinado com o logótipo específico do produto, e, desistindo de procurar, disse com uma voz apagada,

«Tenha lá calma, Sonso!»«Na verdade não há instruções em suportes menores»,

disse o director geral depois de contemporizar de sobrolho carregado o Criativo, «cada lata vem equipada com uma pequena unidade de memória que contém toda a informação necessária. O comprador acciona esse botão lateral e ouve a informação ou, se preferir, transfere a informação para o seu PDA.»

O director geral pressionou no referido botão e ouviu­se uma melodiosa voz feminina,

«Processo de abertura: introdução. A abertura passa por duas etapas distintas. Primeiro desenrosque a tampa no topo da lata que protege as cavilhas de abertura. A primeira cavilha, ou cavilha externa, quando solta expande a lata para terminar a imediata formação do bebé. Ao retirar a primeira cavilha fica exposta a segunda cavilha mas não a poderá usar de imediato. A segunda cavilha estará liberta do seu sistema de segurança logo que o processo estiver terminado, o que demora no mínimo 30 minutos. Accionando a segunda cavilha abre­se definitivamente a lata e o bebé salta cá para fora. Tenha em atenção os seguintes procedimentos para a abertura da cavilha exterior.»

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As qualidades tonais da voz feminina valeram comentários acalorados de alguns elementos da equipa e o director geral teve que intervir para evitar a dispersão do raciocínio,

«Bem, mas voltando ao nosso assunto, creio que ainda há muitas pessoas com esse preconceito: o querer reproduzir um património singular.»

Serenou o grupo retomando o conhecido gesto de revirar inutilmente o bigode curto com o auxílio do lenço de seda.

«Para estes», continuou, «está pensada esta abertura.»E indicou no topo da lata,«Aqui!»Quando se desenroscava a tampa que cobria o topo da

lata via­se a cavilha externa e um minúsculo orifício entre dois botões coloridos. O director geral apontou para o orifício,

«É só juntar saliva, sangue ou um pedaço de cabelo e esperar. Assim, na fase de maturação subsequente, o bebé já reproduz as características do progenitor.»

«Não era melhor usar sémen?»«Não, não dá. Porque as células que o compõem só têm

metade dos cromossomas necessários. Têm que ser células somáticas.»

«E esses dois botões coloridos?»O director geral sorriu. Sabia que aqueles dois botões

junto da cavilha externa eram uma das grandes vantagens do produto,

«É para escolher o sexo: no botão M sai menino; se carre­gar no F sai menina.»

«Bem pensado!»«Muito interessante. O produto é versátil. Apesar de ser

um produto biológico, tem a vantagem de permitir escolher o sexo!»

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«Mas é preciso ter cuidado com a decisão», frisou o director geral, «pois é irreversível. Uma vez seleccionado um, não se pode recorrer ao outro. Tem que ser feito antes de arran car a cavilha externa.»

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Houve uma pausa para oxigenar a reflexão, porque depois de tanto paleio ainda ninguém tivera uma intuição realmente fantástica, o que era preocupante, especialmente para o direc­tor geral. Todos haviam rabiscado abundantemente as telas dos seus portáteis mas sem descobrir uma associação de ideias realmente vibrante.

«Bem», disse o Burocrata a pensar alto, «Não há dúvida que é grande a diferença entre estes dois produtos.»

«É essa diferença que eu quero ver explorada!», exortou o director geral, «precisamos de ser mais concretos. Vamos lá, mexam essas cabeças!»

Buscando redenção, o Criativo deu uma ideia, «Eu acho que a diferença entre os dois pode ser sublinha­

da se destacarmos os opostos. Vejam: quem compra um bebé biomecânico acredita na electrónica, no progresso tecnológico, ao passo que quem comprar os bebés enlatados está a dizer que acredita na biologia. Certo?»

«É uma ideia forte», concordou o director geral e tirou os apontamentos na tela do computador.

O Filósofo deu um pulo no seu lugar e exclamou,«Já sei! Ouçam esta: A electrónica não é tudo; a biologia também

conta!»O Criativo lançou­lhe um olhar fulminante. Sem conse­

quências.

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«Confesso que lhe reconheço algum potencial», apreciou o director geral. E tirou apontamentos.

«Mas assim até pode parecer que se está a lançar um produto contra outro e não me parece que seja essa a intenção do nosso cliente», criticou o Crítico.

«Afinal quem é o cliente?», perguntou o Moderador.«A empresa que criou este novo produto é a Norman &

Price», informou o senhor director.«Aquela das comidas?»«Sim. Com este produto pretendem criar um novo sector

de negócio, segundo uma estratégia de diversificação de produtos.»

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O Engenheiro não desistia de tentar comandar a análise do produto,

«Podemos afirmar que a lata tem um sistema de abertura eficaz, não concordam?»

«Eu creio que sim», concordou o Crítico, «eu diria que é simultaneamente simples e seguro. Ora vê.»

O Crítico levantou uma lata com ambas as mãos, abanou­a, perscrutou odores, e concluiu,

«Qualquer um poderia abri­la. Depois de remover o selo que isola a cavilha, puxa­se e já está.»

E exemplificou com cuidado,«É como uma lata de Coca­Cola.»Subitamente ouviu­se um clique inesperado, seguido de

um som parecido com um sopro de gás.«Ah!», o Crítico cobriu­se de palidez.«Abriste­a!?», acusou o Filósofo.«Mas eu não queria abri­la!»

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E ante a surpresa de todos a lata começou a expandir­se, passando para o dobro do volume em poucos segundos.

«E agora?», perguntou o Criativo.«Eu não fui», declarou o Moderador com ar indiferente.Fez­se silêncio sepulcral na sala. O director geral sentou­se

pela primeira vez, sentindo­se completamente desorientado.«A culpa é tua, Nestaláquio!», defendeu­se o Crítico.«Minha?»«Ó Mestamónides! Que foste fazer?», murmurava o

director geral.«E agora?», repetia o Criativo.

/11/

Todos olharam fixamente a lata expandida, como se uma criatura perigosa pudesse pular de lá a qualquer momento. O ambiente criativo arrefeceu repentinamente.

«Ò Mestamónides, você vai ter que ficar com a criança!», disse o Moderador.

«Era o que mais faltava!», levantou­se indignado e vermelho de fúria.

«Mas a culpa é sua!», insistia o Engenheiro.«Eu só estou a desempenhar as minhas funções. É um

mero acidente de trabalho.»«Ó homem, você agora é pai!»«O tanas!», e saiu porta fora com cara de apoplexia.«Espero que o seguro cubra estas situações», suspirava o

director geral, olhando vagamente a sala.«Eu compreendo as reticências do Mestamónides», disse

o Burocrata, «este produto oferece uma ambiguidade perigosa quanto à definição da paternidade, senão vejamos: o pai é

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aquele que remove a cavilha externa ou aquele que remove a interna?»

A sala encheu­se de uma curta pausa que serviu para destilar pensamento.

«Eu acho que ao arrancar a primeira cavilha já se está a assumir responsabilidades que é impossível escamotear», declarou o Filósofo.

«Pois eu acho que só quando bebé salta cá para fora temos pai ou mãe», contestou o Engenheiro.

Afigurava­se uma contenda sem consenso possível.«O que vamos fazer com este bebé enlatado semi­

­aberto?», perguntou o Criativo olhando o director geral de um modo que parecia dizer que queria ir­se embora. E depois, hesitando, acrescentou,

«Não se pode abortar o processo de abertura da lata?»

/12/

«Acho que estamos todos muito tensos», reconheceu o director geral, «é melhor suspendermos esta sessão de brainstorming e retomá­la mais tarde».

«Ò chefe, estou com a cabeça a andar à roda», confessava o Criativo.

Estavam todos de pé e ninguém sabia o que fazer. Era como se o espaço estivesse armadilhado.

«Alguém se recorda qual o sexo seleccionado?»«Eu acho que não chegou a ser seleccionado o sexo.»«Ups! E agora? Será que sai um bebé desprovido de sexo?»«Deve haver, seguramente, um processo de selecção

aleatória. Não se preocupe. O bebé sairá perfeitamente bem de saúde.»

«Mas sem pai…», sublinhou sarcástico o Moderador.

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«Não se apoquente, Ultramontes», devolveu o director geral, «Alguma coisa se há­de arranjar…»

«A propósito», interrompeu o Burocrata, «Não se regista o bebé enlatado?»

«Claro! Depois de abrir a lata e acondicionar o bebé, é só mandar o recibo pelo correio que a empresa trata de tudo», declarou o director geral.

«Sem qualquer incomodo!»«É outra das grandes vantagens deste produto que deve­

ríamos fazer notar aos potenciais clientes.»

/13/

A equipa criativa dispersou como um derrame de smarties. O Filósofo, porém, tardou­se, hesitante, com um indeciso desejo de falar com o director geral que era sempre o último a abandonar a sala de reuniões.

Ao ver o Filósofo diante de si disse,«Diga lá Xenofonte.»«Que vai fazer a estas latas todas?»O director geral contemplou as latas como se as visse

pela primeira vez e não conseguiu ver onde o Filósofo queria chegar.

«Foram­nos cedidas para estudar a campanha. Mas imagi­no que no fim as devolvo.»

«Não precisamos de todas, pois não?»«Não. Em que está a pensar?»«Posso levar uma?»O director geral ficou um tanto surpreendido.«É que a minha mulher está zangada comigo, anda muito

triste por alguma daquelas misteriosas razões que só as mulhe­res… Queria fazer as pazes, está a perceber?»

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«Ela não sofrerá do Síndrome Mrs Dalloway?»«Não… Não sei. Acho que não…»«Porque não leva aquela que já está aberta?»«Agora já está muito pesada», queixou­se, «e, além disso,

não gosto de gente loura… Estúpidos, está a ver?»«Ande lá, leve a que quiser!»