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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO III SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA FESPSP 05 A 09 DE DEZEMBRO DE 2011 A briga entre religião e magia nas religiões afro-brasileiras Patrício Carneiro Araújo (Mestrando em Ciências Sociais,PUC-SP Graduando em Sociologia e Política, FESPSP) [email protected] Resumo Este trabalho versa sobre as relações entre conhecimento, segredo e poder nas religiões afro-brasileiras, mais especificamente no candomblé. Ao retomarmos brevemente a história do desenvolvimento da sociologia e antropologia, podemos perceber que a discussão em torno da natureza da religião e da magia sempre despertou interesse nos pesquisadores. Da mesma forma, no Brasil, os estudos afro- brasileiros têm reservado parte do seu esforço investigativo para discutir questões relacionadas a essa tensa relação. E, quando o assunto é religiões afro-brasileira, as relações entre religião e magia se tornam ainda mais tensas, uma vez que as fronteiras entre uma e outra são tão tênues quanto móveis. Com esse trabalho, nossa intenção é retomarmos essa discussão, chamando a atenção para o fato de que as formas tradicionais de transmissão dos conhecimentos religiosos são elementos fundamentais para a compreensão da briga, historicamente travada, entre os religiosos e os feiticeiros no candomblé. Na nossa compreensão, o segredo ritual é a chave explicativa para a constante disputa de poder entre aqueles que propõe uma tradição e aqueles que constantemente a transgridem. Esse eminente papel do segredo ritual se dá justamente pelo fato de ele está no limite das fronteiras entre aquilo que é tido como público e aquilo que é tido como acessível apenas aos iniciados. Controlar essa fronteira é então possuir o poder. E quando se burla essa ordem se estabelece o conflito. E é com a ajuda de teóricos como Durkheim, Mauss, Bourdieu, Hobsbawm, Júlio Braga e Reginaldo Prandi, que pretendemos contribuir com essa discussão que já é deveras antiga mas que continua atual. Palavras-chave: Candomblé, poder, segredo, religião, magia.

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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAU LO

III SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA FESPSP

05 A 09 DE DEZEMBRO DE 2011

A briga entre religião e magia nas religiões afro-b rasileiras

Patrício Carneiro Araújo

(Mestrando em Ciências Sociais,PUC-SP Graduando em Sociologia e Política, FESPSP)

[email protected]

Resumo

Este trabalho versa sobre as relações entre conhecimento, segredo e poder nas religiões

afro-brasileiras, mais especificamente no candomblé.

Ao retomarmos brevemente a história do desenvolvimento da sociologia e antropologia,

podemos perceber que a discussão em torno da natureza da religião e da magia sempre

despertou interesse nos pesquisadores. Da mesma forma, no Brasil, os estudos afro-

brasileiros têm reservado parte do seu esforço investigativo para discutir questões

relacionadas a essa tensa relação. E, quando o assunto é religiões afro-brasileira, as

relações entre religião e magia se tornam ainda mais tensas, uma vez que as fronteiras

entre uma e outra são tão tênues quanto móveis. Com esse trabalho, nossa intenção é

retomarmos essa discussão, chamando a atenção para o fato de que as formas tradicionais

de transmissão dos conhecimentos religiosos são elementos fundamentais para a

compreensão da briga, historicamente travada, entre os religiosos e os feiticeiros no

candomblé. Na nossa compreensão, o segredo ritual é a chave explicativa para a constante

disputa de poder entre aqueles que propõe uma tradição e aqueles que constantemente a

transgridem. Esse eminente papel do segredo ritual se dá justamente pelo fato de ele está

no limite das fronteiras entre aquilo que é tido como público e aquilo que é tido como

acessível apenas aos iniciados. Controlar essa fronteira é então possuir o poder. E quando

se burla essa ordem se estabelece o conflito. E é com a ajuda de teóricos como Durkheim,

Mauss, Bourdieu, Hobsbawm, Júlio Braga e Reginaldo Prandi, que pretendemos contribuir

com essa discussão que já é deveras antiga mas que continua atual.

Palavras-chave : Candomblé, poder, segredo, religião, magia.

1

A briga entre religião e magia nas religiões afro-b rasileiras

Patrício Carneiro Araújo

(Mestrando em Ciências Sociais,PUC-SP Graduando em Sociologia e Política, FESPSP)

[email protected]

Este texto trata a respeito das relações de poder nas religiões afro-brasileiras (mais

especificamente no Candomblé e Umbanda). Partimos do pressuposto de que essas

relações assumem uma forma de tensão constante entre os agentes envolvidos, sendo que

essa tensão se acirra ainda mais quando entram em cena aqueles agentes que se

estabelecem nos interstícios entre as práticas religiosas e as mágicas.

A constante tensão existente no interior do candomblé, em torno do conhecimento e

do poder, pode ser compreendida à luz das palavras de Bourdieu quando ele fala da gênese

e estrutura do campo religioso (1974)1. Da mesma forma, a natureza deste poder em jogo

pode ser compreendida com a ajuda das palavras do mesmo autor a respeito do poder

simbólico (BOURDIEU: 2009).

Ora, quando Bourdieu fala de uma divisão do trabalho religioso (e aqui ele já se

baseia em Weber) e do surgimento de uma classe de “especialistas na gestão dos bens de

salvação”, sua análise pode tranquilamente aplicar-se às estruturas hierárquicas

estabelecidas no interior do candomblé. Já a relação que se estabelece entre segredo-

conhecimento-poder2, nesta religião, é resultante dessa especialização da administração do

capital religioso analisada por Bourdieu. Assim ele se expressa sobre esse processo:

O processo conducente à constituição de instâncias especificamente organizadas com vistas à produção, reprodução e difusão dos bens religiosos, bem como a evolução (...) do sistema destas instâncias no sentido de uma estrutura mais diferenciada e mais complexa, ou seja, em relação a um campo religioso relativamente autônomo, se fazem acompanhar por um processo de sistematização e de

1 In: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Ed. Perspectiva. São Paulo, 1974. pp. 27-78 2 Para uma melhor compreensão da relação entre poder, conhecimento e segredo no candomblé, recomendamos a leitura de (defesa pública em 01/12/2011) O Segredo no candomblé: relações de poder e crise de autoridade. Dissertação de mestrado apresentada ao departamento de Ciências Sociais da PUC/SP, São Paulo, 2011. De nossa autoria.

2

moralização das práticas e das representações religiosas (...). (BOURDIEU: 1974, p. 37)

No caso do candomblé, estas representações incluem tanto a ideia do segredo,

como a aquisição do poder, através do sistema de transmissão do conhecimento que se

afirma como secreto. Ao “corpo dos sacerdotes” que detém o poder legitimo de administrar o

capital religioso e atribuir poder, Bourdieu vai contrapor os leigos, os profetas e os feiticeiros.

Sendo que esses últimos seriam vistos sempre como o elemento de desordem

(Balandier,1997) que dinamizam as relações no interior do grupo. Instalando sempre o

conflito e alterando as relações estabelecidas (vistas por muitos como estáticas), estes

elementos são tão indesejados pelo corpo de sacerdotes como necessários para a

sobrevivência e renovação do quadro religioso. Os sacerdotes seriam a tradição enquanto

os profetas e feiticeiros representariam a renovação. Ora, se a relação entre tradição e

renovação (transformação) é de interdependência e complementaridade, como têm falado

vários teóricos tanto da sociologia quanto da antropologia e da história3, já podemos concluir

de início que, tanto o sacerdote (no candomblé chamado de babalorixá) quanto o feiticeiro

(pejorativamente chamado pelos babalorixás de “marmoteiros” e pelo povo exterior à essas

religiões de “macumbeiro”), são peças imprescindíveis e indispensáveis no jogo de poder

que sustenta as relações estabelecidas nessas religiões.

Um fato que não pode ser negligenciado nessa discussão é a estreita relação

existente entre poder e conhecimento, como já foi dito anteriormente. Possuir os

conhecimentos religiosos é então deter o poder religioso. Assim, quando se trata de

transmissão de conhecimento, seja pela via da oralidade ou pela via do segredo, a tensão

está presente. Isso por que também é a transmissão do poder que está em jogo.

A concorrência entre os babalorixás (pais-de-santo), seus filhos, os “profetas” da

religião (reformadores) e os feiticeiros, aumenta ainda mais a tensão, desencadeando assim

uma verdadeira crise de autoridade no interior dessas modalidades religiosas4. Porém essa

mesma tensão, que pode desencadear o conflito a qualquer momento, também pode

funcionar como mecanismo de coesão social, desde que bem administrada pelo corpo de

sacerdotes. Isso por que, como diria Bourdieu:

3 Entre eles Gerd Bornheim (1987), Eric Hobsbawm & Terence Ranger (1997) e Júlio Braga (2006), para citar apenas alguns. 4 Mais adiante analisaremos a relação entre a magia e a religião no candomblé e suas relações com o segredo e a crise de autoridade.

3

As relações de transação que se estabelecem, com base em interesses diferentes, entre os especialistas e os leigos, e as relações de concorrência que opõe os diferentes especialistas no interior do campo religioso, constitui o princípio da dinâmica do campo religioso e também das transformações das ideologias religiosas. (Op. Cit. p. 50)

A quebra do pacto tácito de segredo, ou mesmo a comercialização indiscriminada

dos conhecimentos tidos como secretos, representaria então uma espécie de ruptura com o

sistema de legitimação das formas de dominação legítimas (no sentido weberiano)5

estabelecidas ali através do processo iniciático. Práticas desse tipo, no entanto, despertam

um sentimento quase generalizado de reprovação e censura entre os mais velhos, haja vista

a utilização do termo “marmotagem”6 na gíria do povo do santo. Por trás de tudo isso, há na

verdade, uma luta por poder. Sendo que aqueles a quem Bourdieu chama de “leigos” e

“profetas” continuam empenhados na disputa por poder. Já aqueles a quem ele chama de

“corpo de sacerdotes” fazem o que for necessário para manterem seu status. Trata-se

então de uma luta pelo poder. Parafraseando Yvonne Maggie (2001), trata-se de uma

“guerra de autoridades religiosas” pelo controle do conhecimento e, através dele, do axé. O

conflito então se justifica como uma atitude de resistência ao monopólio da gestão dos bens

de salvação, e diríamos: do axé. Aqui o axé significa, de acordo com a reflexão de Bourdieu,

o verdadeiro e legitimo capital religioso do povo do santo. A mesma coisa que no nosso

trabalho de mestrado chamamos de patrimônio simbólico e religioso do povo do santo. Ou

seja, o axé – elemento protegido pela prática do segredo ritual – é o mesmo capital religioso

em torno do qual o conflito se instala e sobre o qual o poder se estrutura.

Quando nos deparamos então com uma série de agências comercializadoras de

“fundamentos”7, como é o caso do site www.axeorixa.com8 e livros do tipo “Elégùn”

5 Para uma compreensão mais ampliada acerca das formas de dominação legítimas em Weber ver: Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. 3ª Ed. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 200. 464 p. 6 Percebida e dicionarizada por Olga Cacciatore, desde 1977, no seu Dicionário de Cultos Afro-brasileiros: “Marmotagem: Termo de desprezo, dos membros do candomblé tradicional, para a mistura de rituais de outros terreiros. (...).” In: Dicionário de cultos afro-brasileiros : CACCIATORE, Olga Gudolle. Rio de janeiro, Forense-Universitária, Instituto Estadual do Livro, 1977. p. 178. 7 Termo genérico utilizado largamente pelo povo do santo (adeptos das religiões afro-brasileiras) para se referir aos conhecimentos e práticas ligadas ao seu universo religioso. 8 Que é melhor analisado em nosso trabalho de mestrado já citado.

4

(T’OGUN, 2009)9, somos tentados a vê-los como elementos desencadeadores de conflitos

entre o povo do santo. E quando vemos babalorixás e ialorixás se posicionarem

veementemente contra este tipo de prática, somos tentados mais ainda a ver aí uma tensão

resultante desse embate em torno do axé e do poder. Isso por que, para o povo do santo,

nessa relação de compra e venda são os fundamentos que estão em jogo. É o axé que é

mercantilizado. Portanto, é a autoridade e o poder que se encontram em perigo. Assim, os

“vendedores de fundamentos” (como o Robson de xangô que assina o site acima citado)

são vistos pelos mais ortodoxos como aqueles que usurpam o poder que legitimamente

deveria está apenas nas mãos do corpo sacerdotal. A regra é burlada. Outras relações são

colocadas.

Porém, alguém poderia alegar que tais conhecimentos que estão sendo

comercializados só se adquire através do processo iniciático e que, portanto, quem vende

faz parte dos círculos sacerdotais. É uma hipótese que não se pode descartar, apesar do

anonimato que protege os vendedores. Contudo, diante desta hipótese, podemos nos

questionar: tratar-se-ia apenas de uma realocação do corpo sacerdotal? Seriam os

“vendedores de fundamentos” apenas ebômes (membros da classe sacerdotal do

candomblé) realocados do espaço religioso institucional para o espaço do mercado? Mas na

história do candomblé (assim como na história de toda religião) sempre houve um intenso

comércio de serviços e bens religiosos e mágicos. Tratar-se-ia apenas de diferentes

especialistas religiosos ocupando posições homólogas diferentes: os ebômes no terreiro e

os “vendedores de fundamentos” no mercado? Tratar-se-ia apenas de mais uma das

brincadeiras de Exu, a fim de dinamizar a religião e as relações de poder, para que a religião

não caia no marasmo e morra?

Ao que parece, o papel tanto do feiticeiro quanto do “vendedor de fundamentos”

parece ir na direção da concorrência com o corpo sacerdotal, uma vez que disputam com

ele não só o poder mas até mesmo os resultados financeiros que a venda de bens e

serviços religiosos poderia lhes proporcionar. E isso tem acontecido com demasia entre o

povo do santo.

Não conseguimos deixar de relacionar, por exemplo, o caso já citado do site

www.axeorixa.com10 com as palavras de Bourdieu a respeito do feiticeiro:

9 (T’OGUN) OLIVEIRA, Altair B. Elégùn: iniciação no candomblé: feitura de Ìyàwó, Ogán e Ekéji. 3 ed. – Rio de Janeiro: Pallas, 2009. 10 Por se tratar de uma fonte móvel, não temos a certeza se o site em questão permanecerá por muito tempo no ar. Por isso mesmo, tivemos o cuidado de imprimi-lo na sua totalidade, a fim de procedermos com uma análise mais minuciosa do seu conteúdo, como o fizemos durante o desenvolvimento da nossa pesquisa de mestrado. De qualquer forma, é sempre recomendável consultá-lo, para perceber quão forte é o apelo comercial ali presente. Da mesma forma a natureza e os propósitos do site parecem ir de encontro a toda a concepção de transmissão tradicional de

5

Por sua vez, o feiticeiro pode alugar abertamente seus serviços em troca de remuneração material, ou seja, pode assumir explicitamente seu papel na relação vendedor/cliente que constitui a verdade objetiva de toda relação de especialistas religiosos e leigos. (Opus Cit. p. 61)

Aqui estaria o grande embate entre a ortodoxia (representada pelos

babalorixás/ialorixás) e a heresia (personificada nos chamados “marmoteiros”). E essa

disputa disfarça a verdadeira disputa que a fundamenta: a luta pelo poder. Manter o segredo

é então manter-se no poder. Revelá-lo indiscriminadamente, ou comercializá-lo, é trocar

poder por dinheiro. Esses processos que dão origem ao conflito, a saber: concentração do

capital religioso, concorrências no interior da religião e conflitos pela conquista da autoridade

e do poder, recentemente, têm dado origem a uma espécie de “reforma protestante” dentro

do candomblé. E isso pode ser percebido nas próprias dinâmicas do segredo e daquilo que

se considera como tal. Essa “reforma protestante” pode ser percebida justamente em

movimentos de legitimação de processos que surgiram como atos contestatórios a uma

ordem preexistente. E aqui estamos falando, por exemplo, dos processos de

reafricanização11 do culto. Dá-se então aquilo que Bourdieu chamou de “absolutização do

relativo e legitimação do arbitrário”.

Quando a magia desempenha seu papel: o segredo na fronteira entre religião e magia

Historicamente a relação entre religião e magia sempre foi tensa. Essa assertiva é

bastante clara ao longo da história da antropologia e sociologia. De fato a discussão em

torno da distinção entre religião e magia, assim como em torno da natureza de cada uma,

está presente desde os primórdios dessas duas ciências, haja vista as palavras de Frazer

(1982) em O Ramo de Ouro, em cuja obra o autor reserva o terceiro capítulo para explicar

em que consiste a Magia Simpática, conceito fundamental no conjunto da sua obra. No rol

dessas discussões vieram também Durkheim, com sua conhecida obra As formas

elementares da vida religiosa (1996), Marcel Mauss, com seu Esboço de uma teoria geral da

conhecimento do povo do santo. E aqui nos perguntamos: seria este tipo de sites uma radicalização dos “cadernos de axé”, já analisados nas etnografias sobre candomblé? 11 Sobre os processos de “reafricanização” do candomblé a bibliografia existente já chega a ser significativa. Recomendamos a leitura inicial de Orixás da metrópole, de Vagner Gonçalves da Silva (1995) p. 271.

6

magia (1904), Malinowski, com Os Argonautas do pacífico ocidental (1978), e assim por

diante. Já na sociologia e antropologia brasileiras a bibliografia dedicada às relações, ora

conflituosas ora nem tanto, entre religião e magia é vasta. De Nina Rodrigues (1935) a

Flávio Pierucci (2001), passando pelo Dossiê Magia, da Revista USP, é possível encontrar

as mais diversas análises acerca do objeto de estudos em discussão aqui. Dado curioso é

que, sempre que está em pauta essa discussão, vem à baila as religiões afro-brasileiras.

Isso pelos motivos que analisaremos a seguir.

É sabido que, em se tratando de religiões afro-brasileiras, religião e magia sempre

caminharam juntas e, até hoje, quem procura o candomblé tanto pode o está procurando

motivado por questões religiosas quanto pode procurá-lo a fim de contratar algum serviço

relacionado com a prática mágica. Aqui as fronteiras entre religião e magia são tão tênues

quanto móveis. Não seria prudente dizer que religião e magia aqui se confundem. No

entanto, seria da mesma forma imprudente não admitir que, na maioria das vezes as duas

caminham lado a lado. Isso faz com que as dinâmicas de uma interfiram, mesmo que de

forma indireta, nas dinâmicas da outra.

Ao estudarmos as teorias acerca da magia, como o famoso texto de Marcel Mauss,

Esboço de uma teoria geral da magia (1904), podemos perceber que o segredo está tão

presente na prática da magia quanto na da religião, apesar de a magia possuir uma grande

tendência a contrariar as práticas da religião, como afirma Durkheim.

Entre os elementos que caracterizam o rito mágico Mauss apresenta os seguintes: o

mágico, os atos e as representações12.

Ao analisar as características do mágico, Mauss reconhece haver entre os

sacerdotes e os mágicos algumas semelhanças e diferenças. De qualquer forma sempre há

uma tensão entre ambos.

Sobre os conhecimentos próprios do mágico Mauss afirma: “É freqüente os segredos

do mágico não serem transmitidos incondicionalmente” (MAUSS, 1904 [2003, p. 79]).

Já quando analisa os atos mágicos, Mauss admite que estes atos geralmente são

cercados de mistérios e segredos, assim como têm como cenários os lugares mais

afastados da maior parte da população e em um clima quase clandestino, o que contribui

ainda mais para que esta prática seja vista como socialmente reprovável. A prática da magia

está ligada então a um conjunto bem definido de condições de tempo e lugar. (p. 83-84).

Esses elementos constituem parte daquele conjunto que diferencia a religião da magia. E

Mauss acrescenta:

12 Na compreensão de Malinowski essa divisão tripartite dos elementos básicos da magia são a fórmula, o rito e a condição do executor (Cf. Os argonautas do pacífico ocidental, 1978, p. 295). O que, grosso modo, encontra correspondência evidente nas palavras de Mauss.

7

Mas há muitos outros sinais que devemos agrupar. Primeiro, a escolha dos lugares onde deve se passar a cerimônia mágica. Esta não costuma ocorrer no templo ou no altar doméstico, mas geralmente nos bosques, longe das habitações, na noite ou na sombra, ou nos recônditos da casa, isto é, num lugar isolado. Enquanto o rito religioso busca em geral a luz do dia e o público, o rito mágico os evita. Mesmo lícito, ele se esconde, como o malefício. Mesmo quando é obrigado a agir diante do público, o mágico busca evadir-se; seu gesto se faz furtivo, sua fala indistinta; o médico feiticeiro, o curandeiro que trabalha diante da família reunida, murmura entredentes suas fórmulas, dissimula seus passes e envolve-se em êxtases fingidos ou reais. Assim, em plena sociedade o mágico se isola, com mais forte razão quando se retira no fundo dos bosques. Mesmo em relação aos colegas, ele mantém quase sempre uma atitude de reserva. O isolamento, como o segredo, é um sinal quase perfeito da natureza íntima do rito mágico. Este é sempre obra de um indivíduo ou de indivíduos que agem de modo privado; o ato e o ator são cercados de mistério. (...) Obtivemos com isso uma definição provisoriamente suficiente do rito mágico. Chamamos assim todo rito que não faz parte de um culto organizado, rito privado, secreto, misterioso, e que tende, no limite, ao rito proibido. (MAUSS, 1904 [2003, pp. 60-61]. Primeiros grifos nossos).

Assim, segundo Mauss, o segredo é próprio da magia, assim como no candomblé

também é da religião.

Podemos perceber então que, para Mauss, a prática do segredo é um dos elementos

que caracterizam a magia, no que ela se diferencia em parte da religião. Émile Durkheim

(1996) também estabelece as diferenças entre religião e magia, sendo que este autor faz

questão de evidenciar a relação tensa que sempre existiu entre ambas. Assim ele constrói

seus argumentos:

Será que se deveria então dizer que a magia não pode ser distinguida com rigor da religião? Que a magia está repleta de religião, como a religião de magia, e que, por conseguinte, é impossível separá-las e definir uma sem a outra? Mas o que torna essa tese dificilmente sustentável é a marcada repugnância da religião pela magia e, em contrapartida, a hostilidade da segunda pela primeira. A magia tem uma espécie de prazer profissional em profanar as coisas sagradas; em seus ritos, realiza em sentido diametralmente oposto as cerimônias religiosas. (DURKHEIM, 1996, p. 27)

8

Durkheim (1996) também admite que o mágico tende a se isolar do público para

desenvolver suas práticas mágicas (p. 29). E isso de fato acontece. E esse “prazer

profissional em profanar as coisas sagradas”, de que fala Durkheim, também tem aparecido

entre os feiticeiros ligados ao candomblé, quando se trata do tratamento com o segredo. No

universo do candomblé, diferentemente do que desejam os líderes mais velhos e ortodoxos,

a transmissão do axé (poder, conhecimento, segredo) não tem se dado da forma tradicional.

Outras dinâmicas têm acontecido. Uma delas é a transgressão, por parte dos feiticeiros

profissionais, da prática do segredo. E aqui poderíamos dizer que mais uma vez a magia

desempenha seu papel de contestadora da ordem e de opositora direta da classe

sacerdotal, quando se tem como objeto de disputa o controle do capital religioso, como diria

Bourdieu. O cartaz de anúncio de trabalhos mágico-religiosos que fotografamos em um

poste da Avenida 9 de julho, em São Paulo, durante a nossa pesquisa de mestrado,

evidencia um pouco essa transgressão:

Imagem 1. Serviços mágico-religiosos em divulgação nas ruas de São Paulo:

A magia contrariando a religião Foto: Patrício C. Araújo. Abril de 2011

Considerando o tipo de relação existente entre a categoria “cliente” no candomblé e

a categoria “adepto”, ou mesmo “filho de santo”, para a população ligada à vida dos terreiros

e principalmente para os ebômes e sacerdotes, este anúncio, assim como a prática de quem

o divulga, é impensável. Beira o sacrilégio. Pois as regras do segredo (que também são as

regras do poder) não recomendam abrir para quem não é da religião a forma de se fazer o

ritual. Assim, a frase “todos os trabalhos são feitos na presença da pessoa”, soa como um

9

absurdo para aqueles que advogam a preservação das formas tradicionais de transmissão

dos conhecimentos. Mas podemos analisar este tipo de anúncio e de práticas ligados a ele,

a partir das palavras do próprio Durkheim, quando diferencia a relação dos sacerdotes com

seus fiéis e a do mágico com seus clientes:

Claro que as crenças mágicas jamais deixam de ter alguma generalidade; com frequência estão difusas em largas camadas de população e há inclusive muitos povos em que seu número de praticantes não é menor que o da religião propriamente dita. Mas elas não têm por efeito ligar uns aos outros seus adeptos e uni-los num mesmo grupo, vivendo uma mesma vida. (...) entre o mágico e os indivíduos que os consultam, como também entre esses indivíduos, não há vínculos duráveis que façam deles os membros de um mesmo corpo moral, comparável àquele formado pelos fiéis de um mesmo deus, pelos praticantes de um mesmo culto. O mágico tem uma clientela, não uma igreja, e seus clientes podem perfeitamente não manter entre si nenhum relacionamento, ao ponto de se ignorarem uns aos outros; mesmo as relações que estabelecem com o mágico são, em geral, acidentais e passageiras; (Idem, pp. 28-29)

Isso explicaria a relativização do segredo por parte do feiticeiro que divulga seus

serviços pelos postes da cidade de São Paulo, e diríamos, pelo Brasil afora. Não há entre

ele e o cliente uma disputa ou concorrência de poder que pudesse ser colocada em cheque

com a revelação do segredo, que se dá na exposição da forma de fazer o feitiço. Como não

há disputa de poder não há necessidade de segredo. Nas relações religiosas do povo do

santo, intra-terreiro, o segredo é necessário para manter as estruturas do poder. Por isso o

segredo é mantido. Como a magia se afirma como independente da religião (apesar dos

agentes na maioria das vezes serem os mesmos) ela acha-se no direito de relativizar o

segredo. Isso, no entanto, acirra ainda mais a rivalidade entre o espaço da religião e o

espaço da magia, que segundo Durkheim: “tem uma espécie de prazer profissional em

profanar as coisas sagradas; em seus ritos, realiza em sentido diametralmente oposto as

cerimônias religiosas”.

Mutatis mutandis, esta relação existente entre a disputa de poder e revelação/

transgressão do segredo, por parte dos feiticeiros, nos lembra um fato narrado por nossa

orientadora, em uma das nossas agradáveis conversas. Contou-nos ela que, à certa altura

da sua pesquisa junto a uma ialorixá, terminada a fase mais densa da pesquisa, a sua

interlocutora lhe propôs revelar todos os segredos do seu orixá pessoal: “agora sente aqui

que vou lhe explicar todos os segredos...”. Incontinente a pesquisadora agradeceu-lhe e

recusou-lhe a oferta. A primeira vez que ouvimos este relato (relatado inclusive no nosso

diário de campo) de imediato o interpretamos como resultado da inexistência entre elas de

10

disputa por poder. A ialorixá achava-se à vontade para revelar à pesquisadora os segredos

por saber que tal revelação não resultaria em uma possível concorrente no campo religioso.

A pesquisadora, por sua vez, recusava a oferta por não ter interesse no poder inerente aos

segredos que ora lhe eram oferecidos. Ou seja, como não havia disputa de poder não havia

necessidade de controlar o fluxo do segredo. É muito provável que, caso a pesquisadora

também fosse da religião, a oferta não acontecesse. Isso por que revelar segredos pode

implicar divisão de poder. Controlar os segredos significa, por sua vez, controlar o poder.

Nesse sentido, as dinâmicas que temos visto por parte dos feiticeiros que fazem

“todos os trabalhos na frente da pessoa” representam um convite a um diálogo mais

demorado com aqueles que advogam que “No trabalho de cura e feitiço, a sabedoria secreta

opera sem ser transmitida nem aniquilada” (BRAZEAL, 2005,319), como diria Brian Brazeal.

Tal prática, diga-se de passagem, contraria um comportamento típico do povo do

santo, quando se fala de segredos e fundamentos. Isso por que, mesmo quando diante das

situações mais constrangedoras e humilhantes, as pessoas ligadas às religiões afro-

brasileiras sempre se comportam com reservas e discrição quando o assunto é segredos e

fundamentos. E isso se dá tanto no âmbito da religião quanto da magia.

Isso pode ser claramente percebido no comportamento dos acusados de feitiçaria,

curandeirismo e falsa medicina13 estudados largamente por Yvonne Maggie (1992) e por

Júlio Braga (1995). Na maioria dos casos ali estudados o comportamento dos acusados era

quase padrão: respostas evasivas e vagas, de forma a não entrar nos detalhes das

cerimônias, quando a acusação de fato procedia.

No já citado trabalho de Júlio Braga (1995), ao analisar o caso do auxiliar de

comércio e pai-de-santo, Nelson José do Nascimento14, acusado de “prática de feitiçaria e

falsa medicina”, Júlio Braga chama a atenção para a postura que o acusado assume, e que

na verdade é a mesma postura assumida pela maioria do povo do santo acusado dos

mesmos “crimes”, por ocasião do interrogatório policial. Analisando o processo do

interrogatório policial aplicado ao acusado em questão, Braga afirma que:

13 Como nos explica Yvonne Maggie (1992), estes crimes estavam previstos no Código Penal de 1890, através dos artigos 156, 157 e 158, nos quais estavam dispostas as penas para os crimes daquilo que as autoridades judiciais e policias chamavam de “falsa medicina”, “espiritismo, magia e seus sortilégios”. (Ver: MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relação entre magia e poder no Bra sil . Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1992, p. 22) 14 Segundo inquérito instaurado na Delegacia da Terceira Circunscrição Policial de Salvador, Bahia, em três de outubro de 1939, cf. BRAGA Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia . Salvador, 1995, pp. 125-145.

11

De qualquer maneira, Nelson responde a todas as perguntas, sem escamotear seu compromisso religioso e na linha do que se poderia esperar de um sacerdote do culto afro-brasileiro, isto é, laconicamente. Quando diz não saber para que servem os búzios, ainda aí, reage de acordo com o padrão comportamental típico das pessoas do candomblé que se mostram quase sempre reticentes ou evasivas toda vez que está em jogo a preservação de elementos mais secretos, as coisas mais privativas, o saber iniciático, em fim, as chamadas “coisas de fundamentos da seita”, como se diz. (BRAGA, 1995, p. 135)

Considerações finais

Pode-se dizer então que posturas como a do religioso/feiticeiro que divulga seus

trabalhos nos postes da Avenida 9 de julho, em São Paulo, propondo realizar todos os

trabalhos “na presença da pessoa”, fogem à prática comum adotada pela maioria do povo

do santo.

Mais uma vez religião e magia parecem está em disputa, senão pelo controle da

administração do capital religioso, ao menos pelo controle do mercado de bens mágico-

religiosos. E aqui a preservação do segredo passa a ser também um elemento de disputa.

Como falamos anteriormente, quando se trata de candomblé é deveras difícil falar de

religião e magia como duas realidades totalmente distintas e separadas. E sendo o

babalorixá/ialorixá, muitas vezes, o principal agente tanto dos serviços religiosos como dos

serviços mágicos, vamos perceber esses sujeitos assumindo diferentes posturas em relação

ao segredo ritual, dependendo dos seus consulentes. Se estão diante de um filho de santo a

atitude é uma. Se diante de um cliente a relação é outra. Mas, na maioria das vezes,

àqueles ligados à vida nos terreiros advogam a idéia de que os segredos devem ser sempre

preservados quando se trata de clientes. Até por que a natureza da relação estabelecida

entre o cliente e a religião é totalmente diferente daquela estabelecida pelo adepto, como já

afirmara Durkheim.

Sendo os clientes os sujeitos que se encontram nas fronteiras, tanto da religião em

relação ao mundo extra-candomblé, quanto nas fronteiras entre religião e magia15, esta

15 Sobre este aspecto Reginaldo Prandi nos ajuda a compreender o papel dos clientes nesta religião, no seu livro Os candomblés de São Paulo (1991[2001], p. 26) quando afirma: “Os clientes têm sido sempre importantes para o candomblé como religião, isto é, enquanto grupo de culto organizado. Mas essa clientela procura o candomblé como serviço mágico, magia que lida o tempo todo com a manipulação do mundo através do sacrifício.

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categoria de agentes é fundamental para que se compreenda as fronteiras do segredo e da

sua prática. Observando seu comportamento em relação à religião, assim como o

comportamento das lideranças religiosas em relação a eles, é possível vislumbrar um

termômetro capaz de mensurar até que ponto a prática do segredo ainda encontra respaldo

entre o povo do santo. E da mesma forma, é possível também especular acerca dos

mecanismos de revelação do segredo/transgressão das formas tradicionais de transmissão

do conhecimento. Transgressões essas que, na maioria das vezes, dá margem a uma crise

de autoridade no interior da religião.

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