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A barragem do Rio Manso e as estruturas de gestão percebidas por uma comunidade tradicional. Silveira 1 , J.S e Da Silva 2 , C.J. 1. Doutoranda do Programa em Gestão e Política Ambiental, Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília [email protected] 2. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Biodiversidade, Universidade Federal de Mato Grosso. Introdução A Bacia do Alto Paraguai possui sua área de captação localizada no bioma Cerrado e sua planície alagável formando o Pantanal Mato-Grossense. Segundo Da Silva (1998, p.559), as bacias hidrográficas devem ser vistas “como espaços geográficos naturais que funcionam como sistemas, onde características do solo, do relevo, da vegetação, do clima e as atividades humanas refletem a variação limnológica da água”. Compõe, assim, uma dinâmica integral e única dos recursos hídricos da bacia. Dentro deste largo sistema hidrológico encontra-se a bacia do rio Cuiabá, a qual recentemente foi alterada pela barragem do Rio Manso, principal afluente do Rio Cuiabá. O contexto de desenvolvimento econômico, político e social centrado no cenário da Bacia do Rio Cuiabá e do APM 1 Manso (Aproveitamento Múltiplo de Manso) se encontra dentro de uma esfera conflituosa do direito à água e à terra, acesso aos recursos naturais e hídricos, e dependência dos mesmos para a sobrevivência. A barragem do rio Manso foi inaugurada em 1998, com objetivo de geração de eletricidade, controle de enchente e irrigação. A barragem possui uma área de alagamento de 427km 2 teve como seu período de enchimento de Set/98 a Dez/99 possui quatro turbinas, com uma potência instalada de 210MW (Brasil, 1987). 1 A barragem do Rio Manso, foi primeiramente denominada de UHE (Usina hidrelétrica) e hoje é denominada pela Eletronorte de Aproveitamento Múltiplo (APM).

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Page 1: A barragem do Rio Manso e as estruturas de gestão ... · para a conservação são dadas por biólogos, economistas, agrônomos, sociólogos, mas a decisão em última análise ainda

A barragem do Rio Manso e as

estruturas de gestão percebidas por uma

comunidade tradicional. Silveira1, J.S e Da Silva2, C.J.

1. Doutoranda do Programa em Gestão e Política Ambiental, Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília [email protected] 2. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Biodiversidade, Universidade Federal de Mato Grosso.

Introdução

A Bacia do Alto Paraguai possui sua área de captação

localizada no bioma Cerrado e sua planície alagável formando o

Pantanal Mato-Grossense. Segundo Da Silva (1998, p.559), as bacias

hidrográficas devem ser vistas “como espaços geográficos naturais

que funcionam como sistemas, onde características do solo, do relevo,

da vegetação, do clima e as atividades humanas refletem a variação

limnológica da água”. Compõe, assim, uma dinâmica integral e única

dos recursos hídricos da bacia. Dentro deste largo sistema hidrológico

encontra-se a bacia do rio Cuiabá, a qual recentemente foi alterada

pela barragem do Rio Manso, principal afluente do Rio Cuiabá.

O contexto de desenvolvimento econômico, político e social

centrado no cenário da Bacia do Rio Cuiabá e do APM1 Manso

(Aproveitamento Múltiplo de Manso) se encontra dentro de uma

esfera conflituosa do direito à água e à terra, acesso aos recursos

naturais e hídricos, e dependência dos mesmos para a sobrevivência.

A barragem do rio Manso foi inaugurada em 1998, com

objetivo de geração de eletricidade, controle de enchente e irrigação.

A barragem possui uma área de alagamento de 427km2 teve como seu

período de enchimento de Set/98 a Dez/99 possui quatro turbinas,

com uma potência instalada de 210MW (Brasil, 1987).

1 A barragem do Rio Manso, foi primeiramente denominada de UHE (Usina hidrelétrica) e hoje é denominada pela Eletronorte de Aproveitamento Múltiplo (APM).

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A barragem do Rio Manso, hoje denominada pela Eletronorte,

aproveitamento múltiplo (APM) trata-se da primeira usina

hidrelétrica que controla a inundação no Pantanal em grande escala

(Da Silva & Girard, 2004). Mudanças no frágil sistema de inundação

da Bacia do Rio Cuiabá trazem conseqüências ainda não

completamente mensuráveis.

Junk & Nunes de Mello(1987) enfatizam a adaptação de plantas

e animais a condições específicas de um dado ecossistema. O

represamento de um rio significa uma interrupção do sistema de

conectividade e transformação do mesmo de aberto para fechado e de

acumulação. Esta pesquisa considera que tal adaptação é também

parte da vida das comunidades ribeirinhas à jusante da barragem do

Manso, uma vez que estas estão diretamente ligadas ao ecossistema

seja por meio de trabalho, esfera social, cultural ou cosmológica.

As comunidades tradicionais ribeirinhas desta bacia vivem em

um ambiente que é moldado pelo movimento de suas águas. Cada

fase deste movimento – enchente, cheia, vazante e estiagem – (Da

Silva & Silva, 1995) tem suas características próprias e traz para

aqueles que lá vivem e as observam um modo de pensar, sentir, olhar

e agir único que, portanto, devem ser considerados quando políticas

de manejo e conservação desta bacia são propostas. Esta percepção e

uso da água para sustentação da biodiversidade e do sistema hídrico

do Rio Cuiabá caracteriza o modo de vida destas comunidades

ribeirinhas, e promovem continuidade cultural e social de intra e inter

relações.

Com a barragem do Rio Manso percepções e modos de vida

foram alterados e ainda não compreendidos em sua totalidade. O

processo de tomada de decisão e execução deste grande

empreendimento foi caracterizado por uma forma de manejo de

exclusão, ecossistêmica e social. A participação presente neste

processo foi registrada através das estruturas de gestão percebidas

pela comunidade do Sítio Sant Rita, a jusante da barragem. Esta

comunidade está localizada no encontro do Rio Cuiabazinho com o

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Rio Manso (Figura 1) e é composta principalmente por pescadores

profissionais artesanais.

Figura 1 – Área de estudo.

A comunidade a jusante foi escolhida por caracterizar o que

Adams sugere:

Os impactos sociais das barragens em ambientes à jusante tendem a resultar em complexas interações entre impactos ambientais e econômicos... os efeitos à jusante de uma barragem nas pessoas dependem de um conjunto complexo de impactos sobre o volume e a amplitude das inundações e ligações hidrológicas entre rio e planície de inundação. A dependência das comunidades a jusante em atividades econômicas dependentes do fluxo do rio mostram que impactos sociais refletem impactos ecológicos. Impactos a jusante têm sido a Cinderela dos debates sobre barragens: não-reconhecidos, mal-entendidos e sub-estimados por planejadores. Uma das razões é o fato desses ocorrerem em áreas remotas, longe da barragem e facilmente ignorados (Adams, 2002, p3). Para se obter um desenvolvimento integrado dos

recursos hídricos, as pessoas precisam estar no centro do processo de gerenciamento (International Fresh Water Conference, 2001) e tomada de decisões. Em um documento apresentado pela Estratégia Mundial para a Conservação, Diegues (2000) ressalta que os fatores limitantes para resolver problemas básicos da conservação não são de ordem ecológica, e sim política, econômica e social, onde as opiniões

Sítio Santa RitaSítio Santa Rita

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para a conservação são dadas por biólogos, economistas, agrônomos, sociólogos, mas a decisão em última análise ainda não se encontra com os usuários locais dos recursos naturais. A etnoecologia aparece então como ferramenta chave na busca do continuun ser sociedade-natureza, pois valoriza o conhecimento cultural local, elevando-o ao patamar de igualdade na tomada de decisões.

O ponto de partida desta pesquisa é buscar a inclusão dos usuários locais em estruturas de gestão participativas e reconhecimento de seus saberes.

Estruturas de gestão, organização e mudança Grandes mudanças no sistema hídrico do Rio Cuiabá, como a

barragem do Rio Manso, estão contribuindo para uma mobilização

maior por parte daqueles que do rio tiram sua subsistência. Os

impactos como modificação de habitas, comprometimento do modo

de vida de animais, cheias extemporâneas, aumento da pesca

predatória e a própria falta de clareza da lei de pesca vigente no

estado afetam diretamente a vida do pescador ribeirinho.

O entendimento da comunidade do Sítio Santa Rita acerca da

participação nas estruturas de gestão, existentes ou a serem

constituídas, do Rio Cuiabá foi verificado através de duas estruturas

de gestão. A primeira é a colônia de pescadores e a segunda é a

fiscalização. As estruturas de gestão foram escolhidas por refletirem

o quê e como chegam políticas públicas na e para a comunidade.

A colônia de pescadores é uma estrutura que parte da sociedade

civil organizada e pressupõe controle da comunidade sobre a

estrutura. A colônia faz parte também da organização social da classe

de pescadores, implicando em uma participação mais efetiva dos

membros em decisões de classe, seus direitos e deveres.

Os valores positivos acerca da colônia de pescadores estão

relacionados à conservação dos peixes, ao respeito à lei do rio, à

ordem, ao seguro emprego, ao relacionamento social na comunidade,

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à comercialização e a possibilidade de ter aposentadoria garantida

(Tabela I).

Por outro lado a percepção negativa sobre a colônia de

pescadores está associada ao fato da restrição de existirem empregos

com carteira assinada em outros locais; pela restrição de ter outra

atividade geradora de renda como a agricultura, artesanato e outras;

pela disposição em continuar utilizando artefatos de pesca proibidos

pela lei; e por considerarem que o seguro desemprego na época da

piracema afasta o pescador do rio facilitando, assim, a ação da pesca

ilegal (Tabela I).

Tabela I– Percepção dos pescadores da colônia de pesca Z-4. Positiva Negativa

“ A colônia ensina os pescador a respeitar mais a lei do rio sobre reserva, piracema, quando não tinha colônia, não tinha os profissional a turma misturava tudo, subida e descida era a mesma coisa, não tinha chefe para falá assim ‘ vamo respeita é piracema, vamo agüenta um pouco, vamo deixa o peixe descer e para o ano vem peixe’.” “ Sendo da colônia é o jeito mais fácil de comercializá o peixe.”

“Eu não posso fazer carteira porque eu não pesco só de anzol, se chamar para botar uma rede aí, ‘vamo bora’, botar tarrafa, ‘bora’, é bom que pega bastante logo, eu não gosto de pegar pouco não. Eu acho que não tem valor (carteira), pagam pouco, dá para ganhar mais. Com um salário desse aí eu não quero que assina minha carteira... para mexer com peixe assim não, não assinava não, o negócio é pescar contrabando e sem carteira”

“Eu acho uma coisa boa, para mim é bom porque as coisa andam mais em ordem, a gente anda em ordem com os documentos, essas coisa, aí também vem o seguro. Quando vem a piracema nós recebe dinheiro e tem direito a cinco quilos”

“Eu nasci e criei aqui, mas nunca interessei em ser pescador profissional, a colônia é bom só que não para mim, o pescador profissional tem que estar sempre no rio pescando, eu faço outras coisas.”

“ A colônia tem vantagens, ela é mais vantajosa por causa do seguro na época da piracema a gente tem esseretorno, que a gente paga todo o ano e quando chega na época da piracema nós temos retorno.” “ Eu agradeço por ter ficado aposentado, se não fosse pela colônia nem ligavam para a aposentadoria...eu acho muito os benefício da colônia, é bom para os pescador tudo, que compreende os regulamento, mantém os pagamento tudinho certo. Aqui ainda não tem, mas pode ter direito de médico e tudo, uma colônia bem organizada tem tudo isso, todo apoio de médico.”

“esse seguro desemprego está erradíssimo, se liberasse para pescar de anzol, se tivesse fiscalização mesmo, era muito melhor do que ficar do jeito que está. O seguro desemprego tira o pescador profissional do rio, tira, eu não vou lá para fazer pic-nic, pegar 5 kilo para comer lá, eu não vou. É o que o clandestino gosta, ele não vai, cicrano não vai, beltrano não vai, é ele que vai tomar conta do rio, porque fiscal não tem...tem seguro desemprego, tá tudo a vontade.”

“ A vantagem é ter a carteira, se a fiscalização vem e está com a carteira está com tudo exigido não tem problema nenhum.”

“Eu não sou profissional nem amador, que minha carteira não pode assinar como pescador, que eu tenho carteira assinada em firma e se bater, o computador pega”.

“eu tenho boas amizades na colônia, é mais fácil de a gente conseguir algum recurso, é mais fácil de resolver os problemas. Temos o presidente lá então não precisa ficar correndo atrás das coisas é o presidente que corre atrás para a gente. Enquanto a gente tá trabalhando o presidente tá resolvendo os problemas, é um benefício que nós temos”

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As comunidades ribeirinhas, especialmente aquelas que estão

envolvidas diretamente com a pesca profissional seguem uma

organização social que pode ser estudada de diversos ângulos. Um

primeiro nos traz a perspectiva que estas pessoas estão inseridas no

ambiente da margem do rio por pelo menos dois séculos e durante

este período de tempo adaptaram-se aquele ambiente, seus ciclos e

eventos. O segundo ângulo nos reporta à inserção de normas e valores

alheios à estrutura pré-existente. Um terceiro ângulo é caracterizado

pelo impacto da barragem do Rio Manso, este sobrepõe o primeiro e

do segundo, e nele encontramos a descontinuidade, a incerteza e a

necessidade de adaptação para sobrevivência.

No contexto estudado foram identificadas pelo menos três

formas de organização social. A primeira refere-se à realidade

ecológica e cultural dos ribeirinhos enquanto moradores das margens

ripárias. A segunda refere-se à organização enquanto morador,

pescador profissional, associado à colônia de pescadores Z-4, Nobres-

MT. A terceira organização identificada e reconhecida pelos

ribeirinhos é a fiscalização, uma estrutura que não tem como base

valores e regras locais e atende a interesses em nível regional e

federal. Esta é aqui tratada como uma estrutura alheia à comunidade,

mas que foi introduzida e necessita ser considerada em práticas

locais. As implicações destes níveis organizacionais, suas intra e

inter-relações abrem um leque de possibilidades na busca de

entendimentos acerca de formas de gestão e manejo para o Rio

Cuiabá.

A colônia de pescadores é um espaço que vem se organizando e

mostrando a capacidade que a classe possui de trabalhar por

condições mais justas e éticas de trabalho. Um exemplo claro foi a

realização do I Fórum Estadual de Pesca do Estado de Mato Grosso

que teve como objetivo “capacitar as lideranças das Colônias de

Pescadores para uma melhor intervenção nas Políticas Públicas; nas

atuações diárias dos trabalhos em diversas áreas, tais como

Previdência, Educação Ambiental, Fiscalização, Habilitação dos

Pescadores” (Convite/Programa do Evento). Representantes de todas

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as 12 colônias de pescadores existentes no Estado de Mato Grosso

estiveram presentes reforçando, assim, o caráter participativo das

colônias de pescadores. Neste evento o impacto da barragem do Rio

Manso foi discutido com fervor na busca de alternativas para

compensações. Na percepção dos pescadores, a prática da pesca

profissional no estado já impõe condições e restrições2 (Medeiros,

1999) que nenhum outro trabalho demanda. A barragem acentua as

condições que restringem mais ainda a atividade pesqueira fazendo

com que a sobrevivência através desta única atividade se tornasse um

desafio diário. Este cenário contribui para a veracidade de conceitos,

como o de exclusão social e ecossistêmica de populações como a do

Sítio Santa Rita.

A fiscalização é uma estrutura governamental em que a

concepção de controle adquire outro significado, pois a comunidade é

controlada e não exerce controle. Quando indagados acerca de

estruturas de gestão foi a primeira a ser citada ou referenciada. A

fiscalização é vista como uma estrutura não participativa, onde a voz

da classe de pescadores ainda é pouco considerada.

A atuação da fiscalização como uma instituição controladora da

atividade de pesca no Estado de Mato Grosso tem sido questionada

quanto à eficácia e representatividade fidedigna ao poder público.

Muitos são os relatos quanto a maus tratos e desrespeito ao

trabalhador do rio:

“ tem horas que eles são meio grosseiro...”

“ Da fiscalização eu não digo nada porque a fiscalização na

forma da lei é boa, agora a fiscalização muitas vezes é baderna

também, muito. Abusa, né?”

Com alterações na qualidade da água desde do represamento do

Rio Manso, alguns moradores da beira do rio, que consumiam água

do Rio Manso, não consomem mais e vão em busca de água, em

outros córregos ou minas durante o ano todo. O depoimento que

2 Ver Lei de Pesca do Estado de Mato Grosso n° 6.672 de 22 de outubro de 1995.

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segue é de um senhor viúvo, aposentado que usa sua canoa para

buscar água em uma mina:

“Muito ainda tem os canoeiro, agora nessa época aparece

mais, que os rio enche que a turma da fiscalização baixa em cima e

não deixa a gente pescar, nem para comer, teve um aí que veio e

queria que eu suspendesse minha canoa do rio para cá, eu digo, não

tem condição eu pego a minha canoa para buscar água, eu pego

água lá embaixo, não tem condição subir e descer a canoa toda vez

sozinho, tá loco, não sou obrigado a ficar arrastando canoa para lá e

para cá de jeito nenhum.”

Relatos como os aqui apresentados não são uma peculiaridade

desta pesquisa, estudos (Medeiros, 1999; Costa Jr, 1996; Da Silva &

Silva, 1995) também descrevem a percepção ribeirinha acerca da

atuação da fiscalização no estado. Por haverem várias estórias de

maus tratos, aspectos negativos relacionados à fiscalização, procurou-

se saber da comunidade o que poderia ser feito para que esta

instituição governamental melhorasse em sua atuação e

representatividade.

Os próprios ribeirinhos reconhecem a quantidade de trabalho

destinada aos poucos fiscais:

“ Eu acho que a fiscalização não tem condição de fiscalizar o

rio inteiro, o rio é muito grande e eles são poucos, enquanto eles tão

numa parte o pessoal tá rediando noutra.”

E o pouco apoio, recebido do próprio governo, para uma

eficácia maior no trabalho de fiscalização:

“Eu achava assim que eles tinham que dá mais apoio né, dá

mais incentivo assim para eles vim porque eles reclama que não tem

carro, falta de pessoal, eu achava que se o governo desse mais apoio

para nós nessa parte era melhor e apoiá a gente com a fiscalização,

para andar no rio pelo menos umas três ou quatro vezes por mês,

para nós seria melhor, principalmente na véspera da piracema.”

Quando indagados a respeito do pescador, como colaborador ou

até fiscal do rio, as respostas obtidas foram:

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“um tempo até ficou assim que era para os pescador

profissional ajudá a fiscalizar o rio, mas era para eles dá um recurso

para nós, uma ajuda porque não tem como nós trabalhar se nós não

ganha nada, aí ficou assim e eles achou difícil e não quis colocar os

pescador, aí ficou só eles mesmo e eles não dão conta. Não tem como

a gente trabalhar dado”.

“...no meu ponto de vista eu achava que os fiscal daqui seria

mais os pescador, aumentasse mais o nosso ganho e nós mesmo seria

os fiscal. Aí o governo ficava do nosso lado, mas ele paga nós um

salário que não dá nada. Se ele aumentasse nosso salário poderia

cobrar mais de nós também. E nós tinha jeito de cobrar dele também.

Nosso salário é pouco, que uma pessoa faz com um salário, numa

casa que tem três ou quatro criança?, não dá para nada. Se for para

trabalhar com outra coisa não pode. E essa época assim se eles

ficassem do nosso lado, no caso assim, mais apoio a colônia, um

trator para nós, desse uma ajuda porque é época de plantio, se

viesse um salário e mais uma ajuda para nós planta, era uma forma,

um jeito deles fica do nosso lado.”

São respostas que chamam por uma integração maior entre os

interesses do pescador em eticamente preservar sua classe

trabalhadora, seu sustento, seu modo de vida e os interesses do Poder

Público em manter pessoas, cidadãos, trabalhando legalmente, com

condições dignas de qualidade de vida. Mas a questão da autoridade,

do lugar ocupado, de quem entende do rio e de quem não entende, é

ponto forte e que merece destaque:

“Eu acho que nós (pescadores como fiscais) não controla

também porque o povo só respeita a polícia, uma pessoa como eu

eles não vão respeitar, né? Eles só tem medo da polícia, o outro que

não é polícia eles não respeita, aí vai caça briga com eles, não dá”.

“Nós temos medo de polícia, fiscalização, eles fazem é

amendrontar a gente...esses pescador tudo são assustado.”

Questões relacionadas ao poder da autoridade e a função social

dos pescadores foram levantadas por meio das indagações de

legitimidade “povo só respeita a polícia” e poder “nós temos medo

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da polícia”. Estas noções são extremamente importantes e remetem à

questão de como uma gestão integrada do sistema hídrico do Rio

Cuiabá, pode ser efetivamente alcançada.

É partindo deste ponto que busca-se, aqui, reconhecer a

discussão emergente acerca de espaços para participação e novas

propostas de manejo de recursos hídricos em nível nacional, regional

e local. Reconhecendo o que Castro (2000) sugere, as populações

tradicionais não somente estão no meio dos processos de mudanças

mais profundos de nossa contemporaneidade. Estes processos estão

marcados pela intensificação da lógica de mercado, das estruturas de

poder burocratizadas que estão em momento de serem chamadas a

tomar parte nas estruturas de gestão participativas que começam a

vigorar no Brasil e no mundo.

Essas estruturas de ordem podem ser exemplificadas através

dos Comitês de Bacia, que começam a ser implementados no Brasil.

A lei 9433/97 dita que Comitês de Bacias terão composição tripartite:

1) representantes da Administração Pública (federal, estadual e

municipal); 2) representantes dos usuários das águas de sua área de

atuação; e 3) representantes das entidades civis de recursos hídricos

com atuação comprovada na bacia (Irigaray, 2003). Para esta

composição tomar forma efetiva de participação é importante

observar considerações tais como as seguir destacadas:

É cediço que o longo período de autoritarismo vivido pelo nosso país desmobilizou a sociedade e enfraqueceu a cidadania. Resgatar o interesse pela ação política local e pela participação nos órgãos colegiados constituídos para a defesa de interesses difusos, requer uma ação concreta do Poder Público e das instituições políticas. A constituição de associações de moradores, usuários, ambientalistas, e o engajamento de instituições científicas e associações de profissionais devem ser estimuladas, sobretudo através de ações educativas que promovam o despertar de uma consciência ecológica, a sensibilização da sociedade e o interesse pela participação pública. Sensibilizar usuários e a sociedade civil, esclarecendo a real situação da água no mundo, é o primeiro passo para a criação de comitês de bacia operantes. Idêntico trabalho deve ser feito junto às autoridades municipais, prefeitos e vereadores que, via de regra, desconhecem a realidade dos problemas hídricos locais e a importância das ações preventivas. A informação é a chave que abre a porta à participação pública (Irigaray, 2003 p.68)

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Em relação à gestão de bacias hidrográficas, segundo Irigaray

(op. cit.), os comitês de bacia em funcionamento hoje, ainda não

atendem ao interesse de assegurar usos múltiplos das águas em bases

sustentáveis, este só é possível se o gerenciamento da bacia acontecer

de forma integrada e participativa e não fragmentada e pontual. A

participação, no caso brasileiro, requer um esforço singular, pois a

longa história de colonialismo e de escravidão somam-se ao período

de autoritarismo entre 1964 e 1986 como barreiras históricas e sociais

à construção de uma gestão participativa.

À medida que os comitês de bacia no Brasil superem estes

desafios, pode-se relacionar tal estrutura a uma instituição que

promova o que Berkes (2003) chama de uma conservação mais

inclinada à base de comunidade. Primeiro porque compartilha o poder

de gestão e a responsabilidade através de ligações multi-

institucionais, tais como agências governamentais, ONGs e sociedade

civil e segundo porque pode enfatizar o aprendizado de feedback e a

construção de respeito mútuo entre os diferentes parceiros.

Estudos mostram que muito pouco foi avaliado quanto aos

efeitos à jusante de barragens(Adams, 2000, 1985; Johnson, 1999).

Adams (2000) coloca alguns motivos para a falta de planejamento de

efeitos à jusante de barragens, dentre eles estão: a avaliação técnica

da natureza e extensão dos impactos à jusante requer dados

ambientais, sociais e econômicos. A avaliação desses impactos

também demanda um alto nível de conhecimento da dinâmica do

ecossistema, e a habilidade de fazer previsões realistas acerca das

respostas aos diferentes estresses e, acima de tudo, um entendimento

a respeito da sociedade e cultura das pessoas potencialmente afetadas;

a presença de consultores exteriores ao ambiente local desencadeia

uma legitimidade que deriva da tecnologia, perícia e experiência, mas

freqüentemente falta o conhecimento local; a inclinação disciplinar

inerente ao processo de planejamento de barragens possui impactos a

jusante significativos, pois a avaliação é dominada pelas disciplinas

‘hard’ como a engenharia, hidrologia e agronomia e pela mais

tecnocrática das ciências sociais, a economia. As disciplinas ‘soft’

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como ecologia, geografia, antropologia e sociologia, que são centrais

a uma avaliação holística dos impactos, tendem a ser marginais ao

processo de planejamento (Adams, 2000).

Infelizmente os processos e construções de barragens no mundo

são regidos pelo pensamento cartesiano, mecanicista e fragmentado

de desenvolvimento. Este fica claro quando o evidente é a falta de

transparência em políticas pouco eqüitativas. Irigaray (2003) observa

que a falta de transparência na administração pública é um dos fatores

que limitam a efetivação de uma gestão em bases participativas no

Brasil. Esta exclusão política e de participação foi sentida pela

comunidade do Sítio Santa Rita:

“Os ribeirinho mora aqui na beira do rio, eles podia fazer uma

reunião aqui com nós né? falava que ia fazer essa usina e podia fazer

alguma proposta aqui para gente que mora aqui, aí a gente fica

alegre, agora não fez nada de reunião e foi fazendo a usina e

prejudicou muita gente mesmo que mora aqui na beira do rio.”

Os efeitos da barragem continuam sendo vivenciados pela

comunidade que segue seu ritmo de vida ainda sem saber como está a

qualidade da água:

“Não falaram nada de como ta a água para nós, mas eu mesmo

sei que a água não está boa realmente porque eu vou lá, assim no

tempo da chuva, a água escura, a gente vai tomar ela e tem aquele

gosto, gosto fermentada, não é aquela água que a gente conheceu.”

Houve um pescador que desabafou seu medo quanto à

possibilidade de inundação caso a barragem se rompa, um

depoimento fruto da falta de comunicação clara, entre

empreendedores e empreendidos:

“A conversa que corre a gente não pode nem falá, mas a gente

sabe de coisa né, eu tive lá no mercado em Nobres, uma pessoa que

eu não posso dar a definição me falou ´vocês tudo tá em perigo, você

mora a onde?´eu falei moro lá na beira do rio ´FURNAS tá correndo

perigo de quebrar, ir embora, matar todo mundo para cá´ aí

encontrei com um menino até da FURNAS e ele falou ´não, pode

dormir descansado´ mas traz um suspeito de quem mora para baixo

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da barragem porque não sabe, né? e escuta essa conversa. Eu já

notei assim, fazer uma estradinha daqui lá naquela serra para

qualquer coisa... Então se ocorrer uma enchente bem forte e passar

por cima da barragem, então corre perigo? Mas Deus ajuda que não

acontece isso. Se num existisse perigo tudo bem, mas perigo existe, eu

não gosto de esperar, mas não tem perigo não, né?... Eu falei para

eles avisarem o quanto mais antes a gente para a gente pedir

socorro, saí daqui.” Pescador Aposentado.

De acordo com McCully (1996), os casos de incertezas quanto à

durabilidade de barragens e sensação de risco, governam vidas à

jusante em várias partes do mundo. Por algum tempo a vida das

pessoas à jusante da barragem seguirá regada de incertezas e

inseguranças, até que representantes legais de FURNAS se reúnam

com comunidades à jusante e esclareçam quanto às possibilidades

mínimas de um rompimento acontecer, e que eles serão avisados, na

eminência de um perigo. Não é difícil imaginar o porquê do alarme

por parte da comunidade. Eles nunca foram consultados. Por que

haveriam de confiar na informação de que se houver qualquer coisa,

eles seriam avisados com antecedência? A comunidade não tem

obrigação de saber dos riscos que uma barragem possa oferecer, ela

não sabe e isto ficou claro nesta pesquisa. Esta constatação remete a

falta de informação tal como foi colocada por Irigaray (2003) -

informação como chave que abre para a participação pública.

No que se refere ao compartilhamento dos benefícios as

comunidade observa o benefício que a barragem trouxe para outras

pessoas3:

“Olha a barragem para nós aqui não melhorou nada, para nós

não foi bom, agora para outros foi bom por causa que gerou energia

né e aí para outros lugar foi bom, mas para nós aqui...a água do rio

Manso ficou ruim até de beber...não fizeram nenhuma reunião para

falar para nós da água, num sei lá em Nobres, mas aqui não.”

3 Ver Irigaray 2003 que disserta sobre as campanhas apelativas feitas por FURNAS para ganhar apoio da sociedade civil, o chamado ‘terrorismo publicitário’.

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“Para eles foi bom, mais no nosso caso já ficou difícil, no caso

eles só pensou na parte deles, na nossa eles não pensaram que ia

causar isso com a gente. porque lá mesmo para não dar essa

dequada4 acharam que deveriam fazer um desmatamento, porque

eles sabiam que a quantidade da água ia subir e não fizeram o

desmatamento, só prenderam a água aí deu a dequada da água que

ta aí até hoje.”

Pode-se verificar que a falta de informação, ausência de

participação e compartilhamento de benefícios no planejamento e

execusão da barragem do Rio Manso provocou uma descontinuidade

sócio-cultural nas comunidades a jusante, como a comunidade Sítio

Santa Rita:

“Eu não tô pretendendo fazer a carteira porque meu pai não

quer deixar, ele falou para largar do rio....” (20 anos).

“Da minha idade (22 anos) na colônia que eu conheço só eu e

outro rapaz aqui que tirou carteira agora...não sei porque outros

colegas mais novo não quer fazer carteira, falta de interesse de cada

um...também não sei se vou ficar aqui, se ficar mais fácil de

sobreviver pode ser, mas por agora eu vou ficar depois quero

arrumar serviço melhor.”

“Não quero ser pescador profissional porque não adianta

nada...o peixe tá acabando já, tá muito pouco...quero trabalhar na

fazenda, tem amigos que trabalham lá...faz pouco tempo que decidi

não ser profissional, eu decidi porque do peixe não se está ganhando

nada, muito pouco e ficar com carteira aí não vai adiantar.” 18 anos

filho e neto de pescador profissional os amigos saíram para tentar a

vida plantando soja e deixaram a pesca de lado devido à falta de

perspectiva.

“Eu fui crescendo e fui gostando de pescar, aprendendo a

pescar com as iscazinha, os turistas comprava as iscas e os peixe que

4 Segundo um ribeirinho dequada é definida como “aquela água que podrece aquelas folhas, aqueles pau, aquela lodada das folha, madeira.” Da Silva (1984), em nota prévia a este conhecimento empírico descreve os processos biológicos envolvidos neste conceito, sendo esses os associados a matéria orgânica acumulada no hipolímnio (porção mais profunda do lago) em decomposição anaeróbica e produzindo gases sulfídrico e metano.

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a gente pegava e eu fui interessando. Aí o peixe diminuiu, como o rio

baixou muito, aí diminuiu aí acabou né. O turista foi diminuindo,

diminuindo até acabou, não tem mais ninguém,, agora eu não

interesso em ficar aqui, vou estudar para arrumar serviço.” (20 anos)

“Eu não quero continuar morando aqui, é muito ruim aqui, não

tem para onde sair, não tem aonde trabalhar, não tem serviço. Na

hora que eu terminar meus estudos quero ver se consigo um serviço

na cidade, trabalhar, porque aqui não tem trabalho..Eu acho que

aos poucos as pessoas jovens não vai querer ficar tudo aqui para

sempre, eles querem sair, procurar serviço, estudar.” (17 anos).

Com a construção da barragem, algumas famílias deixaram de

viver na beira do Rio e foram tentar a vida na cidade, em busca de

sobrevivência. O conhecimento acerca da “vida na cidade” adquiriu

prioridade sob a vida à beira do rio, gerando o que Marques (2001)

chama de “emigração marginalizante”. A concepção do que é uma

vida melhor ganha forma diferente à margem da sociedade urbana.

Seu saber e modo de vida, ritmados pelo movimento do rio, são

suprimidos com valores e conceitos que andam em direção oposta ao

conhecimento já adquirido. Uma nova forma de organização social

ritmada pela urbanização emerge substituindo aquela imprimida pelo

ritmo das águas.

Uma maneira de entender os movimentos sócio-ecológicos que

regem a vida de comunidades tradicionais é através de esquemas que

representem diferentes conceitos que interagem dinamicamente

(Figura 2) no desenho da vida de comunidades ribeirinhas, como a do

Sítio Santa Rita.

Padrões de interação

Sociedade

sustentável

Ecossistemas

Pessoas e tecnologia

Conhecimento local

Direito de propriedade

Resultados

Influências regionais, nacionais e globais

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Figura 2 – Esquema para analisar as relações entre sistemas sociais e ecológicos para resiliência e sustentabilidade. Fonte: Berkes & Folke 1998.

Para entender a aplicação deste esquema analítico a este estudo

é importante desdobrar os diferentes conceitos nele envolvidos. Quais

são as características dos ecossistemas em questão? Como é sua

estrutura e funcionamento? No estudo de caso apresentado temos um

sistema hidrológico tropical regido por um pulso de inundação

específico. Berkes & Folke (1998) sugerem que nem todas as

características do ecossistema possuem significado igual. Vale então

identificar variáveis bióticas e abióticas e processos físicos, que

caracterizam tal ecossistema. A descrição de um sistema social inicia

pelas pessoas enquanto comunidades envolvidas e a tecnologia por

elas empregada. O uso ou escolha de tal tecnologia pode fornecer

dados acerca dessas comunidades e talvez a sustentabilidade

envolvida em suas práticas. O conhecimento local está diretamente

ligado à realização de práticas dentro de um dado ecossistema. Esses

autores apontam que lições úteis de manejo vêm de sociedades que

sobreviveram à escassez de recursos. Tais sociedades adaptam-se a

mudanças e aprendem a interpretar sinais sobre o estoque de recursos

(Pàlsson, 1998) através de um processo sócio-ecológico dinâmico

fazendo com que instituições flexíveis sejam desenvolvidas para lidar

com crises de manejo de recursos. Este conhecimento adquirido

credita a estas comunidades o direito de propriedade sob os mesmos.

Este conhecimento pode ser traduzido na forma dos etnoindicadores

registrados por Silveira (2004).

Os padrões de interação gerados pelo sistema social local

derivam de práticas de manejo (Berkes & Folke, 1998.). No caso

deste estudo, a atividade pesqueira baseada no conhecimento

ecológico do sistema hídrico, cujo os padrões são advindos da

dinâmica do pulso de inundação e de controles de manejo pela

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colônia, fiscalização e atualmente pela hidrelétrica de Manso, sua

estrutura e funcionamento. Todas essas interações, de manejo e/ou

controle, geram resultados que podem ser sustentáveis ou não

dependendo da escala de observação e intensidade de interações.

É importante notar que mudanças registradas em determinados

sistemas sociais e ecológicos possuem magnitudes com escalas

diferentes. A magnitude do impacto para populações à jusante da

barragem, como o Sítio Santa Rita, que estão diretamente ligadas à

estrutura e funcionamento do Rio Cuiabá, foi local com caráter

global, considerando que o rio significa o mundo para essas

comunidades. Para populações urbanas, como a de Cuiabá, o impacto

poder ser visto como local, porque sua reprodução ecológica e

cultural supera e sobrevive. Este reconhecimento é fundamental na

identificação dos padrões de interação e resultados.

Sistemas sociais e ecológicos tendem a um fluxo cíclico como

demonstrado no esquema. Este, em conjunto com a gestão de

recursos, pode ser entendido através da perspectiva da resiliência.

Berkes et al (2000), abordam a resiliência como a capacidade de

recuperação depois de distúrbio que absorve stress, internaliza e

transcende. Resiliência é vista de maneira a conservar opções e

oportunidade de renovação e novidade. Segundo esses autores,

conceitos de adaptação e de resiliência podem ser incorporados a

instituições para que estas se tornem mais capazes de responder a

mudanças. Esta incorporação pode ser da seguinte forma: 1) manejo

usando regras que são cunhadas localmente e cumpridas socialmente

pelos próprios envolvidos; 2) uso do recurso tende a ser flexível com

áreas de rotatividade, troca de espécies e outras práticas; 3) acumulo

de uma base conceitual ecológica que ajuda a responder e a

interpretar eventos ambientais, tais como a mudança em captura por

unidade de esforço que ajuda a monitorar o status do recurso; 4)

utilização de uma diversidade de recursos para segurança do modo de

vida mantendo opções abertas e minimizando riscos; e 5)

operacionalização efetuada com o uso do manejo qualitativo onde

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feedbacks de mudanças nos recursos e no ecossistema indicam a

direção pela qual a gestão deve tomar.

Nesta pesquisa tais conceitos podem ser incorporados em

instituições como as descritas: colônia de pesca, fiscalização e nos

comitês de bacia. Segundo Berkes (2004) a comunidades está em

constante mudança, não é um grupo estático ou isolado. São unidades

multidimensionais e/ou redes sócio-políticas transversais, daí a

justificativa em pensar nas comunidades e não nas instituições

definidas como um conjunto de regras que são realmente utilizadas,

que estão sendo definidas ou já em uso.

Instituições são obrigações humanamente idealizadas, que estruturam as interações humanas, as quais foram feitas de obrigações formais (regras, leis, constituições) e obrigações informais (normas de comportamento, convenções de códigos de conduta auto impostos) e suas características de efetivação ou cumprimento...Nós concentramos na dinâmica dessas instituições, ou seja, a renovação e a reorganização, o aprendizado e o adaptado, e a habilidade dessas instituições em lidar com mudanças (Berkes, 2004, p 623).

Neste estudo, quando se considera a colônia de pesca e o

comitê de bacia como instituições, pode-se adaptar a estrutura e o

funcionamento dessas redes sócio-políticas transversais, uma vez que

elas são alicerçadas nas interações humanas. As obrigações formais

que as compõe vêm do controle legal governamental e obrigações

informais são advindas de princípios de organização social local.

Desta forma pode-se ter a possibilidade de dinamizar essas

instituições, frente às mudanças ecológicas e culturais como a represa

do Manso.

Com esta perspectiva, abrem-se aqui as possibilidades que

trabalhos de gestão, com instituições já existentes, podem oferecer na

busca de um manejo integrado e participativo do sistema hídrico do

Rio Cuiabá. Manejo este onde a resiliência é reconhecida como a base

para a manutenção da unicidade de sistemas sócio-culturais e

ecológicos como o Rio Cuiabá.

Agradecimentos:

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Á Comunidade do Sítio Santa Rita. Ao CNPq e o programa de Ciência e Tecnologia – Hidro.

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