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A busca pela nova chance por Júlia Lewgoy Ao voltar à vida, depois de dez anos na prisão, Edson Mariano dos Passos conheceu o mundo novamente. O que para a população em geral era óbvio, para ele era um reencontro, um conflito, uma batalha. Até mesmo subir no ônibus havia mudado: entrava-se agora pela porta da frente, não mais pela de trás. Mas nada disso era tão significativo como uma decisão: ele não voltaria ao crime. Hoje, Mariano é empresário, pai de família, tem casa própria e documento. O sorriso sincero não deixa esconder o orgulho que sente pela dignidade conquistada. Há três anos, Mariano é proprietário de uma microempresa de construção civil no Bairro Restinga, zona sul de Porto Alegre. Ao mesmo tempo em que é chefe de outras duas pessoas, ele põe a mão na massa e reconstrói o amor-próprio. Experiência ele tem desde pequeno, quando ajudou a erguer as casas da mãe e da vizinhança no Bairro Restinga. Dos R$ 2 mil que tira por mês, ele se sustenta e ajuda a criar a filha Evellym, de três anos, que mora com a mãe. "Quando eu digo para minha filha que o pai precisa ir embora porque ele tem que trabalhar, ela diz 'boa noite, pai, bom descanso'. Eu sou o orgulho dela", conta. A menina é a motivação que faltava para ele seguir firme, sem voltar para o crime. Mariano saiu da Penitenciária Estadual de Charqueadas, única cadeia de segurança máxima no Rio Grande do Sul,

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Reportagem realizada pela estudante de Jornalismo Júlia Lewgoy, da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da PUCRS, para a disciplina de Projeto Experimental IV - Jornal Livre. Julho/2013.

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Page 1: A busca pela nova chance

A busca pela nova chance

por Júlia Lewgoy

Ao voltar à vida, depois de dez anos na prisão, Edson Mariano dos

Passos conheceu o mundo novamente. O que para a população em geral era

óbvio, para ele era um reencontro, um conflito, uma batalha. Até mesmo subir

no ônibus havia mudado: entrava-se agora pela porta da frente, não mais pela

de trás. Mas nada disso era tão significativo como uma decisão: ele não

voltaria ao crime. Hoje, Mariano é empresário, pai de família, tem casa própria

e documento. O sorriso sincero não deixa esconder o orgulho que sente pela

dignidade conquistada.

Há três anos, Mariano é proprietário de uma microempresa de

construção civil no Bairro Restinga, zona sul de Porto Alegre. Ao mesmo tempo

em que é chefe de outras duas pessoas, ele põe a mão na massa e reconstrói

o amor-próprio. Experiência ele tem desde pequeno, quando ajudou a erguer

as casas da mãe e da vizinhança no Bairro Restinga. Dos R$ 2 mil que tira por

mês, ele se sustenta e ajuda a criar a filha Evellym, de três anos, que mora

com a mãe. "Quando eu digo para minha filha que o pai precisa ir embora

porque ele tem que trabalhar, ela diz 'boa noite, pai, bom descanso'. Eu sou o

orgulho dela", conta. A menina é a motivação que faltava para ele seguir firme,

sem voltar para o crime.

Mariano saiu da Penitenciária Estadual de Charqueadas, única cadeia

de segurança máxima no Rio Grande do Sul, depois de cumprir pena por

homicídio e tráfico de drogas. Na noite em que ganhou a liberdade, recebeu

uma autorização de passe livre no ônibus, assinada por um agente

penitenciário. E só. Não tinha emprego, dinheiro para comer, roupas, nem

sequer documentos. Mas tinha família com quem mantinha contato – avó, mãe

e namorada – e alguns poucos amigos, as únicas pessoas que olhavam para

ele como um ser humano, não como um criminoso.

Mariano apaixonou-se por uma moça, hoje ex-mulher, quando ouviu sua

voz no celular, de dentro da prisão. Foi então que começou a escrever cartas

com poesias de amor dedicadas à ela e enviá-las por meio da mãe, nas raras

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vezes em que ela conseguia visitá-lo em Charqueadas. Os poemas, que

gostava de escrever desde criança, conquistaram a moça, que foi visitá-lo no

presídio, e o ajudou a reconstruir a vida. O convite para voltar ao tráfico era

tentador. Eram R$ 3 mil só para aceitá-lo, e ele ainda receberia o cargo de

chefe da "boca" na Restinga. Mas não. Dez anos vivendo no inferno o fizeram

perceber que a rotina longe do crime, apesar de tão dura, valia mais a pena.

Hoje, no Brasil, Mariano é exceção. Os dados do Ministério da Justiça

apontam que sete em cada dez presos que deixam o sistema penal voltam ao

crime. Durante o tempo em que esteve preso, de acordo com a Lei de

Execuções Penais, instituída em 1984, Mariano teria direito a comida, roupa,

higiene, remédios, atendimento médico e odontológico, advogado,

documentação, instrução escolar e formação profissional.

Na prática, só o que ele e seus colegas de cela recebiam do Estado era

comida e um colchão espremido, sobre um chão úmido. "Lençol, creme dental,

sabonete, roupa, coisas básicas que nós em geral não vivemos dois dias sem,

eles não têm. Era o que faltava para se afundarem ainda mais", diz o juiz da

Vara de Execuções Penais de Porto Alegre e da Região Metropolitana, Sidinei

Brzuska, responsável pela fiscalização de 27 estabelecimentos prisionais no

RS. Sua rotina envolve inspeções diárias no interior dos presídios. "O que

acontece dentro das nossas prisões é uma desumanidade", afirma Brzuska. Se

as famílias não dão, as facções criminais fornecem e assumem a função que o

Estado recusa de colocar ordem no caos.

Durante os anos que José Carlos Custódio esteve preso, ele resistiu às

facções. Nas visitas dos irmãos e sobrinhos, recebia alimento, zelo e proteção.

A família foi seu alicerce para o sustento e o cuidado fora da prisão. Hoje, José

Carlos é funcionário da prefeitura de Porto Alegre, onde é um dos 3.195

homens que usam uniforme laranja e sobem e descem dos caminhões para

recolher o lixo. Antes, ele havia conquistado o primeiro emprego em uma

construtora civil em Sete Lagoas, Minas Gerais, onde morou por quatro anos.

José Carlos não aguentou ficar longe dos parentes e retornou a Porto Alegre.

A família é a maior aliada e o principal degrau para a ressocialização.

Para quem não tem estrutura emocional e material fora do presídio, as chances

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de retornar ao crime são imensas. "Tudo conspira contra a força de vontade.

Quem tem família tem mais chances de sobreviver a esse inferno", destaca

Rogério Garcia, especialista em Direito Criminal e professor da Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Ao abismo da prisão, soma-se o descaso do poder público em amontoar

pessoas que antes tinham em comum apenas o crime. Segundo dados de

dezembro de 2012, a população carcerária no Brasil é de 548.003 pessoas,

enquanto há vagas para apenas 310.687. Só no Rio Grande do Sul, são 29.243

presidiários e presidiárias, em 98 estabelecimentos penais, enquanto há vagas

para 21.447 pessoas.

Ao egresso do sistema penitenciário, em liberdade condicional ou pelo

prazo de um ano a partir da liberação definitiva do sistema, em tese, o Estado

deveria garantir apoio para reintegração social, alojamento e alimentação por

dois meses, além de ajuda para conseguir emprego. Como explica Rodrigo

Azevedo, professor da PUCRS e líder do Grupo de Pesquisa em Políticas

Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal, na vida real, em que

a lei não é cumprida, quase ninguém fornece esse apoio. "Na prática, prisão

não contribui para ressocializar ninguém, apenas produz efeitos", aponta o

especialista. A reincidência é o principal deles.

O raro auxílio para retomar o cotidiano longe do crime vem de entidades

religiosas ou organizações não governamentais, como a Fundação de Apoio ao

Egresso do Sistema Penitenciário (Faesp), em Porto Alegre. Essa instituição

luta há 15 anos para reduzir a violência por meio de apoio a quem sai da

prisão. "Se o próprio Estado descumpre o que a lei diz, resta a nós

enxergarmos a condição especial de fragilidade que essas pessoas tem", diz

Tânia Souza, professora de formação e diretora voluntária da instituição.

São os egressos que vão atrás da Faesp, enquanto a fundação apenas

abre as portas para quem busca ajuda. A ação é humilde, mas determinante

para quem procura e costuma encontrar apenas portas fechadas. Quem sai do

sistema prisional está etiquetado, não importa se cumpriu sua pena como a lei

determinou.

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Agnaldo Gonçalves, que passou 23 anos na prisão por tráfico de drogas

e assalto a banco, é ajudado pela fundação há 10 anos. Durante esse período,

ganhou os dentes que havia perdido em brigas no crime, conseguiu seus

documentos de volta, fez um curso de marceneiro, trabalhou como pintor,

encontrou uma esposa e teve duas filhas. Hoje, é funcionário da Faesp, ainda

participa regularmente de encontros educacionais e tem assistência

psicológica.

Encontrar um emprego, de preferência durante o regime semiaberto, é

decisivo para não retornar ao crime. Na teoria, esta etapa da pena serviria

como um degrau, para auxiliar no retorno à vida fora da prisão. A maioria dos

egressos, no entanto, não consegue emprego ou estudo nesta fase, e acaba

fugindo da cadeia ou retornando ao regime fechado.

Paulo Ricardo da Silva Amaral, de 40 anos, que passou três anos preso

por assalto, consequência do envolvimento com drogas, conseguiu, com a

ajuda de uma assistente social, um emprego como coveiro em um cemitério de

Porto Alegre, durante o regime semiaberto. Depois de um ano e quatro meses,

em liberdade condicional, conquistou outro emprego no Departamento Estadual

de Trânsito do Rio Grande do Sul (Detran-RS), por intermédio da Faesp, onde

teve, pela primeira vez, sua carteira de trabalho assinada.

Nos anos seguintes, em liberdade, ele procurou apoio em um Centro de

Atenção Psicossocial (CAPS) para recuperar-se da dependência química. Com

a ajuda de uma igreja, trabalhou com pintura, hidráulica, como guardador de

rua e pedreiro. Há um ano, Paulo é portador do vírus HIV. "Não querem me dar

emprego por causa da minha doença", diz. Para as vagas, ele compete com

quem não tem passagem pela cadeia.

Paulo Ricardo nunca mais assaltou ninguém e nem voltou a usar drogas,

e tenta, aos poucos, recuperar o contato com os quatro filhos, que perdeu

devido ao envolvimento com o crime. Poucos dias antes da entrevista, a ex-

mulher lhe contou que uma das filhas passou em um concurso e ganhou uma

bolsa de estudos em uma faculdade. Naquela semana, o principal objetivo de

Paulo era juntar forças para ligar para a filha e parabenizá-la.

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Paulo Ricardo ainda enfrenta o preconceito de que, por ter cometido um

crime, seria um inimigo público e um ser antissocial por natureza. Ele, José

Carlos, Agnaldo, e Edson Mariano ainda guardam resquícios do linguajar da

cadeia, e até algumas cicatrizes no corpo, mas o tempo os fez reencontrar

seus valores. Para esta reportagem, todos fizeram questão de mostrar seus

rostos nas fotografias. "A gente já cumpriu nossa pena e não tem mais nada a

esconder de ninguém", disse Mariano. Mais do que enfrentar os preconceitos,

eles recuperam o amor-próprio que um dia deixaram para trás, mas que hoje

os dignifica.