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PERSPECTIVAS - JOURNAL OF POLITICAL SCIENCE, VOL. 23 9 A Caixa de Pandora: Discussão do processo eleitoral no primeiro liberalismo português Pandora’s box: Electoral debate in the first portuguese liberalism Hugo Fernandez, University of Évora, Portugal Resumo—A implantação do liberalismo em Portugal e a consagração do princípio da soberania nacional através dos mecanismos da representação política fizeram da questão eleitoral uma matéria de enorme relevo. Não admira, por isso, a extensão e o detalhe com que as questões ligadas ao processo eleitoral são debatidas no parlamento vintista aquando da elaboração da nossa primeira Constituição (1822). Num momento em que se comemora o bicentenário do nosso primeiro período liberal (1820-1823), a matéria eleitoral reflete não só as incidências de uma conjuntura histórica problemática, como a essência do sistema social e político que se queria estabelecer, nomeadamente na construção da relação complexa entre liberalismo e democracia. Palavras-Chave—Liberalismo, Soberania nacional, Cidadania, Eleições, Modalidades e tipos de escrutínio. Abstract—The implantation of liberalism in Portugal and the consecration of national sovereignty principle through the mechanisms of political representation have made of the electoral question a matter of huge relevance. No wonder the extension and detail in which the issues connected with the electoral process were debated in the vintista parliament when our first Constitution (1822) was being elaborated. In a time in which is celebrated the bicentennial anniversary of our first liberal period (1820-1823), electoral matter reflects not only the occurrences of a problematic history conjuncture, but the essence of the social and political system that where to be established, namely upon the complex relation between liberalism and democracy. Keywords—Liberalism, National sovereignty, Citizenship, Elections, Polling modalities and types. Submitted—25-05-2020. Accepted—22-11-2020. "Le grand mystère des sociétés modernes, cest le gouvernement des esprits." François Guizot Hugo Fernandez, researcher of the Research Center inPo- litical Science (CICP) at the University of Évora. E-mail: [email protected] DOI:http:// dx .doi .org/ 10 .21814/perspectivas.3115 "Em qualquer caso em que seja provável alguma tentativa para introduzir o governo representativo, os maiores obstáculos a tomar serão a indiferença para com ele e a incapacidade de lhe entenderem os processos e os requisitos, mais do que uma oposição real." John Stuart Mill

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PERSPECTIVAS - JOURNAL OF POLITICAL SCIENCE, VOL. 23 9

A Caixa de Pandora:Discussão do processo eleitoral no primeiro liberalismo

português

Pandora’s box:Electoral debate in the first portuguese liberalism

Hugo Fernandez,University of Évora, Portugal

Resumo—A implantação do liberalismo em Portugal e a consagração do princípio da soberania nacional através dosmecanismos da representação política fizeram da questão eleitoral uma matéria de enorme relevo. Não admira, por isso, aextensão e o detalhe com que as questões ligadas ao processo eleitoral são debatidas no parlamento vintista aquando daelaboração da nossa primeira Constituição (1822). Num momento em que se comemora o bicentenário do nosso primeiroperíodo liberal (1820-1823), a matéria eleitoral reflete não só as incidências de uma conjuntura histórica problemática,como a essência do sistema social e político que se queria estabelecer, nomeadamente na construção da relação complexaentre liberalismo e democracia.

Palavras-Chave—Liberalismo, Soberania nacional, Cidadania, Eleições, Modalidades e tipos de escrutínio.

Abstract—The implantation of liberalism in Portugal and the consecration of national sovereignty principle through themechanisms of political representation have made of the electoral question a matter of huge relevance. No wonder theextension and detail in which the issues connected with the electoral process were debated in the vintista parliament whenour first Constitution (1822) was being elaborated. In a time in which is celebrated the bicentennial anniversary of our firstliberal period (1820-1823), electoral matter reflects not only the occurrences of a problematic history conjuncture, butthe essence of the social and political system that where to be established, namely upon the complex relation betweenliberalism and democracy.

Keywords—Liberalism, National sovereignty, Citizenship, Elections, Polling modalities and types.

Submitted—25-05-2020. Accepted—22-11-2020.

"Le grand mystère des sociétés modernes, cest legouvernement des esprits."

François Guizot

• Hugo Fernandez, researcher of the Research Center inPo-litical Science (CICP) at the University of Évora.E-mail: [email protected]

DOI:http://dx.doi.org/10 .21814/perspectivas.3115

"Em qualquer caso em que seja provável alguma tentativapara introduzir o governo representativo, os maiores

obstáculos a tomar serão a indiferença para com ele e aincapacidade de lhe entenderem os processos e os

requisitos, mais do que uma oposição real."John Stuart Mill

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1 Introdução

Foi no contexto da efémera experiência vin-tista (1820-1823) que tiveram expressão pio-

neira muitas das perplexidades e aporias que pre-sidirão à construção da ordem liberal em Portugal.A consagração do paradigma igualitário, assenteno pressuposto da igual consideração dos cidadãosperante a lei, vai constituir o cerne da normativi-dade liberal e a matriz do nosso primeiro textoconstitucional. Esta nova condição cívica cedo im-plicará o princípio da soberania nacional enquantofundamento da legitimação do poder político. Seráno debate parlamentar preparatório da elaboraçãodo nossa primeira Constituição (1822), ocorridonas Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituin-tes da Nação Portuguesa de 26 de janeiro de 1821a 4 de novembro de 1822 verdadeira sede dopoder vigente e espaço privilegiado de elaboraçãodo estatuto da cidadania que surpreenderemosas principais posições ideológicas que conformarãotodo o pensamento político português da primeirametade do século XIX e constituirão o primeiropasso na construção da modernidade política nonosso país.A implantação do liberalismo e a consagraçãodo princípio da soberania nacional através dosmecanismos da representação política fizeram daquestão eleitoral uma matéria de enorme relevo.Não admira, por isso, a extensão e o detalhecom que as questões ligadas ao processo eleitoralsão então tratadas. Desde logo se percebeu queos projetos eleitorais apresentados eram de umenorme arrojo político, advogando o princípio dosufrágio universal pelo menos como era enten-dido na época1 - que ficou consagrado no artigo32◦ da Constituição. Tal postulado acabou porconstituir uma marca característica do primeiro

1. Para além da enorme exceção da população feminina ede certos grupos socialmente dependentes ou a quem não sereconhecia a idoneidade moral capaz do exercício da cidadania(condenados a prisão ou degredo, vadios, pessoal doméstico,filhos-família, clero regular) limitações definidas nos artigos33◦, 34◦ e 35◦ do texto constitucional (cf. Constituição 1999,16-18) e que foram objeto de amplo debate parlamentar apenasa maioridade de 25 anos (ou 20 para os casados emancipados,oficiais militares, bacharéis e os clérigos de ordens sacras) e aresidência no respetivo concelho constituíam critérios de capa-citação eleitoral. Os dois processos eleitorais levados a efeitonesta época respetivamente em dezembro de 1820 e agosto de1822 aproximaram-se, ainda que com evidentes limitações, doideal do sufrágio universal. Sobre a extensão do direito de votoneste contexto, cf. Fernandez, 2018.

texto constitucional português, indo bem maislonge do que acontecia em Inglaterra, Françaou mesmo em Espanha. Ao contrário do que sepassou nestes países e, de resto, na generalidadedos liberalismos europeus, o regime censitário ouapenas capacitário não foi em Portugal o primeiromodelo a ser considerado. Num momento em quese comemora o bicentenário do nosso primeiroperíodo liberal, a matéria eleitoral reflete não sóas incidências de uma conjuntura histórica par-ticularmente problemática, como a essência dosistema social e político que se queria implantarem Portugal, nomeadamente na relação complexaentre liberalismo e democracia.

2 A importância dos modelos elei-torais

Estabelecido o âmbito bastante alargado daseleições e sendo o sufrágio universal entendidocomo expressão da soberania nacional, símboloda inclusão cidadã e corolário da "sociedade deiguais" liberal, a questão eleitoral estava longe deestar concluída. As condições da realização dossufrágios constituíram tema de profunda discus-são entre os deputados constituintes, sendo objetode numerosa produção legislativa. Porque, comodisse Borges Carneiro, "o haver maus ou bonsDeputados no Congresso, depende do método daseleições: motivo este mui ponderoso para nãodever deixar-se tão grave matéria a um regula-mento particular e por assim dizer ao caprichodos legisladores, ou ao jogo das paixões: pelocontrário deve ser esta uma grande base da Cons-tituição.2"Havia a consciência de que a escolhada modalidade e tipo de eleições constituía umindicador claro do estatuto de cidadania que sepretendia instituir.

2. DCC 10/maio/22, VIII, 131 (para mais fácil localização,as citações relativas ao Diário das Cortes Gerais, Extraordi-nárias e Constituintes da Nação Portuguesa [doravante desig-nado Diário das Cortes Constituintes DCC] onde se contéma discussão do projeto constitucional e o debate parlamentarsobre a questão eleitoral, serão referenciadas com a data darespetiva sessão, o volume e a página a que dizem respeito).Pedro Tavares de Almeida não deixa, igualmente, de enfatizar "aimportância decisiva então atribuída aos dispositivos eleitorais,seja genericamente pelos seus potenciais efeitos estruturantesna dinâmica da vida pública, seja de modo mais pragmáticocomo eficazes instrumentos de engenharia política nas lutas pelopoder."(Almeida 1998, IX).

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Tratava-se, para além da capacidade de pro-duzir uma representação política adequada, deassegurar os equilíbrios de poder necessários àimplantação da ordem liberal, enfrentando simul-taneamente os princípios hierárquicos da domina-ção social e as aspirações democráticas de umapopulação doravante erigida em agente da sobe-rania. A questão que então se punha radicava nanecessidade de harmonizar o sufrágio universal e oconsequente alargamento da cidadania desideratoconsiderado indispensável à implantação do poderliberal com uma proclamada razão política quetranscendesse a simples soma aritmética dos vo-tos. No fundo, a recorrente oposição entre a majorpars e a sanior pars, a quantidade e a qualidade,"o número e a razão"3.

Os modelos eleitorais e as formas de escrutíniorevelaram-se de uma importância fundamental,ao pôr nos pratos da balança "a cidadania e asoberania" na feliz formulação de Pierre Rosan-vallon (2002, 227)4. Este difícil equilíbrio corpo-rizava o confronto entre os ditames de uma au-toproclamada racionalidade política e os impulsosdemocráticos do alargamento do corpo eleitoral.Para o historiador francês, a "questão do nú-mero"(na expressão que utiliza), que constituiuproblema central na discussão sobre o direito devoto na implantação do liberalismo em Françamas que podemos facilmente generalizar a situa-ções semelhantes noutros países estribava-se noseguinte dilema: "Comment faire intervenir desgrandes masses dans la politique et comment,en retour, conjurer la menace de leur possibledébordement?"5 O estabelecimento do princípiocensitário parecia resolver a questão. Através docenso procurava-se garantir a "qualidade" socialdo voto. Como ironizava Sousa Lobo na Câmara

3. Título original da obra de Patrice Gueniffey (2001) sobrea problemática eleitoral durante a Revolução Francesa. A estepropósito, é esclarecedora a posição de José Estevão em 1840quando, ao contestar a implementação do censo e defendero alargamento do sufrágio, proclama, "A soberanía popular énumérica!" (Mesquita 2006, 223).

4. E que foi preocupação manifesta de Condorcet ao publicar,logo em 1789, a brochura Sur la forme des élections no sentidoda limitação do que considerou serem "erros e paixões donúmero" (ibid.).

5. Rosanvallon 2002, 241. No contexto da Revolução Francesae, a bem dizer, de todos os processos revolucionários subse-quentes "Le nombre, cest aussi pour les constituants la foulemenaçante, incontrolable et imprévisible, puissance mystérieusesurgie du fond de la société" (Rosanvallon 2002, 242).

dos Deputados quando, em 1878, o direito devoto iria ser alargado aos "chefes de família"6 -"até dez tostões (curso legal) não há razão, nãohá inteligência, não há luz; de dez tostões paracima, há luz, há inteligência, há razão"(Diário daCâmara dos Senhores Deputados 1878, 709).

Os doutrinários liberais vão fazer da apologiada "soberania da razão" o conceito essencial da suafilosofia política e, consequentemente, atribuir aoimperativo capacitário e, por associação socioló-gica, censitário a competência social que decorriada aptidão de agir, em termos públicos, de formaracional. O objetivo foi claramente expresso porFrançois Guizot: "Le but de l’élection (...) estd’envoyer au centre de l’état les hommes les pluscapables et les plus accrédités du pays (2003, 122),postulando, na sua Histoire des origines du gou-vernement représentatif en Europe, de 1851, que"Le gouvernement représentatif (...) n’est donc pasle gouvernement de la majorité numérique pure etsimple, c’est le gouvernement de la majorité descapables"(Guizot 1851, 111). Para os doutrinários,as eleições eram sobretudo processos de seleçãoda elite governante. A problemática em torno dosufrágio universal centrava-se no que aparentavaser a contradição entre a igualdade política e aracionalidade cívica, invocando-se a distância quehavia entre o direito de participação e a capaci-dade de decisão política, aquilo que passa a serde todos e aquilo que, supostamente, pertenceapenas a alguns.

O que também se verificou, é que o alarga-mento do sufrágio não se traduziu automatica-mente num aumento do poder de controlo dosgovernados sobre os governantes, nem tornou osistema político mais permeável aos interesses damaioria da população, uma vez que o própriosistema engendrou mecanismos de cooptação e deconservação. Frequentemente, ainda que houvessepressões "de baixo" nesse sentido, foram as pró-prias forças conservadoras que promoveram o alar-

6. Requisito social que servia os interesses do governo re-generador de Fontes Pereira de Melo no intuito de obter oapoio das populações rurais a fim de compensar a crescenteinfluência republicana nos meios urbanos, da mesma forma quea sua limitação nas eleições de 1911, pela imposição do critériocapacitário da alfabetização dos eleitores, procurava limitaressa mesma influência, considerada arcaizante e pouco escla-recida. Ao princípio da participação, através do voto universal,contrapunha-se o princípio da competência, pelo voto restrito(capacitário ou censitário).

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gamento do sufrágio, cientes de que a sua enormeinfluência social lhes permitiria controlar, de for-mas mais ou menos legítimas e por meios maisou menos confessáveis7, a vontade dos eleitorescontra os elementos genuinamente democráticose, pelo efeito de integração social que induzia,prevenir quaisquer iniciativas de caráter revolu-cionário (cf. Almeida 1991, 20). Tal preceito foi,de resto, exemplarmente enunciado por GaetanoMosca, para quem "não são os eleitores que elegemo deputado, mas é geralmente o deputado quese faz eleger a si mesmo pelos eleitores"(Almeida1991, 21)8, denunciando a ratificação de escolhasprévias por via da função eleitoral na legitimaçãodo poder constituído. As eleições cumpriam as-sim um papel essencial na manutenção da ordemliberal e nos equilíbrios de poder entre as elitesgovernantes.

De facto, era praticamente impossível pensar-se em votar em alguém desconhecido ou que nãofosse um notável local, já que se votava nas pes-soas e não nas ideias. Votava-se, na obra feita, naretribuição dos pequenos favores, nas benfeitorias,segundo os liames do compadrio. O voto era en-tendido não só como um ato de reconhecimento,mas de agradecimento. As relações de dependên-cia eram o fator decisivo. A própria evolução dosignificado das eleições comprova o percurso per-corrido desde então. Inicialmente elegia-se quemtinha prestígio e riqueza. Era sobretudo a posiçãosocial que determinava a escolha. Só mais tarde,veremos as ideias e os interesses serem escrutina-dos. Doravante, escolhem-se intenções, projetos,maneiras de encarar a sociedade, não se sancio-nam estatutos sociais. Foi essa expressão políticaorganizada que os partidos acabaram por trazer àdemocracia. No período histórico a que nos referi-mos, esse horizonte ideológico estava longe de serrelevante. Vivíamos o tempo das notabilidades, emque a destrinça de posições políticas se fazia quaseexclusivamente pela adesão ou rejeição da ordemliberal.

7. Fazendo uso de expedientes de diversa natureza, desde osimples patrocinato à mais descarada "chapelada" (sobre o temacf. sobretudo Vidigal 1988; Almeida 1991, e Mónica 1996).

8. Ou, como se refere no jornal republicano O Século de 3 demaio de 1897, as eleições tinham "por fim sancionar constituci-onalmente a escolha dos deputados feita pelo governo ou pelosinfluentes locais" (Almeida 1991, 28).

A consagração legal do sufrágio quase univer-sal e do voto secreto e direto durante o primeiroperíodo liberal em Portugal, fez do nosso país umcaso pioneiro no contexto europeu. Da análise dodebate parlamentar que então ocorreu, foi pos-sível rastrear o conjunto das posições existentese constatar que muito do argumentário utilizadovisava, pela conveniente ponderação dos interessesem presença, controlar as disfuncionalidades quepodiam advir da sua aplicação precipitada e irre-fletida. Em todo o caso, o fenómeno eleitoral e oreconhecimento progressivo de um sufrágio cadavez mais alargado, criou indubitavelmente umanova realidade no contexto das sociedades oito-centistas. Como sublinha Alain Garrigou, "La con-corrance électorale n’abolissait pas les relations dedépendance, elle rompait leur continuité", expli-cando que, "Par cette suspension provisoire desrapports quotidiens, l’identité de l’individu deve-nait plus complexe, enrichie d’un nouveau rôle" Ohistoriador e politólogo francês conclui, por isso,que "La dépendance sociale même n’engageaitplus tout à fait l’ensemble de l’existance sociale"(Garrigou 2002, 244-245).

3 A modalidade das eleições

O debate sobre a modalidade das eleições dire-tas ou indiretas entroncava na questão primordialda definição do âmbito da soberania nacional9.Tendo as eleições indiretas sido as primeiras aser adotadas, no sufrágio inicial de dezembro de1820, depressa esta modalidade foi rejeitada emsede constitucional e substituída pelo princípiodas eleições diretas. Logo após o curto períodovintista, por intermédio da Carta Constitucionalde 1826, voltaram a ser indiretas. Com exceção doperíodo entre 1836 (e como tal inscrito na Consti-tuição de 1838) e 1842, assim se mantiveram até1852 quando, através do decreto promulgado a 30de setembro, na sequência do I Ato Adicional de

9. E por isso, como refere Pedro Tavares de Almeida, estaquestão constituiu "um dos principais pomos de discórdia emmatéria eleitoral, e porventura o mais persistente" (Almeida1998, X). Também o destacado político oitocentista português,Serpa Pimentel, enfatizava a importância dos mecanismos elei-torais: "Além da questão da extensão do voto, há no regimerepresentativo outras questões aparentemente de forma, isto é,do modo de eleição, que são na realidade questões de fundo oude essência" (Pimentel 1881, 220).

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5 de julho de 1852, passariam a ser diretas (aindaque censitárias, sendo o eleitor obrigado a possuircem mil reis de renda anual líquida).

O que dividia as opiniões sobre estas modali-dades tinha a ver, por um lado, com a salvaguardada expressão direta e genuína da vontade doscidadãos no exercício dos seus direitos políticos,defendida pelas correntes mais democráticas e,por outro, a posição mais moderada dos que,temendo a falta de preparação ou interesse cívicodos eleitores, propunham um sistema indireto quepermitisse filtrar, através de um corpo eleitoralrestrito, o sentido da votação. Por essa razão, aeleição indireta em duas fases assembleia eleitoralde âmbito local ou concelhio e colégio eleitoral deâmbito provincial era entendida como uma formade um grupo selecionado e limitado de cidadãos,controlar e direcionar a vontade expressa nas ur-nas, assumindo-se como mandatários da escolhaeleitoral, numa espécie de missão regularizadorada soberania nacional e da legitimação política10.Legitimação e garantia do acerto na eleição deliberais convictos que pudessem contribuir paraa consolidação da ordem política nascente.

O deputado Manuel Gonçalves de Mirandarevelou bem as dificuldades que as leis eleitoraislevantavam, ao referir que "A Comissão de Cons-tituição teve sem dúvida grande trabalho paraorganizar este plano de eleições, porque o sistemadas eleições diretas é um sistema novo que aindanão apareceu em nação nenhuma, tal qual nós oadotamos; era preciso pois muito trabalho paracombinar a facilidade das eleições com a igualdadedos cidadãos"(DCC 8/maio/22, VIII, 102). A so-berania nacional, como condição da legitimidadedo poder liberal, cruzava-se assim com o para-digma igualitário, única forma de assegurar umaampla base social de apoio ao novo regime11.

10. Aquilo que, em França, Thiers definia em 1850, como a"hierarquia das inteligências"(Rosanvallon 2002, 400).

11. Como diz Ribeiro de Andrada, "É verdade que a base daseleições é que todos os cidadãos, que a lei não inibe, escolham osrepresentantes nacionais; e que possam ser eleitos todos os quenão são inabilitados pela mesma lei. Isto dimana da igualdade dedireitos e interesses que se consideram na massa nacional."(DCC10/maio/22, VIII, 129). E José Peixoto Sarmento de Queiróschama a atenção para o facto de se tratar "de uma eleição direta,a mais popular, que já mais se tem adotado; de uma eleição emque o voto do homem mais sábio, e mais graduado é igual aodo jornaleiro."(DCC 10/maio/22, VIII, 132). A igualdade dosdireitos de cidadania é claramente assumida.

A discussão decorreu, na sua maior parte, nassessões de 27 e 29 de agosto de 1821. As opi-niões dividiram-se. Morais Sarmento era favorávelà "delegação única e imediata", ou seja, eleiçãodireta. Os partidários desta posição alertavam acâmara para o facto de só esta modalidade desufrágio garantir rigor e credibilidade na expres-são da vontade popular. A eleição por colégioseleitorais, para além de sobrepor à escolha doscidadãos um conjunto mais ou menos alargadode delegações sucessivas, tirando fiabilidade à op-ção inicial, estaria mais sujeita às perversões dacorrupção e ao jogo das influências, por ser feitaem grupos mais restritos. José Peixoto Sarmentode Queirós chegou a afirmar que o desinteressemanifestado pelo povo nas últimas eleições quetinham constituído a deputação encarregada deelaborar o texto constitucional se ficou preci-samente a dever à circunstância de terem sidoindiretas e à generalidade da população caber tãosó a escolha de compromissários para a eleição doseleitores. Emanando os representantes políticos davontade direta dos representados, conseguir-se-iamais empenho e participação eleitoral (cf. DCC27/agosto/21, IV, 2035).12

Para outros, as eleições indiretas eram enten-didas como uma espécie de compensação para oalargamento do corpo eleitoral, ao introduzir ummecanismo de equilíbrio e racionalização na esco-lha efetuada13. Nesse sentido, os seus defensoresalertavam sobretudo para os perigos de tumultosque uma grande concentração popular poderiaocasionar. O exemplo das violências cometidasem Inglaterra nas eleições é constantemente in-

12. João Rodrigues de Brito defenderá energicamente esta po-sição: "Eu não admito que os Portugueses não tenham ilustraçãobastante para saber nomear Deputados de Cortes diretamente:uma Nação igual às outras mais civilizadas da Europa, umaNação que em matérias de revoluções soube exceder todas asoutras, não saberá fazer a sua eleição? Pois esta Nação que podedar lições de regenerar a todo o Mundo, não há de saber no-mear bem os seus Deputados?"(DCC 27/agosto/21, IV, 2037).Estranha, aliás, que sejam atribuídas aos cidadãos capacidadespara escolher eleitores e não para eleger diretamente os seusdeputados. Também Manuel Fernandes Tomás se manifestaráa favor das eleições diretas (DCC 29/agosto/21, IV, 2076).Reconhece, porém, que ambos os sistemas têm inconvenientes.

13. Ou, como diz Patrice Gueniffey, "una depuración de lademocracia"(Gueniffey 2001, 61), ainda que racionalidade nãosignifique necessariamente razoabilidade.

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vocado14. Também se alega, como já referimos,que só as eleições indiretas permitiriam um votoesclarecido. A falta de informação da esmagadoramaioria dos portugueses seria compensada pelodiscernimento dos eleitos pelos vários colégioseleitorais. Fala-se até que o sistema indireto es-taria mais conforme com a tradição nacional, lem-brando os colégios eletivos do passado. Obstava-se, em todo o caso, à generalizada ignorânciada população, em especial da população rural15.Daí a centralidade da educação cívica reclamada,décadas mais tarde, pelos republicanos16. Sobrea alegada falta de informação dos eleitores sea eleição fosse direta, Morais Sarmento invocao sistema de caucus americano como exemplodo que se pode determinar para o seu esclareci-mento, fazendo a apologia do que hoje entende-mos por "campanha eleitoral". É curioso observarque, apesar da habitual hostilidade dos primeirosliberais pelos partidos políticos e por aquilo queeles designavam "espírito de fação", Sarmento temuma afirmação surpreendentemente precursora, jáque considera que os "partidos são inseparáveisdas ideias de liberdade" (DCC 27/agosto/21, IV,2031.).

No fundo, toda esta questão da extensão e

14. O deputado Morais Sarmento não deixará, porém, derecordar, "É verdade que na Inglaterra há tumultos, mas nãoé só lá que se quebram vidraças, e se dão assobios, e com tudoé certo que os Ingleses julgam que estes tumultos são o meiomais solene da nação declarar a sua vontade; eles eram tãoagradáveis à imaginação de J. J. Rousseau, que ele dizia ser estaa ocasião única em que o povo inglês era livre e soberano."(DCC27/agosto/21, IV, 2031).

15. José Joaquim Ferreira de Moura interroga-se "Quem nãovê que o povo para sempre na superfície das coisas, que seengana não só no conhecimento das virtudes particulares, masmuito mais no dos talentos e qualidades intelectuais. [...] Opovo para na superfície das coisas; não são assim os homensilustrados."(DCC 29/agosto/21, IV, 2075). Recorde-se que, se-gundo José Manuel Tengarrinha, dados minimamente fiáveis(que apenas podem pecar por defeito) relativos ao analfabe-tismo em Portugal indicam-nos, em 1864, a existência de 88,3%de analfabetos (cf. Tengarrinha 1983, 123-124).

16. Como dizia Gambetta em 1871, "Il faut se retourner versles ignorants et les déshérités, et faire du suffrage universel,qu’est la force par le nombre, le pouvoir éclairé par la raison.Il faut achever la Révolution."(Rosanvallon 2002, 470). Nomesmo sentido se pronunciou o pedagogo republicano e grandedinamizador de sociedades de instrução popular, Jean Macé, em1890, "L’ignorance du peuple est maintenant un danger public.Auparavant, c’était seulement une honte"(Rosanvallon 2002,477). Instrução pública e sufrágio universal aparecem assim, naética republicana, como as duas condições essenciais da plenaassunção da cidadania.

modalidade das eleições tocava no ponto maissensível do poder vintista. A sobrevivência doregime estava aqui em jogo. As dúvidas que ha-via sobre o método a seguir tinham sobretudoa ver com a possibilidade da influência nefastade elementos contrarrevolucionários e restauraci-onistas na votação. Receava-se que o clero e anobreza pudessem exercer todo o seu prestígio eascendência sociais no momento da realização dosufrágio e, dessa maneira, fizessem perigar o libe-ralismo recém-implantado. Não admira, pois, quedeputados habitualmente radicais como BorgesCarneiro ou Ferreira Borges, tenham tido nestamatéria posições que, aos olhos de hoje, parecemtão conservadoras17.

Com efeito, a defesa das eleições indiretaspodia significar a garantia de algum controleda vontade popular por parte dos liberais. Estamesma preocupação é manifestada por FerreiraMoura, quando questiona "Por ventura do povopode esperar-se que prefira um homem que tem avida obscura e uma educação particular, ao ricoe ao nobre que excede ainda no espírito populara influencia de preocupações nacionais?" (DCC29/agosto/21, IV, 2075). Apesar de admitir quemuitos destes homens pudessem ser liberais, receiaa influência da maioria de entre eles, "aferrados aodespotismo". O deputado António Ferreira Girãofará, pelo contrário, o seguinte raciocínio político:"Numa palavra, as eleições diretas podem trazerao Congresso alguns indignos Deputados; mas asindiretas podem fazer aparecer uma maioria deRealistas, como em França, e causar a destruiçãode tudo quanto temos feito; por conseguinte votopelas eleições diretas" (DCC 29/agosto/21, IV,2070). Em votação final nominal na sessão de 29de agosto de 1821, as eleições diretas acabarampor ser aprovadas por 66 votos contra 29.

Ultrapassada a experiência vintista, depressase impôs o sufrágio indireto. A ordem liberal-burguesa rejeitou o privilégio herdado (nasci-mento), mas não o privilégio adquirido capacitá-

17. Anos mais tarde, em missiva datada de 1 de junho de 1826,Ferreira Borges alertará para o que pode advir de "Um Povoque tem por Oráculo o Pároco, o Capitão-mor por soberanoe um Fidalgo por omnipotente" (Mesquita 2006, 228). Comojustamente alegava Antoine Barnave no contexto da RevoluçãoFrancesa, "La extrema pobreza estará en el cuerpo electoral, ysituará a la opulencia en el cuerpo legislativo" (Gueniffey 2001,68).

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rio ou censitário que esta modalidade de eleiçõespermitia sancionar. A apologia da livre iniciativaindividual, criadora das condições necessárias àexistência de uma sociedade que respondesse aosinteresses de todos postulado fundamental doliberalismo justificava a crença, exemplarmenteexpressa por François Boissy d’Anglas, segundoa qual "Un país gobernado por los proprietárioscae en el orden social; aquel en que gobiernan losno proprietários cae en el orden de la naturaleza",para concluir, "Debemos ser governados por losmejores; los mejores son los más instruídos ylos más interessados en el mantenimiento de lasleyes." (Jardin 1989, 160). O ilustre advogado epolítico revolucionário francês invocava aquelesque, pela sua condição proprietária, estão na-turalmente vinculados às leis que a protegem eque regem o país e, por outro lado, ao desa-fogo económico que a posse de uma propriedadeproporciona e que habilita os seus detentores àformação intelectual necessária ao trato dos as-suntos públicos18. Acresce que é a propriedade quepaga os impostos19. Para muitos, o princípio dosufrágio universal apelidado por vezes de "forçacega" tinha que ser condicionado pela modalidadeindireta das eleições ou por outros expedientes quecontrolassem a expressão da vontade popular. Eé por isso, como alega Maria Filomena Mónicapara o caso português, que "As eleições, diretas apartir de 1852, continuaram na prática a funcionar

18. Posição semelhante manifesta o doutrinário francêsRoyer-Collard, para quem a supremacia eleitoral da classemédia representava a verdadeira democracia: "La riqueza hatraído el ocio; el ocio nos ha dado las luces; la independenciaha dado origen al patriotismo"(Jardin 1989, 283). A mesmapreocupação que tinham tido os founding fathers americanos nadefesa do regime republicano por contraposição à democraciaentendida enquanto democracia direta (como a da antiguidadegrega), como é o caso de James Madison ao afirmar que agrande vantagem daquele regime consiste em "refine and enlargethe public views, by passing them through the medium of achosen body of citizens, whose wisdom may best discern thetrue interest of their country, and whose patriotism and loveof justice, will be least likely to sacrífice it to temporary orpartial considerations."(Hamilton, Madison e Jay 2006, 56). Ou,na curiosa formulação de Silvestre Pinheiro Ferreira na sua obraManual do cidadão em um governo representativo, publicada emParis em 1834, para quem a eleição é "o voto universal de todosos que podem emitir uma opinião com conhecimento de causa"(Ferreira 1834, 113).

19. Lembrando-nos a conhecida afirmação do Abade Sieyésa propósito da distinção entre "cidadãos ativos" e "cidadãospassivos", segundo a qual a cidadania pertence aos "acionistasda grande empresa social", isto é, aos cidadãos contribuintes.

como se fossem indiretas. O candidato a deputadoconquistava o favor do ’influente’ e este convenciaos dependentes a votarem nele. Num país católico,onde o ’padrinho’ era uma instituição, isto era, eparecia, natural" (Mónica 1996, 1071).

4 O tipo de escrutínioOutra das preocupações que o ideal do sufrágiouniversal levantava tinha a ver com o tipo se-creto ou público do escrutínio. Foi consagrado oescrutínio secreto o que constituía uma novi-dade na Europa da época e o princípio de "umhomem, um voto" (ao contrário do voto duploou plural em Inglaterra e Bélgica)20. Originari-amente reivindicado pelos movimentos políticosmais radicais, como os cartistas ingleses, e apenasintroduzido neste país em 1872, o voto secreto vaisendo progressivamente aceite, embora só se tenhageneralizado no último terço do século XIX. EmPortugal, esta foi, desde logo, a forma adotada,tanto durante o constitucionalismo monárquicocomo no período republicano.

Muito do que se passou na experiência fran-cesa radica no mesmo tipo de hesitações e in-certezas que foram levantados no primeiro par-lamento português. Em França, apesar do votosecreto ter sido instituído logo em 1789, o votopúblico foi o adotado no período entre 1792 e 1794como instrumento de propaganda e apologia darevolução, bem como mecanismo de denuncia doselementos contrarrevolucionários. O voto público,que sempre foi considerado um meio eficaz para os"notáveis"exercerem a sua influência era, de início,considerado um recurso essencial de condiciona-mento político por parte dos revolucionários. Eradesta forma que o peso numérico dos eleitores sepodia sobrepor aos condicionamentos comunitá-rios e aos constrangimentos sociais que tornavamos indivíduos em "criaturas del señor y del cura",na eloquente expressão de Patrice Gueniffey decujo mandamento assim se podiam subtrair (Gue-niffey 2001, 309)21. Considerava-se, então, que a

20. Confirmando assim a asserção do autor oitocentista Char-les Benoist, para quem os eleitores são átomos de soberania(Garrigou 2002, 19).

21. O historiador francês refere, a este propósito, "Para que elvoto pareciera inseparable de la idea de ciudadania, se necesitóel retorno al voto en voz alta en 1792 y el desliz, en 1793, haciaformas aún más eficaces para reprimir toda oposición, como elvoto por aclamación" (ibid.).

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publicidade das eleições era a condição sine quanon da consciência cívica. Como explica Guenif-fey, "El voto en voz alta, apoyo de los débiles yterror de los inimigos del pueblo, al exponer a cadaciudadano a la censura de sus pares, obstaculizoa las mayorías negativas a quienes favorecia elvoto secreto al permitir a los ’intrigantes’ assediara cada uno de los electores antes del voto paraseducirlos, engañarlos o amenazarlos com tantomás eficacia porque los votantes están más aisla-dos."(Gueniffey 2001, 334).

Ao invés, entendido enquanto expressão aca-bada da cidadania, o voto secreto implicava a ca-pacitação prévia do eleitor no que diz respeito aoseu esclarecimento, de forma a que a sua escolhapudesse ser considerada um ato de consciência eexpressão genuína da vontade individual. O votosecreto permitia a materialização da condição doindivíduo-eleitor22. Os entraves iniciais à sua in-trodução prendiam-se com os receios das classesdominantes quanto à falta de controlo sobre adecisão dos seus concidadãos e das consequênciasimprevisíveis que daí poderiam advir. Mas se oanonimato pode significar um princípio de inde-pendência política face às pressões das elites, temtambém o efeito de isolar o votante relativamenteaos constrangimentos grupais e solidariedades declasse, viabilizando novas dimensões de domina-ção. Devidamente enquadrado, o voto secreto dei-xou de ser entendido como uma ameaça, mesmoperante os crescentes fenómenos de urbanização eindustrialização23. Como refere Reinhard Bendix,o voto secreto "isola o trabalhador dependente nãoapenas do seu superior mas também dos seus pa-res. (...) O segredo ajuda a reduzir a possibilidadede polarização da vida política com base nas clas-

22. Como explica Gueniffey, "el voto secreto se restableciócomo contrapartida necessaria del acceso democrático al su-fragio, como medio único, pero indispensable, para garantizarla libertad de cada votante en el ejercicio de su voluntad alsustraerlo de la influencia, no sólo de aquellos de quienes podíadepender social o económicamente, sino asimismo de los demásvotantes en general, ya fueran sus iguales o que no tuvieranada que temer de ellos" (Gueniffey 2001, 310-311). O escrutíniosecreto acabaria por ficar consagrado em artigo constitucionalno período termidoriano.

23. A abstratização social induzida pelos preceitos eleitorais ea consequente diluição da condição existencial dos indivíduos-eleitores também não agradava aos movimentos operários queemergiram na segunda metade do século XIX, que faziam dasolidariedade de classe a sua principal força (cf. Rosanvallon2002a, 95-96; Almeida 1991, 67-68).

ses sociais. (...) coloca o indivíduo perante umaescolha pessoal e torna-o, pelo menos temporaria-mente, independente do ambiente que o rodeia",para concluir, "na assembleia de voto ele podeser um cidadão nacional" (Almeida 1991, 67). Sefosse secreto, o perigo das influências diretas eradiminuto24. Se fosse público, era enorme.

Tal questão dividiu, desde logo, o parlamentoportuguês. As vantagens e inconvenientes de cadaum destes regimes foram examinados com rigorpelos deputados. A defesa do voto secreto radicavana liberdade do eleitor, que assim se esquivavaaos laços de dependência social e aos efeitos depressões externas decorrentes de práticas de com-padrio e corrupção25 - conducentes à instrumenta-lização do seu veredito. Para os defensores do votopúblico, tratava-se, pelo contrário, da salvaguardade um princípio elementar de cidadania a publici-dade dos atos públicos e de responsabilização decada um dos cidadãos pela opção a tomar peranteas várias influências em presença. Era, julgava-se,um ato de maturidade cívica. Na realidade, o ano-nimato acabava por ser escassamente garantido,sobretudo nos meios mais pequenos, desde logopela não estandardização dos boletins de voto,bem como pelas inúmeras pressões exercidas pelosnotáveis locais e seus agentes no momento da suadistribuição, por vezes à entrada das assembleiasde voto26.

Em defesa do sufrágio público, Morais Pes-sanha vai tolerar mesmo a existência de algumtumulto para prevenir males maiores, dados osbenefícios cívicos que poderiam advir deste tipode votação. Diz o deputado que "ao menos háa certeza de que não sairá eleito um Deputadoindigno; porque a opinião pública repelirá logo ovoto que primeiro recair em um cidadão indigno,de maneira que ninguém ousará emitir depois

24. Para Rosanvallon, "le secret étant la marque du droitirréductible à l’individualité" (Rosanvallon 2002, 250).

25. Ainda que uma persistente cultura clientelar mantivesseo fenómeno do caciquismo muito ativo, em especial nos meiosrurais e de fraca implantação populacional.

26. Atente-se que os boletins de voto apenas seriam uniformi-zados já na vigência da I República, ainda que antes tivessehavido esforços no sentido da manutenção do anonimato doescrutínio, como foi o caso do Decreto de 27 de julho de 1846,que foi o primeiro a proibir a utilização de "listas em papel decores, ou transparentes, ou que tenham qualquer sinal, marca,ou numeração externa", conforme consta no seu artigo 55◦

(Almeida 1998, 162).

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um voto semelhante; e é muito melhor que umeleitor que prostitui o seu voto seja lançado forada junta eleitoral às apupadas, do que ao De-putado indigno, que é muito possível sair eleitopelo escrutínio secreto, seja quebrada a cabeçaàs pedradas, ou o que é ainda pior que esseDeputado venha trair a Nação no santuário dasleis, ou envergonhá-la com o seu mau comporta-mento."(DCC 24/abril/22, VII, 942.). Confiandono esclarecimento e na força da opinião pública,rejeita a influência dos notáveis e propõe umatotal transparência do ato eleitoral.

Um dos principais argumentos avançados nadefesa do voto público em detrimento do votosecreto foi precisamente o do papel desempenhadopela opinião pública. Obstava-se, assim pensavamalguns deputados, à perversidade camuflada dosuborno e da ação das forças contrarrevolucio-nárias. Com efeito, esta influência coletiva eraconsiderada indispensável para a manutenção ereforço da ordem liberal. O saudável confrontopúblico das opiniões constituiria uma verdadeiraescola de cidadania, tornando mais informadas eesclarecidas as opções de cada um.27 Para FerreiraBorges, "Contra a eleição pública nada pode ha-ver, porque tem na publicidade a infalibilidade.",criticando perentoriamente a posição contrária:"É notável que alguém julga o segredo mais livrena votação do que a publicidade. Ele será maislivre para o que obra criminosamente. [...] Vo-tando em segredo ele pode ser instrumento doutro:votando em público é orgão de si mesmo."(DCC24/abril/22, VII, 945).

A expressão pública da vontade concorreriapara a responsabilização dos eleitores e para aexaltação das virtudes liberais, que assim ficavampatentes aos olhos de todos. Complementarmente,evitavam-se as incompatibilidades previstas na lei:

27. O deputado Francisco de Lemos Bettencourt, em defesado escrutínio público, compara esta situação ao que se passa nopróprio parlamento: "Porque razão hão de estar os Deputadosa falar, e votar em público, e todo o povo com direito de oscensurar, não só os que estão nas galerias, mas todos os que leemos Diários das Cortes; dizem uns, este Deputado votou assim,por interesse próprio, aquele por ignorância, este por paixão,aquele por teorias etc., etc.; e não há de haver igual direitopara uns cidadãos não dizerem a outros: vós votastes nestepor amizade, naquele por suborno, neste por fraco, naquele porsedução, e contemplação etc, etc" Daqui conclui "que o povocom esta amiga experiência, será mais sisudo, e moderado emjulgar as discussões, e votações dos futuros Deputados" (DCC26/abril/22, VII, 974).

votar no magistrado do seu distrito de jurisdição,o militar no seu coronel, o paroquiano no seupároco, etc. Pinto da França dirá também que "Asvotações públicas Srs. serão o meio de estabelecerentre nós a virtude: estas votações públicas farão anossa felicidade; qualquer cidadão se aproximaráao lugar de votar, e votará ousadamente, quandose achar escudado pela virtude conhecida, e nãotemerá ser atacado, quando tiver na opinião pú-blica toda a resistência contra os prepotentes. Portanto para sustentar a nossa Constituição, parasustentar a nossa liberdade, é que eu propugnoporque se faça tudo público, e que o crime sejapublicamente detestado"(DCC 24/abril/22, VII,942).

Alguns outros deputados defenderam igual-mente o escrutínio público, considerando, apesardos constrangimentos apontados, que era aqueleque garantia mais transparência e fiabilidade nasopções tomadas por cada cidadão. É precisamentecontra o segredo das eleições e pela publicidadedos votos que se pronunciou, por exemplo, odeputado Xavier Monteiro que, a este propósito,aduziu duas ordens de razões. Por um lado, "No-mear um representante da Nação, não é condenarum réu. (...) Os Ingleses praticam as eleições empúblico, e na presença dos elegendos, lançam-lheem rosto os defeitos, e nunca homem algum sesupôs vilipendiado por ser repudiado na eleição.",ao que acrescenta, "Pondera-se que há mais liber-dade no escrutínio secreto, mas os homens nemsempre quando obram com toda a liberdade sãomelhores; quando ordinariamente prevaricam, équando obram em segredo. (...) Há homens quetendo de votar em público não deixariam de votarno mais benemérito e virtuoso, e votando emparticular votariam de outra maneira."E conclui:"Os homens fazem por brio em público, atos queem particular nunca fariam" (DCC 24/abril/22,VII, 939).

No mesmo sentido, Barreto Feio afirma que"Em toda a parte do mundo foi sempre a táticados malvados esconderem-se dos olhos do público,para perpetrarem os seus crimes: o salteador pro-cura os despovoados para assaltar na escuridãoda noite o solitário passageiro" (DCC 24/abril/22,VII, 943). E Ferreira Girão sustentará que "Oscrimes perpetram-se durante a noite; as feras saemdurante as trevas dos seus covis, mas logo que vem

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a luz do dia desaparecem e fogem: por isso quandoas eleições forem feitas às claras, aparecerão oshomens honrados, os quais darão o seu voto commuito boa escolha, e então aparecerão tambémrepresentantes dignos de um povo livre, e heroico,como é o português" (DCC 26/abril/22, VII, 971).Acresce que, na opinião de Ferrão Mendonça, avotação pública é mais própria do sistema liberal:"De mais o sistema das eleições secretas está emcontradição com as ideias liberais. Nós queremoseducar a Nação; queremos que seja livre; e queem consequência tenha sentimentos nobres, expri-mindo com franqueza e lealdade os sentimentosdo seu coração: e ordenamos que vote traiçoeira-mente por escrutínio secreto!" (DCC 26/abril/22,VII, 976). O deputado vê nisto uma flagrantecontradição.

Para uns, o escrutínio secreto possibilitava "in-trigas e falsidades", desresponsabilizando o eleitore permitindo a eleição de pessoas desqualificadas.Mas para outros, como era o caso do deputadoJosé Joaquim Ferreira de Moura, era esta a formamais correta de proceder. Em nome da liberdadede voto, defendia que "Os votantes não têm li-berdade em votar, se algumas circunstâncias, sealgumas considerações podem influir na sua vo-tação, está transtornada a primeira lei das elei-ções, está transtornado o primeiro fundamento,em que elas se devem estribar", interrogando, parao efeito, a assembleia: "quando é que a liberdadede votar está mais à sua vontade, para seguiras instituições da consciência, quando vota empúblico, ou quando vota em particular? É quandovota em particular, porque então não há coisa quepossa influir, senão o próprio juízo de cada um, enão o dos outros. (...) Negar isto é desconhecero que todos os dias nos ensina a experiência".Conclui este raciocínio, chamando a atenção paraa extrema dependência em que as populações seencontram em relação a determinadas pessoas:"Às vezes um pároco num distrito, um letrado, umhomem rico pode influir na vontade de todos osseus moradores, porque cada um destes conheceráque se o pároco, ou o letrado for seu inimigo,podem mais hoje, mais amanhã vingar-se dele"(DCC 24/abril/22, VII, 940).

Para Ferreira de Moura, só o voto secretogarantirá a plena liberdade do eleitor. Diz o de-putado, "A primeira qualidade que deve ter todo

o eleitor é seguir os impulsos da sua consciência,o que não sucederá sendo as eleições públicas"(DCC 22/abril/22, VII, 910). Na sua opinião, adeclaração pública dos votos pelos eleitores exigeuma grande coerência e frontalidade, qualidadesque a maior parte dos homens não possui. Porisso, considera que "É preciso que a legislação su-ponha nos homens para quem legisla uma virtudee uma capacidade ordinárias, e não talentos, nemvirtudes heróicas" (DCC, 22/abril/22, VII, 910)28.Por seu lado, Rodrigues de Basto chama a atençãopara os tumultos e desordens que a votação pú-blica pode provocar, dando origem a todo o tipode ódios e vinganças (DCC 26/abril/22, VII, 965).

Borges Carneiro refere igualmente o grandedomínio e influência que têm sobre a populaçãoem especial nos pequenos meios da província fi-dalgos, advogados, médicos e ricos em geral. Comodiz o deputado, "só não depende quem não tempaixões" Alega ainda que é incompreensível quea votação para presidente e secretários do par-lamento seja feita por escrutínio secreto e queo mesmo não se passe em eleições gerais, muitomais importantes e decisivas para o país (DCC24/abril/22, VII, 944). Para Borges Carneiro, nãohavia dúvida nas virtudes do secretismo dos vo-tos: "porque toda a liberdade dos votos está nosegredo: sem ele tudo é dependência: quem não de-pende de outrem pela parte do dinheiro, dependepor amizade, por gratidão, por esperança, etc:senão depende para si, depende para seus filhos,irmãos etc, e esta dependência sendo as listaspúblicas, há de fazer com que os votantes votemmuitas vezes contra os seus desejos, e a sua cons-

28. Ou, como diz Ribeiro de Andrada, "As leis não são feitaspara homens ideais, mas para homens tais quais são, isto é,homens fracos, e defeituosos; o heroísmo é um bilhete, que nalotaria da vida cabe a bem poucos, e com que o legislador nãodeve contar" (DCC 29/abril/22, VII, 1008).

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ciência" (DCC 22/abril/22, VII, 909-10)29. Porisso, conclui que "nada pode dar a independêncianecessária ao eleitor senão o segredo; tudo o maissão histórias." (DCC 17/abril/22, VII, 841)30.

Era de esperar que em eleições públicas o su-borno fosse generalizado, porque facilmente con-trolado por quem subornava, ao passo que navotação secreta, ainda que pudesse haver tentativade suborno, o resultado deste podia ser iludido,pois não havia modo de aferir a sua real eficáciano momento da introdução do voto na urna. To-mando em consideração o que poderia representara influência negativa da opinião pública, Inácio daCosta Brandão, numa sugestiva sinopse, coloca aquestão nestes termos: "Adotámos a eleição diretapara preferirmos as vontades de todos à vontadede alguns; a opinião pública, à opinião de vã parci-alidade influente (...). Estabelecendo-se, porém, avotação pública, estabelecendo-se uma influênciaque dirige os cidadãos, e substitui a sua consci-ência; quer-se que a eleição seja o resultado nãoda vontade de todos, mas da vontade de alguns;que seja a expressão, não da opinião pública, masda opinião de um partido influente. Supõe-se queos eleitores a quem se confiou o direito de elegersão incapazes de eleger"(cf. DCC 26/abril/22, VII,

29. E, numa outra sessão, adverte para o facto dessa influên-cia se agravar com o método das eleições diretas, nas quais sãoadmitidos "artistas, jornaleiros, e outros muitos homens pobres,os quais pela mesma pobreza são necessariamente dependentesde outros; e por isso arrastados a votar nas pessoas de quemdependem, ou nas que por elas lhes forem indicadas" (DCC29/abril/22, VII, 1004). O deputado Castelo Branco expressaigualmente os receios do comportamento destes grupos sociaisdesfavorecidos, interrogando a assembleia: "Não vemos nós quea classe fraca, pobre, e desvalida, e entretanto a mais numerosada Nação, é fácil de iludir por falta de conhecimentos?"(DCC29/abril/22, VII, 1006). E, como acertadamente referiu Alexan-der Hamilton nos federalist papers que presidiram à fundaçãodos Estados Unidos da América, "In the general course of humannature, a power over a mans subsistance amounts to a powerover his will"(Hamilton, Madison e Jay 2006, 435).

30. Vaz Velho defende mesmo que, no momento da votação,"cada individuo fosse um autómato, que desse o seu voto e nadamais" (29/abril/22, VII, p. 1007).

973)31. Pretendia-se evitar o aliciamento e os tu-multos que a declaração pública dos votos podiamsuscitar, acreditando-se que a ordem liberal ficavaassim garantida.

Manuel Gonçalves de Miranda, reconhecendoas desvantagens que os dois sistemas de votaçãopodiam ter, propõe uma solução intermédia. Paraeste deputado, se nas grandes cidades as eleiçõespúblicas são desejáveis, nas pequenas povoaçõesda província haveria vantagem em serem secretas.A razão invocada é, precisamente, a da existênciaou não de uma opinião pública que pudesse obstaràs intimidações do compadrio. Nas palavras deMiranda, "Importa que as eleições sejam públi-cas na parte onde há opinião pública, nas cida-des populosas aonde há fermentação, nas cidadesaonde a influência do poder se torna nula; porémnas pequenas povoações onde se acham grandesdistâncias, onde aqui, e além se acha um homempoderoso, aqui não pode haver opinião pública deum modo tão enérgico, a fermentação é pequena,a influência do poder é então maior, e por tanto ospoderosos podem influir"(DCC 26/abril/22, VII,968-9). Esta proposta alternativa acabou por nãoter acolhimento.

De forma muito pragmática e com assinalávelsentido da realidade o deputado Castelo Brancovai estabelecer a diferença essencial entre as duasposições: eu vejo que há uma grande diferença,que é muito para notar-se, entre aqueles que setêm declarado pelas eleições públicas; e os queadotam o método das eleições secretas. Parece-me que os que querem as eleições públicas, nãopodem deixar de considerar o homem, tal, qualconvinha que ele fosse: pelo contrário os que se de-claram pela eleição secreta, consideram o homem

31. Também Soares de Azevedo vai lembrar o ocorrido nasprimeiras eleições no Porto para defender o voto secreto: "quan-tas vezes ouvirão em altas vozes: ou Lessa ou a morte! oufulano ou morrer! Digam senão virão anúncios e pasquins pe-las esquinas das ruas, fazendo as mesmas ameaças, e senãohouve alguns insultos feitos a alguns eleitores mesmo de caraa cara?", questionando, de seguida, "E é este o belo e ótimomodo de fazer as eleições? É este o melhor modo de se elegerpara Deputado quem o eleitor julga na sua consciência maisdigno? É esta a decantada liberdade que deve haver em um talato?"(DCC 26/abril/22, VII, 970). O carioca Francisco VilelaBarbosa já antevê, aterrorizado, "um magote de assalariadosgritar ao primeiro nome em que se votar, que não for dos da suaafeição, e procurar com insultos impor silêncio aos do mesmosentimento.", questionando, "E quem é que depois se atreverá arepetir o mesmo nome? Ninguém."(DCC 29/abril/22, VII, 996).

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tal, qual ele é constantemente na prática (DCC29/abril/22, VII, 1005).

Em votação final nominal, realizada na sessãode 29 de abril de 1822, as eleições por escrutíniosecreto obtiveram 84 votos contra 33. A adoção dosufrágio secreto não só impedia a verificação dosvotos, como, isolando o eleitor, atenuava quandonão eximia solidariedades e pressões grupais eidentificações voluntárias ou forçadas com mai-orias circunstanciais. Em todo o caso, e apesardo voto ser individual e secreto uma escolha deconsciência, portanto dificilmente se podia apagaro peso das relações sociais e das solidariedadestradicionais existentes.

5 Considerações finaisA ordem demoliberal pressupõe, antes como

agora, duas condições essenciais: uma conceçãoigualitária de cidadania com a consequente uni-versalidade dos direitos civis e políticos e a sobe-rania nacional concretizada em eleições. A princi-pal razão para a defesa da escolha dos governantespelos governados como fonte matricial da legiti-midade política era, pelo menos no liberalismoinicial, a limitação do princípio aristocrático ehereditário de poder. A instauração do liberalismoobrigou à consecução em grau, é certo, variável deum âmbito mais alargado de soberania. O desafiodemocrático foi desde logo encarado, com todasas suas potencialidades e dificuldades, como aconsequência da consideração igualitária dos cida-dãos. O sufrágio adquiriu, nestas circunstâncias,uma importância decisiva. O significado demo-crático do sistema político representativo entãoinstaurado foi uma questão que todas as socie-dades liberais enfrentaram e que introduziu umadiscrepância latente entre o que Pierre Rosanval-lon apelidou de "soberania-princípio" e "soberania-exercício"(Rosanvallon 2002, 20) ou, por outraspalavras, a distinção entre o que os juristas oi-tocentistas designavam por "soberania do povo" e"soberania da razão".

Tendo a modernidade política portuguesa àsemelhança de sociedades europeias congéneressido construída com base na legitimação do po-der por intermédio dos procedimentos eleitorais,convergiram neste processo três dimensões que

designaremos por habilitação, qualificação e con-formação, e que se revelaram, desde logo, con-flituantes. Por um lado, os parlamentares vintis-tas confrontaram-se com a necessidade de con-sagrar constitucionalmente os direitos políticosindispensáveis à garantia de um apoio alargadoà nova ordem liberal, procurando atenuar quera indiferença, quer a hostilidade induzida pelasforças absolutistas e restauracionistas, todaviamuito presentes na sociedade portuguesa, como arealidade histórica subsequente iria amplamentedemonstrar. Por outro, assegurar a prevalênciade grupos sociais qualificados que traduzissem noparlamento um comprometimento com uma visãoproprietarista do país, e assim salvaguardassem osinteresses e o domínio das camadas burguesas32.Por último, a necessidade da consolidação dos pro-cessos plebiscitários como expressão indispensávele primordial da participação e empenho cívico doscidadãos na vida política da comunidade, deside-rato que teve a sua expressão máxima pelo menosenquanto preceito normativo na conquista de umsufrágio tendencialmente universal e na conforma-ção generalizada aos desígnios da representaçãopolítico-parlamentar.

Toda a discussão em torno do processo eleito-ral, aquando da elaboração da Constituição portu-guesa de 1822, refletiu estas contradições e estabe-leceu as bases do pensamento político oitocentistae, afinal, tão contemporâneo , obrigando à reflexãoprofunda sobre o significado da democracia noseio das sociedades liberais e fazendo ressoar asinstantes interpelações de Giovanni Sartori: "laselecciones registran las decisiones de los votantes;pero, como se llega a esas decisiones? Las eleccio-nes computan opiniones; pero de donde procedeny cómo se forman? Cuál es el origen de la voluntady de la opinión que las elecciones se limitan a regis-trar?"(Sartori 1995, 116-117). Há duzentos anos,abriu-se no nosso país uma autêntica caixa dePandora que adveio da complexidade das questões

32. Nas conhecidas palavras de Fernando Piteira Santos aocitar o artigo sobre as eleições publicado no Diário do Governode 1 de dezembro de 1820, "ťNenhuma classe é excluída daseleições (à exceção dos regulares); portanto, o lavrador honrado,o homem que vive do seu tráfico lícito, o eclesiástico sem nota, oadvogado, o médico ou cirurgião hábil, o fabricante acreditado,o oficial mecânico estabelecido com boa fama, todos estes ho-mens’. Esta enumeração é significativa. Todos estes homens sãoa burguesia"(Santos 1975, 80).

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que o fenómeno eleitoral sempre suscitou e quepersiste em desafiar a nossa compreensão.

ReconhecimentoEste estudo foi elaborado no Centro de Investiga-ção em Ciência Política (UID/CPO/0758/2020),Universidade de Évora, com o apoio da Fundaçãopara a Ciência e Tecnologia (FCT) através defundos nacionais.

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Hugo Carvalho de Matos Fernandez has adegree in History from the Faculty of Lettersof the Classical University of Lisbon and aPh.D. in Sociology from University of Évora,with the thesis "Speeches of Power in theTransition of the Old Regime for Liberalism".He is an integrated researcher of the Rese-arch Center in Political Science (CICP) atthe University of Évora.