a busca pela nova chance
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Reportagem realizada pela estudante de Jornalismo Júlia Lewgoy, da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da PUCRS, para a disciplina de Projeto Experimental IV - Jornal Livre. Julho/2013.TRANSCRIPT
A busca pela nova chance
por Júlia Lewgoy
Ao voltar à vida, depois de dez anos na prisão, Edson Mariano dos
Passos conheceu o mundo novamente. O que para a população em geral era
óbvio, para ele era um reencontro, um conflito, uma batalha. Até mesmo subir
no ônibus havia mudado: entrava-se agora pela porta da frente, não mais pela
de trás. Mas nada disso era tão significativo como uma decisão: ele não
voltaria ao crime. Hoje, Mariano é empresário, pai de família, tem casa própria
e documento. O sorriso sincero não deixa esconder o orgulho que sente pela
dignidade conquistada.
Há três anos, Mariano é proprietário de uma microempresa de
construção civil no Bairro Restinga, zona sul de Porto Alegre. Ao mesmo tempo
em que é chefe de outras duas pessoas, ele põe a mão na massa e reconstrói
o amor-próprio. Experiência ele tem desde pequeno, quando ajudou a erguer
as casas da mãe e da vizinhança no Bairro Restinga. Dos R$ 2 mil que tira por
mês, ele se sustenta e ajuda a criar a filha Evellym, de três anos, que mora
com a mãe. "Quando eu digo para minha filha que o pai precisa ir embora
porque ele tem que trabalhar, ela diz 'boa noite, pai, bom descanso'. Eu sou o
orgulho dela", conta. A menina é a motivação que faltava para ele seguir firme,
sem voltar para o crime.
Mariano saiu da Penitenciária Estadual de Charqueadas, única cadeia
de segurança máxima no Rio Grande do Sul, depois de cumprir pena por
homicídio e tráfico de drogas. Na noite em que ganhou a liberdade, recebeu
uma autorização de passe livre no ônibus, assinada por um agente
penitenciário. E só. Não tinha emprego, dinheiro para comer, roupas, nem
sequer documentos. Mas tinha família com quem mantinha contato – avó, mãe
e namorada – e alguns poucos amigos, as únicas pessoas que olhavam para
ele como um ser humano, não como um criminoso.
Mariano apaixonou-se por uma moça, hoje ex-mulher, quando ouviu sua
voz no celular, de dentro da prisão. Foi então que começou a escrever cartas
com poesias de amor dedicadas à ela e enviá-las por meio da mãe, nas raras
vezes em que ela conseguia visitá-lo em Charqueadas. Os poemas, que
gostava de escrever desde criança, conquistaram a moça, que foi visitá-lo no
presídio, e o ajudou a reconstruir a vida. O convite para voltar ao tráfico era
tentador. Eram R$ 3 mil só para aceitá-lo, e ele ainda receberia o cargo de
chefe da "boca" na Restinga. Mas não. Dez anos vivendo no inferno o fizeram
perceber que a rotina longe do crime, apesar de tão dura, valia mais a pena.
Hoje, no Brasil, Mariano é exceção. Os dados do Ministério da Justiça
apontam que sete em cada dez presos que deixam o sistema penal voltam ao
crime. Durante o tempo em que esteve preso, de acordo com a Lei de
Execuções Penais, instituída em 1984, Mariano teria direito a comida, roupa,
higiene, remédios, atendimento médico e odontológico, advogado,
documentação, instrução escolar e formação profissional.
Na prática, só o que ele e seus colegas de cela recebiam do Estado era
comida e um colchão espremido, sobre um chão úmido. "Lençol, creme dental,
sabonete, roupa, coisas básicas que nós em geral não vivemos dois dias sem,
eles não têm. Era o que faltava para se afundarem ainda mais", diz o juiz da
Vara de Execuções Penais de Porto Alegre e da Região Metropolitana, Sidinei
Brzuska, responsável pela fiscalização de 27 estabelecimentos prisionais no
RS. Sua rotina envolve inspeções diárias no interior dos presídios. "O que
acontece dentro das nossas prisões é uma desumanidade", afirma Brzuska. Se
as famílias não dão, as facções criminais fornecem e assumem a função que o
Estado recusa de colocar ordem no caos.
Durante os anos que José Carlos Custódio esteve preso, ele resistiu às
facções. Nas visitas dos irmãos e sobrinhos, recebia alimento, zelo e proteção.
A família foi seu alicerce para o sustento e o cuidado fora da prisão. Hoje, José
Carlos é funcionário da prefeitura de Porto Alegre, onde é um dos 3.195
homens que usam uniforme laranja e sobem e descem dos caminhões para
recolher o lixo. Antes, ele havia conquistado o primeiro emprego em uma
construtora civil em Sete Lagoas, Minas Gerais, onde morou por quatro anos.
José Carlos não aguentou ficar longe dos parentes e retornou a Porto Alegre.
A família é a maior aliada e o principal degrau para a ressocialização.
Para quem não tem estrutura emocional e material fora do presídio, as chances
de retornar ao crime são imensas. "Tudo conspira contra a força de vontade.
Quem tem família tem mais chances de sobreviver a esse inferno", destaca
Rogério Garcia, especialista em Direito Criminal e professor da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Ao abismo da prisão, soma-se o descaso do poder público em amontoar
pessoas que antes tinham em comum apenas o crime. Segundo dados de
dezembro de 2012, a população carcerária no Brasil é de 548.003 pessoas,
enquanto há vagas para apenas 310.687. Só no Rio Grande do Sul, são 29.243
presidiários e presidiárias, em 98 estabelecimentos penais, enquanto há vagas
para 21.447 pessoas.
Ao egresso do sistema penitenciário, em liberdade condicional ou pelo
prazo de um ano a partir da liberação definitiva do sistema, em tese, o Estado
deveria garantir apoio para reintegração social, alojamento e alimentação por
dois meses, além de ajuda para conseguir emprego. Como explica Rodrigo
Azevedo, professor da PUCRS e líder do Grupo de Pesquisa em Políticas
Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal, na vida real, em que
a lei não é cumprida, quase ninguém fornece esse apoio. "Na prática, prisão
não contribui para ressocializar ninguém, apenas produz efeitos", aponta o
especialista. A reincidência é o principal deles.
O raro auxílio para retomar o cotidiano longe do crime vem de entidades
religiosas ou organizações não governamentais, como a Fundação de Apoio ao
Egresso do Sistema Penitenciário (Faesp), em Porto Alegre. Essa instituição
luta há 15 anos para reduzir a violência por meio de apoio a quem sai da
prisão. "Se o próprio Estado descumpre o que a lei diz, resta a nós
enxergarmos a condição especial de fragilidade que essas pessoas tem", diz
Tânia Souza, professora de formação e diretora voluntária da instituição.
São os egressos que vão atrás da Faesp, enquanto a fundação apenas
abre as portas para quem busca ajuda. A ação é humilde, mas determinante
para quem procura e costuma encontrar apenas portas fechadas. Quem sai do
sistema prisional está etiquetado, não importa se cumpriu sua pena como a lei
determinou.
Agnaldo Gonçalves, que passou 23 anos na prisão por tráfico de drogas
e assalto a banco, é ajudado pela fundação há 10 anos. Durante esse período,
ganhou os dentes que havia perdido em brigas no crime, conseguiu seus
documentos de volta, fez um curso de marceneiro, trabalhou como pintor,
encontrou uma esposa e teve duas filhas. Hoje, é funcionário da Faesp, ainda
participa regularmente de encontros educacionais e tem assistência
psicológica.
Encontrar um emprego, de preferência durante o regime semiaberto, é
decisivo para não retornar ao crime. Na teoria, esta etapa da pena serviria
como um degrau, para auxiliar no retorno à vida fora da prisão. A maioria dos
egressos, no entanto, não consegue emprego ou estudo nesta fase, e acaba
fugindo da cadeia ou retornando ao regime fechado.
Paulo Ricardo da Silva Amaral, de 40 anos, que passou três anos preso
por assalto, consequência do envolvimento com drogas, conseguiu, com a
ajuda de uma assistente social, um emprego como coveiro em um cemitério de
Porto Alegre, durante o regime semiaberto. Depois de um ano e quatro meses,
em liberdade condicional, conquistou outro emprego no Departamento Estadual
de Trânsito do Rio Grande do Sul (Detran-RS), por intermédio da Faesp, onde
teve, pela primeira vez, sua carteira de trabalho assinada.
Nos anos seguintes, em liberdade, ele procurou apoio em um Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS) para recuperar-se da dependência química. Com
a ajuda de uma igreja, trabalhou com pintura, hidráulica, como guardador de
rua e pedreiro. Há um ano, Paulo é portador do vírus HIV. "Não querem me dar
emprego por causa da minha doença", diz. Para as vagas, ele compete com
quem não tem passagem pela cadeia.
Paulo Ricardo nunca mais assaltou ninguém e nem voltou a usar drogas,
e tenta, aos poucos, recuperar o contato com os quatro filhos, que perdeu
devido ao envolvimento com o crime. Poucos dias antes da entrevista, a ex-
mulher lhe contou que uma das filhas passou em um concurso e ganhou uma
bolsa de estudos em uma faculdade. Naquela semana, o principal objetivo de
Paulo era juntar forças para ligar para a filha e parabenizá-la.
Paulo Ricardo ainda enfrenta o preconceito de que, por ter cometido um
crime, seria um inimigo público e um ser antissocial por natureza. Ele, José
Carlos, Agnaldo, e Edson Mariano ainda guardam resquícios do linguajar da
cadeia, e até algumas cicatrizes no corpo, mas o tempo os fez reencontrar
seus valores. Para esta reportagem, todos fizeram questão de mostrar seus
rostos nas fotografias. "A gente já cumpriu nossa pena e não tem mais nada a
esconder de ninguém", disse Mariano. Mais do que enfrentar os preconceitos,
eles recuperam o amor-próprio que um dia deixaram para trás, mas que hoje
os dignifica.