a aventura sociológica edson oliveira nunes - organizador

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A REVOLUgAO BURGUESA NO BRASIL Florestan Fernandes (2* Para chegar a conceituacao c "revolucao burguesa", Florest; formacao da economia e da s em que se iniciou a coloniza exercer melhor a critica da <_ a nossa )rocesso de tempos snao para j suas estruturas, submetidas a rigorosa analise. Hssa angulacao Ihe permite ver as singularidades brasileiras dos conceitos de- "revolucao burguesa", "burguesia" e "burgues", conceitos estes que nao podem ser aplicados no Brasil como simples transposicao academica. Capitulos como os que versam sobre o status colonial, as implicacoes sociais e economicas da Independencia e a formacao da ordem social competitiva estabelecem as condicoes e iluminam os estagios do desencadeamento historico da nossa "revolucao burguesa". Alto nivel de interesse ganham igualmente as paginas dedicadas ao exame dos prol>lemas da crise do poder burgues no Brasil, crise deflagrada pela passagem do capitalismo competitive ao capitalismo mcnopoHsta. Desdobra-se essa analise na abordagem do modelo autarquico-burgues de transformacao capitalista vigente no Brasil, e das contradicoes sociais e politicas geradas no interior da nova ordem. A SOCIOLOGIA NUMA ERA DE REVOLUQAO SOCIAL Florestan Fernandes (2. a ed., reorg. e ampl.) Este livro, que anarece sob organizacao relativamente diversa, em sua segunda edicao, reiine ensaios voltados para o tipo de conhecimento que o sociologo deve criar quando se procura atingir o desenvolvimento de acordo com os requisites da democratic. Escritos numa epoca em que narecia pacifico que os principals pafses da America Latina, o Brasil inclusive, possuiam condicoes para desencadear uma revolucao democratica "dentro da ordem", eles fccalizam as tarefas r,r£ticas da Sociologia e a interacao^dos panels que o scciologo deve desempenhar em sua dupla condicao de cientista e cidadaa. Apesar das aparencias, o livro nao perdeu sua atualidade. Suas principais ideias ainda estao de pe. Que estrategia devemos seguir, nas condicoes brasileiras, nara o desenvolvimento da ciencia? O que precisa fazer o sociologo, enquanto cientista, para converter o ccnhecimento sociologico em um conhecimento critico, litil ao "planejamento dentro da Uberdade"? A realidade que exigia o debate dessas ideias nao desapareceu. Ao contrario, ela se agravou, impondo que retomemos, de modo ainda mats intenso, o debate interrompido. Z A H A R A culture o service do progresso social «?H' •^ L } k iJi ^f > ^\ -^ "^ r-Y :JB *' ^.J -.. >«Jh»- **'fl (6.001,5 EDITORES idson de Oliveira Nunes (organizador) A Ayentura Sociologica Objetividade, Paixao, Improvise e Metodo na Pesquisa Social Z A H A de ciencias sociais EDITORES

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Page 1: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

A REVOLUgAO BURGUESA NO BRASILFlorestan Fernandes (2*

Para chegar a conceituacao c"revolucao burguesa", Florest;formacao da economia e da sem que se iniciou a colonizaexercer melhor a critica da <_

a nossa)rocesso detempos

snao paraj suas

estruturas, submetidas a rigorosa analise. Hssa angulacao Ihe permitever as singularidades brasileiras dos conceitos de- "revolucao burguesa","burguesia" e "burgues", conceitos estes que nao podem ser aplicadosno Brasil como simples transposicao academica. Capitulos comoos que versam sobre o status colonial, as implicacoes sociais eeconomicas da Independencia e a formacao da ordem socialcompetitiva estabelecem as condicoes e iluminam os estagios dodesencadeamento historico da nossa "revolucao burguesa".Alto nivel de interesse ganham igualmente as paginas dedicadas aoexame dos prol>lemas da crise do poder burgues no Brasil, crisedeflagrada pela passagem do capitalismo competitive ao capitalismomcnopoHsta. Desdobra-se essa analise na abordagem do modeloautarquico-burgues de transformacao capitalista vigente no Brasil,e das contradicoes sociais e politicas geradas no interior da nova ordem.

A SOCIOLOGIA NUMA ERA DEREVOLUQAO SOCIAL

Florestan Fernandes (2.a ed., reorg. e ampl.)

Este livro, que anarece sob organizacao relativamente diversa, emsua segunda edicao, reiine ensaios voltados para o tipo de conhecimentoque o sociologo deve criar quando se procura atingir odesenvolvimento de acordo com os requisites da democratic. Escritosnuma epoca em que narecia pacifico que os principals pafses daAmerica Latina, o Brasil inclusive, possuiam condicoes paradesencadear uma revolucao democratica "dentro da ordem", elesfccalizam as tarefas r,r£ticas da Sociologia e a interacao^dos panelsque o scciologo deve desempenhar em sua dupla condicao decientista e cidadaa.

Apesar das aparencias, o livro nao perdeu sua atualidade. Suasprincipais ideias ainda estao de pe. Que estrategia devemos seguir,nas condicoes brasileiras, nara o desenvolvimento da ciencia?O que precisa fazer o sociologo, enquanto cientista, para convertero ccnhecimento sociologico em um conhecimento critico, litil ao"planejamento dentro da Uberdade"? A realidade que exigia o debatedessas ideias nao desapareceu. Ao contrario, ela se agravou,impondo que retomemos, de modo ainda mats intenso, o debateinterrompido.

Z A H A R

A culture o service do progresso social

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EDITORES

idson de Oliveira Nunes(organizador)

A AyenturaSociologica

Objetividade, Paixao, Improvise eMetodo na Pesquisa Social

Z A H A

d e c i e n c i a s s o c i a i s

EDITORES

Page 2: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

A AVENTURA SOCIOLOGICA

Trata-se este de urn volume singular,Nele, conhecidos cientistas sociais brasileirosnarram sua pratica de pesquisa, suasindecisoes, descobertas e incertezas. Narramseu. processo .de trabalho e procuramdescrever e rejfletir sobre o seu cotidiano deproduc.ao de conhecimento, preocupando-sebasicamente com as questoes metodologicas.

Talvez seja mesmo este o topico que resumee :faz convergir essas cronicas: o processode desvendar cientificamente a realidadesegundo os individuos que fazem das CienciasSociais a sua profissao, Mas a maiorparticularidade do livro reside na maneirapela qual foram escritas as cronicas.Elas foram contadas na primeira pessoa dosingular, retratando a interagSo do investigadorcom. os problemas metodologicos e coma complexidade 'do objeto, Nao se trata,pbrtanto, de discursos normativos, taoproprios aos manuals de metodologia da •pesquisa, m'as sim de relates que recuperam ofascinante processo de encontro com arealidade e com sua captagao em basesanalfticas. A rigor, estas sao historiasque os .manuais nao contam; sao historias dapratica cotidiana de trabalho clentifico.

Ouatro formas diferentes de intera^ao coma pesquisa social sao destacadas. 'Emprimeiro lugar, examina-se a busca da realidade

catrav^s da entrevista e da observa^ao, \:

ressaltando as diferentes estratlgias de1 abordageiri, a versao qualitativa, aI'quantitativa e a associagao das tecnicas. SaoI artigos distintps que exemplificam p^ara olestiidioso as peculiarsdades destas. tecnicas,§ jiem sempre alternativas, de pesquisaj social. Tarabe*m se vera, num segundo passo,;,^a apresenta^ao de tentativas de reconstrucaO!/, de fatos recentes representados por'! processes decisorios ja encerrados, e sobre;' o^quais se deseja produzir interpreta<;ao, Em

1" (.continue net 2f aba)

A AVENTURA SOCIOL6GICA

Objetividade, Paixao, Improvisee Metodo na Pesquisa Social

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Sbcpa/Pf1?

BIBLIOTECA DE CIENGIAS SOCIAIS

Sociologia e Antropologia

.,

Edson de Giveira Nunes(organizador)'"

Objetividade, Paixao; ImproVisp/e. Metodo na Pesquis a-.Social.

ZAHAR EDITORESRIO DE

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Copyright © 1978 by Edson de Oliveira Nunes

capo deJ A N E

f^iblioteca Cert-.

UF/ES" I

Nenhuma parte deste livro poderd ser reproduzidasejam quais forem os meios empregados

fmtmeografia, xerox, datilografia, gravafao, reproducao em discoou em fita)f sem a permissao por escrito da editora. •

Aos ittfratores se apUcam as sanfoes previstas nos artigos 122 e 130 daLei n.° 5.988 de 14 .de dezembro de 1973i

T O M B . / 9 3

Sist. Bibliofecas/UFES1 9 7 8

Direitos para esta edigao contratados com

Z A H A R E D I T O R E S

Caixa Postal 207. ZC-00, Rio

Impresso no Brazil''

J

INDICE

Pequena Introdugao a Avetttura SociologicaBOSON DE OLIVEIRA NUNES

I — A Busca da Realidade Objetiva A trovesda Entrevista e da Observance

A — Versao Qualitativa

O Offcio de Etndlogo, ou como Ter "Anthropological Blues"(ROBERTO DA MATTA)Observando o Familiar (GILBERTO VELHO)Entrevistando Famfiias: Notas sobre o Trabalho de Campo(TANIA SALEM)

21

B — A Versao Quantitativa .,

"Brab Drain": Pesquisa Multinacional (SIMON SCHWARTZMAN)Os ResultadosA MetodologiaA Teoria : ,

~O Contexto InstitutionalPesquisa Para ou Pesquisa Aplicada -.ConclusoesMetodo e Improvisagao, ou como Conseguir uma EntrevistaNaquele Setor Que Vai dos Fundos da Igreja -Mainz ate oCorrego e Dali as Margens da Rio-Battia (AMAURY DE SOUZA)Fontes de Erros em Pesquisas or Atnostras ... f

O Desenho Amostral e o Problema da Nao-CoberturaO Trabalho de Campo e o Problema da Nao-RespqstaBibliografia ".'.'

47

65

676874

si85

8689

100108119

C — A Associate das Tecnicas. 123

6] Observa?ao Participante e "Survey": Uma Experiencia deConjugacao (NEUMA AGTJIAR) 125

~i-Hist6ria Pessoal e Eleigao de um Problema Cientifico 130^^4 Construgao do Problema de .Investigofao: Da Biografia a

Teoria 135Generalizafao ao Nivei da Coleta de Dados 137

Page 5: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

A A VENTURA SOCIOL&HCA

Especificacao Progressive; Invertendo o Mavimento de Gene-ralizacao 139A Pesquisa 143Conclusoes 150

II — Reconstrucao de Processes Decisorios:A Analise do Passado Recente

7. Da Ignorancia Especifica (ou da Est&ica Sociolbgica)(EDMUNDO CAMPXJS COELHO) 155

y O Projeto 157^ A Conexao Burocratica 15S

A Equips 153O Trabalho Initial de Campo , 161Pantos de Ancoragem , 164A Reconstrucao do Processo 166

^O Planejamento coma Politico 171Reavaliando a Ignorancia , 173Uma Satisfacao a Metodocracia .-..'....'- 175

8. Voce" Quer Ir a Paris? Ou de como Passei a Extender deDisseminacao de Resultados de Pesquisas de Ciencias SociaisEntre "Policy-Makers" (ALEXANDBE DE S. C. BARBOS) 178Como Comecou a Historia 182A Realizacao da Pesquisa 186Depois dps Dados 191Decisoes Criticas Nao-Antecipadas 193Post-Scriptum 197

III — A Reconstrucao Historica deProcesses Politicos e Sociais

9. Coroneis e Burocratas no Brasil Imperial: Cronica Analiticav jie uma Suitese Historica (FERNANDO URICOECHEA) 201

Tentative de Reconstrucao Empi'rica de um Movimento Poli-1 tico Radical (HELGIO TRIMPADE) .' 226

-^ Origens do TemaT, .T. ~ 227jsEstrutttracao do Trabalho 230\Etnergencia das Hipoteses 235

A Estrategia da Pesquisa ' 239/(nejro J: Entrevista Semidiretiva 257Anexo 2: Questionario .".T.... 259Anexo 3: Atitudes.Ideologicas 264Anexo 4: Escalas de Atitudes Ideologicas 270

11. O Ator, o Pesquisador e a Historia: Impasses Metodologicosna Implantacao do CPDOC (ASPASIA ALCANTARA CAMAKGO) .. 276Advertencia _ . 2761. Um Ponto de Partida: Documentacao e Pesquisa 2772. Historia Oral: Entrevistando Lideres 282

a) Primeiras Opcoes 282, . b) Delimitacao de um Tema 288

i c) A Velha e a Nova Questao da Objetividade 290d) Entrevista como Docttmento Histdrico 291e) O Processo de Entrevista 296

- • f) Abordagem InterdiscipHnar em Perspective! 301

INDICE

A Guisa de Conditsao: Dinamismo Institutional e Receptivi-dade Social ...............................................

IV — A Perspectiva Externa ao Processo de Pesquisa

12. Memories de um Orientador de Tese (CLAUDIO MOUKA. CAS-TBO) ....................................................Introducao ..............................................O Que Nao £ Uma Tese? .................................O Evento Traumdtico da Escolha do Tema ..................Didrio de um Orientador ..................................

a) A Ambicao Excessiva: Os Tratados Definitives ......b) A Historia da Humanidade como Tema de Tese .....c) Das Maneiras Naturais de se Dispor Mai do Tempo:

Excesso de Dados e Excassez de Analise ..........d) As Ofensas a Lingua Pdtria; Prova de Redacao para

o Mestrado? ....................................e) Do Discurso de Vereador ao Discurso Cientifico .....f) O Orientador como Guia Espiritual e Consultor Sen-

timental .......................................g) Dos Direitos e Deveres do Orientador ..............

302

307307308314317

317318

319

323324

324325

Nota sobre os Autores 327

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Pequena Introdugao a AventuraSociologica

EDSON DE OLIVEIBA NUNES

Neste volume, o leitor tera acesso a varies artigos, cronicas,que relatam o processo de elaboracao de pesquisas sociais.A caracterfstica basica destas cronicas e representada por sua preo-cupacao com a "logica da descoherta" e por seu desinteresse propo-sital com os aspectos normativos da metodologia da pesquisa. Foresforeo deliberado procurou-se reconstruir o processo de reflexaoe as estrategias utilizadas por cada autor no desenrolar de sua ati-vidade. Com este procedimento, procura-se gontrappr ao necessariodiscursp nQrmatjva^dQs,.tnaauais_a^ rigueza, a atipicidade e a pes-soalidade do cQtidiano_da_p_esguisa. Nesta pequena introdugao, pro-cure, a semelhanca do que os outros artigos fazem com a pesquisa,relatar o processo de reflexao que levou a construcao deste volume^bem como expor algumas questoes que se impuseram durante e aofinal deste processo.

Comecemos por explicitar a argumentagao e a pauta dasquestoes que serviram inicialmente como quadro de referencia ejustificativa para o livro.

* * *

A literatura acerca da metodologia da investigacao sociologicae bastante rica e fertil. O estudante do tema tera a sua 'disposicaouma vasta gama de textos introdutorios, bem como variadas 'alter-nativas de textos profissionais sofisticados. Ademais, nas revistas daprofissao poderao ser encontrados iniimeros artigos acerca de mo-delos de analises, medidas particulares, escalas, testes especificos,etc. Num outro veio de interesse. ainda ligado a metodologia, sera

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10 A AVENTURA SOCIOL6GICA

tambem facil o acesso a inumeras discussoes referidas as questoesepisteinologicas da pesquisa social. Como se nao bastasse o rico fi-lao bibliografico, o estudioso ou estudante ainda tern aberta a pos-sibilidade de freqiientar cursos sobre a metodologia da pesquisa oua epistemologia das ciencias sociais.

No que se refere, portanto, a esses temas, e bastante satisfato-rio o acervo disponivel das disciplinas sociais. Ha, contudo, um as-pecto que tern merecido pouca atengao e para o qual algumas ana-lises recentes tern se voltado: e a pratica dos pesquisadores cemo"uma^nstjncia de estudo e como forma de enriquecimento das dis-ciplines.^

Ja se referiu varias vezes1 que, apesar da extensa literatura so-bre metodos, pouco se conhece sobre "o metodo" utilizado para alealizagao de estudos especificos, uma vez que os manuais estariammale voltados para um exame logico dos metodos de pesquisas, in-teressados sobretudo numa logica mais propria ao "contexto dajustificagao" do que ao "contexto da descoberta".2 Alem disso, en-<raanto estudante, o analista j pjayebgente^^cjiltujg^e-CQm concep-«3es normativas do metodo cientffico a medida em que e introdu-zido nas tecnicas pertinentes a investigagao social enquanto corpode referenda normative. A atitude correspondente a tal sociali-zagao seria a de que a ciencia implica em um metodo, um procedi-mento caracterizado pelos passes invariantes da hipotetizac.ao, ob-servagao, testagem e confinnagao; o suposto seria o de que, ao se-guir tais passes, o analista estaria atendendo a procedimentos con-sensuais entre os cientistas e, alem disso, estaria excluindo da pes-quisa os_seus_sentiraentos_pessoais.i Em adendo, a utilizacao de taispraticas aponta para uma racionalidade que deveria caracterizar apratica da pesquisa. A utilizagao de arcaboueos logicos e normati-vos, a semelhanga de checking-lists, atfibuiria a necessaria raciona-lidade aos projetos de pesquisas, diminuindo, ainda mais, a interfe-rencia das predilegoes do investigador.3

1 Ver, por exemplo, a este respeito, Foote White, W. Street CornerSociety, The University of Chicago Press, Chicago, 1970, especialmenteo ApSndice Metodologico. Ver ainda o "Apendice sabre Metodo", deDalton, M, em Men Who Manage, John Wiley & Sons,_ New York, 1959.Tambem estimulante, no mesmo sentido, e a "Introdufao" de Hammond,P., na coletanea por ele organizada sob o titulo de Sociologists at Work,Anchor Books, Doubleday and Company, Nova York, 1967 (o trabalho•de Dalton acima citado esta reproduzido na coletanea editada porHammond).2 As nogoes de "contexto de justificacao" e "contexto da descoberta",empreatadas por Reiohembach, sao tomadas de Hammond, op. cit,3 Estimulante, a este respeito, a leitura de Blum, Alan, "The Corpus ofKnowledge as a Normative Order: Intelectual Critiques of the Common-

11, O exame de alguns relatorios de pesquisa pode, sem grande

esforco, corroborar tal perspective. A descrigao da metodoloffiautilizada, a explicagao dos passes e etapas da pesquisa, as referenciaaas tecnicas escolhidas para analise sao usualmente demonstradas_sfe_gundo aquele^ areabtmco logico-normativo proprio ao contexto dajustificacao.

Evidentemente, os piocedimentos fortnalizados enquanto cor-pos normativos de referenda sao de enorme utilidade tanto no pro-cesso de investigate quanto no de comunicac.ao dos resultados depesquisa.4 A postura compartilhada e, de certa forma, negociadapelos membros da comunidade academica, no que se refere aos ca-nones da pesquisa e da comunicacao, e de extrema utilidade no quetoca a padroes de julgamento e validagao dos estudos realizados.Sua utilizacao e reprodugao no limite, contudo, pode acarretar efei-tos distintos daqueles considerados benefices e necessaries: a jtrj-.fauJfig2-d&_gap.&l-demiurgico & metodologja^e.-aJbipostasia da racio-nalidade acabam por tolher a^esvirtuar^o avango das discipjinas.

O estudo"Has prdticas dos pesquisadores em seu cotidiano deinvestigagao pode, entretanto, oferecer estimulantes subsidies aoestudante voltado para o aprendizado do corpo normative da me-todologia da pesquisa, Isso contem implicacoes interessantes, A pri-meira e a de que e litil para a sociologia, ou para a metodologia dapesquisa, tomar o sociologo em sua pratica didria de descrever eanalisar "o mundo" como objeto de estudo importante para o enri-quecimento do acervo metodologieo das disciplinas sociais. A se-gunda implicagao e a de que as prefereneias ou estilos pessoais in-fluem nas solugoes encontradas pelos analistas para seus problemasde pesquisa. A terceira e a de que o processo de pesquisa so contemracionalidade maxima quando relatado segundo os cauones do con-texto da justificativa; no dia-a-dia, ao contrario, o analista deveraresolver questoes, tomar decisoes, escolher caminhos uao programa-dos, solucionar, enfim, o "quebra-cabega" cotidiano de sua pesquisa.

sense Features of Bodies of Knowledge" in McKinney e Tiryakin, Theo-retical Sociology — The Meredith Corporation, 1970, pp. 319/336.* Exemplos da instancia normativa a que se refere o texto estao semi-nalmente desenvolvidas em Lazarsfeld, P.; Pasanela, A.; Rosemberg, M.Continuities in the Language of Social Research, The Free Press, NovaYork, 1972. Ver tambem, para exemplo, o trabalho de Lazarsfeld, "ThePlace of Empirical Social Research in the Map of Contemporary Socio-logy" in McKinney, J. e Tiryakin, E., Theoretical Sociology, The Mere-dith Corporation, Nova York, 1970, pp. 301/318, sobre a questao dos valo-res e prefereneias do pesquisador, ou, por exemplo, Howard Becker, "Deque lado Estamos?" e "Politica Radical e Pesquisa Sociol6gica: Observa-•coes sobre Metodologia e Ideologia", in Uma Teoria da Acao Coletiva,Zahar Editores, Rio, 1977.

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12 A AVENTURA SOQOL6GICA

A quarta e a de que o estudo das solugoes dadas por cada pesquisa-dor constitui conhecimento agregavel ao eorpo metodologico nor-mativo ja referendado e negociado pelo bom seuso dos membrosda comunidade da diseiplina.

Com essa otica, surgiu a ideia da preparacao de uma coletaneade ensaios.5 A suposigao, bastante obvia, <jue se fez e a de que a pra-tica da pesquisa produz nao apenas os resultados descritos nos rela-torios, como tambem produz conhecimento metodologico relevantealem de, naqueles ambientes institucionais e organizados, resultarem informacao sobre a organizagao da pesquisa, sua relagao comclientes e/ou patrocinadores, sua administracao, etc. A coletaneadeveria ser composta de textos particularizantes ao inves de gene-ralizantes; textos mais referidos a pratica dos condutores da pes-quisa do que ao arcabougo normativo-metodologico; especial aten-cao deveria ser dada a descrigao da pesquisa (elaboragao do projeto,grau de especificagao do projeto e do "desenho" inicial, modifiea-coes ocorridas, problemas, falbas, erros, relagao com o objeto estu-dado, com patrocinadores, etc.) e a motivagao para faze-la. Formaparticular de enriquecer o paper seria o oferecimento ao leitor deum contraponto com a teoria e a metodologia pertinentes: destaforma ficariam claros os pontos de desvio, as solucoes, os achados.Este contraponto poderia compor o proprio corpo do paper ou serexecutado por uma prospera politica de pes-de-pagina, Estariamossempre a procura da demonstracao do que e especifico a cada estu-do, em eomparacao com o acervo.

* * *Compete, para melhor esclarecimento, relatar em maior de-

talbe o processo que conduziu a proposigao da coletanea.Em julho de 1976, em virtude do oficio de sociologo, envolvi-

me fortemente com leituras e debates, acerca da metodologia e darotina da pesquisa em ciencias sociais. Movido, por um lado, pelanecessidade de melbor solucionar algumas diividas propostas pelocotidiano da coordenagao de pesquisas e, por outro, pelo trabalhode preparacao de minha dissertagao de mestrado — que versariaexatamente sobre a rotina de pesquisa em ambientes organizados —deliberei que tentaria convencer os companheiros de trabalbo a pro-duzir relates do dia-a-dia dos estudos que realizavamos, com o in-tuito de preparar um pormenorizado caderno de textos que deta-

5 Evidentemente a proposicao nao e original, uma vez que esta clara-mente influenciada pelos trabalhos acima citados. O principal merito,entretanto, consistiria em fazer circular de publico experiencias relativasa pesquisas desenvo'.vidas no Brasil, com as peculiaridades que Ihe saooertinentes.

PfijQUENA 13

Inassem discrepaucias entre nosso trabalho e as prescrieoes dos ma-nuais de tecnicas de pesquisa. Percebia, apos quatro anos na coor-denacao de um grupo de pesquisadores, certas distancias intrigan-tes entre a nossa pratica e a receitada nos livros. Nao^estava muitolonge de cp^cjui£jjue_executavamos. o_ permanente e cotidiano as'sassinato^do metodo. Eram tantas as questoes a resolver, tantos ospequenos detalhes, tantos os improvises, tao intense, sistematico epenoso o afastamento entre a pesquisa e o projeto inicial que, talvez— indicava o providencial bom senso — esta fosse a regra, e naoa excecao e que, talvez, alnda, fosse sensato e relevante produzirrelates que pudessem fixar publicamente esta experiencia.

Ao mesmo tempo em que estas preocupagoes com o caratet.eventuabnente profano de nossa pratica se desenvolvia, cresciamoutras^~3uvidas acompannadas de dtizias de problemas sobre a orga-nizagao e a administracao de pesquisa, sobre os conflitos das pes-soas no trabalho, enfiin, sobre a ambiencia da pesquisa que se de-senvolve em instituieoes academicas, em organizagoes complexas. ^_

Pude perceber, pela leitura e pela troca de impressoes com. co-legas, que nao estava travando contato com problemas particulares.Pelo contrario, desenhava-se ai um veio enorme de pontos de con-vergencia e de ansiedade de muitos pesquisadores. Abandonei aideia de produzir um caderno de pesquisa, mimeografado, evoluin-do para a expectativa de produzir um volume mais amplo, um livro,de earater mais abrangente, que pudesse reunir as experiencias di-versificadas de muitos colegas, em universidades distintas, regioesdiferentes, com formagao e interesses variados.

Fiz entao circular, sob a forma de memorando, entre varies ci-eutistas sociais, um texto que procurava alinhavar essas preo-cupaeoes e que as colocava num pauo de fundo capaz de oferecerparametros a um conjunto de artigos a serem escritos.6

Uma ano e meio apos, aqui esta, nesta coletanea, a resultante.Nao chega a se constituir num livro representative de todo o es-forgo que se faz hoje nas ciencias sociais no Brasil. Por razoes deespago, algumas vezes, e de prazos, em outras, muitos colegas dei-saram de se juntar a este volume (def iciencia, contudo, nao insana-vel no future). Vale mencionar que embora o prazo que vai daelaboragao do memorando a finaHzagao do volume possa parecermuito longo a algumas pessoas, ele reflete, ao contrario, um per-curso normal. Este percurso e permeado por idas e vindas de cartaspara o Brasil e exterior, telefonemas interurbanos, discussao dostermos, negociacao e renegociacao de prazos, leitura de textos, dis-

G Em linhas gerais, as primeiras paginas desta Introdusao repetem oreferido memorando, intitulado O Cotidiano da Pesquisa.

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14 A AVENTUHA SOCIOL6GICA

cussao de seu conteiido, enf im, um sem numero de pequenas coisasque fazem da finalizagao de uma coletanea como esta um trabalhotao estimulante quanta o proprio processo de pesquisa. Na tarefade classificegao dos textos para a apresentagao publica (como agru-pa-los? como apreender seu objetivo central?) o exercicio do arbitriopretensamente esclarecido e inevitavel e se manifesta pela associa-530 de problemas e categories centrais as disciplinas sociais com oeventual bom senso do organizador. Certamente esta classificac.eoguarda muita semelhanga com o proprio trabalho do pesquisador.

Leitura ainda que Ugeira dos artigos revelara por certo a di-versificagao de experiencias e abordagens relatadas. Circunspeetasalgumas, bem humoradas outras, as cronicas que aqui se apresen-tam revelam preocupacoes distintas e, ate mesmo, maneiras dife-rentes de se relacionar com a discipline, fazendo o volume parecer"desbalanceado". Entretauto, creio que reside ai sua maior riqueza,exatamente na diversificacao das leituras que se f izeram do memo-rando, na diversificac.ao de posturas e experiencias,

Na tentative de organizar editorialmente esta diversidade,quatro ordens de questoes foram agrupadas: a busca__dajobjetiyjda-de atraves da entrevista e da observagao;^ a_reoor|Strusao_^ eyentbsocprridosjnp ,passado,j«cente;| a_r^MnsSuGa^bi^prica,,de™processospoljticps_e_sociais;Ja jjerspectiva xtenia_a_o_processo de mvestige-geo, representada pelo reTato""3ajitividade de orientadoiLjle pestrui-

apenas produto de uma politica de orga-nizacao editorial dos textos. Eles se interpenetram, contradizem-seas vezes, se complementam. Nenhum artigo, a bem da verdade, serestringe ao titulo da segao que Ibe foi imposta, revelando a inevi-tavel arbitrariedade, ainda que bem intencionada, dos processoa declassificacao e rotulageo, As questoes mais graves acerca da objetivi-dade e da interferencia das preferencias do pesquisador no processode pesquisa, por exemplo, permeiam todo o volume. Ademais, ques-tos relatiyas_ao^_eOTLSjranginieritos institucionais e aos entraves bu-roSFaticos e administrgtiyos a_t^gja^e~investigasao^o"deln^e^tiTda3o"s no^interipr de^inuitas^ crmicas. Para nao falar nos"Saas^da pesquisa sob contrato e na sempre viva e velha querela"pesquisa pura versus pesquisa aplicada". •

A leitura dos ensaios chama atengao para um fato adicional epara uma quaUficagao que precise ser feita. A tentative de recons-truir o contexto da descoberta e tarefa de extrema dificuldade e,nela. sempre se e capturado pela logica da justificagao. A logica emuso e inenarravel. Sua apresentagao e sempre filtrada pela culturaacademica do narrador, pela sua formagao e, principalmente, porsua interpretagao e analise. E essa impossibilidade logica de repro-duzir sem interferencia analitica o proeesso individual de conviven-

PEQUENA 15

cia com o objeto faz com que a pesquisa so possa ser totalmenteapreendida e sentida por aqueles que participam da aventura de suaorganizacao. Alguns livros tentam ensinar como pesquisar, outros»como este, tentam descrever o processo de realizacao __cupar com oens^namentp-de_cQm.o_pes.quisar._i_A dimensao verdadei-ra do processo de pesquisa, entretanto, so pode ser captada pela pra-tica e pela observagao direta ou trabalho dos colegas.

A experiencie comuniceda atraves de artigos ou conferenciase, sem duvida, filtrada e interpreteda pelo ator que relate. Aindaassim, o esforco de desformelizar a narrative e de tentar expor aexperiencia^viyide contem muita riqueze pedagogica.

* *

Outro fato a se destacar, ja pela inspecao des notes depe de pagina em toda a extensao do volume, e que a reocupagao

_ sociais, ~^ _ _conceituaHjeZnietodoIogieo^-Com .a iostitucionalizacao da pesquisa.com os inetgdg^_e_tecnicas_de_abgrdBgeniT enfim, com o avanco dacapacidade analitica ^as_ciencies sociais, nao_se_fez_ainda._notar_no__Brasil. Praticamente todes as referencias ao "estado das artes" to-mam como base depoimentos gerados no exterior, Talvez isto reve-'le o ainda incipiente e embrionario estado das ciencias sociais comexplicita referencia empirica no Brasil. Talvez indique o insatisfa-torio estagio de institucionalizagao da comunidade academica nestaarea. De quelquer forme, o volume que se segue revela muitaspreocupagoes ja sedimentadas, muita reflexao ja feita, muitos pas-=

sos em direcao aLjmaturidade. Nao obstante, vale a pena enfatizerque nao apenas a preocupacao com a instaucia metodologica liga-da a pratica de pesquisa se beneficia dos avangos gerados por co-munidades profissionais de outros paises. Outra questao ressalta.

A propria forma que e preocupagao analitica assume e os pa-rametros e paradigmas que pautam grande parte da investigacaocontemporanea no Brasil, bem como muitos dos proprios temasestudados, sao produzidos a partir do exterior. A formulagao do pro-blema a ser investigado, isto e, a selegao do "quebra-cabe§a" a sermontado, deve muito ao treinamento e a socializagao em centrosuniversitarios estrangeiros. Em outjas__Balayjcas,_muito do aue_seproduz hoje nas ciencias sociais_brasileijas-e-pensado a partir^def ora7^e~f ora"p^a~o'entro . Entretanto, esta nogao de "de fora" e "4edentro", se Hem pensada, revela uma fragilidade e induz um ensi-namento. Fragilidade, porque quando se fala em ciencia e em tra-balho cieutifico a dicotomia "de fora" / "de dentro", baseada enifronteiras politicas e territorials, e inutil; a internacionalidade e o

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16 A A VENTURA SOCIOLOGICA

apanagio da ciencia. Ensinamento, poique mostra que o contatocom a comunidade internacional e com as riorums mais avancadasna produgao do conhecimento tem influenciado o processo de re-flexao sobre as ciencias socials produzidas no Brasil atraves do for-iiecimento de sofisticadas tecnicas de produgao de conhecimento,7

originadas na analise e no reprocessamento da grande massa cri-tica disponivel naqueles centros. Esta preocupacao critica com osmeios de produgao do conhecimento identifica uma mudanca dep^iradjgmas lia busca da evidSncia cientifica e se faz acompanharhoje pela revisita sistematica e prolifica a obra dos analistas con-siderados classicos e pela " reconstruct" permanente do conheci-mento sobre o Brasil.

Mas nao e so isso. A vinculacao inlernacional nao se restrin-ge a influencia academica.

Muita da investigacao reallzada deve sua elaboragao a dota-$6es e/ou a financiamentos colocados a disposicao por fandagoesestrangeiias. 0 mesmo ocorre com o financiamento de estudos ecom a ajuda para comparecimento a congresses no exterior e mes-mo para a frequencia e preparagao de reunioes cientificas no Bra-sil. Recentemente, inclusive, discussoes travadas em varios forunscolocaram sob suspeicao politica essa relagao com financiado-res externos. De' maneira objetiva, tal suspeicao acaba por atingir6s principais cientistas socials brasileiros e as principals institxiigoesde ciencias sociais. Louge, contudo, de produzir um conhecimentoalienante e descomprometido, o que essa comunidade tem produ-zido e avangado em termos da interpretagao critica da sociedadebrasileira nao e desprezivel, assim como nao e de se desrespeitar oavaneo do conhecimento sobre as particularidades dos processossociais que se desenrolam no Brasil contemporaneo. Longe de cap-tar a realidade do fenomeno, aquela suspeicao toma a aparenciapelo concreto. IS precise lembrar que as ciencias sociais tem per-dido no Brasil grande parte de sua base institucional. A propriagraduacao em ciencias sociais enfrenta o minguante interesse das

T Este contato com as tecnicas sofisticadas foi alvo do interesse deAndrS Beteille com relac.ao a India. Beteille mostrou-se preocupado com.o encanto com as tecnicas e a perda de peso substantive dos estudos dasnovas geracoes de soci61ogos indianos. Segundo e!e, em pai'ses como aIndia, sem uma tradEcao forte e independents de pesquisa sociologica, oefeito dessa influencia e negativo e esterilizante, alem de introduzirnecessidades instrumentais excessivamente custosas. Ver "The Danger ofResearch-Methodology", International Social Science Journal, Paris, vol.XXVIII, n.° 1, 1976. As preocupacoes de Beteille, se valem pela adver-tSncia, nao parecem aplicar-se( como poderao atestar as cronicas quese seguem, a producao dos cientistas brasileiros.

PEQUENA 17

uuiversidades a par da total ausencia de trabalho de pesquisa a estenivel, trabalho este capaz de formar o estudante e guia-lo para inte-resses de estudo e investigacao.

Os cursos de ciencias sociais sao hoje ministrados a base da "ex-plicacao", fazendo recprdar o velho professor explicador de antigasepocas. Por outro lado, a atividade de pesquisa progressivamentedesligou-se do pedagogico contato com a universidade e com o es-tudante de graduagao, acabando por localizar-se majoritariamenteem centros e institutes especializados. No maximo, e possivel en-contrar a pesquisa_erru.ciencias_sociais Ueada apenas a pos-sn:adua-•_,—-•- *"* v~ , * ' " —° •* —f—°—gao, distante_ do^QPVvio universitario^mplo. Os efeitos deste dis-tanciamento nao sao despreziveis: os institutes de formacao basicanao convivem mais com o micleo mais produtivo de cientistas so-ciais, agora na ilhada pos-graduagao; os estudantes estao impedi-dos de observar e conviver com aqueles profissionais que produ-zem o conhecimento e que constituem o corpo de interlocutoresprivilegiados no debate academico. Ensinar na graduacao transfor-mou-se progressivamente em estagio de inicio de carreira para aque-les profissionais que procuram ligar-se a pesquisa e ao debate dis-ciplinar; e enorme a rotatividade de professores nos institutes e de-partamentos de sociologia e politica. Tambem o estudante da gra-duagao, por esse desvirtuamento, esta ilhado da face produtiva dasdisciplines sociais. Nao sera facil, e ja existe boa evidencia para isso,manter acesa a formacao de bons estudantes e pesquisadores, umavez mantida esta distancia entre a universidade e a pesquisa. Nopassado recente este distanciamento quase foi extinto, porem de'maneira episodica. Extinguiu-se antes, por razoes obscurantistas, apesquisa e a critica social neste nivel.

Nao seria demais afirmar que a mais forte vinculagao com oexterior tornou-se a alternativa a suspeigao com que os governantesbrindaram as ciencias sociais no ultimo decenio: minguaram-se osrecursos, suprimiram-se instituicoes de pesquisa e debate. De qual-quer forma, a dupla suspeicao radical mostra-se duplaniente equi-vocada. As ciencias sociais nao se tornaram alienadas ou "vendi-das" pelo seu contato com o exterior nem, muito menos, abandona-ram sua perspectiva critica por causa da pressao oficial.

Que nao se faca entretanto elogio do apoio externo, assim comonao se faga o elogio da integridade do apoio nacional. Ao contrario,e forcoso reconhecer que este tema e sempre delicado. Mas e tarn-bem necessario procurar a certeza de que os cientistas precisam desuporte para a realizacao legitima de sua atividade e que este Ihs edevido por merito e pela relevancia social de sua tarefa. £ funda-

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T18 A AVENTURA SOCIOLOGICA

mental que nao se impute ao pesquisador eventuais motivagoes evalores sem antes analisar o conteiido do que e produzido.

* * *

Mas, leiamos os artigos e deixemos de lado esta argumentagao.Embora sugerida e enriquecida pelos textos, que se seguem, naoconstitui o seu objeto central, e reflete talvez mais a leitura do or-ganizador do que a opiniao dos autores. Neste volume, o leitor en-contrara uma historia narrada segundo a perspectiva do ator, daque-le que, por sua pratica individual, elabora o avango das disciplinespelo trato com as pesquisas e exposigao de conclusoes. A narrativados passes que compoem os processes de produgao de conhecimentoe a referenda as cqndicoes institucionais que Ihes servem de baseconstituem a motiva9ao basica destes artigos, tao desiguais e dife-renciados no que se refere a abordagem e aos estilos, mas tao una-nimes na paixao e no compromisso com o oficio critico de cientistasocial.

O cotidiano deste oficio, o trabalho cientifico, e o que se encon-trara narrado nas cronicas a seguir. Sua leitura podera confirmarque o processo de penetrar na realidade, produzir classificagoes,compor explicacoes; de dirigir projetos, negociar fundos, varar aburocracia; de arquitetar metodologias e tecnicas capazes de pro-duzir a competente captura do mundo fugidio e complexo da vida so-cial; de errar e improvisar; de sofrer e apaixonar-se pela descober-ta, pelo trabalho de campo, pela tarefa abstrata de atribuir sentidoas relacoes socials, nao e menos que uma aveutura do corpo e doespirito.

A BUSCA DA REALIDADEOBJETIVA ATRAVIS DA

ENTREVISTA E DA OBSERVAQAO

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A. A Versao Qualitativa

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O Oficio de Etnolog-o, ou como Ter"Anthropological Blues" *

R.OBEBTO DA MATA

This glory, the sweetest, the trueAor rather the only true glory, awaitsyou, encompasses you already; youwill know all its brilliance on thatday of triumph and joy on which,returning to your country, welcomedamid our delight, you wilt arrive inour walls, loaded with the most pre-cious apoils, and hearers of happytidings of our brothers scattered inthe uttermost confines of the Universe.

Degerando**

Introdugao

Em Etnologia, como nos "ritos de passagem", existem tresfases (ou pianos) fundamentals quando se trata de discorrer sobre

* Trabalho apresentado na Universidade de Brasilia, junto ao Departa-mento de Ciencias Socials, no Simposio sobre Trabalho-de-Oampo, alirealizado. Espresso meus agradecimentos aos Profs. Roberto Cardoso deOUveira e Kenneth Taylor, que na epoca eram, respectivamente, Chefedo Departamento de Ciencias Sociais e Coordenador do Curso de Mes-trado de Antropologia Social, pelo convite. Posteriormente, o texto foipublicado no Museu Nacional como Comunicagao n.° 1, Setembro, 1974,em edicao mimeografada. Desejo agradecer a Gilberto Velho, Luiz deCastro Faria e Anthony Seeger pelas sugestoes e encorajamento, quandoda preparacao das duas versoes deste trabalho.** Joseph-Marie Degerando, The Observation of Savage Peoples (1800),traduzido do Frances por F.C.T. Moore, Berkeley e Los Angeles: Uni-versity of California Press, 1969.

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24 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA A VERSAO QUALITATTVA 25

as etapas de uma pesquisa, vista pelo prisma do seu cotidiano. Aprimeira, e aquela caracterizada pelo uso e ate abuso da cabega,quando ainda nao temos nenhum contato com os seres humanosque, vivendo em grupos, constituem-se nos nossos objetos de tra-balho. E a fase ou piano que denomino de teorico-intelectual, mar-cada pelo divorcio entre o futuro pesquisador e a tribo, a classesocial, o mito, o grupo, a categoria cognitiva, o ritual, o bairro, osistema de relacoes sociais e de parentesco, o modo de produgao, osistema politico e todos os outros dominios, em sua lista infinda-vel, que certamente fazem parte daquilo que se busca ver, enca-rar, enxergar, perceber, estudar, classificar, interpreter, explicar.etc. . . Mas esse divorcio — e e bom que se diga isso claramente— nao diz respeito somente a ignorancia do estudante. Ao contra-rio, ele fala precisamente de um excesso de conhecimento, mas demn conhecer que e teorico, universal e mediatizado nao pelo con-creto e sobretudo pelo especifico, mas pelo abstrato e pelo naovivenciado. Pelos livros, ensaios e artigos: pelos outros.

Na fase teorico-intelectual, as aldeias sao diagramas, os ma?trimonios se resolvem em desenhos geometricos perfeitamente si-metricos e equilibrados, a patronagem e a clientele politica apa-recem em regras ordenadas, a propria espoliagao passa a seguirleis e os indios sao de papel. Nunca ou muito raramente sepensa em coisas especificas, que dizem respeito a minha experien-cia, quando o conhecimento e penneabilizado por cheiros, cores,dores e amores. Perdas, ansiedades e medos, todos esses intrusosque os livros, sobretudo os famigerados "manuals" das Ciencias'Sociais teimam por ignorar.

Uma segunda fase, que vem depois dessa que acabo de apre-sentar, pode ser denominada de^psrSodo pratico. Ela diz respeito,essencialmente,_a nossa antevespera de pesquisa. De fato, trata-sedaquela semana que todos cuja pesquisa implicou uma mudangadrastica experimenter am, quando a nossa preocupagao = muda subi>tamente—das_ teorias mais univejsais jaara os" p~roblemas maisbanalmente concretos. A pergunta, entao, nao e mais se o grupo Xtern ou nao linhagens segmentadas, a moda dos Nuer, Tallensi ouTiv, ou se a tribo Y tern corridas de tora e metades cerimpmais,como os Kraho ou Apinaye, mas_de_pjanejar a quantidade~de~arroze. remedies^ que,~deve"reii=ley.aEi=^iara-;O^^SnpPcpmigo.

Observe que a os^cilagao^do pendulo da existencia para taisquestoes — onde vou dormir, comer," ~viver — nao e nada agra-davel. Especialmente quando o nosso treinamento tende a ser ex-cessivamente verbal e teorico, ou quando somos socializados numacultura que nos ensina sistema* icamente o conformismo, esse filho

da autoridade com a generalidade, a lei e a regra. No piano pra-tico, portanto, ja nao se trata de citar a experiencia de algum he-roi-civilizador da disciplina, mas de colocar o problema fundamen-tal na Antropologia, qual seja: o da especificidade e relatividade desua propria experiencia.

A fase final, a terceira, e a que cnamo de pessoal ou existenciaL Aqui, nao temos mais divisoes nitidas entre as etapas danossa form.ac.ao cientifica ou academica, mas por uma especie deprolongamento de tudo isso, uma certa visao de conjunto que cer-tamente deve coroar todo o nosso esforgo e trabalho. Deste modo,enquanto o piano teorico-intelectual e medido pela competenciaacademica e o piano pratico pela perturbagao de uma realidade quevai se tornando cada vez mais imediata, o piano existencial dapesquisa em Etnologia fala mais das licoes que devo extrair domeu proprio caso. fi por causa disso que eu a considero como es-sencialmente globalizadora e integradora: ela deve sintetizar a bio-grafia com a teoria, e a pratica do mundo com a do oficio.

Nesta etapa ou, antes, nesta dimensao da pesquisa, eu nao meencontro mais dialogando com indios de papel, ou com diagramassimetricos, mas com pessoas. Encontro-me numa aldeia eoncreta:calorenta e distante de tudo que conheci. Achp-me fazendo face alamparinas e doenca. Vejo-me diante de gente de carne e osso.Gente boa e antipatica, gente sabida e estupida, gente feia e bonita.Estou, assim, submerse num mundo que se situava, e depois da pes-quisa volta a se situar, entre a realidade e o livro.

• fi vivenciando esta fase que me dou conta (e nao sem susto)que estou entre dois fogos: a minha cultura e uma outra, o meumundo e um outro. JJe fato, tendo me preparado e me colocadocomo tradutor de um outro sistema para a minha propria lingua-gem, eis que tenho que iniciar minha tarefa. E entao verifico, inti-mamente satisfeito, que o meu oficio -—...ypltado para o estudb doshomens — e analogo a propria caminhada das'soci^^^des humanas:senapre na tenue linha divisoria que separa os animals na determi-nagao da natureza e os deuses que, dizem os crentes, forjam o seuproprio destine.

Neste trabalho, procure desenvolver esta ultima dimensao dapesquisa em Etnologia. Fase que, para mim e talvez para outros,foi tao importante.

I

Durante anos, a Antropologia Social esteve preocupada emestabelecer com precisao cada vez maior suas rotinas de pesquisa

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26 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

ou- como e tambem chamado o exercicio do oficio na sua praticamais imediata, do trabalho de campo. Nos cursos de Antropologiaos professores mencionaram sempre a necessidade absoluta da co-leta de tun bom material, isto e, dados etnograficos que permitis*sem um dlalogo mais intenso e mais proficuo com as teorias co-nbecidas, pois dai, certamente, nasceriam novas teorias — segundoa velha e, porque nao dizer, batida dialetica do Prof. RobertMerton.

Desse esforco nasceram alguns livros — na America e foradela — ensinando a realizar melbor tais rotinas. Os dois mais fa-mosos sao o notorio Notes and Queries in Anthropology, produzidopelos ingleses e, diga-se de passagem, britanicamente produzidocom zelo missionario, colonial e vitoriano, e o nao rnenos famosoGuia de Investigagao de Dados Culturais, livro inspirado pelo Hu-man Relations Area Files, sob a egide dos estudos "cross-culturais"do Prof. George Peter Murdock.

Sao suas pecas impressionantes, como sao impressionantes asmonografias dos etnologos, livros que atualizam de modo corretoe impecavel essas rotinas de "como comecei fazendo um mapa daaldeia, colhendo duramente as genealogias dos natives, assistindoaos ritos funerarios, procurando delimitar o tamanbo de cadaroga" e "terminei descobrindo um sistema de parentesco do tipoCrow-Omaha, etc . . . w. Na realidade, livros que ensinarn__a^-f azer

f4hos-na^os?a"diicipliDa, e^ode-se mesmo dizersem medo de incorrer em exagero — que eles nasceram com a suafundacao, ja que foi Henry Morgan, ele prcprio, o primeiro a des-cobrir a utilidade de tais rotinas, quando preparou uma serie dequestionarios de campo que foram enviados aos distantes missiona-ries e agentes diplomaticos norte-americanos para escrever o seusuperclassico Systems of Consanguinity and Affinity of the HumanFamily (1871)1. Tal traHigSo e obviamente necessaria e nao <$_naeu__prop6sl,i»^-a<jui tentar denegri-la. Nao sou D. Quixote e reco-hheco muito bem os frutos que dela nasceram e poderao aindanascer. E. mesmo se estivesse contra ela, o maximo que o bomsenso ms permitiria acrescentar e que essas rotinas sao como ummal necessario.

Desejo, porem, neste trabalho, trazer a luz todo um "outrolado" desta mesma tradicao oficial e explicitamente reconhecidapelos antropologos, qual seja: os aspectos que aparecem nas ane-dotas e nas reunioes de antropologia, nos coqueteis e nos momen-

1 Rcpublicado em 1970, Anthropological Publications: Oosterhout N.B.— Holanda. Veja-se, em relacao ao que foi mencionado acima, pp. viii eix do Prefacio e o Apendice a Parte III, pp. 515 e ss.

A VERSAO QUALITATIVA 27

tos menos fomiais. Nas estorias que elaboram de modo tragicomicoum mal-entendido entre o pesquisador e o seu melhor informante,de como foi duro chegar ate a aldeia, das diarreias, das dificulda-des de conseguir comida e — muito mais importante — de comofoi dificil comer naquela aldeia do Brasil Central.

Esses sao os chamados- aspJ^tbsIl_'lronianticQS=5 da disciplina,quando o pesquisador se ve^obrigado a atuar como medico, cozi-nheiro, contador de historias, mediador entre indios e funciona-rios da FUNAI, viajante solitario e ate palhaco, Ijnsandg^rQaa,destes varios e insuspeitados paoeis para poder bem realizar^ asrotinas que infalivebnente aprendeu jQa__escola_graduada.pS curiosoe significativeT^que tais aspectos sejam cunhados de "anedoticos"e, como ja disse, de "romanticos", desde que se esta consciente— e nao e precise ser filosofo para tanto — que a AntropologiaSocial e uma disciplina da comutacao e da mediagao. E com issoquero sunplesmente dizer que talvez mais do que qualquer outramateria devotada ao estudo do Homem, a Antropologia e aquelaonde necessariamente se estabelece uma ponte entre dois universes(ou subuniversos) de significacao, e tal ponte ou mediagao e reali-zada com um minimo de aparato institucional ou de instrumen-tos de mediagao. Vale dizer, de modo artesanal e paciente, depen-dendo essencialruente de humores, temperamentos, fobias e todosos outros ingredientes das pessoas e do contato humano.

Se e possivel e permitido uma interpretacao, nao ha duvidade que todo o anedotario referente as pesquisas de campo e ummodo muito pouco imaginative de depositar num lado obscuro dooficio os seus pontos talvez mais importantes e mais significativos,E uma maneira e — quern sabe? — um modo muito envergonhadode nao assumir o lado humano e fenomenologico da disciplina, comum temor infantil de revelar o quanto vai de subjetivo nas pesqui-sas de campo, temor esse que e taiito maior quanto mais voltadoesta o etnologo para uma idealizagao do rigor nas disciplinas so-ciais. Numa palavra, e um modo de nao assumir o oficio de etno-logo integralmente, e o medo de sentir o que a-D^a- Jean-Garter"Lave jienonii.n«iJ1rT,^p-rEs-a-ifeIIcidade, numa carta do campo, o

-aritfiropologicat blues.

II

For anthropological blues se quer cobrir e descobrir, de ummodo mais sistematico, os aspectos interpretativos do oficio de etno-iogo. Trata-se de incorporar no campo mesmo das rotinas oficiais,ja legitimadas como parte do treinamento do antropologo, aqueles

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28 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

aspectos, extraordindrios, sempre prontos a emergir em todo o rela-cionamento humano. De fato, so se tem Antropologia Social quan-do se tem de algum modo o exotico, e o exotica depende invariavel-mente da distancia social, e a distancia social tem como componen-te a marginalidade (relativa ou absoluta), e a marginalidade se ali-menta de um sentimento de segregagao e a segregagao implicaestar so e tudo desemboca — para comutar rapidamente essa longacadeia — na liminaridade e no estranhamento.

De tal modo que vestir a capa de etnologo e aprender a reali-zar uma dupla tarefa que pode ser grosseiramente contida nas se-guintes formulas: (a) transformar o exotico no familiar e/ou (b)transformar o familiar em exotico. E, em ambos os casos, e neces-saria a presenga dos dois termos (que representam dois universesde significagao) e, mais basicamente, uma vivencia dos dois domi:nios por um niesmo sujelto disposto a situa-los e apanha-los. Numacerta perspectiva, essas duas transformasoes parecem seguir de per-to os momentos criticos da histdria da propria disciplina./ Assim eque a primeira transformacao —-^ob exotico em familiar/— 'eoires-p6nde~ao movTmento jjriglnal da Antrogo^giaauando os etnologoscbnjugaramjo^seu-esforgo na busca deliberada dos enigmas sociaissituados em universes de significagao^ sabidamente incompreendi-dos pelos meios sociais do seu tempo./ffi foi assim que se~re3uziu etransformou — para citar apenas urn caso classico — o kula ringdos melanesios num sistema compreensrvel de trocas, alimentadaspor praticas rituals, politicas, juridicas, economicas e religiosas,descoberta que veio, entre outras, permitir a criagao, por MarcelMauss, da nogao basilar de fato social total, desenvolvida logo apdsas pesquisas de B. Malinowski."2

/A segmida^transformacao~parece-._.coriesponderao momentojjrese'nte', quandoji^discipliria_S!e_.volta-.para-a-nossa_,pr6pria_soci&cJa-der~num"nioviinento semelhante,.a^um_auM^xQrcisino, pois jja naose trata_inais_de_depositar1_rio_^ej^agejtn_africano ou melanesico oj^tmdb <ltv praticas,primitivas que se deseja objetificar e inventariar,mas de descobri-las ^m hqs,^na^jjwffiKiti< ;nctitni«j^Rs_ ^^ nossa prati-ca-pblitica" eTfeligiosaj^Q-problema- e, entao,-o-de-ti¥a£T£i-capa dcmembro de uma classe e de ura grupo social especifico para poder— como etnologo — estranhar alguma regra social familiar e as-sim descobrir (ou recolocar, como fazem as criancas quando per-

2 Permito-me lembrar ao leitor que Malinowski publicou o seu Argon-auts of the Western Pacific em 1922 e que a primeira edifao francesa doEssai sur le Don e de 1925.

A VERSAO QUALITATFVA 29

guntam os "porques") o exotico no que esta petrificado dentro denos pela reificagao e pelos mecauismos de legitimac,ao.3

Essas duas transformagoes fundamentals do oficio de etuologoparecemffliardar _eotre-sljinia_estreita relagao de bomoj.ogia_J Comoo desenrolar de uma sonata, onde~um tema^e'*gpresentadoJclara-inente no seu_injcio,_de£envolyido rebuscadamente no seu curso^e.-finalmente, retomado no seu epilogo. "WB" Ea"so ^da"s~ tfamformagoesantropologicas, os movimentos sempre conduzem a um encontro.Deste modo, a primeira transformagao leva ao encontro daquilo quea cultura do pesquisador reveste inicialmente no envelope do bi-zarro, de tal maneira que a viagem'do etnologo e como a viagem doheroi classico, partida em tres momentos distintos e interdependen-tes: a safda de sua sociedade, o encontro com o outro nos confinsdo seu mundo social e, finalmente, o "retorno triunfal" (comocoloca Degerando) ao seu proprio grupo com os seus trofeus. Defato, o etnologo e, na maioria dos casos, o ultimo agente da socie-dade colonial ja que apos a rapina dos bens, da forga de trabalho eda terra segue o pesquisador para completar o inventario caniba-Hstieo: ele, portanto, busca as regras, os valores, as ideias — numapalavra, os imponderaveis da vida social que foi colonizada.

Na seguuda Jransformagao, a viagem e como a do xama: ummovimento drastico onde, paradoxalmente, nao se sai do lugar. E,de fato, as viagens xamanisticas sao viagens verticals (para dentroou para cima) muito mais do que horizontals, como aeontece naviagem classica dos herois homericos.1 E nao e por outra razaoque todos aqueles que realizam tais viagens para dentro e para cimasao xamas, curadores, profetas, santos e loucos; ou seja, os_que_de__algum rnog^se^dispuseram a chegar no fundo do pogo^de _sua_pro-pria^caltura. Como conseqiienciapifsegun'd'a1 transformagao conduzigualmentei a um encontro com o outro e ao estranhamento.

As duas transformacoes estao, pois, intimamente relacionadase aE=bas sujeitas a uma serie de residues, nuuca sendo realmenteperfeitas. De fato, o exotico nunca node

Mas, deixamlo paradoxospara os mais bem preparados,essas transformagoes indicam, num caso, um ponto de chegada (defato, quando o etnologo consegue se familiarizar com uma culturadiferente da sua, ele adquire competencia nesta cultura) e, no ou-

Estou usando as nof6es de reificaeao e de legitimacao como BergerVoz«i I???? n° SeU A Constr"Gao Social da Realidade (Petropolis:

m 01- £eter Riviere de Oxford quern me sugeriu esta ideia da viagem

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30 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

Iro, o ponto de partida, ja que o unico modo de estudar um ritua)brasileiro e o de tomar_tal-rito como exotico. Isso significa que a'apreensao no primeiro processo e realizada primordialmente poruma via intelectual (a transformagao do exotico em familiar e rea-lizada fundamentalmente por meio de apreensoes cognitivas), aopasso que, no segundo caso, e necessario um desligameuto emp.cio-nal, ja que a familiaridade do costume nao foi obtida via intelectomas via cOTr£ao~~soTualizMora-e;-"al5SU^ veio do estomago_para £c^faeca7~EnT~a^u^s-os^casosr-porern7~a~media5ao e realizada por umcorpo de principios guias (as ehamadas teorias antropologicas) econduzida num labirinto de conflitos dramaticos que servem comopano de fundo para as anedotas antropologicas e para acentuar otoque romantico da nossa disciplina. Deste modo, se o meu insightesta correto, e no processo de transformagao mesmo que devemoscuidar de buscar a definigao cada vez mais precisa dos anthropolo-gical blues.

Seria, entao, possivel iniciar a demarcagao da area basica doanthropological blues ccano_a^uejfl^o^ele^ento-q^sej^siaua'napratica etnologica, mas que nao estava sendo espera3oKComo umblues, cuja nielo^a^g^nTia^forc^^la-Tep^tigao-"d"as"^uas frases demodo a cada vez mais se tornar perceptivel. Da mesma maneira quea tristeza e a saudade (tambem blues) se insinuam no processo dotrabalho de campo, causando surpresa ao etnologo. fi quando elese pergunta, como fez Claude Levi-Strauss, "que viemos fazer aqui?Com que esperanga? Com que fim?" e, a partir desse momento,pode ouvir claramente as intromiss5es de um rotineiro estudo deChopin, ficar por ele obsecado e se abrir a terrivel "descobertajje jjue a viagem^apenas despertaKa_sua_n£opria subjetividade^ "Porum singular paradoxo, dizXevi-Strauss, em Iugar-de-meabrrr a umnovo universo, minha vida aventurosa antes me restitula_o antigoTenquanto aquelejjue eu pretendera_se_ dissolyia entre_os^meus^edos.Quantomais os ho^ens-e'as paisagens a cuja conquista eu partiraperdiam, ao possui-los, a significacao que eu deles esperava, maisessas imagens decepcionantes ainda que presentes eram substitui-das por outras, postas em reserva por meu passado e as quais eu naodera nenhum valor quando ainda pertenciam a realidade que merodeava." (Tristes Tropicos, Sao Paulo: Anhembi, 1956, 402 ss.).

Seria possjvel_^zer que^o^elemento que se insinua no trabalhode campoc^ o ^timento^ea emocao. Estes seriam, para parafrasear

* \)^^^^-^- • , . I ' "* ' Jr J.

Levi-Strauss, osTfo~Sp^eSTiao"T;onvictados da situagao etnografica. Etudo indica que tal intrusao da subjetividade e da carga afetiva quevem com ela, dentro da rotina intelectualizada da pesquisa antropo-logica, e um dado sistematico da situagao. Sua manifestagao assu-

IA VERSAO 31

me varias forinas, indo da aaedota infame contada pelo falecidoEvans-Pritchard, quando disse que estudando os Nuer pode-se fa-cilmente adquirir sintomas de "Nuerosis"0, ate as reagoes mais vis-cerais, como aquelas de Levi-Strauss, Chagnon e Maybury-Lewisfi

quando se referem a solidao, a falta de privacidade e a sujeira dosfndios.

Tais relates parecem sugerir, dentre os muitos temas que ela-boram, a fantastica surpresa do antropologo diante de um verda-deiro assalto pelas emogoes. Assim e que Chagnon descreve suaperplexidade diante da sujeira dos Yanomano e, por isso mesmo,do terrivel sentimento de penetragao num mundo caotico e semsentido de que foi acometido nos seus primeiros tempos de traba-lho de campo. E Maybury-Lewis guarda para o ultimo paragrafodo seu livro a surpresa de se saber de algum modo envolvido e ca-paz de envolver seu informante. Assim, e no ultimo instante doseu relato que ficamos sabendo que Apowen — ao se despedir doantropologo — tinha lagrimas nos olhos. £ como se na escola gra-duada tivessem nos ensinado tudo: espere um sistema matrimonialprescritivo, um sistema politico segmentado, um sistema dualists,etc., e jamais nos tivessem prevenido que a situagao etnografica naoe realizada num vazio e que tanto la, quanto aqui, se pode ouvir osanthropological blues!

Mas junto a esses momentos cruciais (a chegada e o ultimodia), ha — dentre as imimeras situagoes destacaveis — um outroinstante que ao menos para tnim se configurou como critico: o mo-mento da descoberta etnografica. Quando o etnologo consegue des-cobrir o funcionamento de uma instituigao, compreende finalmentea operagao de uma regra antes obscura. No caso da minha pesquisa,no dia em que descobri como operava a regra da amizade formali-zada entre os Apinaye, escrevi no meu diario em 18 de setembrode 1970:

"Entao ali estava o segredo de uma relagao social mui-to importante (a relagao entre amigos formais), dadapor acaso, enqnanto descobria outras coisas. Ele mos-trava de modo iniludivel a fragilidade do meu traba-lho e da minha capacidade de exercer o meu oficio cor-

5 Cf. Evans-Pritchard, The Nuer, Oxford: at the Clarendon Press,.1940: 13.* Para Levi-Strauss, veja o ja citado Tristes Tropicos; para Chagnon eMaybury-Lewis confira, respectivamente, Yanomano: The Fierce People,Nova York: Holt, Rinehart e Winston, 1968, e The Savage and The Inno-cent, Boston: Beacon Press, 1965.

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32 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

retamente. Por outro lado, ela revelava a contingenciado oficio de etnologo, pois os dados, por assim dizer,caem do ceu como piagos de chuva. Cabe ao etnologonao so apara-los, como conduzi-los^em ejtxurrada gara^Q^oceano _jjas__ Jeorias—eerrentes^—I>e modo muito nitidoverifiquei que uma cultura e um informante sao comocartolas de magico: tira-se alguma coisa (uma regra)que faz sentido num dia; no outro, so conseguimos ii-tas coloridas de baiso valor. , .Do mesmo modo que estava preocupado, pois liaviamandado dois artigos errados para publicagao e tinhaque corrigi-los imediataruente, fiquei tambem euforieo.Mas minim euforia teria que ser guardada para o meudiario, pois nao havia ninguem. na aldeia que comigopudesse compartilhar de minha descoberta, Foi assimque escrevi uma carta para um amigo e visitei o encar-regado do Posto no auge da euforia. Mas ele nao es-tava absolutamente interessado no meu trabalho. E,mesmo se estivesse, nao o entenderia. Num dia, a noite,quando ele perguntou por que, afinal, estava eu ali estu-dando indios, eu mesmo duvidei da minha resposta,pois procurava dar sentido pratico a uma atividadeque, ao menos para mim, tem muito de artesanato, decoufusao e e, assim, totalmente desllgada de uma rea-lidade instrumental.E foi assim que live que guardar segredo da minhadescoberta. E, a noite, depois do jantar na casa do en-carregado, quando retornei a minha casa, la so pude di-zer do meu feito a dois meninos Apinaye que vierampara comer comigo algumas bolachas. Foi com eles ecom uma lua amarela que subiu muito tarde naquelanoite que eu compartilhei a minha solidao e o segredo daminha minuscula vitoria."

Esta passagem me parece instrutiva porque ela revela que, nomomento mesmo que o intelecto avanga — na ocasiao da descober-ta — as emog5es estao igualmente presentes, ja que e preciso com-partilhar o gosto da vitoria e legitimar com os outros uma desco-berta. Mas o etnologo, nesse momento esta so e, deste modo, teraque guardar para si proprio o que foi capaz de desveudar,

E aqui se coloca novamente. o paradoxo da situacao etnogra-fica: ^pgj^^e^^TJgge^^eeis^J^aciajiaiirse e, no^momento mesmoda descoberta, o etnologo eremetido para _g_seu mundo e, deste

A VERSAO QUALITATIVA 33

^ ^ ) oposto ocorre c o m muita freqiiencia:envolvido porumcHefe politico que deseja seus favores e sua opi-niao numa disputa, o etnologo tem que calar e isolar-se. Emocionadopelo pedido de apoio e temeroso por sua participagao num conflito,ele se ve obrigado a chamar a razao para neutralizar os seus senti-mentos e, assim, continuar de fora. Da minha experiencia, guardocom muito cuidado a lembranca de uma destas situacSes e de outra.muito mais emocionante, quando um indiozinho que era um mistode secretario, guia e filho adotivo, ofereceu-me um colar. Trans-crevo novamente um longo trecho do meu diario de 1970:

"Pengi entrou na minha casa com uma cabacmha presaa uma linha de tucum. Estava na minha mesa remoen-do dados e coisas. Olhei para ele com o desdem dos can-sados e explorados, pois que diariamente e a todo o mo-mento minha casa se euche de indios com colares paratrocas pelas minhas missangas. Cada uma dessas trocase um pesadelo para mim. Socializado numa culturaonde a troca sempre implica uma tentative de tu:aro melhor partido do parceiro, eu sempre tenho uma re-beldia contra o abuso das trocas propostas pelos Api-naye: um colar velho e mal feito por um punhado sem-pre crescente de missaugas. Mas o meu oficio tern des-ses logros, pois missangas nada valem para mim e, noentanto, aqui estou zelando pelas minhas pequeimsbolas coloridas como se fosse um guarda de um Imiieo.Tenho chime delas, estou apegado ao seu valor — qiseeu mesmo estabeleci. . . Os indios chegam, oferecem oscolares, sabem que eles sao mal feitos, mas sabem queeu vou trocar. E assim fazemos as trocas. Sao c'eze-nas de colares por milhares de missangas^. Ate -|ue etasacabem e a noticia corra por toda a aldeia. E, entao, fi-carei livre desse incomodo papel de comerciante. Te-rei os colares e o trabalho cristauzado de quase todasas mulheres Apinaye. E eles terao jnissaagas para ou-tros colares.Pois bem, a chegada de Pengy era sinal de mais umatroca. Mas ele estendeu a mao rapidamente: — Esse epara o teu ikra (filho), para ele brincar. .,E, ato continue, saiu de casa sem olhar para tras. Oobjeto estava nas minhas maos e a saida rapida do in-diozinho nao me dava tempo para propor uma recom-pensa. So pude pensar no gesto como uma gentileza.

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34 A BUSCA DA REALIDADE OBJETWA A VERSAO QUALITATIVA 35

mas ainda duvidei de tanta bondade. Pois ela nao exis-te nesta sociedade onde os homens sao de mesmo va-lor."7

Que o leitor nao deixe de observar o meu ultimo paragrafo.Duvidei de tanta bondade porque live que racionalizar imediata-mente aquela dadiva, caso contrario nao estaria mais solitario. Massera que o etnologo esta reabnente sozinbo?

Os manuals de pesquisa social quase sempre colocam o pro-blema de modo a fazer crer que e precisamente esse o caso. Destemodo, e o pesquisador aquele que deve se orientar para o grupoestudado e tentar identificar-se com ele. Nao se coloca a contrapar-tida deste mesmo processor a identificagao dos natives com o siste-ma que o pesquisador carrega com ele, um sistema formado entreo etnologo e aqueles natives que consegue aliciar — pela simpatia,amizade, dinheiro, presentes e Deiis sabe mais como! — para queIbe digam segredos, rompam com lealdades, fornegam-lhe lampejosnovos sobre a cultura e a sociedade em estudo.

Afinal, tudo e fundado na alterilidade em Antropologia: poisso existe antropologo quando ha um native transformado em in-formante. E so ha dados quando ha um processo de empatia cor-rendo de lado a lado. E isso que permite ao informante contar maisum mito, elaborar com novos dados uma relagao social e discutiros motives de um lider politico de sua aldeia. Sao justamente essesnativos (transformados em mformantes e em etnologos) que sal-vam o pesquisador do marasmo do dia-a-dia da aldeia: do nascer epor-do-sol, do gado, da mandioca, do milbo e das fossas sanita-rias.

Tudo isso parece indicar que o etnologo nunca esta so, Real-mente, no meio de um sistema de regras ainda exotico e que e seuobjetivo tornar familiar, ele esta relacionado — e mais do quenunca ligado — a sua propria cultura. E quando o familiar come-ca a se desenhar na sua consciencia, quando o trabalho terroina, oantropologo retorna com aqueles pedagos de imagens e de pessoasque conbeceu melhor do que ninguem. Mas situadas fora do al-cance imediato do seu proprio mundo, elas apenas instigam e tra-zem a luz uma ligagao nostalgica, aquela dos anthropological blues.

1 Para um estudo da organizagao social desta sociedade, veja-se Rober-to Da Matta, Um Mundo Dividido: A Estrutura Social dos Apinayg,Petr6oolis: Vozes, 1976.

IllMas o que se pode deduzir dc todas essas observagoes e de to-das essas impressoes que formam o processo que denominei an-thropological blues?

Uma dedugao possivel, entre muitas outras, e a de que, emAntropologia, e preciso recuperar esse lado extraordinario das rela-goes pesquisador/nativo. Se este 6 o lado menos rotineiro e omais dificil de ser apanhado da situagao antropologica, e certamen-te porque ele se constitui no aspecto mais humano da uossa rotina.£ o que realmente permite escrever a boa etuografia. Porque semele, como coloca Geertz, manipulando habilmente um exemplo dofilosofo ingles Ryle, nao se distingue um piscar de olfaos de uma pis-cadela marota. E e isso, precisamente, que distingue a "descricaodensa" — tipicamente antropologica — da descrigao iiiversa, to-tografica ou mecaniea, do viajante ou do missionario.8 Mas paradistinguir o piscar mecanico e fisiologico' de uma piscadela sutil ecomunicativa, e preciso sentir a marginalidade, a 'solidao e a sau-dade. E preciso cruzar os caminhos da empati& e da humildadev

Essa deseoberta da Antropologia Social como ma'teria inte'rpre-tativa segue, por outro lado, uma tendencia da disciplina. Tenden-cia que modernamente parece marcar sua^passagem de uinai-cien-cia ^atural_da-socie.d^e^_c^mo_q4ie*iam-os-eau3ir-icistas ingleses—.e-americanos, vpara uma ciencia

fato neste pla-_ um mecanismo

dos mais importantes para deslocar nossa propria subjetivid'a:de. Eo problema, como assuin^^Eouir^Dumont, ^ntre outros", a^pare-ce propriamente ser o de estudar as castas da India para conheee-las integralmente, tarefa impossivel e que exigiria inuito mais doque o intelecto, mas — isso sim — permitir dialogar com' as'for-mas hierarquicas que convivena conosco. E a admissao — roman'tismo e anthropological blues aparte — de qug_o home^paao^se'en-

^e_precisa do outro coma..seu^e@a&^o e seu~ „ - _ ^^-, .

\ ' - &, •$ ^-<> • : -

n , ,n-,, Geertz, The Interpretation of Cultures, Nova York; BasieBooks, 1973. [A ser pubhcado brevemente por Zahar Editores.] -

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GILBERTO VELHO

I — Uma das mais tradicionais premissas das ciencias sociaise a necessidade de uma distancia minima que garanta ao investiga-dor condicoes de objetividade em seu trabalho. Afirma-se ser pre-cise que o pesquisador veja com olhos imparciais a realidade, evi-tando envolvimentos que possam obscurecer ou deformar seus jul-gamentos e conclusoes. Uma das pQssiyeis decorrencias deste racioci-nio jjeria a valorizagao de metodos quantitativos que seriam "pprnatureza" mais neutros e cientificos.

"Sem diivida essas premissas ou dogmas nao sao partilbados portoda a comunidade academics. A nogao de que existe um enyolyi-mento inevitavel com o objeto de estudo e de que issq nao constituium defeitb~~auTmperfeicao ja foi clara e precisamente enunciada.3

Nao vou deter-me, especificamente, na discussao mais geral sobreneutralidade e imparcialidade. Creio ser mais proveitoso discutir al-gumas experiencias pessoais que me levaram a refletir de-formamais sistematica sobre esses problemas.

II —^ A Antropologia, embora sem exclusividade, tradicional-mente, identifieou-se com os metodos de pesquisa ditos qualitati-vos. \A observacao participanteXa^ entreyista_abertak.o_CQntato_dire-to7~1pessoal, com_CLJiniyerso investigado ] constituem sua marea re-gistradaT'Insiste-se na ideia de que para conhecer certas areas oudimensoes de uma sociedade e necessario um contato, uma viven-cia durante um periodo de tempo razoavelmente longo pois exis-

1 Agradeco os comentarfo e sugestoes de Roberto Da Matta e EduardoViveiros de Castro, com quern live oportunidade de discutir este trabalho.2 Ver por exemplo o trabalho de Howard S. Becker, "De que lado Esta-mos", em Uma Teoria da Agao Coletiva, Zahar Editores, 1977.

A VERSAO QUALITATIVA 37V

tern aspectos de uma cultura e de uma sociedade que nao sao es- Vvplicita"aos7~ que nao__ aparecem a superficie e que exigem um es-forgo^maior, mais detalhado e aprofimdado de observagao e empa-tia. No entanto, a ideia de tentar por-se no lugar do outro e de cap-tar vivencias e experiencias particulares exige urn mergulho emprofundidade diffcil de ser precisado e delimitado em termos de

^ tempo. Trata-se de problema complexo pois envolve as^questoes de~£i distancia social e distancia psicologica. Sobre isso Ba^Jdatta ja

situou com propriedade a trajetoria antropologica de transformar o"exotico em familiar e o familiar em exotico"3, Evidentemente, emalgum nivel, esta se falando em distancia. 15 precise, no entanto,

/ refletir mais sobre o que se entende por isto. Sem diivida existe uma[ \ distancia fisica clara entre a sociedade inglesa da decada de_.trinta'-- e uma~tribo do Sudao. Ha que haver um deslocamento no espaco

que requer'a utilizagao de um determinado tempo, maior em prin- >cipio do que ir •, de Londres a Oxford ou de Cartum ao Cairo. £possivel que um ou outro individuo na tribo fale ingles^ mas a grandemaioria comunica-se exclusivamente atraves dbs dialetos locals, oque evidentemente representa, em principio, uma descontinuidademaior em Jermos de comunicacao do que entre um scholar, ingles

, e urn operand seu conterraneo, apesar de Bernard Shaw. Tra-ta-se, no entanto, de um tipo de comunicagao, a verbal, q^^nao es-gota todo o potencial simboUco Humano. Pode-se imaginar q^ie oingles desenvolva um interesse e cultive uma empatia por chefestribais, atribuindo a estes, real ou fantasiosamente, problemas seme-lhantes aos seus na area da manipulacao do conhecimento e no exer-cicio de certas prerrogativas, podendo estabelecer pontos de contatoe de aproxima9ao, em determinados niveis, maiores do que os exis-tentes entre o mesmo scholar e seus fellow-country men de origemproletaria. _-v

^ Simmel-' ao analisar a nobreza europeia mostra o seu caratercosmopolita e internacional, passando sobre as fronteiras dos Es-tadosT^enfatizando seus lagos comuns de grupo de status marcandovigorosamente a distancia em rela^ao aos conterraneos camponeses,proletarios ou mesmo burgueses4. Sercf diivida o patrimonio ou acultura comum de uma nobreza europeia sao muito mais obvios doque experiencias particulares de chefes tribais africanos e de umscholar ingles que possam apresentar algumas semelhancas. Nura

a Em "O Of/cio do Etn61ogo ou como Ter 'Anthropological Blues'" —Publicacoes do Programa de Pos-Graduacao em Antropologia Social doMuseu Nacional, 1974, e inclm'do nesta coletanea.4 Em "The Nobility" em On Individuality and Social Forms, The Uni-versity of Chicago Press, 1971.

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38 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

•>caso esta-se falando em uma categoria social e no outro em~~intera-cao entre individuos que nao chegamos a perceber ou definir comouma categoria. Mas ja surge com nitidez a questao da relacao entredistancia social e psicologica. 0 fato de dois individuos pertence-rem a mesma sociedade nao signified' que estejam mais proximosdo que se fossem de sociedades diferentes, porem aproximados porprefereneia, gostos, idiossincrasias. Ate que ppnto pode-se. nessescasos, distingmr o^jocio-cultural do psicologico? No mundo acade-mico on intelectual em geral esta experiencia e bem conhecida.Quantas vezes em encontros, seminaries, conferencias, etc. de cara-ter internacional nao nos encontramos interagindo a vontade, de ma-neira facil e descontraida, com colegas vindos de sociedades e cultu-ras as mais dispares? Lembro-me bem de uma vez, chegando a umauniversidade americana na hora do almoco, ter oportunidade desentar a mesma mesa com colegas americanos, um trances, umargentine e nm holandes. Quase todos estavamos nos conhecendo.No entanto a conversacao correu facil, nao so quanto ao torn, compequenas ironias e piadas implicitas, meias palavras, refereneias,etc. Tinhamos lido Alexandre Dumas e Walter Scott na adolescen-cia e gostavamos de Beetboven e Rosselini. Comentou-se o filmedo autor italiano, que seria exibido na universidade durante a se-mana e discutiu-se a 7.a Sinfonia, programada para aquela noite.Esnobismo intelectual? Cultura ornamental cultivada pela intelec-tualidade academica? 13 possivel, mas constituem-se em temas deconyersa assim como discutir um jogo de futebol ou a ultima'atuagaode Rivelino ou Paulo Cesar com o chofer de taxi ou com o porteirodo edificio. Que tipo de conversa e mais real, verdadeira? 0 fato ,

? e que se esta discutindo o problema de experiencias mais _ou^meno3 'comuns, partilhaveis que permitem um nivel de interagao especffi-co. Falar-se a mesma lingua nao> so^ nao^exclui, que exista_m grandes :diferengas no vocabulario mas que significados e _ interpretagoes di-ferentes podem ser dados a palavras, categorias ou expressoes apa-rentemente identicas. Voltamos a Bernard Shaw e a Pigmaliao. Poroutro lado, toda a tradigao marxista valorize a experiencia comumde classe e acentua, em certas interpretagoes, o carater extra e ^u-

... pranacional da luta politica, desenfatiza os lacos comuns, patrimonio*• culttiral de que poderiam participar classes socials distintas, para

enfatizar, por exemplo, a experiencia basica comum de exploragao1 \ a que estaria submetido o proletariado. Expressoes ou termos como

burguesia internacional, unidacte internacional proletdria tendem»a sublinhar a importancia de experiencias e Jnteresses sociologi-CQg ...hlsMricgs. comuns ^m detrimento ^as nog5es de identidade e

I cultura_nacional. A ynidade,jQO caso, nao seria dada pela lingua,

A VERSAO QuALrrATtvA 39

por tradigoes^nacionais de carater mais geral mas por experieucias'e"vivencias de classe, definidas em lermos sociol6gicos, econ6micose historicos, que originam inclusive a nogao de cgfoigw.^xfejiZgww Vque pode ultrapassar as fronteiras dos Estados Nationals. Sem du"- tvida a nocao de Estado National e a valorizagao de um patrimo-nio comum dentro de suas fronteiras em oposicao a patrimonies deoutros Estados esta ligada a uma conjuntura socio-hislorica precisa.Normalmenle o aparecimentodo Est^dp_jtjoderiao_£_associado aodesenvolvimento da burguesia, ao fortalecimento do nacionafismo^.Enquanto movimento intelectual surge o Romantismo, preocupadoem pesquisar (ou ate criar)^aiZ|es, fundamentos, essentials de umpovo, nacionalidade. £ conheciHa a manipulacao de ideologias na-cionalistas, de oposigao simbolica e material ao que vem de fora,como estranho, intruso, fora de contexto, aUenado. Pode parecer,estranho que um antropologo esteja chamando atengao ara o "arti-ficialismo" de certas separagpe^^^lhnitej_ejQtee-sociedades-.e_culru-rag/,Mas creio que, contejnporaneamente, cabe justamente aos antro-pologos relativizar "essas_nogoes, nao negarido^as ou invaliHando-asiUeologcamente mas apontando a sua_djmgnsaa _de algo ' ' *

-jOTOJuatfa_cultural e historicamenle. NacTse lrata_de ser_fa'dii inferhacionalisla,~mas sim "chamar atengao para a complex!

categoria distancia e disso "extrair consequencias para" o'~~~ ~~~--—~ --

-"Assim, volto ao problema de Da Malta, para sugerir certas com-plicagoes. 0 que sempre vemos e encontramos pode ser familiarmas nao e necessariamente conhecido e p que nap_j;em.og e encott-tramos pode ser exotico mas, ate certo pomo^confeecifjo. No entantoestamos sempre pressupondo familiaridad.es j exotismos como^fon-tes de conhecimento ou desconhecimentg,_respectivameiite.

Da' janela 3e mea"apartamento vejo na rua um grupo de nor-destinos, trabalhadores de construgao civil enquanto a alguns me-tros adiante conversam alguns surfistas. Na padaria _ha ..uma~f ila_jde_empregadas Hbmesficas, tres senhoras de classe media conversam naporta do predio. em_ f rente ; dois militares^atravessam a rua. Naoha diivida de que todos estes individuos e grupos fazem parte dapaisagem, do cenario da rua, de modo geral estou habituado-com asua presenca, 'ha uma familiaridade. ijlas, por outro lado. o_meuconhecimento a respeito de suas vidas, habitos, crencas, valores ealtamente^HifeTenciado. Nao so o meu grau de familiaritlade5, nostermos de Da Malta, esta louge de ser homogeneo. como o de conhe-cimento e muito desigual. No enlanto, todos nao so fazem parte deminha sociedade. mas sao meus contemporaneos e vizinhos. Encon-tramo-nos na rua, falo com alguns, cumprimento outros, ha ca que

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40 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA QUALITATIVA 41

so reconhego e, evidentemente, ha desconhecidos tambem. Trata-sede situagaQ^diferente de uma sociedade de pequena escala, com di-visao social do trabalho menos complexa, com maior concentragaoou menor mimero de papeis, etc. Ja discuti, em outra ocasiao, oproblema do anonimato relativo na grande metropole, chamandoatencao para a existencia de areas e dominios ate certo ponto auto-noraos que permitem um jogo de papeis e de construcao de identi^

,-dade bastante rico e complexo5. O fato e que dentro da grande me-1

, tropole, seja Nova York, Paris ou Rio de Janeiro, ha descontinui-dades vigorosas entre o "mundo" do pesquisador e outros mundos,fazendo com que ele, mesmo sendo nova-iorquiuo, parisiense oucarioca, possateryexperiencia de_e§tranheza, nao reconhecimento ou.ate choquejcultural comparaveis a de viagens a sociedades e regioes^

t> "exoticas". Na opiniao de Da Mattac isso-Baa-aCQntec^jcamji jHaio-ria das p^essMs^dentro-da^ociedade_^ompIexajia medida em que arealidade e asjiategorias sociais a sujL_vplta estaoniera^gi^^aisTCTr'hierarquia-organizaTTnapeia e, portanto, cada categoria social tern o"seu lugar atra'ves de estereotipos como, por exemplo: o trabalhadornordestino, "paraiba^, e ignorante, infantil, subnutrido; o surfista emaconheiro, aUenado, etc. Eu acrescentaria que a dimensao do po-der e da dominacao e fundamental para a construgao dessa hierar-quia e desse mapa. A etiqueta, a maneira, de dirigir-se as pessoas,as expectativas de respostas, a nocao de adequagao etc,, relacionam-se a distribuicao social de poder que e essenciahnente desigual emuma sociedade de classes. Assim, em principio, dispomos de ummapa que nos familiariza com os jienarios e situagoes_sficiais-de-jios-so cotidiano, dando nome, lugar e posigao aos individuos. Isto, noentanto, nao significa que conhecemos o ponto de vista e a visao de

t-mundo dos diferentes atores em uma situagao social nem as regrasque estao por detras dessas interagoes, dando continuidade ao sis-tema. Logo, sendo o pesquisador membro da sociedade, coloca-se,inevitavelmente, a questao de seu lugar e de suas possibilidades derelativiza-Io ou transcende-lo e poder "por-se no lugar do outro".E preciso chamar atengao para o fato de. que mesmo~ 'as~1i5cie"da-des mais hierarquizadas ha mementos, situagoes ou papeis sociaisque permitem a critica, a relativizacao ou ate o rompimento com ahierarquia. Na sociedade complexa contemporanea existem tenden-

5 Com L.A. Machado da Silva "A Organizagao Social do Meio Urba-no" — inedito.6 Comunicaeao Pessoal.7 Ver o trabalho classico de Louis Dumont Homo Hierarchicus, Galli-mard, 1966, onde o autor mostra que mesmo na India, modelo de socie-dade hierarquica, ha margem para a saida ou estranhamento da hierarquia.

cias, areas e dominios onde se evidencia a procura de contestar eredefinir hierarquias^e a distribuicao de poder. Ao contrario de so-cie"dSdeslradicionais mais estaveis^ojujntegradas^^sta longe de ha-ver~um~cbnsenso em tomo dos lugares e pbsigoes'ocupados e de seuvalor relativo. Existe o dissenso em varios niveis, a possibilidade doconflito e permanente e a realidade esta sempre sendo negociadaentre atores que apresentam interesses divergentes. Embora existamos mecanismos de acomodacao ou de apaziguamento, sua eficacia emuito variavel e, ate certo ponto, imprevisivel. Ha diferentes ti-pos de desvio e contestacao que poem em cheque a escala de valores.dominante. A ciencia social surge e se desenvolve nesta conjuntura.tendo todauma_diniensao incoiJoclasta^voltada^para o exame crfti-co^e-dessjacralizador da^goeiedade,/ Os cientistas sociais, antropolo-gos, sociologos, cienfistas politicos, etc. estao constantemente entran-do em areas antes inviolaveis, levantando duvidas, revendo premis-sas, questionando. £ claro que isto varia em fungao de n possibili-dades — origem social, tipo de formagao, orientagao teorica, posi-cao ideologica entre outras. Mas mesmo em se tratando de indivi-duos e correntes mais ligados ou identificados com tendencias con-servadoras, ou ate reacionarias, o proprio trabalho de investigagaoe reflexao sobre a sociedade e a cultura possibilitam uma dimen-/sao nova da investigaqao cieptifica, de_consequencias radicals — o/qiieMionamento e_-exanie sistematico de seu proprio ambiente.

Trata-se, afinal de contas, de uma tentativa de identificar mecanis-mos^ebli cieutes e~"incbnscientes "que sustentam e dao contiHuidadea determinadas relagoes e situacoes. Assim volta-se a um ponto cri-tico. Nao so o grau de faniiliaridade_^aria, nao e igual a conheci-meuto, mas pode constituir-se em impedimenta se nao for__r3ativiza-do e objeto de reflexao sistematica. Posso estar acostumado, comoja disse, com uma certa paisagem social onde a disposigao dos ato-res me e familiar, a hierarquia e a distribuicao de poder permitem-me fixar, grosso modo, os individuos em categorias mais amplas.No^ entanto, isto nao^significa que eu compreenda^a. Joglca de suasrelagoes. CTmeu conhecimento pode estar seriamente comprometidopelasrotina, habitos, estereotipos. Logo, posso ter um mapa mas naocompreendo necessariamente os principios e mecanismos que o-organizam. 0 processo de descoberta e analise ^do_que e familiarpode, sem duvida, envolver dificuldades diferentes do queem rela-530 ao_jjue^e^ex6tico.yEm principio dispomos de mapas mais com-plexes e cristalizados' para a nossa vida cotidiana do que em relacao-a grupos ou sociedades distantes ou afastadosylsso nao significa quer

mesmo ao nos defrontarmos, como individuos e pesquisadores, com

.u

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A BUSCA £)REALlDADE OBJETIVA

grupos e situacoes aparentemente_mais-ex6ticos ou distantesfnao es-tejamos sempre^.classiiic^ndo,,e^rotuJan^_.^e_^ordoLCOin principlesbasicos atraves dos quais fomos e somos sociaIizados._E provavel queexista maior numero de duvidas'e'Hesitagoes como as de um turis-ta em um pais desconhecido mas os mecanismos classificadores es-tao sempre operando. Dentro ou fora de nossa sociedade nos pesoui-" i i it —i—-**•—,aadores ocidentais estamos sempre, por exemplo, trabaihandoe_jios

I referindo a categoria individuo como unidade 15aiica_de mapeamen-to. No entanto, atraves da obra de Louis Dumont, sabemos que exis-tem sociedades em que essa categoria nao e dominante8. Mesmodentro da sociedade brasileira ha grupos e areas que apresentamfortes diferengas e descontinuidades em relacao a nogao dominan-te de individuo.9

Levando mais longe o exame das categorias familiar e exotica,isem querer erilrar em discussoes de natureza filosofica, nao hacomo deixar de mencionar os impasses sugeridos pelo^^existenciaU^

-010L em relacaojag_ conhecimento-.do^outro. Nao vejo isto como umimpedimento ao trabalho cientifico mas como uma lembranca deImmildade e controle de onipotencia tao comum em nosso meio._0conhecimento de situ"Sfoes~T»u:-~indiviSuos~e constniido a partir deum sistema de intera§5es cultural e historicamente definido. Embo-ra aceite a ideia de que os repertories humanos sao limitados, siias-combinacoes sao suficieutemente variadas para criar surpresas eabrir abismos, por mais familiares que individuos e situacoes pos-sam parecer. Neste sentido um certo eeticismo pode ser sauday^l.Earece-me que Clifford Goertz ao enf atizar a natureza de (interpretfyagao'\ do trabalho antropologico chama atengao de_que_£_^rocessote—conhecimento tta vida soc^lLsejnprejJmpHca.^emmuni .grau de

| subjetividade e que, portanto, tern um carater aproximativo e naodefinitivo10. 0 que significa a veTha estorinha ^eT que^antropologossofisticados escolhem sociedades sofisticadas para estudar, os maisansiados trabalham com culturas onde a ansiedade e dominante?

Isto mostra nao a feliz coincidencia ou a magica do encoutroentre pesquisador e objeto com que tenha^afmidade, mas sim o ea-Tater de interpretacao e a dimensao de subjetividade euvolvidos nes-te tipo de trabalho. A^-'reajj^jj^^familiar ou exotica) sempre efiltrada_^por—um_dgterminado^pgnTo de vista do observador, ela e

8 Op- c't-9 Refiro-me a esta questa'o era "Relacoes entre a Antropotogia e a Psi-quiatria" em Revisto. da Associa^ao de Psiquiatria e Psicologia da Infan-cia e da Adolescencia — Rio, V. 2, 1976 — N.° 1.10 Geertz, Clifford — The Interpretation of Cultures, Nova York, BasicBooks, 1973.

A VERSAO QUALITATIVA 43

percehida_de-.maneira diferenciada. Mais uma vez nao estou procla-'"mando a falencia do rigor cientiHco no estudo da sociedade, mas anecessidade de percebe-lo enguanto obietividade relativa, mais ou

Ester'moviinen^He^elativizar as nogoes de distancia e objeti-vidade se de um lado nos torna mais modestos quanto a construgaodo nosso conhecimento em geral, por outro lado permite-uos ob-servar o familiar e estuda-lo sem paranoias sobre a impossibilidadede resultados imparciais, neutros.

Ill — Tive oportunidade de pesquisar um universe de peque-na classe medias whitte-colar que me era familiar atraves domapa hierarquico e politico de minha sociedade e de meu bairro.11

Atravss de estereotipos localizava os moradores de grandes prediosde conjugados. Ao passar por um desses edificios, "sabia" que eramn ^balanca"* que havia desconforto, falta de higiene e que seusmoradores eram de condigad social inferior, sujeitavam-se a condi-joes de vida mais ou menos degradantes por estarem ah'enados, su-gestlonaveis. Certamente tinha duvidas, questionava alguns-dessesestereotipos. la conhecera pessoas que moravam em sjbalajigas^ e

. que nao se ajustavam a essas pre-nocoes. De qualquer forma, se umdesses predios, particularmente, tornou-se mais familiar ainda,

- quando para la me mudei, o meu conhecimento de sua populacaoera precario. 0 esforco de entender e registrar o discurso^do UJDI-yerso, (jeu^sistemade^clajsificacao e de captar sua visao de mundonem sempre foi bem sucedido. Percebia como a minha insergao nosistema hierarquico da sociedade brasileira levava-me constante-mente a julgamentos apressados e preconceituosos, as vezes ate porquerer drasticamente repelir as nocoes anteriores, caindo em arrna-dilhas inversas. 0epois de ano e meio de residencia no predio, creio

, que consegui perceber alguns mecanismos que sustentavam a logicadas relagoes socials internas e externas e tambem captar algo do ea-tilo de vida e visao do mundp locals. Estou consciente de que se tra-ta, no entanto, de um^Trate^C"^"^e que Por mais que tenha pro-

r~

*curado reunir dados "verdadejros^ e "objetivos"_jsgbr£^m^dda da-. ^ JlSJSSrsc:, a ^inh^^TiKjetivi3ade-esta":!presente'"em--todo--o- tra- \, 'balho. Isso esta claro para mim na medida em que volto constante-

mente a reexaminar a pesquisa e mesmo a revisar o local da invcsti-gagao. Por outro lado, sendo um grupo que vive na minha cidade,conhego outras pessoas, inclusive cientistas sociais que o encontram.

li Ver A Utopia Vrbana — Um Estudo de Antropologia Social, ZaharEditores, 1973, 2.» ed., 1975.

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44s A BTJSCA DA REALIDADE OBJETEVA, A

que tambem tem alguma familiaridade ou ate fizeram pesquisasem contextos semelhantes. Desta .forma a mmha interpretacao estasendo constantemente testada, revista e confrontada. 0 mesmo naose da com muitos estudos de sociedades exoticas e distarites. pesqui-sadas por apenas um investigador, em que nao houve oportunidadede~maiores discussoes ou polemieas. Assim, a interpretacao de uminvestigador fica sendo a versao existente sobre determiriada cul-tura/nao sendo exposta a certos questionamentos. Ao contrario, nasociedade brasileira ha muitas opinioes e interpretaQoes sobre Copa-cabana, carnaval, futebol, etc., colocando os pesquisadores no cen-tro de acirradas polemicas.

Embpra familiaridade nao seja igual a conhgciniento. cientifico>e fora de diivida que representa tambem um certp_tipo_p!e agre-

•~ ensao da realidade, fazendo com que as opinioes, vivencias, percep-f 5oeT~de~peSs6as'~sem formagao academica ou sem pretensoes cienti-

ficas possam dar valiosas contribuicpes para o conhecimento da vidasocial, de uma epoca, de um grupo. Alem disso, ha individuosou grupos que talvez por um movimento de estranhamento, comocertos artistas, captam e descrevem significativamente aspectos deuma sociedade de maneira mais rica e reveladora do que trabalhosmais orientados (real ou pretensamente) de acordo com os padroeseientificos. Os exemplos na literatura sao obvios como Balzac, Proust,Thomas Mann e, no Brasil, Machado de Assis, Graciliano Ramos,,1

Oswald de Andrade, etc, Tambem no teatro, cinema, musica, artes ',plasticas poderiam ser citados exemplos. Isto sem falar em generos 'meuos "nobres" como o jornalismo em suas varias manifestagoes, a -historia em quadrinhos e a literatura de cordel entre outros.

Ou seja, numa sociedade_j;orn^lexa^-conteniporanea como abrasileira, o antropologo apresenta sua interpretagao, que, por maisque possa ter uma certa respeitabilidade academica, e mais umaversaocriie^j^oncorrera con^ outras —— ar tisticas -,poiit-ic as -^ enL,te J.ZDOSde acei^5ao_perante-um_puBlico^relatiya^ejote^^tewgeneo., Ha ou-tras pessoas, profissionais de_Ciencias^jjejiflisE.o.u_nao, observaiido e^

o_Jamiliar — a nossa sociedade__em seus multiplosaspectos, com esquemas e preocupagoes diferentes. Se o interessepor_grupos tribais, por exemplp,_e relativamente restrito,to-mesmonao~se pode dizer sobre umbanda, escola de-samba._uso de toxicos,homossexualismo e outros temas -que tem sido pesquisados por an-

—...___ j j,..,, .,,„ _^w_«._ esta proximp.i ^suajpropria socisujiQe, jo antropologo exppe:se, com maipr ou menpr^intensidadej a um con- Ifronl^wcjom_outro_si:!especialistas, com leigos e ate, em_certos^casos, Icom representantes dos universe que foram investigadores, que^po- i

A VERSAO QUALITATIVA 45

dem discordar das interpretagoes do investigador. Vivi essa experi-•encia em minha pesquisa sobre uso de toxicos em camadas medias-altas,12 quando pelo menos duas pessoas que eu tinha entrevistadonao concordaram com algumas das minhas conclusoes, apresentandocriticas que me levaram a rever pontos importantes. Embora issopossa acontecer no estudo de outras sociedades, e menos provavel por-<nie normalmente, feita a pesquisa, o investigador volta para o seupais ou cidade e tem menos oportunidades de confrontar-se com as>,opiniSes daquejes a quern estudou. Par_ace-meque,jiesse nivel, o es-tudo do ifamiliar^t f erece vantagens em termos_de DosjsjSil^^te5-4erever e enriquecer os_resuItadqs_das^p^squisas:\Acredito que seja

as HmitagSes•de oTigem" 3o antropologo e^chegar a ver o familiar nao necessa-ri.amente~cbmo exotica! mas~como-uma-5liotade— bem-rmafe~co'm-plexa""do que aquela~representada _pelosTaaci5Dais-~e"de~classe"atraves_-dos quais fomos socializad^JO DTO>

" • - • r' - ' - f*~~— TL_ ' J-^ ' •'-' '-* "" - ~- i -— J -*f~-<:esso de estranhar o familiar' torna-se -possivel qugnao somosjcapa-zes dei\ confroutar intelectuahnente, e mesmo emocionajmente,diferentesu. v.ersoes e interetacaes^exijientes^ja-jespeito-- .e— fatos;-

O estudo de conflitos, disputas, acusacoes, momentos dedescontinuidade em geral e particularmente util, pois, ao se focaliza-rem situacoes de drama social, pode-se registrar os contornos de dife-rentes grupos, ideologias, interesses, subculturas, etc., permitindoremapeamentos da sociedade. O estudo do rompimento e rejeicaodo cotidiano por parte de grupos ou individuos desviantes ajuda-nos~a iluminar, como casos limites, a rotina e os mecanismos deconservagao e dominacao existentes.

Vale a pena insistir no carater relativo__da_iino5ao_de, familiare exotico, especialmente ria nossa sociedade. A comunicacao demassa — jornal, revista, radio, televisao, traz fatos, noticias de re-gi5es e grupos espacialmente distantes mas que podem se tornar fa-miliares pela freqiiencia e intensidade com que aparecem. Bastapensar, por exemplo, no jet-set internacional e nos artistas deHollywood como grupos com que um gigantesco numero de indi-viduos desenvolve uma certa familiaridade, sabendo detalhes maisou menos verdadeiros a respeito de suas vidas, famflias, roupas,preferencias, etc. Por outro lado recebemos com maior ou menorfreqiiencia noticias e imagens de lugares tradieionalmente defini-dos^como exoticos — India, Africa, etc.. Ha, sem duvida, ce^^rios e grupos dentro do proprio pais ou ate dentro da propria^ci-dade de que muitas vezes nem ouvimos falar, que nao sao temas15 Ver Nobres e Anjos, Um Estudo de Toxicos e Hierarquta — Tese dedoutorado apregentada ao Departamento de Ciencias Sociais da USP, 1975.

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46 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

dos orgaos de comunicacao de massas, as vezes por censura, muitasvezes por simples desconhecimento. Desta forma, ha individuos.situacoes, grupos de outras sociedades e cultures que nos sao -maisfamiliares do que muitas facetas e aspectos de nosso proprio meio,sociedade. Evidentemente coloca-se o problema de criticar essasnocoes e imagens mais ou menos estereotipadas que nos chegainatraves desses veiculos e perceber como e quanto podemos conbe-cer sobre essas realidades espacialmente distantes.

De qualquer forma o familiar, com todas essas necessarias re-' lativizacoes e cada vez mais objeto relevante de investigagao para

uma Antropologia preocupada em perceber a mudanca social _n|oao nivel das grandes transfonnac.oes historicas mas como~

' anas._

Notas sobre o Trabalho de Campo

TANIA SALEM

O presente artigo constituiu-se, originalmente, num apendice datese de Mestrado que apresentei ao Programa de Pos-Graduagaoem Sociologia do IUPERJ1. A pesquisa versava sobre relacoes fa-miliares — mais especmeamente, sobre a relagao entre pais e fi-Ibos adultos — e privilegiou familias loealizadas nos estratos me-dios e superiores.

Meu interesse por esse tema teve suas raizes em experienciaspessoais que mautive corn alunos universitarios e outros jovens de ISa 25 anos pertencentes a essas camadas sociais. O contato com elesme fez perceber alguns tracos recerrentes em seu comportamentocomo, por exemplo, uma certa resisteiicia a ingressar no mercadode trabalho, a quebra do tabu da virgindade por parte das mogas,o uso de toxicos etc, . . Minba suposicao era a de que tais atituddsdeveriam estar tendo reflexos no relacionamento entre pais e filhos.No entanto, eu so conbecia alguma coisa desses jovens, mas nao deseus pais. Por conseguinte, a motiva9ao inicial que me ievou a es-tudar famflia foi a de ver como estavam se atualizando essas rela-goes no seu interior nesse momento especifico da vida familiarcaracterizado pelo fato de que, dada a idade dos mogos, recaia sobreeles a expectativa de que, em breve, deveriam deixar a casa pater-na para congtituirem suas proprias familias.

Para atingir esse objetivo, optei por t'azer uma pesquisa quali-tativa, intensiva, com entrevistas em profu^ididade com cada mem-»ro da familia separadamente. Antes porem de efetuar os eneon-

. Ver O Velho e o Novo: Um Estudo de Papeis e Conjlitos Pamiliarea.,mimeografado, Rio de Janeiro: IUPER.J, 1977.

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48 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

tros individuals, era marcado um primeiro contato com todos ospotenciais informantes no qua! eu explicava minhas intengoes como trabalho. Desenvolvo comentarios sobre essa reuniao coletiva maisabaixo.

0 universo de analise foi uniformizado com respeitg_ a algunscdter-ios -a.) a renda das families deveria variar entre CrS 30.000^00e Cr$ 60.000,00; b) elas deveriam ser moradoras em bairros daZona Sul do Rio de Janeiro; c) as familias deveriam ser completas— isto e, pai, _mae e filhos deveriam estar morando em casa; d) afamOia deveria ter, pelo menos, um filho e uma filha residentescom a idade minima de 18 auos. Esses requisites foram assim for-mulados pois apontavam para o universo no_qual_percebi_a_^esta._rein.ocorrendo as_mpdificagoes acima aludidas.^0^ criterio sexual foi in-cluido nessa listagem devulo a enfase dada pela literatura sociologicaas diferengas entre papeis femininos e masculinos no niicleo familiar.Em apenas uma situagao um desses requisites foi, intencionalmente,violado: entrevistei uma familia cuja filha unica tinha deixado acasa dos pais, contra a vontade destes, para morar com um homemdesquitado. Achei que este poderia ser um interessante caso paraentender como a geragao mais velha lida com uma "saida nao insti-tucioualizada". A moca participou do primeiro encontro no apar-tamento dos pais mas foi entrevistada em sua nova residencia.

0 estudo foi governado por uma serie de limitagoes: nao sode tempo disponivel, mas tambem por ter sido feito sem auxilio deassistentes e sem suporte material de instituigoes. Acrescentem-seas dificuldades decorrentes de se encontrarem familias que se dis-ponnam a permitir uma "invasao" em sua inthnidade e que, ade-mais, se adequassem aos criterios minimos estipulados. Diante detais circunstancias, intengSes mais ambiciosas quanto ao numero defamilias a serem investigadas tiveram que ser restringidas. Os da-dos coletados dizem respeito a apenas oito familias. Visto que emalgumas delas havia mais do que um casal de filhos com idadeigual ou superior a 18 anos, o numero de entrevistas totalizoutrinta e nove: alem dos dezesseis informantes da geragao mais ve-lha, obtive o depoimento de nove filhos e catorze filhas. Os en-contros individuals, feitos com gravador, tiveram duracao variavelentre uma e tres haras.

A analise propriamente dita se converteu nao em um_esjudode famfliae sim de pa.pjis_familiareg. Este me pareceu ser o proce-dimento mais conveniente para organizar o material e tentar gene-ralizagoes. Todavia, com o intuito de facilitar para o leitor a iden-tificacao dos membros componentes de uma mesma familia, seusnomes sao iniciados por uma mesma letra e, ainda para diferenciar

A VERSAO QUALITATIVA 49

os filhos de seus pais, o casal teve seu nome dado no mesmo pa-drao — evidentemente que um no masculine e o outro no femi-nino. Assim, por exemplo, na familia C, o pai foi chamado de Clau-dio, a mae de Claudia e os filhos de Carlos, Clara, Cristina e Gar-ment.

Esse artigo tern por intencao nao so explicar como foram con-seguidas as familias que constituiram o universo de analise comotambem ser um depoimento bastante-jpessoal sobre minhas impres-soes acerca da relaeao^entr6 jentrevistadoe entrevistador. Nao te-nho, pelo menos no momento, o proposito de teorizaf"e formalizarem cima dessas experiencias, mas tao somente o de descrever astojj_e_prQblemas praticos que enfrentei no trabalho de campo e queme pareceram relevantes.

A primeira dificuldade com que me deparei ao iniciar a pesqui-sa foi a de encontrar familias que, adequando-se aos requisites esta-belecidos, aceitassem servir como informantes. Numa primeira etapa,amigos e familiares, que por sua vez contactavam com outros co-nhecidos, foram mobilizados para me auxiliar nessa tarefa. Pediaa esses intermediarios que mencionassem as familias apropriad^que esta era uma dissertagao de mestrado cujo tema central se re-feria a relacao entre pais e filhos-adultos e, caso fosse consentido,eu iria as suas casas para fornecer explicates mais detalhadas so-bre o trabalho. Frisava tambem que o fato de me concederem essavisita nao implicava em sua aceitagao em participar do mesmo. Aresposta definitiva so seria pedida apos estarem suficientemente in-formados sobre os objetivos do estudo e a forma como seriam con-duzidas as entrevistas. Nao havendo objegoes, eu contactava comum membro da familia por telefone e o primeiro encontro era mar-cado.

Soube, atraves desses intermediarios, que algumas familias senegaram a aceitar essa primeira visita alegando, em geral, que otema era muito particular para que fosse conversado com estranhos.Houve apenas um caso em que um desses intermediaries me deu otelefone de uma familia, em principio disponivel e que, todavia,nao consegui que nosso encontro se efetuasse, A mae, nas diversasvezes que telefonei, embora nao recusando diretamente, adiou tan-to o contato inicial — ora alegando doenca, ora viagem de um dosmembros, ora dificuldade de horario — que acabei por desistir.Com relagao as outras familias o consentimento dado aos interme-diarios implicava, de modo automatico, na aceitagao em me recc-ber em suas casas.

As tres primeiras familias foram conseguidas da seguinte ma-neira: uma amiga de minha mae conduziu-me a familia L e uma

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50 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

amiga de minha irma, tendo conversado com sens pais e irmaos,ofereceu-se para ser entrevistada (familia C). Minha irma e seisanos mais moga do que eu, e nesse sentido, se hem que conhecesseCristina, nossas relagoes nao eram de inrimidade. Eu nao conhecianenhum outro membro dessa familia. A indicagao de uma amigapessoal levou-me, inadvertidamente, a contactar com a mae de umaoutra amiga de minha irma (familia /). Eu conhecia a moga por-que ela frequentava a casa de meus pais; ja tinha visto a mae etrocado algumas palavras com ela mas desconhecia os outros com-ponentes da familia. Embora Julia tivesse manifestado, no primei-ro encontro, uma certa resistencia em servir como informante, aaceitacao e uma certa pressao difusa por parte dos outros membrcsfez com que ela cedesse a sua relutancia. Durante sua entrevistaela. de modo voluntario, justificou sua atitude inicial alegando queestava atxavessando um dificil momento na sua vida familiar, vistoque sua linica filha tinha saido de casa para morar com um homsmdesquitado e pai de tres filhos. Embora o fato ja tivesse se consu-mado nove meses antes do nosso encontro, esse assunto, segundoela, ainda nao era encarado com naturalidade e por isso procuravaevitar com que se tornasse publico. Mencionou ainda que o £alodela conhecer meus pais (o contato entre eles se devia, exclusiva-mente, a amizade entre as filhas) dificultava, ainda mais, ter quecomentar a siluacao comigo. For outro lado, ressaltou tambem emque aspectos sua concordances em ser entrevistada Ihe havia sidoproveitosa. Volto a esse ponto mais abaixo.

Essas tres farnilias foram entrevistadas nos meses de novembroe dezembro de 1975.

Em meados de margo reiniciaram-se as aulas na faculdadeonde eu lecionava. Dado que um dos topicos do programa do cursoversava sobre familia, eu lia e comentava em sala, trechos do pri-meiro relatorio da pesquisa que estava baseado nas tres familiasacima mencionadas. Os alunos demonstraram interesse pelo traba-Iho e percebi que, dada sua idade media, eles se constituiam numaimportante fonte de auxilio para a obtencao de outcas familias. Foipor meio deles que tive oportunidade de marcar o primeiro encon-tro com as familias F e P, cujos membros me eram inteiramentedesconhecidos. As entrevistas com elas foram efetuadas, respectiva-mente, em maio e junho de 1976.

Numa dessas turmas uma aluna ofereceu sua propria familia(familia A). Ate esse momento meu contato com essa moca erapraticamente nulo: em verdade eu nem sabia seu nome nao so por-que o curso havia recem-iniciado como tambem porque ela nuncahavia se manifestado nas aulas. De inicio fiquei um pouco indecisa

A VERSAO QUALITATIVA 51

pois temia que isso pudesse comprometer, de algum modo, nossorelacionamento em sala. No entanto ela se mostrou muito seguraem sua decisao e, por conseguinte, tanto o primeiro encontro beincomo as entrevistas individuals com sua familia foram feitos emabril de 1976. Nao percebi qualquer interferencia prejudicial daidecorrente; pelo contrario, a aluna comegou inclusive a participatmais ativamente nas discussoes travadas em aula.

Ex-alunos dessa mesma faculdade tambem foram mobilizadose uma delas tambem sugeriu que eu entrevistasse sua propria fa-milia (familia M). Meu contato com Monica — que havia fre-qiientado o meu curso no semestre anterior •— era, nesse momen-to, maior do que com Andrea, dado que sempre fora uma alunamais participante. Apesar disso nossa relacao nunca ultrapassou apropria faculdade. Sua familia foi entrevistada em maio de 197o.

A familia R, por sua vez, foi conseguida por intermedio de umconhecido de uma amiga minha, com o qual eu nunca tivera qual-quer contato. Os encontros com os componentes dessa familia sederam em abril de 1976.

Assim, quatro das oito familias entrevistadas me eram inteira-mente desconhecidas ao passo que nas restantes eu conhecia umdos seus memhros. No entanto, outras variaveis •— citadas maisabaixo — me pareceram ser mais relevantes para explicar diferen-ciac5es percebidas na relagao entre entrevistado e entrevistador doque o desconhecimento ou conhecimento previo dos informantes.Isso, pelo menos em parte, pode ser explicado pela superficialidadeno relacionamento mantido com aquelas pessoas que eu conlieciaantes da entrevista propriamente dita.

Como ja mencionei, quando havia o consentimento por parteda famflia — via os intermediaries — para minha entrada em suascasas, o primeiro encontro era marcado por telefone. Nesse momen-to eu pedia que todos os potenciais entrevistados estivessem preseu-tes a reuniao. A excegao das familias L, A e P, em todos os outro?casas isso foi possivel.

Nessa visita eu me apresentava enquanto profissional — onseja, dizia que era sociologa, professora universitaria e que estavafazendo uma tese de pos-graduagao sobre familia. Expunha, emunhas gerais, minhas intencoes com a pesquisa e explicava que asentrevistas eram individuals e gravadas com uma duragao aproxi-mada de duas horas. Garantia um sigilo absolute com relagao asfitas: nao so suas identidades seriam protegidas ao maximo notrabalho escrito mas tambem que as fitas e informagSes dadas porcada um deles nao circulariam entre os outros componentes da fa-lt"lia. Respondia as perguntas que porventura me fossem formula-

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52 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

das, cujo comentario £390 mais adiante. Ao final perguntava se elesqueriam mais tempo para pensar — em conjunto ou individua-mente ou ainda para consultar os outros membros que nao esti-vessem presentes — se estavam, de fato, dispostos a participar dapesquisa. Comprometia-me a telefonar num prazo de alguns diaspara saber a resposta definitiva: tinha em mente que recusar (e serreeusada) pelo telefone era uma situacao menos embaracosa do quecara a cara. Esse procedimento, no entanto, nao se mostrou neces-sario visto que todas as familias responderam afirmativamente aofinal dessa primeira reuniao.

Houve apenas um caso em que um membro concordou emservir como informante e, por fim, nao foi entrevistado. Isso ocor-reu na familia A, com Andre, o filho mais velho. Ele demonstrou,em nosso contato inicial, certa relutancia em participar dapesquisa, alegando que passava muito tempo no trabalho e que, nes-se sentido, nao tinha muita coisa a dizer sobre familia. Argumenteique tal fato nao era, de modo algum, comprometedor pois ja era, emsi, um dado importante para o estudo. Diante disso, sua resposta fi-nal foi positiva. Contudo, senti que as vezes que chegava em sua casapara as outras entrevistas ele se esquivava muito de mim tornandodificil marcar nosso encontro. Alem do mais, sua mae e duas desuas irmas — de modo espontaneo — me desaconselharam a insis-tir, alegando que ele era uma pessoa extremamente fechada mesmocom os membros da familia. Gomo eu ja tinha a entrevista de umoutro filho, acabei desistindo.

Como em tres familias os membros presentes respondiam pe-los ausentes, antes de iniciar o encontro com esses ultimos, eu re-produzia as informacoes essenciais sobre o modo de conduzir o tra-balho. Pelo menos em um caso essa atitude mostrou ser relevan-te: quando garanti a Anita que nenhuma outra pessoa na familiateria qualguer conheeimento acerca do que me diria, ela faloti:"ah, quer dizer que eu posso dizer toda a verdade, ne?"

Esse primeiro contato — alem de necessario para esclareci-mentos dos possiveis informantes — me parecia importante tam-bem por outras razoes. Era o linico momento em que eu pretendiadeparar com a familia reunida e, ademais, permitia que entrevista-do e entrevistador se conhecessem antes da entrevista propriamentedita, o que ajudava a criar um clima menos tenso para ambas aspartes.

De um modo geral fui recebida com muita cortesia e ama-bilidade nas casas. Mas antes de o encontro ser efetuado e mesmo nosmementos iniciais, ele estava revestido de ansiedade de minliaparte. !E verdade que quando conhecia um dos componentes da fa-

A VERSAO QUALITATIYA 53

mflia eu me sentia um pouco mais escorada, mas, mesmo assim, elsnunca foi uma experiencia inteiramente relaxante. Contudo, aposalffuns minutos, a tensao tendia a se tornar .menor, embora o tem-po necessario para que isso ocorresse variasse de familia para fami-lia. Exemplifico essa situagao com dois casos extremos que se veri-ficaram com familias que eu desconhecia totalmente. Na. familia Fminha acomodagao foi rapida: gostei, de imediato, das pessoas. 0apartamento estava em obras e quando la cheguei a casa «stavainteiramente desorganizada. Tive que esperar ^algum tempo paraque todos se reunissem: a filha (Flavia) estava em seu quarto fa-zendo depilagao, Fabio falava ao telefone e Felipe, o filho maisvelho, assinava alguns papeis. Quando eufim todos se sentaram,live grande dificuldade em explicar sobre o que versava o meutrabalho por ser, a todb momento, interrompida com -perguntasas mais variadas. 0 pai nao falava nada mas sorria de urn modomuito amigavel. No meio de toda aquela confusao fui sentindo umclima de muita descontracao e aconchego.

Na familia P ocorreu o inverse. Quando entrei na sala o paiassistia televisao: cumprinientou-me de modo cerimonioso e,continuou a assistir ao programa. Enquanto esperavamos a filhamais nova, que estava em seu quarto, comunicaram-me que O 1 filhonao poderia estar presente porque estava na faculdade. O.Bamoradoda filha mais velha chegou e, repentinamente, eles comegaram-"aconversar entre si sobre um assunto que impossibilitava minha1 par-ticipacao, visto que girava em torno de-pessoas que eram suas ami--gas. Essa situacao foi muito desconcertante e, naquele momento,eu mesma me perguntava sobre a minha vontade de entrevista-los,Da forma mais delicada possivel, interrompi a conversa e pedi li-cenga para falar da pesquisa. Quando, no .final do encoritro indivi-dual com a filha mais velha (Paloma), Ibe perguntei como se sen-tira antes e durante a entrevista, ela §e referiu ab fato de ter per-cebido e estranhado meu mal-estar na primeira visita, afirmandoque, em geral, as pessoas se sentiani muito a vontade eni suacasa. Seu comentario nao foi feito de modo agressivo, mas me fez;pensar se alguma atitude minha nao teria provocado, na primeira-reuniao, a resposta por parte da familia em ignorar minha presen-ca na sala. Sua observacao revelava tambem que, por mais-neutraque tentasse ser, meu comportamento ~ as..vezes inteiramente .in-.conscieute — era um importante indicador para que os entrevistq-:dos me percebessem. . ' ' -

Assim, desse primeiro contato derivava, para mim e para -QSinformantes, um certo "clima" mais ou menos agradavel;;tnifi cer-tamente marcava os mementos iniciais das entrevistas individuals.

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54 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

No entanto, com alguma freqiiencia, ocorreram surpresas nesses en-contros: pessoas que falaram muito e que se mostraram mais segu-ras quando a familia estava toda reunida tiveram um comporta-mento mais timido nas entrevistas particulares e vice-versa.

Antes de prosseguir com outras observagoes sobre os contatoscom cada membro da familia gostaria de ressaltar um ponto queme pareceu de suma importancia nessa reuniao inicial e que diz res-peito ao tipo de perguntas que me foram feitas pelos informantesnesse momento. A quantidade de questoes que me eram colocadas,como e obvio, variava de familia para familia. Contudo, cbamou-me a atengao o fato de que poucos se interessassem pela pesquisa pro-priamente dita, ao passo que, de modo muito recorrente, as pergun-tas fonnuladas giravam em torno de minha vida particular. Infeliz-mente fiz anota95es pouco sistematizadas sobre o que cada um delesme colocava. Alem do mais, algumas famflias ja conheciam algu-ma coisa de mim e nao sei o quanto de informagao os intermedid-rios deram a meu respeito para essas pessoas. Apesar dessas lacunasinsisto em desenvolver esse tema porque certas linhas gerais forampercebidas. A importancia de anotacoes mais cuidadosas sobre asperguntas feitas se deve ao fato de que elas revelam _o_modo peloqualjos entTeyistados-procuramusituar o entrevistador. no, se,u_uni-"verso e, nesse sentido, eonstituem um dado fundamental para apesquisfT

Quando terminava de explicar sobre o que versava o trabalho,as vezes me via bombardeada por perguntas de ordem mais pes-soal: onde eu morava, se era casada e tinha filhos e as vezes atemesmo a profissao do meu marido (em uma das casas o pai quissaber ate mesmc-^a profissao do meu pai ) e tambem sobre minha vidaprofissional: em que faculdade tinha feito o meu curso, em quefaculdade dava aula, etc... Em nenhum momento recusei respon-der a essas questoes nao so porque nao eram constrangedoras mastambem porque perceM que, por meio delas, os informantes esta-vam tentando organizar a desorganizagao que minha eritrada emsuas casas provocava. Assim, de certo modo, esse primeiro encontropermitia uma inversao de papeis; eu passava a ser a entrevistada eeles, os entrevistadores. Percebi que, atraves das perguntas que gi-ravam em torno de minha vida particular, os informactes estavambuscando pontos de afinidade entre a minha pessoa e a deles. Ouseja, tentavam situar-me em seu mundo e, ao que parece, atravesdesse procedimento, procuravam amenizar minha posigao de **in-vasora".

As questoes levantadas pela geracao_jnais—aselha indieavamuma tentativa de me posicionar social e economicamente — as per-

A VEESAO QUALITATIVA 55

guntas sobre onde eu morava, profissao de meu marido, etc... prp-vinham, basicamente, dela. Nao tenho duvida de que o fato de sa-berem que eu morava num. bairro considerado de elite (Joa) seconverteu em um importante "lago de cumplicidade" para os pais.Com alguma frequencia nas entrevistas eles falavam em "gente danossa classe" e no encontro com o pai da familia 7? ele citou o nomede uma serie de famflias tradicionais do Recife, perguntando, atodo momento, se eu as conhecia. Esse trago de afinidade possivel-mente interferiu nas entrevistas mas, por outro lado, me couvertianuma pessoa, a seus olhos, menos estranha, e por conseguinte deveter facilitado minha entrada em suas casas.

As jovens — mas sobretudo as maes — queriam saber do meuestado civil e se tinha filhos e, ainda que tivessem sido informadasque estes tinham quatro e tres anos, tres maes, duiante suas entre-vistas individuals comentaram: "Voce e mae, voce me entende."—, A geracao rnais nova mostrou-se mais interessada na minha

vida profissional: as perguntas sobre as faculdades em que eu lecio-^riava, onde havia feito meu curso de graduagao e pos-graduayao fo<ram formuladas por jovens.

Pouco a pouco comecei a perceber quais as caracteristicas queeu tinha que se convertiam em recursos importantes para meu pa-pel de entrevistadora: pertencia ao mesmo estrato socio-ecouomicodos informantes, era casada e tinha filhos — ou seja, era umapessoa com vida "regrada" e, por outro lado, era bastante jovempara que os filhos pudessem travar um contato mais aberto comigo.

No entanto, como e obvio, estes recursos nao sao absolutesnem iguahnente positives — isto e, uma mesma caracteristica metornava mais proxima de um tipo de entrevistado e, ao mesmo tem-po, me afastava de outro. Explico: ainda que pertencer a mesmaclasse social parecesse constituir um dado relevante para ospais (homens), o fato de ser mulher e, alem do mais, ter uma ida-de aproximada a de suas proprias filhas, fez corn que suas entrevis-tas, quando comparadas as dos outros membros, estivessem revesti-das de uma carater mais cerimonioso, embora de forma algumadesagradavel. E verdade que tanto em seus deppimentos como nosde suas respectivas esposas, eles se autoqualificavam e eram quaH-ficados como pessoas mais reservadas. Nas entrevistas com Antoniae Fernanda, por exemplo, elas me advertiram da difieuldade queeu teria que enfrentar para conseguir uma aproximagao com sensmaridos. As duas informantes, extremamente religiosas, iamijemafirmaram crer que Deus havia me enviado as suas casas para pro-vocar uma maior abertura e uma *'quebra de gelo" dos esposos.Apesar disso, nao resta duvida que minhas caracteristicas pessoais

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reforcavam o hiato na relagao. Em alguns casos senti, clararaentc,uma necessidade por parte deles em reafirmar seu poder sobremim. Por exemplo, Luis e Julio durante o primeiro contato e tam-faem em suas entrevistas individuals dissertaram sobre filoso.fia eteorizaram sobre familia. Este ultimo informante, diante da relu-tancia da esposa em participar da pesquisa (como ja mencionadoanteriormente), disse: "Acho que e bobagem tua. A Tania pergun-ta o que quiser. Agora, se eu vou ou nao dizer a verdade e prolile-ma dela e nao meu." Com essa afirmativa, Julio exercia uma pres-sao sobre a mulher para que aceitasse ser entrevistada mas, coneo-mitantemente, reafirmava para mim os seus proprios recursos en-quanto entrevistado.

Assim, os pais em suas entrevistas discorriam com muita de-senvoltura e mesmo com um certo orgulho sobre sua hisloria devida profissional (em alguns casos fui obrigada, inclusive, a interrompe-los) mas ao entrar no item referente as relagoes familiareseles se mostravam mais reticentes. Nao deve ser menosprezado que,como eles mesmos declararam, essa esfera era mais da competenciade suas esposas e, por conseguinte, era um tema com o qual esta-vam menos envolvidos. Por outro lado, embora nao se recusando aresponder nenbuma das questoes colocadas, sua menor fluenciafrente a este assunto se explica nao so por ser ele de ordem maispessoal como tambem se acentuava pelas minbas caracteristicas tti-quanto pesquisadora.

As entrevistas com as maes assumiram um carat$r muito di-ferente. Na primeira reuniao elas, de um modo geral, se manifes-taram pouco e algumas, direta ou indiretamente, apresentararumaior relutancia em sua decisao de servir como infownantes. Rena-ta perguntou se eu so entrevistaria cada peesoa apenas uma veze pareceu-me mais aliviada quando respondi que sim. Quando per-guntei a Maria como tinha se sentido antes da entrevista ela con-fessou que apos nosso primeiio contato tinha dito para a filha:"Monica, pra que voce foi mandar a Tania aqui? Eu nao sou defalar muito — voce ja imaginou eu ser entrevistada? Nem voudormir essa noite... Pra que voce foi inventar isso?" Surpreen-dentemente, nao apenas Maria mas tambem as outras maes de ummodo geral falaram nao so de modo compulsivo durante os encon-tros como tambem expressaram muito envolvimento com a situa-gao. Senti que as entrevistas provocavam nelas uma especie de efei-to_Je_catarse. Jiilia ressaltou que aceitar ser entrevistada teve paraela muita importancia, nao so porque pode reavaliar sua relacaocom a filha que saira de casa, como tambem porque era conforta-dor poder conversar sobre esses problemas com outras pessoas.

A VERSAO QUALITATIVA 57

Claudia ,nos prirneiros minutos de sua entrevista, ge referiu — demodo espontaneo — a vida amorosa extraconjugal de seu marido,alegando que sabia que este era um tema que me interessaria. Oassunto, por certo, escapava aos propositos da pesquisa mas ela, vi-sivelmente emocionada, eontou detalhes bastante intimos sobre seurelacionamento com Claudio e os dificeis momentos que estavamatravessando. Essa informante, Julia, Luiza, Maria e tambem Re-nata, ao final do nosso encontro, agradeceram-me por te-las escuta-do e tres delas se referiram ao fato de que se sentiram como se es-tivessem falando com uma "amiga de muito tempo". Uma passa-gem da entrevista de Renata merece ser transcrita:

"eu sou uma pessoa muito fechada ate mesmo com pa-rentes. Eu nao gosto de me introduzir na intimidade dosoutros e nao gosto que se introduzam na minba. Pra tefalar a verdade eu nunca rive uma amiga com quern eume abrisse totalmente. Eu nao gosto. Por exemplo: mi-nha filha mais velha ontem me telefonou de JBrasiUapra falar que esta com um guisto no ovario e que preci-sa ser operada ( . . . ) . 0 meu filho mais novo — de 15anos — esta atravessando uma fase muito dificil desde amorte do irmao ( . . . ) . (Depois de discorrer longamentesobre esses assuntos, concluiu:) Essas coisas eu nao con-to para amiga nenhuma miiiha. Nao conto e nao conta-rei. Eu comento com minhas filhas mas nao com ami-gas porque se nao vira um clima de disse-me-disse e eunao gosto,"

0 texto acima me parece ser bastante revelador pois apontapor que a informante se recusa a conversar com amigas assun-tos que, espontaneamente, levantou em nosso encontro.

Autores voltados para a Sociologia da Familia tern acentuadoa "in isSo" que o pesquisador comete ao promover entrevistas queversam sobre uma area tao intirna da vida das pessoas."2 Nao res-ta diivida de que isso nao e, de modo algum, uma inverdade. Noentauto, as informagoes acima dadas apontam para um outro ladodessa questao, O_fato__de_o-entrevistador ser uma pessg_a_fora do cir-culo de_ relagoes do infarmante facilita e~Talvez mesmo estimule.,.

^deutro.de certos hmites, uma maior abertiira por parte_do_entrevis^_ '-- ——, . . ____— -*—' - i. X^— _ •

tado. A garantia de que o pesquisador "entra mas sai' cria uma12 Ver, por exemplo, o artigo introdutdrio de Michael Anderson emSociology of the Family, Michael Anderson (org.), Middlesex, PenguinModern Sociology Readings, 1971,

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situagao de menor compromisso do que aquela existente coin pes-soas mais proximas — quer sejani amigas ou mesmo parentes. As-sim, paradoxalmente, a pouca intimidade entre eles se converte emum recurso valioso para que seja estabelecido um contato bastanteintimo.

As entrevistas com os jovens reafirmam essa constatagao. Deum modo geral meu contato com eles esteve revestido de um climajnuito descontraido, mesmo quando perguntas mais delicadas esta-vam em pauta. Com respeito aos rapazes pude perceber que o fatode estarem sendo entrevistados por uma mulher foi suplantado pornossa relativa proximidade em termos etarios. Km apenas dois c:n-contros — com Paulinho e Jayme — senti um clima menos rela-xado: eles me pareceram, comparativamente aos outros, mais ten-sos durante quase todo tempo.

A partir da quinta famflia entrevistada resolvi introduzir uoiaultima pergunta: eu pedia que eles me informassem como tinhamse sentido apos a primeira reuniao e durante o encontro Individual.Os pais (homens) foram os que deram as respostas mais neutras:acentuaram que a entrevista tinha sido muito agradavel e algunsme desejaram sucesso no trabalho. Nos outros casos fiquei mesmosurpresa com a espontaneidade dos depoimentos. Ja tendo fei-to comentarios sobre as maes, transcrevo trechos das entrevistas democas e rapazes como ilustracao:

Rita: "a noite passada nem dormi direito por causadessa entrevista. Eu fiquei muito aflita porque naosabia o que voce ia perguntar e sempre fico angustia-da de saber que estou sendo observada. Nao sei expli-car mas live medo. Mas depois acabou sendo muito le-gal e me senti muito a vontade de falar essas eoisas to-das."

Rui: "Bom, eu fiquei curioso pra saber como seria aentrevista. Fui ate perguntar pro papal (papai foi oprimeiro, ne?) o que voce tinha perguntado e se eramuito chato. Mas ninguem quis me dizer nada. No co-mego da entrevista eu fiquei meio assim.. . mais pre-so, sabe? Mas depois ficou mais facil e fui me soltan-do."

Fdbio: "antes da entrevista fiquei um pouco grilado,sabe? Fiquei pensando: porra, qual e a dessa mulher?Mas ai fiquei empolgado com a transa do teu trabalho.Voce acredita que a canoa nao esta furada, entende?

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E eu acho isso legal. Ou se a canoa ta furada voce podedar o rabo pra tampar o rombo, eutende? A£ entreinuma de te ajudar. Mas e a primeira entrevista e porisso fiquei nervoso, ta sabendo? Alem do mais vocenao e minha amiga e entrou em varios assuntos —meus ideais, minha area afetiva, minha transa sexual— que sao coisas que eu so converso com amigos. Etambem a situacao agressiva que o 'senhor ai' (gra-vador) traz. Ai fiquei meio griladao. Ai, porra, depoiseu fui me sentindo mais tranquilo, fui falando as coi-sas, certo? Queria mesmo falar destes sentimentos, mo-rou? Dessas coisas que estao acontecendo e que estaosendo sufocadas, morou? S dificil falar dessas coisascom pessoas estranhas. Mas voce nao, po. Voce transanuma legal, voce sabe ouvir. Mas pessoas que nao sa-bem ouvir nao da, morou?"

Fldvia: "Quando ouvi falar do teu trabalho eu acbeiuma coisa legal e de cara topei fazer. Quando naqueleprimeiro dia eu te vi la na sala te achei muito ner-vosa e comecei a pensar na tua posigao, sabe? Meiobarra de estar enfrentando aquele monte de gente na-quela confusao. Eu achei que ia ficar mais preocupadacom o tipo de pergunta. Mas foram raras as vezes queeu parei pra pensar na linguagem que eu estava usan-do e nas coisas que eu estava dizendo. Fiquei tranquilae acho que foi legal pra mim ter me sentido tranquila.Gostei."

Marcos: "Antes de voce ir la em casa eu pensei queera um questionario. Quando voce foi la na quinta-fei-ra e que eu soube como era a coisa. Fiquei tranquilomas curioso. Tanto que perguntei pra mamae: "comofoi? tudo legal?". Hoje eu comecei meio assim mascom uns cinco minutos de conversa eu me descontraitotahnente. Bacana. Espero ter te ajudado."

Patricia: "Nao e muito facil falar de coisas tao intimas,ne? Eu pelo menos nao consigo falar minhas coisassem conhecer as pessoas. Mas dependendo do jeito dagente conversar fica mais facil falar. E voce leva opapo assim muito informal, muito calma e com a vozmuito controlada. E como se a gente ja se conhecesse.Voce nao forca as coisas, voce sabe levar, sabe dar umjeitLnho na hora."

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Paulinho: (que nao estava presente no primeiro en-contro): "Bom, cpiando me falaram da tua entrevistafalei logo que topava desde que eu me mantivesse den-tro da minha liberdade. 0 que eu achasse que nao de-via responder, nao responderia. No comego eu estavamais em guarda pra ver o que voee ia perguntar, praver se voce ia ou nao atingir minha liberdade indivi-dual. Mas depois eu vi que voce nao estava procuran-do aquilo e tambem as perguntas nao foram tao di-retamente intimas."

Paloma: "Naquele primeiro dia que voce veio aquieu senti que voce nao estava. .. nao sei. . . estava mui-to ausente. Parece que nao gostou. Eu estranhei porqueo pessoal daqui de casa faz com que as pessoas se sin-tam muito a vontade. Durante a entrevista me sentibem. Respondi as perguntas sem nenhum problema."

Felipe: "Com toda sinceridade, quando voce veio aquipara explicar como iam ser as entrevistas eu fiquei pen-sando nos temas que voce podia abordar e fiquei pen-sando nas coisas que eu ia te responder. Queria ter al-guma coisa mais ou menos pre-estabelecida pra falar,sabe, ne? Mas depois pra te falar a verdade eu aeabeidesistiado de arrumar tanto as coisas. Durante a entre-vista me senti muito a vontade. Eu gosto de falar des-sas coisas que estao no Hmiar da privacidade."

Como e notorio, a grande maioria dos informantes marca umadiferenga entre os momentos iniciais do encontro e seu curso pos-terior, acentuando um relaxamento progressive. Nao foi aleatoria adecisao de iniciar os encontros individuals falando spbre a vidaprofessional e/ou academiea dessas pessoas. Eu supunha que, sen-do este um tema mais impessoal e menos delicado, a conversa emtorno dele forneceria o tempo necessario para uma acoraodagao HOnosso relacionamento.

Alem do mais, na relagao com o entrevistado parece impor-tante que o pesquisador saiba "ate onde pode ir" com cada umdesses informantes mas para isso nao existem regras pre-determi-nadas. Em parte, a propria experiencia no trabalho de canrpo meensinou a perceber esses limites. Com respeito aos pais (homens),por exemplo, entendi que o fato de se mostrarem menos fluentesao se referirem a esfera domestica nao comprometia b desenrolarda pesquisa mas, pelo contrario, ja era um resultado importante damesma. 0 caso mais extremo ocorreu com o pai da famflia A. A

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titulo de ilustragao: quando pedi a Antonio que me falasse de cadaum de seus filhos, ele retrucou: "bom, aqui em casa existem osintrovertidos e os extrovertidos". Citou aqueles que, a seu ver, seencaixavam dentro de cada uma dessas categorias e deu por findasua resposta. Tenho consciencia que mesmo que meu encontrocoin ele tivesse se delongado por muitas horas, todas as informa-coes que ele poderia e estaria disposto a me dar nao ultrapassariamesse ruvel de superficialidade.

Nesse sentido, nao so respeitei o alcance das respostas dadaspor cada uma dessas pessoas mas tambem tive o cuidado de so f azerperguntas mais delicadas em areas mais sensiveis quando sentia se-guranca de que meu contato com o informante estava suficiente-mente sedimentado.

De um modo geral acredito que as entrevistas tenham sidobem conduzidas. ^ possivel que em alguns casos tenha ido aquemdo que, de fato, poderia mas em apenas um deles senti, com cla-reza, ter ultrapassado os limites desejaveis. Isso ocorreu com amae da f ami Ha A. Antonia, no primeiro encontro, mostrou-se mui-to segura, afirmando inclusive que ela, como psicologa, ja sa-bia ate mesmo o que eu iria perguntar. No entanto, esta foi, sem du-vida, a mais tensa das trinta e nove entrevistas feitas. Um primeiroincidente desagradavel ocorreu quando eu estava trocando a fitado gravador e ela me perguntou se Andrea — com quern eu me haviaencontrado no dia anterior — havia falado mal do pai. Delica-damente argumentei que preferiria nao responder, dado que issoinfringia uma das regras basicas estabelecidas na reuniao coletiva.A partir dai criou-se uma situaeao de constrangimento. Por algu-mas vezes ela se mostrou mais agressiva: quando eu Ihe fazia umapergunta ela afirmava ja te-la respondido. Quando Ihe pergun-tei se suas filhas eram virgens ela retrucou "claro que sim"-Mas, depois de ter desligado o gravador e estar me preparando parair embora, ela disse ter ouvido mal a questao e que uma de suasfilhas ja tivera relagoes com um rapaz. A moga ainda nao tinhasido entrevistada e pareceu-me que Antonia teve certeza de que se-ria desmentida pela filha, visto que esse fato havia provocado, in-clusive, uma verdaeira crise familiar. Pedi licenga para ligar no-vamente o gravador pois seu depoimento era importante para o tra-balho, Ela concordou de um modo pouco enfatico e expos o casode forma muito emocionada. Hoje eu nao repetiria esse pedido, pois,embora fosse algo importante a ser gravado, acredito que tenhasido uma atitude violenta e pouco habil da minha parte. Ainda quetal ocorrencia nao tenha prejudicado as entrevistas com os filhossei que ela comprometeu, pelo menos de inicio, o encontro com o

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pai. Antonio nao esteve presente na primeira reuniao e no dia emque fui entrevista-lo ele usou sua filha Andrea (que na epoca eraminha aluna) para me comunicar que nao dispunha de muitotempo e que o encontro deveria ser o mais breve possivel. Ao Hieperguntar quanto tempo ele poderia me conceder, Antonio falouem trinta a quarenta minutos. A entrevista, que transcorreu semmaiores dificuldades, foi feita em uma hora. No entanto, esse foinao so o mais curto como tambem o mais impessoal de todos osencontros efetuados.

Ate o momento procure! enfatizar, basicamente, aquilo quepude perceber dos informantes. Cafae agora ressallar, com maisdetalhes, as sensa5oes e as dificuldades que vivenciei no papel dcentrevistadora.

Se funcionei como elemento mobilizador para os entrevista-dos, quero frisar que isso foi reciproco: o trabalho de campo foi,para mim, altamente mobilizante. Embora simpatizasse diferente-mente com as pessoas — por motives nem sempre claros para mim— esses encontros nunca me foram indiferentes. Compartilbava demuitas de suas duvidas e sentimentos e muitas vezes sentia umaforte identificagao com aquilo que alguns dos informantes me di-ziam. Nao era nada confortavel saber que tinha provocado noilesde insonia e outros tipos de tensao nessas pessoas. Com muita fre-quencia as entrevistas acionavam emogoes mais violentas: duasmaes cboraram durante nosso encontro enquanto que outros espres-saram um intense euvolvimento frente a alguns dos temas aborda-dos. Tudo isso se refletia sobre mim e, nesse sentido, se "invadi"'essas pessoas fui, concomitantemente, "invadida" por elas.

A propria natureza do tema escolhido acentua a dificuldadeda isengao. Com bastante freqiiencia, depois de desligado o grava-dor, permanecia por mais tempo com o informante nao mais desem-penbando o papel de pesquisadora mas antes como uma "igual".Por vezes, nessas ocasioes, fiz referencia inclusive a assuntos meusde ordem mais pessoal. No entanto, mesmo durante as entrevistaspropriamente ditas percebi, que, em determinadas situates, perdiao contorno entre meu papel enquanto entrevistadora e enquantopessoa. E obvio que era mais facil manter um certo distanciamen-to quando as pessoas e/ou itens abordados eram mais impessoais.Mas quando este nao era o caso tenho consciencia que minha eon-fusao de identidades se acentuava. Assim, embora procurando sero mais imparcial possivel, sei que nem sempre obtive sucesso: naoso os informantes pereebiam meus sentimentos atraves de espres-soes faciais — nem sempre eontrolaveis — como tambem por VP-zat infringi — intencional ou inadvertidamente — as regras de en-

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caminhaniento das entrevistas. Cito os exemplos que me parecerammais marcantes.

Faltando uns Irinta mlnutos para encerrar a entrevista comFernanda, numa atitude impulsiva, mas consciente, disse-lhe queydesde o primeiro encontro, sua familia me havia transmitido mui-ta vitalidade e aconchego. Nao tenho duvida de que essa interfe-rencia de opiniao do pesquisador e arriscada. Ainda que nessecaso nao tenha percebido nenhum desvirtuamento na condugao doencontro (a informante, embora satisfeita com o meu comentario,prosseguiu seu depoimento na mesma diretriz mantida ate eiitao)live outra experieneia em que uma atitude minha comprometfiu aentrevista — ou, pelo menos, parte dela. Quando Claudia falavado namoro de uma de suas filhas com um homem desquitado meperguntou se eu achava que isso "tinha alguma coisa de mais".Inteiramente distraida respondi que "nao" ao que ela retrueou:"pois e. Eu tambem nao". No entanto, a partir desse momento sen-ti claramente uma mudanga de direcao do seu discurso. 15 3omose ela tivesse percebido wde que lado eu estava". Parece ter inferi-do que minha visao se assemelhava a de suas proprias filhas e,em algfumas de suas respostas posteriores sobre temas correlates^Claudia parecia estar preocupada em dar respostas que, a seu ver,eu considerava "corretas". Nao acredito que ela tenha mentido demodo deliberado, mas sim que, frente a ambigiiidades., a informantetenha procurado ressaltar o lado que. segundo sua perspectiva,se coadunava com as minhas expectativas.

Ao fazer refereneia ao casamento de seu filho — marcadopara alguns meses depois do nosso encontro — Maria me perguntouse eu nao achava que ele era ainda muito jovem para assumir essecompromisso. Naquele momento nao me seati a vontade para nao-responder ou para adiar minha opiniao para quando a entrevistaestivesse terminada. Segundo a informante, minha resposta Ihetrouxe muito "alivio" e o prosseguimento do encontro nao sofreuqualquer alteragao.

Em suma, sei que infringi normas jie imparcialidade naco-leta dos_,dados., Em alguns casos esse procedimento nao parece terafetado o comportamento dos informantes enquanto que em ou-tros revelou ser inconveniente. Nesse sentido, acredito que sejadificil impor, a priori, padroes rigidos a interagao entre entrevis-tado e entrevistador, visto que uma mesma atitude por parte desseultimo pode ocasionar efeitos diversos sobre diferentes pessoas.

Uma relagao mais pessoal, meuos formal e hierarquizada pa-rece ser positiva na medida em que estabelece um clima de menortensao facilitando uma maior abertura por parte do informante.

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Contudo, a ultrapassagem de determinados limites apresenta des-vantagens, como o case de Claudia deixou patente. Nao conhegonenhuma solucao facil para deHmitar, com precisao, que limitessao esses.

Estou ciente que, por vezes, nao consegui dlstinguir eatreuma maior flexibilidade na relagao com os entrevistados com umadificuldade — talvez acentuada por caracteristicas pessoais — deestabelecer um contorno mais claro entre meu papel euquanto en-trevistadora e enquanto pessoa tambem envolvida pelos temasabordados. E possivel que dai tambem tenha derivado a confusaoque por vezes percebia por parte dos proprios informantes comrelacao a mim: as vezes era tratada como sociologa, outras veaescomo amiga, outras como filha e ate mesmo alguns informantes,explicilamente, compararam meu papel com o de uma psicanalis-ta.

Acredito que essa superposigao de papeis bem como o euvolvi-mento sejam caracteristicas inerentes e mesmo inevitaveis a rela-cao entre entrevistado e entrevistador, embora, como e obvio, elaspossam evidenciar-se em maior ou menor grau, dependendo nao sodo tema em pauta como tambem das idiossincrasias do proprio in-vestigador. Portanto, parece-me—que_.o ponto centraL_nao—e__a d\s-^cussao de eomo

^o de expUcitar^ sempre que possjyel, o modo como___foi_epn_duzido o

jUpQsigao de alguns-autores tam-bem voltados para aquilo que se convencionou chamar de "anallsequalitativa" acerca da necessidade de uma maior sistematizagao

~aos~problemas concretes enfrentados pelos estudiosos durante essaetapa da pesquisa e a forma como foram respondidos.3 Creioque, por um lado, seja possivel, a partir dessa troca de experien-cias, repensar a relacao entre entrevistado e entrevistador. Ade-mais, acredito que essa tarefa seja tambem importante pois permi-te ao leitor precisar em que medida e em que diregao o "clima"€stabelecido nesse relacionamento tenha afetado tanto a coleta domaterial quanto a analise dos dados. Esse relatorio foi escrito vi-sando esse duplo proposito e espera ter contribuido para o cabedalde conhecimeutos — ou, pelo menos de indaga§5es — nessa areaate agora tao pouco codificada.

S. A Versao Quantitaliva

3 Ver, por exemplo, H.M. Trice, "The 'Outsider's' Role in Field Study"em Qualitative Methodology, William J. Filstead (org.), Chicago, MarkhamPublishing Co, 1970.

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"Brain Drain": Pesquisa Multinacional?

SIMON SCHWABTZMAN

Se algum dia existiu uma pesquisa realmente multinacional,esta foi o estudo sobre o brain drain, a migracao de talen-tos, realizada no iuicio da decada de setenta sob o patrocinio doInstitute de Treinamento e Pesquisa das Nag5es Unidas, UNITAR.35 dificil dizer exatamente quantos paises participaram, e quantaspessoas foram entrevistadas, porque, quando uns terminavam, ou-tros ainda comegavam a participar do projeto. Em Janeiro . de1974, um relatorio preparado para as Najjoes Unidas1 ja incluiadados sobre estudantes de paises subdesenvolvidos nos EstadosUnidos, Canada e Franga; pessoas de paises subdesenvolvidos tra-balhando nos Estados Unidos e Franya; e pessoas treinadas no ex-terior e de volta a seus paises na India, Sri Lanka, Republica daCoreia, Grecia, Ghana, Brasil, Colombia e Argentina. No total,cerca de 3 mil pessoas ja naviam respondido um longo questio-nario, de mais de duas horas, cujas informagoes ocupavam o equi-valente a 30 cartoes IBM por pessoa. .

Ao mesmo tempo, o questionario continuaya a ser aplicado aestudantes e emigrantes de paises subdesenvolvidos na Australia,Republica Federal da Alemanha e Inglaterra; e entre pessoas for-madas no exterior e que retornaram ao Ira, Paquistao, Fi'lipinas,Trinidad e Tobago, Tunisia e Uruguai. '

0 objetivo principal do projeto era estudar o impacto do' i-s-tudo universitario de pessoas de paises sidjdesenvolvidos em paisesdesenvolvidos, avaliando a tendencia desses estudantes de se.fixa-1 William A. Glaser, Brain Drain and Study Abroad (Findings of aUNITAB. research project on Motivations and Effects of the Outflow-ofTrained Personnel From Developing to Developed Countries). Textb Pre-Iiminar; mimeografado, Janeiro de 1974. • -

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rem de volta a seus paises ou, ao contrario, de emigrarem. NoBrasil, o projeto tomou o nome de "Projeto Retorno". Quase 600pessoas formadas no exterior foram entrevistadas, a partir de umlevantamento esaustivo de milhares de pessoas que serviram debase para a amostra.2 Alem disto, foi feita uma mostra especial deestudantes brasileiros nos Estados Unidos. Toda a iaformagao foiposta em fita magnetica, de forma acessivel para o SPSS — Statis-tical Package for Social Sciences, urn dos sistemas de conxputagaoestatistica mais difimdidos e simples de usar. E possivel que essetenha sido o maior estudo multinacional ja feito que utilizou a tec-nica de questionario.

O resultado desse esforco e paradoxal. For um lado, mostroufatos importantes, resultados inesperados, e criterios para a dissipa-930 de velhas duvidas e preconceitos. Por outro, a utilizacao efetivae a repercussao dos resultados alcancados foram bastante reduzidas,trazendo a diivida de se todo este esforgo nao foi era vao. Afinal, atecnica de "survey" serve, na realidade, para alguma coisa? Temsentido colocar toda esta informagao em computadores, ou teriasido um erro? E a pesquisa multinacional, que significa para ospaises participantes pelo lado mais pofore? E o que fazer, afinal decontas, com os resultados da pesquisa?

Todas estas perguntas podem ser discutidas a partir da expe-riencia do projeto "brain drain", e e possivel que isto nos ajudea entender um pouco e aprender algo sobre o lado interne, a "co-zinha" da pesquisa social, 35 o gue este texto pretende.

Os Resultados

j£ importante comecar pelos resultados, porque eles, mais do<jue qualquer outra coisa, podem dizer do verdadeiro sucesso oufracasso do projeto.

0 resultado mais geral da pesquisa e que estudantes de pal-ses subdesenvolvidos em paises desenvolvidos, via de regra, vol-tavam as suas origens. Eles pensam em vollar para seus paises,fixar raizes, criar neles os seus filhos. No entanto, isso varia con-forme o pais de origem. Em uma escala que vai de + 2 (pretendevoltar a seu pais) a —2 (pretende ficar no estrangeiro), estudantes

a Simon Schwartzman, Projeto Retorno — Avaliafao do Impacto doTrefnamento, no Exterior, no Pessoal Qualificado — relatorio final (Rio,Escola Brasileira de Administrafao Publica da Fundagao Getulio Vargase Institute Brasileiro de Relagoes Internacionais, margo de 1972). Aequipe do projeto era consthiuda do autor, Magda Prates Coelho, ElisaMaria Pereira Reis e Renato Raul Boschi.

A VERSAO QUANTTTATIVA 69

de paises subdesenvolvidos na Franca e Estados Unidos variam am-plamente, por grupo nacional.

Os que mais certamente, voltarao sao os da Africa (Ghaua,Senegal. Costa do Marfim, Camaroes: media, rp 1,60). Os que maispretendem imigrar sao do Oriente Medio e Norte da Africa (media,-j-0,10). Por paises, o Egito e o que menos recebera seus estudan-tes de volta (—0,56), seguido da Argentina (— 0,17). Na AmericaLatina, o Brasil e o pais que mais atrai seus estudantes de volta(+1,31), seguido da Venezuela (+1,12). Entre os que ja emigra-ram, os brasileiros ainda pendem para voltar (ip 0,05), enquanto osargentinos e filipinos certamente nao pensam assim (—0,54 e—0,80).

Como explicar essas variacoes? Existem alguns fatores quetem a ver com a adaptagao ao pais em que as pessoas vao estudar;.outros dependem das condicoes no pais de origem. A pesquisapermitiu distinguir esses fatores, e avaliar o peso relative de cadaum deles, para os diferentes grupos nacionais.

Em primeiro lugar, os paises diferem na capacidade lie t-euscidadaos se ajustarem a paiscs estrangeiros. Lagos com o pais deorigem. parecem ser particularmente importantes para os da AfricaNegra e Paquistao, que sao os que mais se queixam de isolamentoe saudades no exterior. Diferengas de padroes educativos e dificul-dades de lingua sao particularmente sentidos por brasileiros, tai-landeses, venezuelauos, coreanos e iranianos. Discriminagao e umapresenca importaute para estudantes negros e asiaticos nos EstadosUnidos e na Franga.

Em segundo lugar, paises formados por grupos sociais hetero-geneos tem mais brain drain, ja que a emigracao tende a ser altaem grupos minoritarios. Minorias culturais e lingiiisticas — fran-cofonos na Africa e Oriente Medio, alemaes na America Latina,gregos e armenios do Oriente Medio, miuorias ocidentalizadas naAsia; minorias religiosas — cristaos e judeus em paises arabes;protestantes e judeus em paises catolicos; minorias raciais -— bran-cos em paises negros. Em geral, sao minorias de classe media oualta que encontram dificuldades em serem aceitas pela sociedademais ampla.

Essas diferengas nacionais se refletem, tambem, no sentidoque tem para uma pessoa ir estudar no exterior. A grande maioriados brasileiros que saem para estudar tem bolsas de estudo, e aindamantem seu vinculo empregaticio no Brasil. POT isso, talvez,poucos trabalhem no exterior depois de seus estudos •— somente5% dos que responderam a amostra de retorno. Enquanto isso,-36% dos indianos permanecem trabalbando no exterior depois de

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70 A BUSCA OA REALIDADE OBJETIVA

seus estudos, o mesmo ocorrendo com 20% dos gregos. Pergunta-dos sobre a importancia da experiencia do trabalho pratico no ex-terior para sua formagao profissional, 46% dos argentinos e 33%dos indianoB consideram esta a motivagao principal de terem idopara fora, em contraste com somente 17% dos brasileiros.

0 brain drain depende da receptividade que os estudantese imigrantes potenciais encontram nos paises de destino. Os Esta-dos Unidos, em comparagao com o Canada e a Franga, surgemcomo pais que mais apresenta dificuldades relativas a barreiras lin-giiisticas e educacionais; na Franga, por outro lado, e onde os estu-dantes sentem mais a solidao, a saudade de casa, e a discrimina-cao. Dos tres, o Canada e o pais mais receptive ao estudante estran-geiro. Estudantes na Franga tern pianos mais definidos para voltara seua paises (63%) do que os nos Estados Unidos (49%) ouCanada (41%). Mulheres, mais do que homens, aceitam a pers-pectiva de emigrar atraves da oportunidade de estudar no exterior.

A pesquisa revela, ainda, diferenga em relagao a perspectivasde emigragao em fungao das diversas carreiras profissionais. Espe-cialistas em agriculture, administracao, filosofia e religiao tendem,mais que os outros, a voltar. Em compensacao, pessoas em arqui-tetura, educagao, saiide, economia domestica e linguas tendem maisa emigrar.

Essas sao as condigoes mais gerais. Mas a pesquisa tambemindaga quais sao os fatores que, na percepgao das pessoas, tendema leva-las ao exterior ou, ao contrario, mante-las em seu pais. Deuma maneira geral, sao as necessidades profissionais (contatos, bi-bliotecas, equipamentos, colegas qualificados, assistentes) que pu-xam as pessoas para fora; e sao os fatores psicologicos e familiaresque as mantem em seu pais (isolamento no exterior, discriminacao,por um lado; e patriotismo, lagos familiares, amigos, filhos, por ou-tro). Expectativa de maior renda e melhores empregos no exteriortambem impulsionam no sentido de emigragao, mas com menosintensidade, como veremos mais adiante. Em compensagao, facili-dades de habilitagao tendem a atrair o estudante de volta. Alguusdestes fatores variam intensamente por pais; para os brasileiros, asituagao do mercado de trabalho e vista como fator poderoso de re-tengao da pessoa, no pais, contra a tendencia internacional mais ge-ral. E claro, contudo, que isso varia no tempo, e uma pesquisa comoessa, essencialmente sincronica, pode no maximo tratar de caracte-rizar o momento em que foi feita. No entanto, o projeto parece in-dicar que fatores de mais longo prazo tern maior impacto do quevariagoes conjunturais de mercado de trabalho ou de crise po-litica.

A VERSAO QUANTITATIVA 71

A pesquisa serviu para desfazer um dos mitos mais frequentesna literatura sobre brain drain, que e o de que as diferengas sa-lariais sao o que mais explica a emigragao de talentos. Pica evi-dente, pelo estudo, que estudantes e profissionais treinados emdiferentes paises diferem amplamente em sua percepcao sobreseus possiveis salaries em seu pais ou no exterior. Brasileiros, gre-gos e colombianos que voltaram a seus paises acreditam que ga-nhariam menos se emigrassem; os da India, Coreia, Sri Lanka eArgentina esperariam ganhar de duas a 3 vezes mais no estrangei-ro do que em seus paises. Em geral, estudantes estrangeiros nosEstados Unidos e Canada esperariam ganhar bem mais se pudessemficar nos paises de estudo, o mesmo nao se dando em relacao aosque estudam na Franga.

Foi possivel calcular uma equagao de regressao que relacio-nasse o diferencial percebido de renda com os pianos de emigra-gao, avaliados por uma escala de 5 pontos (de "pensa retornar eficar definitivamente em seu pais", a "pensa ficar definitivamenteno exterior'*). Para os estudantes nos Estados Unidos, ela e a se-guinte:

Y = 1,730 + 0,082 X,

Onde X e o diferencial de renda, e Y a propensao a emi-grar. O baixo valor do coeficiente B, de 0,082, e suficiente para in-dicar o pequeno efeito isolado da renda sobre a propensao a emigrar.Com efeito, seria necessario aumentar sete vezes a renda esperadapara aumentar a propensao a emigrar de 1,812 a 2,304.

Os valores desse coeficiente B variam de pais a pais, e degrupo a grupo de entrevistadores, Ele e maximo para os emigra-dos para a Franga (0,307), e nunimo para os que retornaram aoBrasil (0,044). De uma maneira geral, a correlagao entre a percep-530 de um diferencial de renda e a propensao para emigrar e ex-tremamente baixa (R2 variando entre 0,028 e 0,200).

Seria possivel continuar, ainda longamente, apresentando re-sultados da pesquisa. Sobre a importancia dos lagos com o pais deorigem — bolsas, vinculos empregaticios, contatos por carta e pu-blicagoes; relagSes de amizade, vinculos matrimoniais. Sobre osatrativos no exterior: beneficios educacionais, academicos e de em-prego. Sobre as diferengas por especialidade. Sobre os fatores deidade, religiao, sexo. . .

Mas vale dizer aJgo mais sobre os brasileiros que estudaramno exterior, e que estavam de volta ao Brasil em 1971, quando asentrevistas foram feitas, Eram filhos de gente educada (36% ti-nham pais de nivel universitario), de pais que trabalhavam no go-

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72 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA A VERSAO QUANTITATIVA 73

verno (26%) ou por conta propria (46%), e em sua maioria ho-mens (80%). Dentre os mais jovens destes brasileiros havia rela-tivamente mais especialistas em administracao e ciencias sociais'que entre os mais velhos, onde o peso relativo das areas biologicasera maior. Eles eram residentes predominantemente no Rio (30%),Sao Paulo (25%), alguns em Minas Gerais (13,4%), e os res-tantes dos demais Estados. Na vida, desde o nascimento ate o momen-to da pesquisa, eles vinbam se concentrando no Rio e Sao Paulo. Porexemplo, somente 20% haviam nascido no Rio, e 20% em Sao Pau-lo. Todos os demais estados perderam gente, com excegao do Cea-ra. . .

De volta ao Brasil, esses profissionais se dedicavam preferivel-mente a pesquisa e ensino (42,5 e 15,6%), mas muitos tambema outras atividades (42%). Isso varia, evidentemente, por area: osde biologia, agricultura, e ciencias exatas tendiam mais a ficar napesquisa, os de linguas, medicina e educagao, no ensino, e os deadministragao de empresa, engenharia especializada e engenhariacivil, em outras atividades. Trata-se, de qualquer forma, de umgrupo em franca mobilidade social: mais do que seus pais, eles pos-suem carros, fazem viagens de ferias anualmente, e se individam,na aquisigao de bens.

Nossos profissionais treinados no exterior estudaram princi-palmente nos Estados Unidos (59%), Franca (14%) e Alema-nha (7,6%). Praticamente todos foram ao exterior com bolsas —-87,5%. Destas, predominaram as bolsas da USAID (23,1%),que atendia particularmente as areas de administragao, agricultu-ra, educagao e ciencias sociais; as do governo e instituigoes daFranga, que atendiam as areas de ciencias exatas, ciencias sociais,linguas e outras; as de outras instituicoes norte-americanas exce-to USAID e Fulbright que, com 13,4% do total, cobriam predo-minantemente as areas de ciencias sociais e biologia. A participa-530 das instituigoes brasileiras nesta distribuigao de bolsas era rela-tivamente menor: o CNPq contribuia com somente 5,6% do total,fortemente concentrado nas ciencias exatas (56,2%), engenhariasespecializadas e biologia; a CAPES, com 7,6%, tinha uma distri-buigao mais equilibrada, beneficiando preferentemente a medicina(20%); e outras instituicoes brasileiras contribuiam com mais 7%do total, de forma dispersa. Alem das bolsas, nossos profissionaisiam com seus empregos garantidos (70%), e mantendo seus sala-rios no Brasil (57,2%). , . Entretanto, somente 18% tinham umaobrigacao especifica de voltar para seus empregos de origem, sendoos demais presos, tao somente, a uma obrigagao moral de voltar aseu pais de origem (62%).

V

Mas por que, afinal, essas pessoas iam estudar no exte-rior? Porque tinham bolsas, queriam estudar mais.. . Tinham di-ficuldades com a lingua, poderiam sentir saudades, mas a viagemvalia a pena.. .

Deixemos de lado a descrigao da vida no exterior, oude pre-dominam os problemas de lingua e adaptagao ao sistema educacio-nal estrangeiro. Voltemos ao Brasil. Se bem sairam, melhor volta-ram. Noventa por cento dos entrevistados tinham emprego perma-nente, 68% consideravam seu trahalho adequado para o treina-mento que tlveram, 45% se consideravam satisfeitos ou muito sa-tisfeitos com o trabalho, e somente 8,4% insatisfeitos. A insatisfa-gao era maior entre bs medicos, os administradores e os de cien-cias sociais, mas nao chegava a 20% de nehhum deles. Entre osadministradores estavam tambem os mais satisfeitos, seguidos de-pois pelos engenheiros e biologos.

Nao e que nao existissem problemas. A maioria dog profissio-nais treinados no exterior se queixava de que "as posicoes de impor-tancia estao ocupadas por pessoas que nao estao famUiarizadas comos desenvolvimentos mais recentes de minha profissao"; queixavam-se da burocracia e dos regulamentos governamentais;' e os medi-cos e biologos eram particularmente preocupados com a falta detrabalho interessante, falta de oportunidades profissionais em suaespecializagao, e com a ideia de que o Brasil desperdiga recursosque seriam uteis para seu trahalho. Apesar disso, eles tendiam aconcordar que o trabalho no Brasil era mais autonomo, dava maisoportunidade de lideranga e participagao em decisoes, e maioroportunidade de ser socialmente util. Comparado com o Brasil, oexterior oferecia maiores opgoes no mercado de trahalho, menos bu-rocracia, melhor remuneracao e abundancia de assistentes. Mas istonao parecia ser suficiente para levar a pessoa a, de fato, emigrar.

A principal conclusao desse estudo e que o brain drain, noBrasil, pelo menos naquela epoca, nao existia, e possivelmente naoexiste. E uma conclusao paradoxal, porque todos podemos citar ci-entistas brasileiros que vivem no exterior; mas sao estatisticamen-te poucos, ainda que possam ser muito importantes. E o clima po-litico? Somente 8,6% dos entrevistados deram alguma importan-cia a Uberdade politics como influenciando sua ida ao exterior. Oscientistas sociais sao naturalmente mais sensiveis a isto, mas naodemasiado.

0 tempo amortece, aparentemente, o peso das frustragoes-Com o correr dos anos, problemas como a falta de colegas comquern discutir as coisas, a falta de assistentes hem treinados, asdificuldades de biblioteca, etc., vao parecendo menos graves. As

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74 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

dificuldades de Kngua e de adaptacao ao sistema educacional noexterior, por outra parte, vao parecendo cada vez mais formidaveiu.Nosso profissional formado no exterior cada vez se instala mais, seadapta mais, e mais se afasta da experiencia de juventude que foiseu estudo no exterior. Dos que terminaram seus estudos no exte-rior ate 1965, 81% gostariam de permanecer definitivamente noBrasil, e 89% esperam faze-lo. Existem alguns, portanto, que o fa-rao a contragosto. Para os formados depois de 65, os numeros eram80 e 83,5%, respectivamente.

As dificuldades com a lingua estrangeira, os problemas deadaptagao ao sistema educacional no exterior sao barreiras que seeoinhinam com o vinculo empregaticio, os salaries de bom nivel,os cargos de responsabilidade e os vinculos familiares para pren-derem o brasileiro a seu pais, mesmo quando as condicoes que Ihepermitem realizar um trabalho tecnico e cientifico de qualidadese deterioram. fi possivel pensar que, houvesse maior mobilidade in-ternacional, nossos tecnicos e eientistas teriam talvez melhores con-dicoes para impor novos padroes de trabalho, quando nao seja pelaameaga real de emigrarem.

Em sintese, a pesquisa mostra que o Brasil tern muito menos.brain drain do que se supunha. Nao seria melhor, considerandoo dito acima, que tivesse um pouco mais?. . .

A Metodologia

Sera que a metodologia indicada, de tipo quantitative, foi reo.1-mente a mais indicada para chegarmos ao resultado que se obte-ve? As grandes diferengas de lingua e cultura nao significarambarreiras intransponiveis para a comparagao efetiva dos resultadosentre os diversos paises? Perguntar as pessoas sobre suas historias,pessoais, preferencias e atitudes e, reahnente, a melhor maneira decntendermos um assunto desta natureza?

0 breve sumario dos principals resultados da pesquisa, apre-sentado acima. mostra que se trata de uma metodologia potente ecapaz de chegar a um nivel de detalhe e comprovacao de proposi-£oes que outras metodologias dificibnente conseguiriam. Existiu,no entanto, um custo para isso. Para estabelecer a comparabilidade«ntre as diversas amostras foi neoessario realizar um trabalho de^ompatibilizac.ao cujas dificuldades eram dificeis de antever. Pou-cosTimaginam, por exemplo, a dificuldade em estabelecer um codi-go numerico para todos os paises do mundo (Sao quantos? 200?180? Valem as colonias? E os que mudaram de nome?. . . ). De-pois, eram necessaries codigos de linguas, religioes, relagoes de pa-

A VERSAO QUANTITATIVA 75

rentesco, titulagao academica, areas de conhecimento. . . A ana-lise do efeito da renda e dos diferenciais de renda sobre a tenden-cia a emigragao exigiu, naturahnente, uma compatibilizagao devalores em moedas nacionais e dolares, e compensando pelos diferen-tes mementos em que os questioaarios foram aplicados.

A analise de toda esta informagao exigiria, naturahnente, umcomputador de grande porte. A opgao pelo sistema estatistico SPSSfoi feita partiudo da ideia de que este sistema e de uso extrema-mente simples.__P usuario simplesmente escreve, em um cartao, asvariaveis que quer utilizar, e a analise que pretende, e o compu-tador executa o resto. Por exemplo, se ele quiser fazer uma analisefactorial das atitudes expressas nas variaveis 31 a 50, ele escreve.simplesmente,

FACTOR V31 to V50

e algumas especificac,5es e opgoes estatisticas mais. 0 computadorfaz o resto.

Colocar toda a informagao do sistema SPSS nao foi, tampou-co, tarefa das mais simples. Primeiro, toda a informagao deveriaser transposta em variaveis e codigos numerieos (dai os codigos depaises, profissoes, titulagao. . . ). Depois, havia todo um trabalhode controle da qualidade das informagoes — valores numerieosnao previstos nos codigos, respostas inconsistentes entre varias per-guntas, perguntas sem respostas. . .

Antes disso, naturahnente, havia a questao do intense traficode informagoes computarizadas, entre paises e sistemas de compu-tagao diferentes. A Coordenagao internacional da pesquisa era feitano Bureau of Applied Social Research, da Universidade Colum-bia, por William A. Glaser, responsavel geral pelo projeto. Co-lumbia trabalhava com um computador IBM de grande porte, quenao conseguiu, por muito tempo, ler a fita produzida pelo IBM7044 da PUC do Rio de Janeiro com os dados da equipe brasileira{mais tarde outra fita foi produzida pelo IBM 370 da PUC). Esseproblema foi geral, e havia ainda difereugas em espessura de car-toes, paises que adotavam codigos com perfuracoes multiplas emsuas codif icacoes nacionais.. .

0 fato e que este trabalho foi feito, gragas, essenciahnente, adedicagao minuciosa e tenaz do coordenador geral do projeto. Umavez codificados e postos no computador, os dados ainda nao estavamprontos para serem analisados. Eles deveriam ser recombinados,formando indices, escalas, eoeficientes.. . Um sistema denominadoUtility Coder foi utilizado em Columbia para as transformacoes

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76 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

mais complexas, e os recursos computacionais do SPSS para a&transformacoes mais simples.

Em meados de 1973, ja havia suficiente preparacao do ma-terial para que tentassemos realizar um seminario de analise noRio de Janeiro. Esse seminario foi feito com o apoio do SocialScience Research Council dos Estados Unidos (Foreign Area Fel-lowhip Program), sob a coordenacao de William A. Glaser, responsa-vel geral pelo projeto, e Simon Schwartzman, diretor do projeto noBrasil. A ideia era trazer alguus estudantes norte-americanos e ou^tros brasileiros, para, durante dois meses, trabalharem com os dadosno computador da Univesidade Catolica do Rio de Janeiro, apren-deudo a analisar dados com um sistema SPSS, e se aprofundando'nos aspectos substantives do problema. Alem dos coordenadores eestudantes, o projeto contou com a participagao de responsaveispelo trabalho de campo na Grecia e na Argentina, que puderamtrabalhar com seus materials. Todos os dados disponiveis do pro-jeto internacipnal foram trazidos para o Rio em fita magnetica, detal maneira que estudos comparados pudessem ser feitos.

Os resultados desse seminario sao mistos. Antes de mais nada,houve um problema com o computador. Durante boa parte do tem-po a maquina da PUG parou, e os cartoes e formularios tinham queser enviados para processamento no computador do IBGE. Istotrouxe problemas de compatibilidade de maquinas, e fez com queo tempo de espera entre a entrega de um programa e sua devolti-c.ao pelo computador (indicando, na maioria dos casos, um erroformal qualquer) levasse 24 horas. . .

Alem deste problema tecnico, a experiencia mostrou que naoe facil ensinar a alguem que nunca viu um computador nera temfamiliaridade com a analise estatistica apreuder a usa-lo em pou-cas semanas, mesmo pela utilizagao de um sistema tao simplescomo o SPSS. As pessoas responsaveis pelos projetos puderam, evi-dentemente, fazer suas analises (toda a analise dos resultados daArgentina, por exemplo, foi feita no Rio), mas alguns dos partici-pantes nao conseguiram ir alem de um ou dois processamentos dosdados, sem jamais terem chegado a entender o sentido real do queestavam fazendo, apesar de terem sido cuidadosamente seleciona-dos.

As dificuldades tecnicas, e a fobia ao computador por parte dealgumas pessoas, nao contain entretanto toda a historia. Havia umprofalema mais profundo, que e o da compatibilidade entre as per-guntas que as pessoas tinham na cabega e o tipo de respostas queos dados poderiam proporcionar. Isso nao tem muito a ver coma metodologia, e sim com a teoria.

A VEKSAO QUANTITATWA 77

A Teoria

Um dos participantes do Seminario do Rio de Janeiro, porexemplo, norte-amerieano e radical, trazia uma ideia difusa sobredependencia. Aparentemente, ele gostaria de provar que o Brasil,e outros paises subdesenvolvidos eram dependentes dos Estados Uni--dos. Ora, essa teoria, por um lado, e evidentemente verdadeira; oproprio fato de haverem tantos estudantes de paises subdesenvol-vidos nos Estados Unidos ja o prova. Mas, por outro lado, ela naopermite gerar hipoteses especificas sobre diferencas entre Brasil eArgentina, ou entre engenhelros e fisicos ou entre mulheres e ho-mens, na area do brain drain. Ele terminou, conseqiientemente,sendo a pessoa mais frustrada de toda a experiencia do seminario.

O problema do brain drain e essencialmente social e politi-co, e o proprio projeto, patrocinado pelas Nacoes Unidas, tinha umfim pratico. Nascido com estas origens, ele nunca chegou a servisto dentro de um quadro de interesse teorico mais bem articula-do. Por parte da coordenaeao geral, o que havia era uma metodolo-gia explicitada, a chamada reason analysis, que justificava o estudoaprofundado do sistema de motivacoes de decisoes individuals, deforma agregada. No seminario do Rio de Janeiro foram testadas,com algum sucesso, uma serie de ideias a respeito da aplicabilida-de do modelo de Albert Hirshman (em Exit, Voice and Loyalty)para o entendimento dos problemas e conseqiiencias relativos aobrain drain.

A expectativa, por parte da coordenagao geral do projeto, erade que seria possivel trabalhar sobre os aspectos teoricos mais pro-fundos do tema depois de terminados os primeiros relatorios paraas Nagoes Unidas. A expectativa, por parte da equipe brasileira,era de que a pesquisa permitiria uma serie de estudos sociologicosmais aprofundados, depois de terminado o relatorio geral nacional.A expectativa, no seminario do Rio de Janeiro, era de que os par-ticipantes, diante dos dados, iriam incorporando naturalmente oselementos conceituais necessaries para o melhor entendimento doque tinham diante de seus olhos. Nenhuma dessas expectativas, noentanto, mostrou-se totabnente verdadeira.

As razoes dessa frustragao de expectativas sao varias, inas aquestao da falta de uma problematizagao teorica do projeto me pa-reee das mais importantes. £ dificil entender isto, pelo proprio fatode esta teoria nao ter chegado a existir. Mas e possivel que umexemplo ajude a clarificar a ideia.

Imaginemos um estudo sobre o relacionamento entre a ati-vidade cientifica c a universidade. 0 propdsito do estudo seria iden-

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78 A BUSCA DA REALDDADE OBJETIVA

tificar em que circunstancias a ciencia se da dentro da universi-dade, em que circunstancias ela nao se da, e que efeitos tern istosobre o desenvolvimento cientifico do p*«s> por ^^ lado, e sobreo deseuvolvimento da universidade, por outro.

Um estudo deste tipo exige uma discussao teorica profundade uma serie de coisas. Ele exige um conceito explicito de ciencia,um conceito de universidade, proposigoes sobre o relacionamentoentre cieucia e tecnologia, e um entefldimento aprofundado sobreo papel da universidade no sistema educacional, profissional e tec-nologico de um pais. fi esta discussao teorica, esta problematizacap.que eu chamo. no caso, de "teoria". Na medida em que exista umgrupo de pessoas motivadas por esses problemas, com uma ideia cla-ra de sua importancia, e concordando pelo menos a respeito dospontos em que discordam, entao sera possivel; para eles, examinarum conjunto significative de informagoes socials, sob a luz de suarelativa importancia para a elucidagao das questoes teoricas emdiscussao.

E na medida em que exista esta problematizagao que serapossivel avaliar, tambem, quanta informagao necessitamos, e deque tipo. Uma pesquisa de tipo survey — e, com maior razao,uma pesquisa de tipo multinacional como esta — pode ser aper-feigoada e expandida quase infinitamente. Existem sempre recodi-fieagoes a fazer, escalas a validar, informagoes a controlar por ou-tras, amostras a ponderar com maior preeisao.

A preeisao, no entanto, deve depender estritamente da teoria.Para o estudante interessado em provar a dependencia do Brasil,todo o survey era, na realidade, superfluo, informagao demais, ex-cesso de preeisao. Para a agenda internacional interessada em ve-rificar o fenomeno global de estudos do exterior, as percentagensapresentadas acima poderiam ser o suficiente. Para o sociologo in-teressado na estrutufa das atitudes diante das experiencias traris-culturais, os dados do survey seriam possivelmente insuficientes.

E possivel afirmar que o projeto brain drain foi uma viti-ma de urn dos mitos das ciencias sociais da decada de 60: o de que,havendo dados de boa qualidade e acessiveis para o analista, suautilizacao otima decorreria naturalmente. Esta ideia presidiu aochamado "movimento dos bancos de dados", que levou a organi-zagao de grandes bancos de informagoes de pesquisas sociologicas,armazenadas em computadores e acessiveis, em diferentes graiis, aosestudiosos, 0 que se pensava era que, assim, os dados poderiam serutilizados por muitos estudiosos, as possibilidades de analise se-cundaria aumentariam, e os cientistas sociais poderiam, com otempo, ir perdendo o habito de trabalhar somente com infofma-

A VEKSAO QUANTITATIVA 79

goes que eles proprios colhessem. Na pratica, o que se verificou eque dificilmente dados colbidos sob um angulo especifico eramanalisados por pessoas com outra formagao e interesse. A utiliza-gao de bancos de dados ficou restrita as informagoes de uso socialcorrente — dados politicos e eleitorais, dados basicos de tipo so-cio-economico, etc. — e o custo crescente da organizagao destes sis-temas de informagao fez com que a moda dos bancos de dados pas-sasse.

Esse fato ocorreu ao mesmo tempo em que as ciencias sociaisdos Estados Unidos, que baviam desenvolvido a metodologia quan-titativa do survey, comegaram a se interessar cada vez mais porprocessos historieos mais abrangentes, perdendo com isso o interes-se pela teoria social de nivel mais interpessoal, para a qual as me-todologias deste tipo baviam sido, basicamente, desenvolvidas. Comisto, este tipo de informagao passou a ser somente um dos tiposde dados utilizados pelo analista, dentro de um arsenal que incluiaa informagao historica, os dados macroeconomicos, as manifesta-goes culturais, e os eventos politicos. E curioso como esta transfor-magao da ciencia social norte-americana coincidiu com uma pro-gressiva abertura das ciencias sociais francesas para os metodosquantitativos, abertura que termina com o convite feito a PaulLazarfeld, professor de Columbia e um dos metodologos mais im-portantes da linha quantitativa, a ensinar em Paris, ja nos ultimosanos de sua vida. A presenga de Lazarsfeld na Sorbo'nne simboliza,aparentemente, o fim do equivoco que cohtrapunnba as cienciashistoricas as ciencias quantitativas, como metodologias incompa-tiveis e intimamente vinculadas a opgoes ideologicas antagonicas.

O Contexto Institutional

A falta de uma problematica teorica ligada ao projeto braindrain esta indissoluvelmente ligada ao contexto institucional emque o projeto foi realizado.

Ao contrario de alguns projetos anteriores, este estudo tratoude ser, desde o principio, realmente multinacional, e nao um pro-jeto de tipo "imperialista", em que o pesquisador do Norte utili-zava a mao-de-obra e os dados gerados no Sul como a industria dospaises desenvolvidos utiliza a materia-prima dos paises subdesen-volvidos. Varias caracteristicas do projeto atestam esse fato.

0 financiamento do projeto era feito por cada pais individu-almeute. Someute a coordenagao internacional, feita na Univer-sidade Columbia, tiuba recursos diretos das Nagoes Unidas. Asfontes de financiamento variaram de pais para pais. No Brasil, o

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80 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

projeto foi feito com recursos da Subsecretaria de Cooperacao Tec-nica e Intercambio Internacional do entao Ministerio do Planeja-mento (SUBIN). Essa Secretaria operava, na epoca, com re-cursos de origem internacional, mas que eram administrados pelo•governo brasiJeiro — eram, no caso, cruzeiros provenientes do"acordo do trigo" entre Brasil e Estados Unidos. A pesquisa foirealizada pelo Institute Brasileiro de Relac.5es Interuacionais, en-tidade de direito privado, em cooperaeao com a Escola Brasileirade Administragao Publica da Fundagao Getulio Vargas, sob a res-ponsabilidade tecnica e academica do autor.

Este sistema de financiamento local fazia com que a coorde-nacao internacional do projeto nao tivesse maior ingerencia so-bre os projetos nacionais. 0 questionario foi desenvolvido em con-sulta com varies paises, e ja estava pronto quaudo o projeto bra-sileiro se inicxou. Apesar disto, uma serie de questoes adicionaisforam introduzidas no estudo hrasileiro. No Brasil nao houve ne-nbum tipo de interferencia governamental ou de qualquer outrafonte sobre o projeto, que contou com a colaboragao sempre inte-ressada dos entrevistados. Cada ceutro nacional tinha a jjberdadede analisar seus proprios materiais, e publicar o que Ihes parecessemais conveniente. Havia um entendimento de que a UNITAR teriaprecedencia no recebimento dos resultados globais, e que depois osgrupos nacionais estariam livres para realizarem os estudos compa-rados que quisessem.

Esta autonomia foi utilizada de formas diferentes pelos dife-rentes participantes. A equipe brasileira produziu o primeiro rela-•torio nacional do projeto, e uma serie de outros documentos par-ciais, todos publicados pelo Institute Brasileiro de Relagoes Inter-nacionais.

Uma das razoes pelas quais o Brasil foi um dos unices paisesa utilizar os dados em um estudo nacional foi a de que reconber da-dos e sempre muito mais facil do que analisa-los. No caso brasilei-ro, ja tinhamos colocado os dados em cartoes IBM e feito a analisenacional com a utilizagao do computador da Fundacao GetulioVargas (um IBM 1130) antes de envia-los para a inclusao no ar-quivo geral na Universidade Columbia. A maioria dos outrospaises, no entanto, nao contava com os recursos financeiros, compu-tacionais e tecnicos de que dispiinbamos, e enviavam seus qiiestio-narios para serem codificados em Nova York.

A coordenagao desde Nova York, a utilizacao de computadores,a aplicagao de questionarios a estudantes e emigrantes dos paisessubdesenvolvidos, tudo isso nao deixou de levantar a suspeita de quese tratava, de fato, de mais uma pesquisa de tipo "imperialista".

A VERSAO QUANTITATIVA 81

A historia das vicissitudes politicas deste projeto deveria ainda sercontada por seu coordenador. O fato, no entanto, e que na Alema-nha, no Canada e em alguns outros paises foi dificil ou impossi-vel desfazer essa imagem. Curiosamente, os proprios entrevistadosraramente levantavam algum problema, mas os estudantes alemaes,por exemplo, impediram por muito tempo que os questionarios fos-sem analisados, com medo de que eles servissem para a identifica-cao de estudantes, emigrados, com fins poHticos. Foi tambem mui-to diffeil ou impossivel obter dos governos dos paises desenvolvidoslistas de emigrantes qualificados dos paises subdesenvolvidos, tal-vez porque se temessem represalias individuals, talvez porqiie naofosse do interesse desses paises revelar, de fato, quantos cerebroshaviam drenado.

A principal dificuldade ocorreu, finabnente, quando a coorde-na9ao geral do projeto em Nova York fracassou em seus intentosde conseguir recursos adicionais para a coutinuagao da analise dosdados, depois de entregue o relatorio geral do projeto a UNITAR.E possivel, tao somente, especular a respeito das razoes deste fra-casso. Uma razao simples seria que, com as dificuldades de obterlistas de emigrantes para os paises desenvolvidos, o projeto ficoucom sua amostragem mais importante comprometida. Em termosmais gerais, a dificuldade em obter recursos ocorreu em um mo-mento de reducao geral da dispdnibilidade de dinbeiro para a pes-quisa social, e um sentimento crescente de que a metodologia detipo survey era ultrapassada. Outra possivel razao se prende ao fatode que o projeto tinha uma feigao indefinida, entre pesquisa basi-ca e pesquisa aplicada, e isto o prejudicava dos dois lados. Isto seliga muito diretamente a questao da "teoria", discutida anterior-mente.

Fesquisa Pura ou Pesquisa Aplicada?

Distinguir entre "pesquisa pura", ou "basica", e "pesquisa apli-cada " e tarefa impossivel ou quase, e nao o intentariamos aqui.Basta dizer que um dos criterios de distingao e a motiva9ao dequern faz a pesquisa, e das instituicoes que a financiam.

Nao tenho informagoes precisas sobre os bastidores que leva-ram as Nagoes Unidas, atraves da UNITAR, a solicitar este tipode projeto. O fato e que existiam documentos da Assembleia Geralindicando a importancia do problema, e a UNITAR cbamou a sia tarefa de estuda-lo. As NagSes Unidas, como sabemos, sao umorganismo que procura ser pratico, mas cujos poderes executivessao muito restritos, em assuntos que interessam aos t-stadosmenfaros. Por isso, elas temdem a produzir documentos e anaHses que

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82 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

sejam tao "cientificos" (no sentido de neutros e bem fundamenta-dos empirieamente ) quanto possivel, e na esperanca de que seus re-sultados possam ser utilizados pelos diferentes paises e agendas in-teressadas. (Este conceito de "cientifico" nao coincide, evidente-mente, com a concepgao que coloca a relevancia teorica e concei-tual como criterio basico de cientificidade).

0 Bureau of Applied Social Research, da UniversidadeColumbia, nao e propriameote parte do programa mais academicode eiencias socials da Universidade. Os pesquisadores do Bureautendem a set pesso-aa dedicadas exclusivamente a pesquisa, comuma remunerafao derivada exclusivamente, ou quase, dos contra-tos de pesquisa ou financiamentos que conseguem obter. Seria le-viano passar julgamento na qualidade do trabalho do BASR e doDepartamenfo de Sociologia de Columbia por este simples dado.Professores e pesquisadores de Columbia representam uma das ira-dicoes mais importantes da sociologia norte-americana do aposguerra, bastando citar para isto os nomes de Robert K. Merton,Paul F. Lazerfeld, de Herbert Hyman, entre muitos outros. Algu-mas das linhas mais classicas da sociologia moderna, como os estu-dos de comunicagao de massa, de difusao de inovacoes, e de corn-portamento poKtico-eleitoral, foram iniciados e desenvolvidos poreste grupo. No entanto, o fato e que a dependencia de recursos depesquisa por contrato pode ter levado, eomo neste caso, a condu-cao de um projeto cuja motivacao principal nao era teoria social,mas o interesse de um cliente.

No lado brasileiro, o Instituto Brasileiro de Relaeoes Interna-cionais e uma instituicao extremamente reduzida, cuja atividadeprincipal tern sido a publicacao da Revista Brasileira de RelagoesInternacionais. Nunca foi interesse de sua direcao transforma-laem centre de pesquisa permanente, e o patrocinio que proporcio-nou ao "Projeto Retorno" se explica por fatores circunstanciaisque deixaram de existir tao logo o projeto terminou. A motivaeaoprincipal era nao tanto o conteudo do projeto, mas realizar ade-quadamente uma tarefa a que se havia proposto e para a qual ha-via conseguido recursos governamentais.

A Escola Brasileira de Administrate Publica da FundacaoGetulio Vargas atravessava, na epoca, um periodo em que se acre-ditava ser possivel constituir, nela, um centro importante de pes-quisa em eiencias socials. Tinha havido anteriormente um esforc.osignificative de capacitar a Escola para a utllizacao de metodolo-gias de pesquisa por computador, adaptando-se para isso programasadequados para o sistema 1130 que a Fundacao Getulio Vargasutilizava. Ainda que o conteudo do projeto nao tivesse uma relacao

A VERSAO QUANTITATIVA 83

mais direta com a area de administracao (principalmente na me-dida era que esta era entendida como administracao de meios, cnao de fins). acrecUtava-se que o projeto pudcsse contribuir paraEormar um grupo tecnicamente competente e motivado para a pes-quisa no interior da Escola. 0 fato, no entanto, e que isto nao sedeu. As tentativas de criar junto a EBAP um micleo de pesquisafracassaram, e com isto a utilizagao posterior de experiencia e dosdados do projeto para consolidar este nucleo ficaram, conseqiicnte-mente, comprometidas.

Faltavam, assim, tanto do lado da coordenacao internacionalquanto do lado brasileiro, condigoes para fazer desse um projeto depesquisa "pura". Nao seria essa, enfim, a grande oportunidade desair da torre de marfim, e fazer uma pesquisa realmente aplicada,voltada nao para o academico em seu mundo esoterico, mas parao mundo real?

Foi o que foi feito, de uma forma ou de outra. No entanto, osresultados parecem indicar que os cientistas sociais deveriam termenos complexes por seu academicismo, . .

As razoes pelas quais agendas governamentais nacionais c in-ternacionais financiam projetos de estudo e pesquisa sao miiltiplas,e muitas vezes inescrutaveis. 0 que e certo e que o interesse emutilizar os resultados obtidos nao e uma das razoes mais freqiien-tes.

Apesar de todas essas dificuldades e frustragoes, o projeto ehoje o que de mais importante e serio existe sobre o tema do braindrain, e isto justifica, sem duvida, sua existencia, Mas caberiaperguntar, com a perspective que o tempo e a experiencia vividanos da, se nao teria sido possivel cbegar aos mesmos resultadospor outras metodologias, com outro tipo de estrategia instituciona!,e com um impacto social e academico mais bem definido.

Talvez nao. E possivel que o tema, pela sua propria origem,nao pudesse ter tido um enquadre institucioiial, uma metodolo-gia e um destino diferentes dos que teve, Estas sao. no entanto, es-peculagSes. Elas ajudam, de qualquer forma, a entender as variaveisque entram na escolha de um projeto de pesquisa, em seu desenvol-vimento, e na utiliza9ao de seus resultados, Elas permitem cntendercomo e importante a "teoria", e como esta ligada a uma defmieaoinstitucional do projeto, quern o financia e o publico a que se diri-ge. EJas permitem avaliar o alcance das diversas metodologias pos-siveis. Elas permitem entender os beneficios e as dificuldades ine-reutes a pesquisa multinacional. Para quern se interessa pela pes-quisa como tema em si, ou como forma de atividade propria, saoquestoes fundamentals.

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84 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

Nao tenho conhecimento da utilizagao que a -UNITAR, porsua parte, ou a SUBIN, por outra, fizeram dos relatorios que Ihesforazn enviados. No caso brasileiro, tivemos o cuidado de enviarcdpias dos relatorios nacionais e internacionais as instituig5es bra-sileiras que proporcionam bolsas de estudo, CAPES e CNPq. Como passar dos anos, mudam os responsaveis por essas agencias e to-dos, em geral, tern que resolver problemas urgentes, de um dia-a-dia que impede o lazer necessario para o estudo da literatura pec-tinente e o estabelecimento de politicas mais sutis e a longo prazo.Nunca, decorridos cinco anos do relatorio, foi ele explicitamenteutilizado ou sequer referido pelos responsaveis pela politica brasi-leira de formagao profissional no exterior.8

0 desinteresse das agencias governamentais em relagao ao pro-jeto teve uma contrapartida importante, que foi a total liberdadede pesquisa que existiu. Nos dois ou tres paises em que houve in-teresse mais ativo de autoridades educacionais ou do service deimigracoes ele teve, em geral, uma infuencia negativa sobre ostrabalhos: foram colocadas restricoes ao acesso aos emigrantes paraentrevistas, ao uso do questionario para estudos comparados, ten-tou-se, enfim, definir normas burocraticas e administrativas sobrea pesquisa cuja unica conseqiiencia foi perturbar o andamento dostrabalhos.

Uma vez terminados os relatorios e secas as fontes de fi-nanciamextto, a pesquisa perdeu prioridade em relacao a outrosprojetos dos diversos participantes. Teria sido possivel escrever umlivro em linguagem acessivel para o piiblico mais amplo sobre osresultados da pesquisa. Faltou talvez tempo, talvez motivacao, tal-vez descortinio. Teria sido eertamente necessario escrever um ar-tigo mais teorico sobre o assunto, que atraisse para ele o interesseda comunidade academica. Faltaram muitas coisas para isto, en-tre as quais a propria inspiragao original, que era distinta. Cum-pridas suas obrigagoes contratuais, o Institute Brasileiro de Rela-goes Internacionais e a Escola Brasileira de Administragao Publi-ca nao se preocuparam em distribuir os exemplares do relatorio doprojeto de forma mais ampla — mas duvido que isso tivesse alte-rado _o guadro de forma significativa.

3 A nao-utilizacao de resultados de pesquisa na formulaeao de politicasnao e, evidentemente, peculiar a este caso. Veja, a respeito, a pesquisade Alexandra Barros e Argelina Figueiredo sobre a cria$5o dos programasPIS e FGTS. relatada neste volume.

A VERSAO QVANTITATIVA 85

Conclusoes

Hoje restam poucas memorias do projeto que, apenas cincoanos atras, era o maior estudo comparado ja realizado por metodode survey, e referido a um tema de grande interesse social, obrain drain. No entanto, nao resta duvida de que foi um proje-to bem feito, tecnicamente bem conduzido, e que chegou a resulta-dos relevantes. ..

A principal falna do projeto, e de tantos outros como ele, foinao ter um grupo de referencia bem definido ao qual se dirigisse.Nao era um projeto academico, porque Ihe faltava uma problema-tica teorica anterior a um contexto academico adequado no qualse desenvolvesse. Nao era um projeto aplicado, porque Ibe faltavaum cliente que estivesse realmente pendente de seus resultadospara decidir os rumos de sua agao. Nao era um projeto jornalistico,ou literario, que tivesse como objetivo sua circulagao entre o gran-de piiblico.

A inexistencia de um destinatario, ou grupo de referencia es-pecifico, fpi falvez responsavel pelo peso que os aspectos tecnicos emetodologicos assumiram no projeto. A ideia de colocar toda ainformagao em. um sistema de computagao tipo SPSS e aparente-mente ideal, mas tern um custo que talvez nao tivesse sido anteci-pado, principalmente porque nao ha limites em relagao ao quantoe possivel investir na melhora de dados deste tipo. Por outrb lado,a inexistencia de um contexto academico bem d^firiido para o pro-jeto fez com que .sua utilizagao posterior por outras pessoas em urii-versidades e centres de pesquisa nao se realizasse.

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Metodo e Improvisagao, ou como Conseguiruma Entrevista Naquele Setor Que Vai dosFundos da Igreja Matriz ate o Corrego e

Dali as Margens da Rio — Bahia

AMAURY DE SOUZA

Ha cerca de dez anos, Havens (1964:88) sugeria que o montantede problemas eneontrado na realizacao de pesquisas por amostras(ou surveys) na America Latina era, em larga medida, fungao dograu de "treinamento para a ineompetencia" recebido pelo cientis-ta social.1 Havens queria que esta expressao designasse a^ aplicacjJorigida e meeanica de metodos de survey em paises caracterizadospela virtual inexistencia de informagoes contextuais basicas (decunho historico, eensitario e etnologico) e da infra-estrutura deapoio (material e humana) requeridas por estes metodos. A sele-930 probabilistica, lembrava ele, demanda, no mfnimo, informaecesconfiaveis sobre, primeiro, o mimero total de pessoas em uma dadaunidade de amostragem; e, segurido, os locais onde as pessoas in-cluidas na amostra possam ser entre vistadas.JE aqui, por maissimples que estes requisites possam parecer, comega o calvario dopesquisador.t A docmnentagao sobre as subdivisoes eensitarias epobre e imprecisa, ou quase inutil,)caso se trate de areas rurais;

I A expressao "pesquisa por amostra" parece ser a melhor tradugao determos tais como enquete par sondage, encuesta ou sample survey. Aexpressao diz respetto & investtgagao das caracteristicas de uma populaeauatraves da observagao daquelas caracteristicas em uma amostra dos eie-m«nto3 daquela populacao. O metodo de observacjio em surveys de popu-lacoes humanas e quase sempre a entrevista, baseada em um questionario,de uma amostra de elementos. Para quebrar a monotonfa do texto, usareiindistintamente as expressoes "pesquisa por amostra" e survey.

A VERSAO QUANTITATIVA 87

gracas ao alto crescimento populacioaal e a desatualizacao dasenumeracoes eensitarias, areas rurais ou urbauas podem ser povoa-das e crescer incognitas durante os periodos intercensos;(_os ma-pas, quando existem em escalas que permitam a identificagSo dasuuidades que se quer selecionar, raramente se encontram atualiza-dos.

O argumento de Havens e simples.(Os metodos de pesquisapor amostras demaudam um montante e uma variedade de infor-macoes contextuais sobre as comunidades que se quer estudar quedificibnente existem em paises latino-americanos.| Frente a esses obs-taculos, restam ainda algumas escolbas ao pesquisador. Desistir derealizar a pesquisa e a alternativa mais simples — e, nao raro, maisrealista — com que ele se depara. Mas e quase sempre possiveloptar por uma certa flexibilidade, invencao no trabalbo de campo,e pelo recurso a metodos complementares de pesquisa.2 [_0 pes-quisador, pode, em uma palavra, improvisar^ X.

L O problema e como improvisar sem perder o controle sobre asdiversas fontes de erro na pesquisa por amostrasj? Como veremosmais adiante, esse controle e particularmente importante no surveY.Visto deste angulo, o dilema entre metodo e improvisagao nao etauto uma prerrogativa do pesquisador latino-americano, mas simo reflexo da necessidade mais geral de^conciliar, por um lado, asaspiragoss de precisao e de acuracia de uma pesquisa e, por outro,os custos de sua implementagao.5 Onde exista abundancia de infor-mac5es contextuais e solida infra-estrutura de pesquisa, menoresserao os custos da rigorosa implementagao dos metodos de selecaoe de entrevista de amostras. Onde o pesquisador tenha que sero seu prdprio agente censitario, geografo, estatistico e cartografo,os custos de realizacao de uma pesquisa minimamente decente se-rao certamente proibitivos.

As situacoes reais de pesquisa, a bem da verdade, encontram-se quase sempre a meio-caminho entre esses dois extremos. Comalgum esforgo, e sempre possivel reunir o minimo necessario deinformacoes para a realizacao de uma pesquisa, ainda que isto ve:

aiha a requerer outra pesquisa entre as varias instituicoes coletorasde dados. Havens (1964:89), escreveiido sobre as suas experien-das de trabalho de campo na Colombia, relata que o censo, pelasua desatualizagao, provou-se inutil para a selecao de domicilios ru-

2 Os metcdos antropologicos de observacao direta e de observacSo parti-cipante sao particularmente relevantes para a pesquisa por amostra. Boa?discussoes desta coraplementaridade entre os metodos encontram-se eraBennett e Thaiss (1967) e Sieber (1973).

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88 A BUSCA DA REAHDADE OBJETIVA

rats, ao passo que o Servigo Nacional de Erradicacao de Malaria.dispunha de excelente enumeragao dos domicilios em sua jurisdi-gao. Alem disso, o pesquisador pode modificar o seu desenho amosrtral visando adapta-lo as condigoes locals de trabalho. Improvisa-gao, no sentido positivo do termo, requer do pesquisador a capaci-dade_de reduzir, drastieamente se necessario for, a escala de suas.ambicoes.jUma pesquisa bem feita em um unico bairro, por exem-plo, e sempre mais desejavel do que uma pesquisa de qualidadeduvidosa sobre a populagao de toda uma cidadeT)

CExiste, certamente, um limite para a improvisagao, pois a me-tologia da pesquisa por amostras suporta apenas um , tanto deadaptagao sem perda de sua integridade.^Esto e, existe um limite,.passado o qual simplesmente nao vale <mais a pena fazer um survey-Nao faze-lo ou recorrer a metodos alternatives de investigagao esempre preferivel ao esbanjamento de recursos escassos e a analisede resultados obtidos por pesquisas inteiramente improvisadas, eu-femisticamente conhecidas entre nos pelo nome de "pesquisas ex-ploratorias". O survey e um instrumento de investigagao parti-cularmente sensivel e, conseqiientemente, e um instrumento cujaaplicagao tern altos custos. A improvisagao, por essas razoes, naopode significar o recurso a tecnicas "simplificadoras" do trabalhode campo ou o uso irrefletido de informacoes toscasAMesmo por-que pouco ou nada se salva de um survey feito aos tapas: de quevalem achados "interessantes" ou "indicatives", se a amostra etendenciosa, se as questoes foram mal formuladas, se os entrevista-dores preencheram os questionarios sentados na praca? Na minnaopiniao, a solucao para os problemas encontrados pelo pesquisador,aqui ou em qualquer outra parte, nao reside na aparente segurangade formas rudimentares de investigagao, mas sim na utilizagaocriteriosa e realista do acervo de teorias, metodos e tecnicas de sur-vey acumulado no mundo inteiro nestes liltimos cento e cinqiientaanos.

Este e um breve depoimento sobre uma pesquisa por amos-tra realizada na Regiao Sudeste do Brasil entre 1972 e 1973.3 Fielao seu titulo, este texto relata os nossos sucessos e fracassos ao ten-tar a aplicagao criteriosa de metodos de survey sob condigoes algodesfavoraveis de trabalho. Armados das melhores intengoes e ted-

3 Essa pesquisa, dirigida pelo autor e pelos professores Philip E. Con-verse e Peter J. McDonough, foi realizada pelo Institute Universitario de.Pesquisas do Rio de Janeiro e pelo Institute for Social Research da Uni-versidade de Michigan. O projeto de pesquisa foi batizado "Representa-cao e Desenvolvimento no Brasil". Agradeco seus comentSrios, bem comaos de Carlos Hasembalg, a versao primitiva deste texto.

A VfiKSSO QUANTITATIVA go

rias e, no agregado dos diretores do projeto, de uma certa experien-cia com surveys, saimos a campo dispostos a conciliar nao maiaque o minimo estritamente necessario para que a pesquisa fosselevada a cabo em tempo litfl. Na pratica, infelizmente, a teoria eoutra. Imprevistos aconteceram, o certo e seguro falhou, o ritmodo trabalho exigia decisoes rapidas — e se improvisou, e muito. Aimprovisagao resultou satisfatoria em varias instancias; provou-seum desastre, em outras; em outras mais, produziu resultados pifiose o inevitavel arrependimento tardio de nao se ter refletido commais vagar e com mais acerto. Tivemos, enbtetanto, o bom sensode documentar, com a minucia que nos foi possivel, todas as fasesdo trabalho de campo. Esse material constitui a substancia desta,cronica de nossos erros e acertos.

Fontes de Erros em Pesquisa por Amostras

O entendimento ingeuuo e superficial da natureza da investi-gagao empirica nao e privilegio daqueles que Havens considera te-rem sido "treinados para a incompetencia". Ao contrario, variosfatores — entre os quais se podem destacar a inexistencia de cur-sos especificos em metodologia de pesquisa em muitos centros deensino ou a sua diluigao em uma dieta, em geral tao balofa quan-to inocua, de preceitos epistemologicos para as ciencias soeiais;uma forte tendencia, onde esses cursos existem, a abrevia-los em-favor do ensino de "receitas para a culinaria da pesquisa", descui-dando-se de uma formagao mais disciplinada e mais completa; aenfase despropositada na importancia da critica da produgao doconhecimento em detrimento da producao do conhecimento pro-priamente dita; e a crenca transmontana na superioridade inata dedeterminados inetodos de conhecimento sobre outros, nao importaqual o problema substantive que se quer explicar — tudo isso COBS-pira para perpetuar entre nos uma visao simploria do problema. Ocientista social revela, por um lado e em geral, profunda inocenciaem tudo o que diz respeito aos erros de inferencia e de mensuragaoinerentes ao conhecimento que ele proprio produz, consome e trans-mite; e, por outro lado, uma teimosa credulidade em mimeros,particularmente se estes sao mimeros extraidos de um censo ou de umregistro historico.

Erros de mensuragao e de inferencia, nao obstante, sao cdm-poneutes intrinsecos e irredutiveis do conhecimento produzido pelaciencia empirica, seja qual for o seu objeto de estudo. "]S funda-mental observar", insiste Oskar Morgenstern (1963: 7) em seuclassico e pouco lido estudo sobre a natureza do erro na pesquisa

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90 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

economica, "que pelo menos todas as fontes de erros que ocorremnas ciencias naturals tambem ocorrem nas ciencias socials: ou.-dito de outra forma, que os problemas estatisticos das ciencias so-ciais nao podem, seguramente, ser menos series do que aqueles dasciencias naturais" (os grifos sao de Morgentern). Como veremos aseguir, os problemas estatisticos das ciencias sociais podem ser in-clusive mais serios do que aqueles com os quais se confrontam asciencias naturais.

0 objetivo da pesquisa por amostras, vale lembrar, e fazerinferencias sobre uma determinada populagao com base na mensu-ragao das caracteristicas dos elementos selecionados para cornpor aamostra.4 0 survey envolve, portanto, tres processes interdependen-tes: a amostragem, ou o processo de selegao de uma parte dapopulagao que se quer estudar; a mensuragao, ou o processo deobtengao de informagoes sobre os elementos de uma amostra; e aestimagao, ou o processo de fazer interferencias sobre a populagaoda qual a amostra foi selecionada.5 Os processos de amostragem ede estimagao constituent o que se convencionou designar por dese-nko ou piano amostral.

Falar de estimativa e falar do calculo por aproximagao de al-gum valor; e falar de aproximagoes e falar de erros. Assim, na pes-quisa por amostras, e imperative que o pesquisador possa especifi-car de antemao a magnitude dos erros que ele esteja disposto a to-lerar em suas estimativas, bem como utilizer urn desenho amos-tral que efetivamente confine os erros aos limites de tolerancia

4 Por que usar amostras. pode-se perguntar, para o estudo de algumacaracterfstica que seja do nosso interesse? Uma resposta absolutamentetrivial & que e muito mais barato (em termos do 'dispendio de tempo,energia e dinheiro) coletar informacoes sobre uma amostra do que sobretoda a populacao. Outra razao, possivelmente menos trivial, e que a obser-va$ao ou mensuracao destas caracteristicas quase sempre pode ser feitade raaneira mais acurada em uma amostra do que em uma populagao.Como veremos mais adiante, os erros sistematicos de observacao ou vieses,cujo controle e muito mais difi'cil em censos do que em surveys, geral-mente causam prejuizcs muito mais serios do que os erros das estimativas

_<lerivadas de uma amostra.5 Os termos "populacao" e "universo" sao frequentemente usados comosinonimos, uma pratica que causa certa confusao na literatura. Prefirolimitar o termo popula<?ao a urn conjunto finito de elementos, definidopelo pesquisador em funcao de seus interesses teoricos e substantives. Adefinicao do que seja uma poula?ao e, portanto, sempre arbitraria. Opesquisadcr pode, por exernplo, dcfinir como populacoes todos os ope-rarios de uma fdbrica, todos os operarios de um ramo industrial ou todosos operarios do pais. O termo universo, em contraste, denota um conjuntoinfinite de elementos gerado por um rnodelo te6rico. Como exemplos,.podemos citar o universo de todos os operarios brasileiros em qualquerepoca oil o universo de todos os possiveis langamentos de um par de dados.

A VBSSAO QUANTITATIVA 91

previamente tracados. 0 calculo e o coutrole de erros desta natureza so sao possiveis atraves da amostragem probabilistica. A selegaoprobabilistica da amostra pode ser sucintamente descrita como se-gue: (a) atribui-se a cada elemento da populagao uma probnljiU-dade conhecida de ser incluido na amostra, probalidade esta inde-pendente da probabilidade de selegao de qualquer outro elemento;(6) a amostra e extraida por meio de algum metodo de selegaocleatorio que seja congruente com as probabilidades de sele-gao atribuidas aos elementos da populagao; e (c) estas pro-i>abilidades de selegao sao parte integrante do calculo dasamostras probabilisticamente selecionadas. Inferencias faaseadasem amostras nao-probabilisticas (tais como amostras por quotas oumeramente casuais) podem ate mesmo ser precisas; mas o seraopor acidente, por nao se dispor de uma base teorica para o calculodo erro de suas estimativas.

0 objetivo da pesquisa por amostras pode ser expresso de for-ma mais rigorosa. O que se quer e obter um valor da amostra (ouuma estatistica) que sirva como estimativa do mesmo valor napopulagao. Precisemos o significado destes termos. 0 resultado fi-nal do processo de mensuragao e um valor, qual seja: uma expres-sao numerica que resuma a informagao sobre alguma caracteristi-ca dos elementos de uma amostra ou de uma populagao. Um valorda populagao e o valor obtido pela mensuragao de uma caracteris-tica entre todos os elementos daquela populagao. A media e o exem-plo basico de um valor da populacao; outros exemplos significati-vos sao proporgoes, a mediana e o proprio total de elementos napopulagao. Cabe notar, entretanto, que o valor obtido por um een-so completo da populagao, por consistir em uma unica mensura-gao em cada elemento, e sempre passivel de erro, de tal forma quesucessivas mensuragoes da mesma caracteristica na mesma popula-gao certamente resultariam em diferentes valores. 0 valor observaT

do na populagao, por esta razao, deve ser distinguido do valor ver-dadeiro (ou parametro) da populagao, um valor que se supoe serlivre de erros. Estes erros de observagao ou mensuragao, responsa-veis pela diferenga entre o valor verdadeiro e o valor obsrvado. saodenominados aqui erros extra-amostragem para contrasta-Ios com oserros gerados quando o processo de mensuragao abarca apenas umaparte da populagao.

0 valor da amostra e uma estimativa derivada da mensuragaoem cada elemento incluido na amostra. Tal como o valor da popula-fiao, esse valor esta sujeito a erros de mensuragao. Mas, ainda que

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92 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

nao estivesse, o fato e que uma estimativa nao pode ser tao acura-da quanto o valor derivado de um censo completo da populagao. Qproprio processo de selegao dos elementos da amostra esta sujeitoa flutuacoes aleatorias, as quais influenciam indiretamente o valorda estimativa. E mera sorte, diga-se de passagem, que uma estima*tiva coincida perfeitamente com o valor da populacao. A estimati-va derivada de uma unica amostra e apenas um dentre todos os vale-res que poderiam ser obtidos em diferentes amostras daquelamesma populacao. Digamos que a media de alguma variavel seja ovalor desejadu. A media amostral (leia-se a estimativa da medialda populagao ofatida em uma amostra) depende, literalmente, dequal amostra, dentre todas as possiveis amostras de igual tamanho,venha a ser selecionada pelo pesquisador.

A variabilidade das estimativas exige o concurso de algummodelo teorico que permita ao pesquisador avaliar a precisao daestimativa que ele obtem em um survey. Tal modelo deve espeeifi-car, para cada tipo de desenho amostral, quais os valores possiveisda media e qual e a probabilidade de ocorrencia de cada um deles:Imaginemos a selegao, dentre a mesma populagao e segundo o mes-mo desenho amostral, de um niimerb infinitamente grande deamostras independentes de igual tamanho. Calculemos a media decada amostra e registremos a frequencia relativa com que cada umdesses possiveis valores ocorre. A distfibuigao de todos esses valo-res ira tornar-se mais estavel a medida que o niimero registradode medias amostrais aumentar, aproximando-se gradativamente daforma da distribuigao amostral teorica. Isso ocorrera, em outrag pa-lavras, na medida em que as freqiiencias relatives das diferentes'medias se forem aproximando de suas verdadeiras probabilidadesde ocorrencia. Teoricamente, a media dessa distribuigao amostral(isto e: a media de todas as possiveis medias amostrais) deve serigual ou estar bem proxima da .media da populagao. A variabilida-de das estimativas ao redor desta media e medida pelo desvio pa-drao da distribuigao amostral. Esta medida, conhecida pelo nomede erre gadrao da media amostral, permite ao pesquisador calcularo quanto (e com qual probabilidade de ocorrencia) a estimativaderivada de uma amostra diverge do valor que seria obtido por umcenso completo daquela populacao. 0 erro padrao e, portanto, amedida do erro de amostragem.

Os valores obtidos em uma pesquisa por amostra estao, con-sequentemente, sempre sujeitos tanto a erros de amostragem quan-to a erros extra-amostragem. Os primeiros ocorrem porque apenasparte de uma populagao e eleita para a mensuragao de uma ou

A VERSAO QUANTITATIVA 93

mais caracteristicas de interesse. Os ultimos ocorrem porque osmetodos de observacao e de mensuragao sao imperfeitos.

Os erros extra-amostragem podem ser classificados em doisgrandes tipos. Erros varidveis sao aqueles que, ao longo de todasas suas ocorrencias, tendem a se anular mutuamente. Cre-se, in-clusive, mas sempre de forma um tanto vaga, que estes erros ten-dem a se distribuir aleatoriamente. Um exemplo do erro extra-amostral variavel e o registro descuidado de alguma observagao.Digamos que o questionario demande a observagao e registro dosexo do entrevistado. 0 entrevistador observa (acuradamente, e dese crer) tratar-se, no caso, de uma pessoa do sexo feminino; mas,por pressa ou cansago, ele registra esta observagao na entrada des-tinada ao sexo masculino. Outro entrevistador comete o erro inver-se; e embora estes erros persistam (em geral, incognitos) ao ni-vel de cada elemento observado, eles se anulam ao nivel do vaioragregado da amostra. 0 vies, ao contrario, e o erro sistematico, oerro que nao se cancela e que afeta o valor observado em uma uni-ca diregao.

Um vies curioso na declaracao de idade foi detectado por Ans-ley J. Coale (1955) em sua investigagao sobre a validade dos re-latos sobre outros membros da familia obtidos pelo censo demogra-fico dos Estados Unidos em 1950: os entrevistados abaixo de 40anos de idade tendem a preferir idades que terminem com os ulti-mos cinco digitos, de tal forma que os resultados censitarios super-estimam os valores dos grupos entre 25-29 e 35-39 anos de idade,ao passo que subestimam aqueles dos grupos entre 20-24 e 30-34anos de idade. Esse tipo de erro sistematico resulta em estimativastendenciosas de valores da amostra ou da populacao.6

E usual considerar todos estes erros: de amostragem e extra-amostrais, variaveis ou nao, componentes do erro total da amostra.0 erro total e definido como a raiz quadrada da soma dos quadra-dos dos erros extra-amostrais e de amostragem. Isto e: (Erro to-6 Podemos dizer que a maiorla dos erros variaveis e constituida de errosde amostragem, ao passo que a maioria dos erros sistematicos ou viesese de erros de enumerafao", observagao, processamento, etc. EXistem, diga-se de passagem, erros sistematicos de amostragem: por exemplo, elemeii-tos listados duas ou mais vezes em um registro do qual se quer selecionaruma amostra aleatoria simples. O vies, conforms Cochran (1963: 292 ss.>,pode ser definicio como segue. Consideremos um valor obtido pelo censocompleto de uma populacao. Esse valor, jS o sabemos, esta sujeito a erros<3e mensuracao. Tal como a distribuicao teorica de medias amostrais, ima-ginemos a distribuicao de medias obtidas por repetidas observacoes damesma populate. A media desta distribuicao e o "valor esperado dapopulacao". O vies e a diferenca entre o valor esperado e o valor verda-deiro da populacao.

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94 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

tal )2 = (Erro padrao)~ -{- (Erros extra-amostrais )2. A relagaoentre erros pode ser tambem visualizada como um triangulo retan-gulo, cujos catetos sao o erro padrao e os erros extra-amostrais, ecuja hipotenusa e o erro total.7

0 erro de estimacao e usualmente parte da sintaxe das afir-mac,6es de resultados empiricos. Faz-se, em geral, a afirmagao pro-babilistica de que o valor x da populagao encontra-se em um inter-valo de confianca delimitado pelo valor x1 da amostra e o erro pa-drao. Isto e, afirma-se que x encontra-se no intervalo entre x1 —k (erro padrao de ar*) e *' + fc (erro padrao de #'); e que estaafirmagao tern uma probabilidade P de estar correta. Esta probabi-lidade aumenta rapjdamente na medida em que o valor de k e, con^seqiientemente, a extensao do intervalo de confianga, aumentam.Se k = 1. a probabilidade P de que a afirmacao esteja correta ede, aproximadamente, 0,68; se k = 2, P sobe para cerca de 0,95;se k = 3, P atinge 0,997; finalmente, para k = 4, P e igual a0,99994. Infelizmente, quanto mais amplo o intervalo de confian-53, menos litil ele e. Dizer, por exemplo, que a proporgab de bra-sileiros a favor da legalizagao do aborto esta entre 0 e 100% einegavelmente uma afirmagao verdadeira, mas iniitil.

"O objetivo do pesquisador", resume Kish (1963: 183), "eestreitar o intervalo de confianga sem reduzir a probabilidade defazer afirmacoes verdadeiras." Na pratica, o pesquisador estabeleceum nivel de probabilidade (e convengao fixar P em 0,95) e usao valor k para calcular o intervalo de confianga. Isso significa que,para um nivel fixo de probabilidade, a extensao do intervalo deconfianga depende do valor do erro padrao da estimativa. Reduziro erro padrao dos resultados de uma amostra (estreitar o intervalode confianga das estimativas) significa, portanto, auinentar a pre-cisao da pesquisa. Ora, em qualquer desenho amostral, a maneirade reduzir o erro padrao e aumentar o mimero de elementos daamostra. A razao e simples: quanto maior for a amostra, maiorsera a probabilidade de que a media amostral esteja proxima damedia da populagao. No limite, se a amostra for tao grande quantoa populagao. o valor da amostra sera igual ao valor da populagao,e o erro padrao sera igual a zero.

Um resultado precise nao e necessariamente um resultadoacurado. Precisao denota a magnitude da diferenga entre a esti-mativa e o valor observado da populagao. Ambos estes valores, co-

7 Kish (1965: 510) define esta equacSo como: (Erro total)2 = (Errosvariaveis)2 ~\- (Vieses)2. Neste caso, a equagao apresentada no textorepresenta apenas um caso especial, isto e": os erros variaveis sao unica-mente erros de amostragem.

A VEHS&O QUANTTTATIVA 95

mo sabemos, estao sujeitos a erros de mensuragao. Acurdcia, potsua vez, denota a magnitude da diferenga entre o valor observadoe o valor verdadeiro. Para dize-lo de outra forma: o conceito de pre-cisao inclui apenas o erro de amostragem. mas o conceito de acura-cia inclui tanto o erro de amostragem quanto os erros extra-amostrais, variaveis ou viesados. Uma pesquisa acurada e, ao mes-mo tempo, precise e nao tendenciosa.

E facil visualizar agora o dilema com que se defronta o pes-quisador. O erro de amostragem e, em geral, posto sob controlepelo aumentd do tamanbo absoluto da amostra. Mas o desenbo dapesquisa como um todo focaliza nao apenas o erro de amostragem,mas o erro total. 0 vies e o componente principal dos erros extraamostragem e, por exercer uma influencia sistematica, e um tipode erro insensivel ao numero de elementos na amostra. Se as pes-soas tendem a mentir sobre a sua propria idade, elas o farao, damesma forma e com as mesmas consequencias, em amostras v>e-quenas ou giandes' ou no censo complete da populagao. Na ver-dade, se nos reportarmos a equagao do erro total, e visivel que aimportancia relativa do vies dentro do erro total da pesquisa au-menta em fungao direta do tamanbo absoluto da amostra. Em con-traste com o erro de amostragem, a unica forma de controlar ovies e pelo aperfeicoamento dos metodos de realizagao do survey,da sele§ao da amostra ate o processamento de dados.

Difereutes procedimentos sao requeridos para o controle dediferentes tipos de erro. Mais ainda: as fontes de erro distribuem-se por todos os estagios da realizagao da pesquisa. O Quadro 1 aios-tra uma classificagao das principals fontes de erros, variaveis outendenciosas, em pesquisas por amostras.8 0 retangulo em linhas

8 Morgentern (op. tit.) enumera nada menos do que nove fontes deerros, como segue; (a) o erro na definicao do problema da pesquisa; (6)o erro de amostragem; (e) o erro do instrumcnto de observacao, o ques-tionario, no caso; (<f) o erro de entrevista; (e) o erro de codificagao; (/)o erro de perfuragao; (g) o erro de processamento; (A) o erro de ana-lise, e (0 o erro de inferencia. Um modelo interessante dos erros depesquisa, baseado na teoria da informacao, foi desenvolvido por Galtung(1969: 174-178). O modelo baseia-se na estimativa do montante de "riri-do" que interfere na comunicacao de uma informacao do entrevistadopara o pesquisador. Se visualizarmos as etapas de realizacao de um surveycomo o canal desta comunicacao, a estimativa do "ruido" pode ser obtidapor meio de uma matriz cujas linhas registrem a informacao emitida pelorespondenle, cujas colunas registrem a informagao recebida pelo pesqui-sador ao fun do projeto, e cujas celas contenham as probabilidades deIransicao da informacao em erro.

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A VERSAO QUANTITATIVA 97

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interrompidas delimita as fontes de erros que serao mais cuidado-samente analisadas no restante deste texto.

E desnecessario repetir a distingao entre os erros de amosrra-gem e os erros extra-amostrais. Pouca atengao sera dada aos primei-ros, mesmo porque sao objeto de extensas discussoes em qualquerlivro sobre amostrageni. Os erros extra-amostrais, inclusive por naoestarem formalizados em tuna teoria estatistica, eludem com maiorfacilidade o entendimento do pesquisador.

Os erros de nao-observacao resultam do fato de que segtnen-tos da populacao sao excluidos do processo de observagao. Exclu-sao, e importante sublinhar, tern aqui um significado bem preciso.Ao definir a populagao que sera objeto de pesquisa por amostra,quase sempre excluimos, deliberada e expHcitamente, vastos seg-mentos da populagao mais abrangente. Uma pesquisa sobre os pa-droes de lazer da juventude exclui, por definigao, todos os velhos,Falamos aqui, ao eontrario, da exclusao de elementos que perten-cem a populacao definida pelo pesquisador. A exclusao de taiselementos pode ocorrer ou porque eles (ou as unidades amostraisas quais eles pertencem) nao foram adequadamente inclufdos nacobertura da amostra, ou porque nenbuma resposta sobre as suascaracteristicas pode ser obtida. Mais adiante, discutiremos com de-talbes os problemas de nao-cobertura e de nao-resposta em surveys.E fundamental enfatizar, entretanto, que esta exclusao de elemen-tos e uma das principals fontes de vies na pesquisa por amostras,pela simples razao de que os elementos excluidos pertencem des-pronorcionadamente a determinados grupos socio-demograficos dapopulagao.

Os erros de observagao resultam da coleta e do registro incor-retos das observances feitas em uma amostra. Fodemos separar 03erros originarios da coleta de dados, ou do trabalho de campo, da-queles que resultam do processamento dos dados. Comecemos peloserros de coleta de dados, tambem conbecidos como erros de res-posta. Os erros de selecao tern origem nas decisoes do enumera-dor ou do entrevistador sobre quern sera, no final das contas, en-trevistado. Suponhamos que se queira realizar uma entrevista comum dos adultos residentes, em carater permanente, em cada umdos domicilios selecionados. Uma empregada domestica deve serconsiderada residente permanente do domicflio? E o primo queveio do interior passar uma semana na capital e esta de cama baonze meses? Ate mesmo os residentes efetivos do domicflio podemter dificuldades em qualificar os demais residentes. Mas a subs-tituigao de enderegos e, de longe, a causa mais importante doserros de selecao. O entrevistador sempre encontra domicilios onde

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98 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

os residentes estao ausentes durante a maior parte do dia. For quonao, pode-se perguntar, substitui-los por domicilios adjacentes?Afinal de contas, familias de padrao de vida similar tendem a ha-bitar as mesmas areas, de tal forma que os vizinhos que se encon-tram em casa devem ser substitutes adequados para os residentesausentes. Acontece que, por mais homogenea que seja a area resi-dencial, as pessoas que trabalham fora tendem a ser significativa-mente diferentes das pessoas que ficam em casa durante todo odia. A substituigao, por exemplo, provavelmente incluiria na amos-tra um niimero desproporcional de donas de casa; o pesqnisador,inocente de reificagoes, podera tratar todas essas observances sobo nome generieo de "mulheres" e, assim, generalizar para a popu-lacao feminina como um todo valores amostrais enviesados emfavor de um segmento.

Os erros de entrevista ou de resposta tern multiplas brigens.*Uma de suas fontes e o proprio questionario. A formulacao deuma pergunta pode induzir uma resposta enviesada: por exemplo,uma pergunta fechada pode oferecer um niimero insuficiente ouincomplete de alternativas de resposta. A questao: "Por que o Sr.resolveu alugar a casa onde mora?", seguida das alternativas: (a)"O aluguel e baixo"; (b) "A casa e confortavel", e (c) "A vizi-nhanca e boa", pode gerar uma resposta tendenciosa justamentepor nao ter espeeifieado alternativas provaveis do tipo: "A casafica perto do meu trabalho." Pela forma da questao, o entrevistadose re forgado a escolher uma alternativa que nao expressa a suareal motivagao.10 Uma segunda fonte de erros e o entrevistador. Arelacao social da entrevista e sempre paradoxal, exigindo, por umlado, que o entrevistador se mantenha suficientemente distante doentrevistado para nao perder a sua objetividade; e, por outro lado,que ele se aproxime suficientemente do entrevistado para gauhara sua confianga. Diferengas em atributos visiveis (tais como sexo,educagao ou raga) podem inibir o entrevistado, levando-o a re-cusar-se a responder certas questoes; o entrevistador pode comu-nicar as suas proprias atitudes ao entrevistado ou, o que e muito-

9 Existe uma vasta literatura sobre os erros de entrevista ou de resposta.Vale a pena consultar os trabalhos de Canell e Kahn (1968) e, printipal-mente, de Sudman e Bradburn (1974).10 Litwak (1956), entretanto, arguments (com razao, a meu ver) quenao e possivel classificar uma questao como sendo enviesada ou nao combase apenas nas intengoes do pesquisador. Utilizando o modelo te6rico daanalise de estrutura latente, Litwak sugere que o vies pode ser geradopela especificacao inadequada da dimensao que se quer mensurar, ou pelaconcep?ao erronea da forma da distribuicao das respostas ao longo destadimensao.

A VERSXO QUANTITATIVA 99

mais freqiiente, reinterpretar uma resposta ambigua em termos desuas proprias crengas. A omissao de perguntas para apressar o ter-mino da entrevista ou a fraude pura e simples de todo um questio-nario sao outras maneiras, infelizmente nao tao raras, pelas quaiso entrevistador pode deformar os resultados da investigagao. A ler-ceira fonte de erros e o proprio entrevistado. Alguns erros de res-posta sao deliberados, tal como ocorre com a declaragao da rendade entrevistados de alto nivel soeio-economico; outros erros saodevidos a lapses de memoria ou incompreensao do objeto da per-gunta; outros ainda decorrem do fato de que respostas relativasa fatos da vida corrente do entrevistado teudem a ser mais esta-veis do que respostas sobre a sua vida pregressa ou respostas queimpliquem avaliag5es ou julgamentos. A forma mais conhecida devies induzido pelo entrevistado e o chamado "conjunto aquies-cente de respostas". Esta e a tendencia, freqiiente entre entrevis-tados de nivel educacional mais baixo, a responder afirmativa-mente a um conjunto de perguntas, independentemente de seusconteudos. 0 caso classico do conjunto aquiescente de respostas ea mensuragao de escalas de autoritarismo em populagoes pobres epouco educadas; nesta e outras baterias de questoes projetivas, oentrevistado tende a concordat com tudo que Ihe e perguntado: abem da verdade, menos por reais predisposigSes autoritarias do quepor acreditar ser este o comportamento sociaunente desejavel du-rante uma entrevista.

Os erros de processamento, finalmente, somam-se aos demaiserros ja nos estagios finals e mais mecanicos da pesquisa. A codi-ficagao, ou a versao das informagoes textuais do questionario paracodigos numericos, esta sujeita a erros de diversas origens: des-cuido ou cansago do codificador; anotag5es incompletas ou ilegi-veis do entrevistador; codigos ambfguos ou vagos, etc. 0 erro decodificagao e particularmente acentuado, observam. Crittenden eHill (1971), quando os codigos exigem, ao mesmo tempo, a bus-ca e a avaUacao da importancia relativa de informagoes contidagem respostas a perguntas abertas. Os codigos numericos sao, em se-guida, expostos a outra fonte de erros: a sua transladacao paraperfuragoes em cartoes ou gravacao em fita magnetica. Um casoantologico de erro de perfuragao e o "caso dos indios e vitivos ado-lescentes", detectado por Coale e Stephan (1962) no Censo Demo-grafico de 1950 nos Estados Unidos. Os resultados do censo mos-tram um numero desproporcional de indios e de viiivos entre 10e 14 anos de idade gragas a um erro mecanico: o deslocamento daperfuracao para uma coluna a direita em varies milhares de car-toes. Nao termina ai a odisseia do pesquisador. O processo de com-

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100 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

putagao esta igualmente sujeito a erros mecanicos; ou ate mesmoa erros tendenciosos, dependendo, por exemplo, de como e quaudouma sub-retina determine o truneamento e o arredondamento dasfragoes decimals de series numericas.

Esta digressao sobre a natureza e as conseqiiencias do erro napesquisa empirica indica um novo angulo para a avaliacao do in-tercambio entre metodo e improvisagao. "Como selecionar umaamostra probabilistica?", pergunta Kish (1963: 184). "Sempreque algum dentre varios elementos da populagao e incluido naamostra", responde ele, "a sua selegao deve ser realizada por meiode algum procedimento mecanico que assegure as probabilidadesde selegao atribuidas a todos os elementos em questao. Precisamos,portanto, de alguma operagao fisica, algum procedimento pratiooque seja congruente com o modelo probabilistico subjacente a nossateoria estatistica". Este e, precisamente, o amago do problema. Oque faz uma amostra probabilistica e a escolha de elementos se-gundo probabilidades conhecidas de selegao; essas probabilidadessao assegurados pelo uso criterioso de procedimentos mecanicos deselegao (por exemplo, a tabela de numeros aleatorios ou rotinasde enumeragao de domicilios). Em suma: os procedimentos me-canicos de selegao de elementos sao uma tradugao operacional deum modelo probabilistico, de tal forma que omissSes ou mudangasindevidas nos procedimeutos afetam diretamente a integridade domodelo.

O restante deste texto analisa duas fontes de erros na pes-quisa por amostra: a nao-cobertura e a nao-resposta de elementosque, por definicao, pertencem. a populagao em causa. 0 estudo des-tas fontes de erros exemplifica bem os limites da improvisagaoem surveys. Dada a relative pobreza de recursos e de informacoescontextual, o pesquisador pode escolber certos atalhos para o tra-balho de campo que, na realidade, aumentam a probabilidade deocorrencia desses erros. Na pratica, a nao-cobertura e nao-respostade determinados elementos importa em atribuir-lbes uma probabi-lidade zero de selegao, excluindo-os efetivamente do calculo dos va-lores amostrais. Acontece que a nao-cobertura e a nao-resposta pena-lizam desproporcionalmente determinados grupos da populagao. Aexclusao destes elementos da amostra e uma causa segura de esti-mativas tendenciosas.

0 Desenho Amostral e o Problema da Nao-Cobertura

O problema da cobertura em surveys e melhor avaliado nocontextp ^geral da implementacao de um projeto de pesquisa. Era0 nosso proposito selecionar uma amostra probabilistica da popu-

A VERSAO QUANTITATIVA 101

lagao de residentes adultos da regiao sudeste brasileiro. Essa regiao,coextensiva as regioes censitarias numeros V a IX, inclui o Espi-rito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, o desde entao extintoEstado da Guanabara, Sao Paulo, Parana, Santa Catarina e BioGrande do Sul. JEsta populagao, por definigao, inclui todos os re-sidentes permanentes, de 18 ou mais anos de idade, das areas ur-banas e rurais daquela regiao. £ importante notar que a populagaodefinida exclui todos os residentes com menos de 18 anos de ida-de; os encarcerados; qs alienados mentais e os enfermos interna-dos em clinicas, hospitals e bospicios; os residentes em instalagoesmilitares, e a chamada populagao flutuante de residentes tempora-ries da regiao, tais como turistas, marinheiros em viagem, etc.11

Decidimos selecionar, em estagios miiltiplos, uma amostra debase geografica, ou por probabilidade de areas. A amostragem porareas tira partido do fato de que cada elemento de uma popula§aobumana pode ser identificado com um e apenas um domicilio;e que cada domicilio, por sua vez, tem uma localizagao geograficaprecisa. A selegao de amostras por areas e geralmente realizadaem varios estagios: (1) a populagao e dividida em aglomeradosde elementos, as cbamadas unidades primdrias de amostragem (ouU.P.A.S), seguindo-se usuahnente os limites tragados para unida-des administrativas ou censitarias; (2) uma amostra probabilisti-ca das U.P.A.S e selecionada para representar o conjunto inicial deaglomerados; (3) subamostras de domicilios sao selecionadas emcada U.P.A. e, finalmente, (4) Tim ou mais elementos (as pes-soas que se quer entrevistar) sao selecionados em cada um dosdomicilios eleitos.

A amostragem por areas oferece diversas vantagens. Primeiro,nao se necessita coletar um grande volume de informagoes contex-tuais basicas para toda a populagao, mas tao-somente para asU.P.A.S inicialmente selecionadas. Este primeiro estagio de sele-gao requer apenas uma lista exaustiva das U.P.A.S e alguma me-dida de seus respectivos tamanhos — em geral, o tamanbo da po-pulagao residente e/ou o numero de domicilios. A enumeragao detodos os domicilios ou, se o desenho amostral o exigir, de todos oselementos residentes, e requerida apenas para as U.P.A.S inclui-das na amostra. 0 que significa que, em comparagao com outrospianos amostrais, a amostragem por areas e, em geral, mais con-veniente e menos dispendiosa. Uma segunda vantagem da amostra-gem por areas e a utilizagao de diferentes metodos de selegao em

11 Evidentemente, estao tambem exclm'dos da populate definida pelosurvey todos aqueles elementos que, a rigor, nao estao associados a qual-quer domicilio especifico: mendigos, andarilhos, criminosos em fuga, etc.

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102 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

diferentes estagios do processo de amostragem. Metodos de amos-tragem por aglomerados ou por estratos da populagao, a selecaoprobabilistica e a selegao sistematica, sao todos eles utilizados paramaximizar a precisao e reduzir os custos da amostragem por areas.Este tipo de amostra, a bem da verdade, tambem tern as suasdesvantagens. 0 principal problema da amostragem por areas ternorigem no uso de metodos de selegao por aglomerados, qual seja:a probabilidade mais alta de erros de amostragem. Sabemos quequanto maior a amostra, menor o erro padrao. Esta afirmagao everdadeira, entretanto, somente quando cada elemento da popula-gao e selecionado iudependentemente da selecao de qualquer outroelemento, tal como ocorre na amostragem aleatoria simples. Naamostragem por aglomerados, por definigao, os elementos sao sele-cionados nao individuabnente, mas em grupos. Neste caso, o in-cremento do erro padrao, em comparacao ao erro que seria obtidoem uma amostra aleatoria simples da mesma populacao, dependerado quao homogeneos, com respeito a uma ou mais caracteristicasde interesse, sejam os elementos de cada aglomerado tanto em re-lagao a si mesmos, quanto em relagao aos elementos componentesdos demais aglomerados.12

No nosso caso, a selegao da amostra foi efetuada em cinco es-tagios. Nao se inclui neste numero a escolba dos Estados que re-presentariam a regiao. Seis Estados, cuja populacao conjunta re-presentava, em 1970, mais de 90% da populagao total do Su-deste brasileiro e cerca da metade da populagao nacional, foramintencionalmente escolhidos: Espirito Santo, Minas Gerais, Rio deJaneiro, Guanabara, Sao Paulo e Rio Grande do Sul. Uma serie dedificuldades levou-nos a definir Minas Gerais e o Espirito Santocomo um unico modulo estadual de amostragem. Eleitos os Esta-dos, o primeiro estagio da amostragem consistiu na selegao de umaamostra de municipios, as nossas unidades primaries de amostra-gem. Todos os municipios foram inicialmente estratificados em

12 A amostra nacional de domicilios do Survey Research Center da Uni-versidade de Michigan £ um. exemplo de amostra em estagios multiplespor probabilidade de areas. Esta amostra tern a vantagem de ser multl-funcional, podendo ser utilizada para a selecao de subamostras ou para aselecao de diferentes agregados de populacao, Seu uso para a selecao decondados, cidades e vilas e exemplificado no trabalho de Hess, Souza eJuster (1977). A Fundacao IBGE mantem permanentemente atualizadauma excelente amostra em estagios multiples por probabilidade de areas:a Pesquisa Nacional por Amostra de Domiciles ou PNAD. Os detalhesdesta amostra encontram-se em Barbosa e Lindquist (1970). Warwick eNininger (1975: 111-125), com base na experiencia de criacao de umaamostra nacional no Peru, descrevem com excepcional clareza as etapasde implementacao da amostragem por areas.

A VERSAO QUANTITATIVA 103

fungao de duas caracteristicas: o tamanho da populacao municipalem 1970 e a proporgao daquela populagao classificada como urba-na. Seleeionou-se em seguida uma amostra de 24 U.P.A.S, comprobabilidades de selegao proporcionais ao tamanho de suas popu-lagoes, dentre os diferentes estratos formados. Vale notar que to-das as capitais de Estado foram defimdas como UiP.A.s auto-re-presentativas e incluidas com certeza na amostra. 0 Quadro I listaa populagao adulta em 1970 dos seis Estados e 24 municipios sele-cionados.

O segundo estagio consistiu na selegao de um numero rela-tivamente grande de setores censitarios nas areas urbanas ou ru-rais dos municfpios selecionados. 0 setor censitario e a unidade deenumeragao do Censo, um aglomerado com numero bastante varia-vel de habitantes e de domicilios: nas areas urbanas, o setor tipicoconta com cerca de 1.400 babitantes em aproximadamente 300domicilios, caindo nas areas rurais e suburbanas incluidas naamostra para cerca de 900 habitantes em 200 domicilios. Umalista complete de setores, com o tamanho respective de suas popu-lagoes, foi obtida para cada U.P.A., selecionando-se dai, com pro-babilidades proporcionais ao numero de habitantes, 98 setores ur-banos e 16 setores rurais e suburbanos. Toda a documeutagao dis-ponivel sobre os setores selecionados foi obtida, inclusive copiasdos mapas originalmente preparados pelos agentes censitarios paraa enumeracao de domicilios em 1970. Estes setores, entretanto, in-cluiam um territorio e uma populagao demasiado grandes, dado onosso orgamento, para serem totalmente cobertos na enumeracaode seus domicilios. A solugao foi criar um terceiro estagio de sele-gao de subsetores.

Nas areas urbanas, nao encontramos grandes dificuldades nadelimitacao e selegao de subsetores. Os mapas de setores urbanoapermitiam a identificagao de quarteiroes, ou seja, dos subsetores"naturals" de uma cidade. Nao tinhamos, e verdade, como saberde antemao o numero de domicilios em cada quarteirao. Volta-mos a improvisar: determinamos o numero de enderegos a seremvisitados em urn dado setor e, em seguida, selecionamos umaamostra aleatoria simples de quarteiroes, equacionando o numerode tentativas de selegao ao numero (gerahnente pequeno) de en-trevistas a serem realizadas naquele setor. Nas areas rurais, esteprocedimento estava, obviamente, fora de questao. Dada a pessi-ma qualidade dos mapas de setores rurais, alguns deles nao maisque rabiscos indicatives de estradas e domicilios, fomos obrigadosa buscar as informagoes basicas que necessitavamos para a sele-Sao da amostra em outro lugar. Com a indispensavel e eficientecolaboragao do sistema brasileiro de extensao rural, redesenhamos

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104 A BUSCA DA REALIDADE OBJETTVAQUADRO I

A AMOSTRA DA REGIAO CENTRO-SUL: POPULACAO ADULTAEM 1970 NOS ESTADOS E MUNICfPIOS SELECIONADOS1

Estados e MunicipiosSelecionados Populagao Adulta em 1970 z

GuanabaraGuanabara

Rio de JaneiroNova Iguacu

* NiteroiCampos

Minos Gerais - Espirito Santo sBelo HorizonteJuiz de ForaGovernador ValadaresVitoriaCaratingaParaisopolis

§ Poco Fundo§ Ouro Branco

Sao PauloSao PauloSantos

* JundiaiSao Caetano do SulSSo Jose dos CamposMauaRio ClaroAvare

Rio Grande do SulPorto Alegre| Gravatai

Erechim§ Humaita

TotalEstados selecionadosRegiao Centro-SulBrasil

2.691.4042.691.404

2.487.330344.624185.663146.187

6.432.257619.438123.6^569.57565.51046.765

6.1905.7772.885

10.068.4073.395.998

212.58192.66689.28671.50247.90343.62819.207

3.592.345515.851

26.18024.0774.625

25.271.74027.587.13447.469.837

1 O municipio e a unidade primaria de amostragem. Na maioria dosmunicipios, apenas domicflios urbartos foram selecionados. Dentre osrestantes, a selecao incluiu tanto domicflios urbanos quanto rurais (*)ou limitou-se apenas aos domicflios rurais (§).

2 Os dados sobre populagao adulta foram extraidos do Censo Demogra-fico de 1970 (Fundacao IBGE, 1973). Em virtude das diferentesclassificacoes usadas nas publicacoes do Censo, os dados sobre os Es-tados referem-se a populacao com 18 anos de idade ou mais, ao passoque os dados ao ni'vel de municipios incluem apenas a populacao com20 anos de idade ou acima.

3 Para efeitos de selecao da amostra, Minas Gerais e Espirito Santoforam definidos como constituindo um unico Estado,

A VEESAO QUANTTTATIVA 105

os mapas e listamos, tao acuradamente quanto possivel, os domi-cflios rurais. Os setores foram entao divididos em subareas aolongo das estradas existentes, de tal forma que a selegao de domi-cflios pudesse ser efetuada segundo uma rotina simples: dirigindapor essas estradas, o entrevistador selecionaria a enesima fazenda,ora a sua direita, ora a esquerda, enumerando em seguida todasas suas unidades domiciliares.

0 quarto estagio consistiu na selegao dos domicflios. Um do-micflio foi definido como uma construgao permanentemente ha-bitada por uma ou mais pessoas, fosse esta construcao um aparta-mento, quarto de pensao, barraco de fundos ou alojamento ocupa-do pelo vigia de uma fabrica. Nas cidades, eleitos os quarteirSes,.sorteou-se a esquina de onde deveria partir o entrevistador, cami-nhando sempre no sentido dos ponteiros do relogio. Munido deuma folha de percurso, ele deveria localizar e enumerar todos o&domicflios do quarteirao, selecionando sistematicamente o enesimadomicflio para a entrevista. Nas areas rurais, o entrevistador ape-nas enumerava e escolhia sistematicamente uma unidade domici-3iar na fazenda selecionada.

Finalmente, gelecionou-se o morador a ser entrevistado. Uti-lizamos aqui, com sucesso, o metodo de selecao probabilistica deresidentes desenvolvido por Kish (1949). O entrevistador enume-rava os residentes, anotando o primeiro nome, a relacao com o-chefe da fanulia, o sexo e a idade de todas as pessoas adultas dodomicflio, inclusive empregadas domesticas. Essa enumeragao se-guia sempre uma certa ordem: primeiro os homens, depois as mu-Iheres, as pessoas sempre ordenadas das mais velhas as mais jo-vens. A selecao agora era facil, pois uma tabela, determinando apessoa a ser selecionada em funcao do numero de pessoas adultasno domicflio, havia sido prevjamentc carimbada em cada questio-nano.

A cobertura de uma populacao refere-se a enumeracao com-pleta e acurada de todos os sens elementos. A identificacao e lo-calizagao de todos os elementos elegiveis para inclusao na amos-tra e a garantia de que eles recebam probabilidades de selecao di-ferentes de zero — uma condicao essencial para a implementacaode um modelo probabilistico de amostragem. A nao-cobertura, porimplicacao, diz respeito a exclusao acidental de unidades amos-trais elegiveis ou mesmo conjuntos inteiros de tais unidades, se-jam elas domicflios ou pessoas, dos quadros amostrais de enume-racao e mapeamento.15

IS Podemos igualmente falar em supercobertura quando elementos ine-legfveis sao inclui'dos na amostra.

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106 A BUSCA DA REALIDADE OBJETTVA

Ja observamos que a nao-cobertura e uma fonte de vies porincidir desproporoionalniente sobre determinados grupos da po-pulagao. Nao tenho a mao informagoes sobre o montante estimadode nao-cobertura no censo demografico brasileiro. Mas uma breveavaliacao desse problema nos censos norte-americanos de 1950 e1960 serve como indicagao de sua seriedade. A taxa global de nao-cobertura em 1950 foi estimada em 3,6% da populaeao total,caindo para 3,1% em 1960 — isto e, arnbos os censos deixaran;de contar cerca de 6 milhSes de americanos. Da mesma forma,cerca de 2,5% ou mais de um milhao de domicilios, localizadosprincipalmente em areas rurais e cortigos urbanos, iludiram a enu-meragao censitaria. Mais importante, contudo, sao os diferenciaisentre subgrupos da populagao. Em 1950, o survey pos-enumera-cao do Bureau do Censo estimou a taxa de nao-cobertura da popu-lagao branca em 2,6%, enquanto na populagao nao-branca, negrae hispano-ainericana, o sen valor era de 11,5%. O aperfeicoamen-to dos metodos de enumeraeao em 1960 trouxe a nao-coberturada populagao branca para 2,2% e a da populacao nao-branca pa-ra 9,5%. Ainda assim, encontramos em 1960 diferenciais destaordem: as taxas de nao-cobertura de homens entre 25 e 29 anosde idade foram, respectivamente, 4,3% para os brancos e 19,7%para a populacao nao-branca. Os exemplos poderiam ser multi-plicados, mas a conclusao seria a mesma: a nao-cobertura penalizasobretudo as populates jovens e pobres, bem como as areas ru-rais e corticos urbanos. Dada a qualidade do censo norte-ameri-cano, e de se crer que o problema da nao-cobertura, especiahnen-te no campo e nas favelas, seja um pouco mais grave no censobrasileiro.

No caso de nossa pesquisa, nao tenho como estimar o mon-tante de nao-cobertura por nao dispor de enumeragoes completespara comparacao. Nao obstante, vale a pena registrar a suspextade nao-cobertura nesta amostra e alertar o leitor para algumasde suas provaveis causas. A nao-cobertura, relembro, diz respeitoou a domieilios, ou a residentes, ou a ambos. A perda de domici-lios, em principio elegiveis para inclusao na amostra, e mais rele-vante para esta discussao.

Uma das causas importantes da omissao destas unidades en-contra-se precisamente na definicao inadequada ou incompleta doque seja um domicflio.14 Os domicilios de dificil acesso ou loca-

^ Por definicao, o domicilio inabitado ou vazio e inelegi'vel para a sele-cao, mas deve ser inclui'do na enumerac.ao, Em nossa pesquisa, estimamos.

A VERSAO QUANTITATTVA 107

lizados em lugares e construcoes insuspeitos (barracos de fundosou quartos de vigias, por exemplo) tern, naturalmente, maioreschances de serem omitidos na enumeracao. Por esta razao, e aocontrario do que fizemos em nossa pesquisa, e prudente separarpor completo a tarefa de enumeraeao da tarefa de entrevista, sub-metendo as unidades domiciliares a uma dupla contagem por dife-rentes pessoas. Fizemos, e claro, a veriflcagao das folhas de per-curso e seleeoes de domicflios em uma subamostra de cerca de10% do total de enderecos, encontrando um numero insignifi-cante de domicilios nao-cobertos ou de erros de selegao. Mas a ve-rificagao por subamostras de forma alguma substitui uma enu-meraeao previa e completa de cada setor.

Os erros de enumeragao, como seria de se esperar, ocorremcom muito maior frequencia em certos aglomerados de domicilios.A nao-cobertura nas areas rurais deve ter sido razoavel. Ali, fal-tam ao pesquisador mapas e informagoes mais precisas e, ademais,o campo brasileiro e povoado por um numero indeterminado deposseiros, residhido incognitos nos recantos menos acessiveis dasareas rurais. 0 mesmo deve ser verdade nas favelas e nos corti-cos urbanos.

Nunca e demais sublinhar o fato de que a documentacao im-precisa ou incompleta sofare os aglomerados de domicilios e umadas principals causas da nao-cobertura. Ja nem falo de mapas oudescrigoes inadequadas. Falemos dos limites de um setor censita-rio. A definigao clara e precisa da fronteira entre dois setoresevita que os domicilios ai localizados sejam, por descuido ou in-decisao do enumerador, sistematicamente excluidos da amostra.O titulo deste texto inspura-se, a proposito, na descrigao dos limi-tes de um setor urbano no interior de Minas Gerais. A descrigaodo IBGE reza: "Este setor tern como pontos de imcio e finalos fundos da igreja. A linha de limites segue pelos seguintes pon-tos de referencia: a margem da Rio-Bahia ate um pequeno filetede agua, e por este ate o corrego maior; por este corrego ate aultima casa da rua principal, ja saindo novamente na Rio-Bahia,pela qual segue ate os fundos da igreja matriz." Como distinguir ofilete e o corrego na epoca das aguas? Onde fica exatamente aultima casa da rua principal? A propria igreja pertence ao setorou nao? A nossa dificuldade em responder estas perguntas sugereo dilema do enumerador, sempre pressionado a tomar decisoes no

que cerca de 1,5% dos domicilios cobertos estivesse vazio. Vale obser-var que a proporgao de domicilios vazios e mais ou menos invariante como tamanho da U.P.A., sendo quase inexistente nas areas rurais.

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108 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

local, decisoes estas que podem, com excessiva facilidade, redun-dar em uma selegao tendenciosa de elementos amostrais.

0 Trabalho de Campo e o Problema da Nao-Resposta

A amostra mais cuidadosamente selecionada, coberta de ma-neira t£o completa quanto possfvel, apenas produzira resultadosprecisos case as pessoas efetivamente entrevistadas sejam repre-sentatitvas da populagao. Dado que poucas pesquisas conseguementrevistar todos os elementos inclufdos na amostra, a possibili-dade de que a nao-resposta enviese os resultados deve ser umapreocupacao constante do pesquisador.

Um certo montante de nao-respostas, devido a doenca ou via-gem, e quase sempre inevitavel, como tambem o sao as recusas ona iucapacidade em responder a certas questoes.15 O problema serioda nao-resposta, entretanto, encontra-se na impossibilidade de seconseguir qualquer informagao sobre determinados elementos dapopulacao. Caso estes elementos fossem, para todos os efeitos pra-ticos, similares aos respondentes, as conseqiiencias da nao-respostaseriam triviais. Acontece que, geralmente, e a exemplo da nao-cobertura, eles nao o sao. E ai esta a fonte de vies da nao-resposta.

O montante e as razoes de nao-respostas, ao contrario da nao-cobertura, podem ser diretamente estimados pelo pesquisador.Conforme a sugestao de Kish (1965: 532-535), classificamos asfontes de nao-respostas em quatro grupos. A recusa expli-cita da entrevista pode ocorrer em dois momentos: a recusano contato inicial (RCI) ou a recusa pela pessoa selecionada(RPS). A distribuicao e jmportante: a RCI e geralmente anuncia-da, em nome de todo o domicilio, pelo chefe da familia ou peloresidente que primeiro recebe o entrevistador. Ao contrario daRPS, a RSI pode refletir ou nao a receptividade dos demais resi-dentes a entrevista. Em adicao, o entrevistador necessariamentecompleta a enumeragao de todos-os residentes antes de receber aRPS, obtendo assim importantes informacoes sobre os correlates

15 fi costumeiro distinguir-se entre a recusa em responder uma questSoe a nao-resposta por falta de informacao ou de opiniao ("nao sabe"). Anatureza, a incidencia e os correlates de nao-respostas a certas questoessao discutidos por Coombs e Coombs (1976) e por Converse (1976). Evi-dentemente, sempre existe a possibilidade de que uma certa proporfSodas respostas do tipo "nSo sabe" consista, na verdade, em recusas emresponder as questoes. Com base nos dados do nosso projeto, Cohen (1976)elaborou um modelo estrutural para estimar os efeitos da situacao deentrevista sobre estas nao-respostas, bem como as relacoes entre recusasexplicitas e recusas camufladas como "nao sabe".

A VERSAO QUANTITATIVA 109

socio-demograficos desse tipo de nao-resposta. A ausencia de um oude todos os residentes por periodos de tempo incompativeis com ocronograma da pesquisa denota o segundo grupo de nao-respostas.Novamente, dtstinguimos aqui a ausencia de todos os residentes deum domicilio habitado, ou "ninguem em casa" (NEC), da situacaoem que apeuas a pessoa selecionada esta ausente (PSA), fi im-portante sublinhar o fato de que qualquer tipo de ausencia e defi-nido em funcao do mimero maximo de tentativas de entrevistas•determinado pelo pesquisador. O terceiro grupo reune outras ra-zoes de nao-resposta: primeiro, a pessoa selecionada e receptiva,mas encontra-se incapacitada para a entrevista (PSI) por doenca.invalidez, senilidade ou intoxicagao; ou, segundo, a pessoa selecio-nada e receptiva, mas e impedida por familiares de responder aentrevista, um tipo de nao-resposta particularmente freqiiente entremulheres. Finalmente, a nao-resposta pode ser devida a perda daentrevista como um todo. Tres razoes basicas determinam esta per-da. A perda literal do questionario pelo entrevistador ou pela ad-ministra£ao da pesquisa e a primeira delas, um evento mais fre-qiiente do que seria desejavel. Em segundo lugar, podemos todauma entrevista por estar incompleta ou pobremente realizada. Fi-nalmente, ha que se eliminar da amostra todos os questionariosfraudados pelo entrevistador. A fraude de entrevistas e o flagelodos censos e das pesquisas por amostras, e so pode ser elimina-do pelo controle rigoroso do trabalho de campo. Esta quarta cate-goria de nao-respostas, felizmente, nao aparece os resultados finalsde nossa pesquisa, conforme resumidos no Quadro 2.

Esse quadro mostra os resultados finals na pesquisa pelo mime-ro de tentativas de realizacao de entrevistas. Os entrevistadores de-veriam fazer um minimo de tres tentativas antes de desistir de rea-lizar uma entrevista, classificando o domicilio ou um residente emum dos grupos de nao-resposta. Na pratica, tentou-se obter umaentrevista ate um maximo de sete visitas a uns poucos domicfliospromissores, mas particularmente reealcitrantes. Como mostra oquadro, o numero medio de tentativas para se obter uma entrevis-ta foi de 1,5 visitas ao domicilio.

A primeira coluna do Quadro 2 mostra simplesmente as pro-porgoes do total de enderecos finalizados em uma ou mais tentati-vas, isto e, as proporsoes de enderegos que resultaram em uma en-trevista ou em uma nao-resposta. Por exemplo, 58% de todos osenderecos foram finalizados na primeira tentativa. A segunda co-luna mostra a proporcao de entrevistas realizadas pelo numero de

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A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

tejam em casa e mais alta, como tamfoem o e a probabilidade detrue elas nao abram a porta para conversar com urn bomem). Ou-tros procedimentos podem certamente ser utilizados para reduziro montante de nao-resposta em uma pesquisa.

£ necessario, entretanto, que o pesquisador tenha uma ideiaclara da rentabiKdade marginal de se investir em uma enesima vi-sita a uma nao-respondente. Neste sentido, calculei para a nossa pes-quisa uma taxa de sucesso para cada tentativa adicional de se con-seguir uma entrevista, taxa esta operacionalmente definida como omimero de entrevistas multiplicado pelo numero de tentativas paraobte-ias. A Figure 2 apresenta os resultados.

Figura 2

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A VERSAO QUANTITATIVA 113

Os resultados falam por si mesmos. Em suma: <juanto maioro numero de tentativas, menor a probabilidade de se conseguir umaentrevista. A razao e simples: o segmento da populagao mais recep-tivo a entrevista concede ser entrevistado na primeira visita aos seusdomicflios. Mais de 90% das primeiras visitas, entendido o termocom o numero de tentativas vezes o numero de entrevistas, resulta-ram em respostas ao questionario. Dai para a frente, o entrevista-dor encontra maior resistencia e ja comeca a perseguir os residen-tes mais indecisos ou refratarios a entrevista. A taxa de sucesso dc-clina rapidamente e, alem de tres tentativas, o entrevistador defron-ta-se, por assim dizer, com a turma da pesada, os nao-respondentesmais empedernidos e bostis a pesquisa. Tentar entrevistar esse gru-po, fazendo tantas visitas qiiantas necessarias para obter uma res-posta, pode impor custos monetarios e uma perda de tempo inaceita-veis ao projeto de pesquisa.

A decisao do pesquisador e grandemente facilitada caso ele co-nhega as caracteristicas tipicas do segmento da populacao mais re-ceptivo a ser entrevistado. Imaginemos que cada elemento da popu-lacao tenha certa probabilidade de responder a entrevista. A pri-meira visita ao domicflio, como vimos, atinge um numero despro-porcionado de elementos com alta probabilidade de resposta. Cadavisita adicional, ao contrario, tende a contatar os elementos combaixa probabilidade de resposta ate o limite daquele grupo residualcom probabilidades de resposta proximas a zero. Conhecendo algu-mas das caracteristicas socio-demograficas dos elementos com altaou baixa probabilidades de resposta, o pesquisador pode estimar deantemao o numero de tentativas requerido para a realizacao da en-trevista. Os resusltados estao no Quadro 3.

O local de residencia, tirbano ou rural, e o nivel educacionaldo entrevistado sao os melhores preditores de sua receptividade aentrevista, entendido o termo como o numero medio de tentativasnecessario para obter a sua resposta. 0 efeito do local de residenciae, na realidade, menor do que os dados deixam entrever, no senti-do de que a populagao urbana, particularmente a populacao dasareas metropolitanas, e, em media, melhor educada do que a po-pulacao rural. 0 leitor fica tambem alertado para a possibUidade deque diferengas educacionais expliquem parte do efeito atribuido aosexo do entrevistado.

De qualquer forma, e interessante notar quais sao os elemen-tos mais receptivos a entrevista: (a) as mulheres, requerendo emmedia 1,5 tentativas; (b) os respondentes analfabetos ou de niveleducacional mais baixo, com 1,3 tentativas, e (c) os residentes deareas rurais ou pequenas cidades, com 1,1 e 1,4 tentativas, respecti-

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118 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

vamente. Utilizando o mesmo criterio, os elementos mentis recepti-vos a entrevista sao: (a) os homens, com 1,7 tentativas por en-trevista; (b) os respondentes com mais escolaridade parlicular-mente os de nivel universitario, com 2,0 tentativas em media, e(c) os habitantes das grandes cidades, com 1,8 tentativas. Por simesma, a idade do entrevistado nao parece afetar a sua receptivi-dade a entrevista.

Se uma escoiha tivesse que ser feita entre estes preditores, euescolheria, em priineiro lugar, o nivel educacional e, em segundolugar, o sexo do elemento selecionado para a entrevista. Isto e, combase nestes atributos, o entrevistador' pode estimar, em media, quan-tas visitas serao necessarias para obter a resposta e organizar umcronograma compativel com estas expectativas.

E claro que o pesquisador tambem gostaria de ter a mao in-formag5es sobre as caracteristicas tipicas dos nao-respondentes, or-ganizadas por tipo de nao-resposta. Algumas dessas caracteristicaspodem ser enccntradas no Quadro 4. Antes, entretanto, e necessariodizer uma ou duas palavras sobre esses resultados. Observe-se, porexemplo, que as categofias de nao-resposta incluem apenas os casosem que foi possivel ao enlrevistador observer e registrar as carac-teristicas da pessoa selecionada para a entrevista. As categorias"recusa no contato inicial" e "ninguem em casa" estao excluidasdeste quadro,. embora tenhamos informa9oes sobre esses elementos,informae.oes essas derivadas de estimativas do entrevistador ou derelates de vizinhos. O problema e que este tipo de informacao, espe-cialmente se fornecida por vizinhos, tende a ser tendenciosa. Manti-ve na tabela • apenas duas estimativas feitas pelo entrevistador: ostatus socio-economico do domicilio e a manifestacao de medo oususpeita pelo nao-respondente.

Estes resultados sao bastante interessantes. Podemos analisa-los por categoria de nao-resposta. Os elementos com alta probabili-dade de recusar a entrevista sao os seguintes: (a) mulheres; (o)pessoas com 40 anos de idade ou mais, (c) familias ou residentesde status socio-economico mais alto, e- (d) habitantes de grandescidades. Cerca de 43% daqueles que se recusaram a ser entrevista-dos manifestaram medo ou suspeita quanta ao entrevistador ou aentrevista, ou' ambos.

A nao-resposta por ausencia prolongada e tipica de (a) ho-mens; (b) pessoas mais jovens; (c) familias ou residentes de statussocio-economico medio e (d) habitantes de cidades menores, especi-almente as ci,dades-dormitorio nas cercanias das areas metropolita-nas. E reconfortante observar que apenas 2% destes nao-respon-dentes manifestaram medo ou suspeita da entrevista.

A VER$AO QUANTITATIVA 119

Finalmente, as pessoas incapacitadas para a entrevista sao, emgeral, (a) mulheres; (6) pessoas com 40 anos ou mais idade; (c)residentes de status socio-economico baixo; (d) habitantes de ci-dades maiores. Nenhum destes elementos manifestou medo OH sus-peita da entrevista.

Estes resultados, diga-se de passagem, sao inteiramente con-gruentes aqueles registrados por Kish (1965: 537-538). Os homens,os jovens, as pessoas de status socio-economico mais baixo e os ha-bitantes de pequenas cidades e areas rurais sao os elementos maisdificeis de serem encontradas em casa. Comparando estes aos re-sultados do Quadro 3, vemos que a ausencia do domicilio e a prin-cipal razao do maior numero de tentativas requerido para a entre-vista destes elementos.

As mulheres, os velhos, as pessoas de status socio-economicomais alto e os habitantes de cidades maiores sao os elementos maispropensos a se recusarem a ser entrevistados. A comparagao com oQuadro 9 e, mais uma vez, instrutiva. Enetendemos agora em queconsiste a maior receptividade das mulheres a entrevista: ou bemelas se deixam entrevistar no prhneiro contato com o entrevistador,ou a recusa e quase certa. A qualidade do contato inicial pareceser particularmente importante para este grupo da popula^ao, e opesquisador pode adotar certas rotinas de apresentacao da pesquisaque minimizem o medo ou a suspeita que esses elementos revelamfrente a um entrevistador.

Quanto aos incapacitados, os resultados sao dramaticamenteclaros. Sao, na sua maioria, mulheres, pessoas senis ou invalidas,gente mais velha e, sobretudo, gente pobre e pouco educada. O pes-quisador dificilmente eucontrara procedimentos para o contato eentrevista que reduzam a proporcao de nao-respondentes nesse gru-po. A entrevista desses elementos e, para todos os efeitos praticos,impossivel.

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C. A Associacao das Tecnicas

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6

Observacao Participante e "Survey":urna Experiencia de Conjugacao

NEUMA AGUIAR

Neste trabalho, procurarei organizar algumas~"* questoes que sur-giram em uma experiencia na conjugaggp de metodos de_jobserva-gao•_ participante_ e surv&yi emjnna pesquisa que realize! no Nordes-te. A pesquisa foi elaborada com™uinTlititude de constante experi-mentagao e acredito que o resultado foi o emprego pouco ortodoxodestas—duaS-.-tecnicas. A presente exposigao e uma tentativa deaintetizar as d£Eiculdades e facilidades que encontrei no uso arti-culado dos dois metodoTros^iToblemas que ocasiona e os que resol-ve, em termos de_generalizac.ao dos resultados.

Varias questoes tem surgido sobre as vantagens e desvanta-gens do uso da observacao participante e do survey.2 Dados oriun-dos da observa9ao participante tem sido considerados como poucorepresentatives em comparagao aos obtidos atraves do metodo de\survey, quando a referenda usada na avaliacao da representa-tividade e a tecnica de amostragem estatistica.2

Descreverei, neste trabalho os recursos que desenvolvi paraatingir aquilo que considero um^ myel adequado de generalizagao.Existe uma posigao bastante divulgada em Sociologia de que os da-dos de observagao participante sao profundps, na medida em queatingem niveis de compreensap dos fatos socials nao alcancados pe-

1 Sam D. Sieber, "The Integration of Fieldwork and Survey Methods",American Journal of Sociology, 78, 6, 1973, pp. 1335-1359.2 Urn exame desta questao e realizado por Arthur J. Vidich and GilbertShapiro em "A Comparison of Participant Observation and Survey Data",American Sociological Review, 20, 1955, pp. 2833.

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126 A BUSCA DA REALJDADE OBJETIVA

los survey^ Os dados obtidos pelos usuarios da ultima tecnica,aponta-a'iiteratura, sao^durgs, isto e, atingem urn. niyeL.de ensu-?ragap que^ a observacao participante nao consegue atingir.4 Naoobstante o grau de exatidao almejadj), aponta-se tambem para ofato de <rue oa dados obtidos atraves de surveys, embora "chirps'",com frequencia__deixam-o interprete_eni^.dificuldades^iianfo"a in-terpretagao_clas_correla5oes alcangadas.5

~~~~Partirei da perspectiva que dados _pbtidos_ tanto atraves de ob-servacao participante, quanto atraves de survey podem carecer degeneralidade na medida em que os de observagao participante pps-sam se ater de forma muito exclusive ao contexto investigado,._e psde survey, alem deste risco, podem incgrre^tambem em-outoo, ouseja, o de> que a^exatidjojotima nap corresponda a_que se alcangadada a baixa explicacjoHa varianeia Ijue e/^siixel'rpb"tel:--atraves"des_ta_ultipia^-tecmca.*i

Antropologos tern sido os usuarios por excelencia, embora naoexclusivos, do metodo de observagao participante. Sobre o baixonivel _de^ generalizagact^Qbtido, por este recurso metodologico^re^porto-me a urn de seus modernos porta-vozes, Cj.aude Levi-Strauss^responsavel pela insergao da Antropologia em um novd^tipcTde ^lia-logo academico ettquanto busca graus de generalizagao mais amplospara a sua ciencia.7

0 autor discute este problema ao apontar as dificuldades comas quais se depara aAntrogplogia pelo crescente desaparecimentodas comunidades "primitivas", procurando demonstrar que as so-ciedades tribais constituem grupos socials tao importantes quantoas sociedades_complexas,8 Estas ultimas, de posse da tecnolqgia, searvoram em uma arrogancia que impossibility a^pefcepgSo" de quea complexidade das sociedades jrimitLYas"_nao_esta na .tecnologiaque empregam, mas na prganizagao _spcial, que permite evidenciaras variedades de solucoes encbntradas pelos grupos humanos no es-tabelecimento do convivio social. Para constituir um dominio espe-

3 Howard Becker e Blanche Geer, "Participant Observation and Inter-viewing: a Comparison" em Qualitative Methodology, William J. Filstead(org.), Chicago: Markham Publishing Co., 1971, pp. 133-142.4 Veja, a titulo de exemplo: Donald P. Warwick e Charles A. Lininger,The Sample Survey: Theory and Pratice, Nova York: McGraw-Hill BookCo., 1975, p. 10.5 Howard Becker e Blanche Geer, op. cit., pp. 139-140.6 Robert L. Hamblin, "Mathematical Experimentation and SociologicalTheory: a Critical Analysis", Sociometry, 34, 4, 1971, p. 425.7 Claude Le"vi-Strauss, Structural Anthropology, Garden City, Nova York:Doubleday, 1967, pp. 14-17.8 Idem.

A AssociAgAO DAS TECNICAS 127"v\ o>' 4*--cifico de conhecimento dentro das ciencias sociais a^ Antropologia

Social deveria afastar-se da tendencia, ate ha pouco dominante, dedescrever as sociedades que "toma como oMfitOs^omo-exoUcas, fol-c!6ricas ou "simplesmente casosjunicos, ey^ando^gem^li^ar os seusachados.0 Isso seria possivel atraves "da" constituisao de uma teoriageral das sociedades humanas onde seus elementos invariantes esuas variagoes pudessem ser pensados. A maneira dejjeneralizaratraves do^uso de etnografiag, propoe o autor, consis'te em saber sedesprender dos dados, elaborando questo^s__que_permitam ar-tic^laT~u^""conJunto maior^de^itu^oes^dp^jjue as descritas pelotrab'allio'de campo.10 OU)rocessolde generalizaclS1, sustenta,-e_^ajpr-inulacao sintetica do prob'lema estudado atraves de um (metodo^de

^reduca^ Lembrando o conceito de fato social total que MarcejM'aus's estabeleceu como um passo adiante ao dado por Durkheim,cTautbr propoe^ique j) Jrabalho de campo deve ser acompanbado porum trabaUib" analitico que estab^lega conceitos, articule e acentuecaracteristicas fundamentais da^ sociedade ejjue possibilite.-us^ jiespecificidade da construgao como um recurso teorico.1 \tFato social^

J^tal^e um~cbnceito cunbadb no decbrrer' da analise eieiitiEicar^eque poe emeyidencia determinadas carac^eri^ticas^Muciais^^da so-ciedade que se estuda.1?. Embora se referindo a aspectos parciais daso'cledadeVa nogatf de™totaiidade e acionaoa, possibilitando a^gombj-na5ao_de_representac6es^sociais cp^mjaspectosrnOTfc^gwo^^p^rmijtindo tambem* a comparagao entre diversas situagoes historicaseso-ciais, quando^as caracteristicas conmns ente^ep^cas^jeAi«)fflexi^^saoexiBidasJ3Tatos^ciais constituem um sistema composto de partes,entre as quais se descobrem afmidades, equivalencies, conexoes esolio'ariedades, nos diz Mauss.14 E^p^ando^LaJE_ainda o concei-to, Levi-Strauss aponta para a operagao semelhante que pode^'serrealiza~da"farito^pelos usuarios do meto~do~etnografico, quanto pelosque fazem uso ~do"meto"do^estatisticb, citahdo como exemplo do ulti-mo uma analise sobre as modalidades de suicidip.15 A. estatistica'

S Idem, p. 284.10 Idem, p. 278. *11 idem, p. 275.12 Claude Levi-Strauss, "Introduction a L'Oeuvre de M. Mauss" emMarcel Mauss, Sociologie el Anthropologie, Paris: Presses Universitairesde France, 1968, pp. XXVIII.13 Claude Levi-Strauss, Structural Anthropology* p. 278.14 Marcel Mauss, "Essai Sur le Don", em Sociologie et Anthropologie,op. cit., p. 274.15 Claude Levi-Strauss, Structural Anthropology, p. 277, O estudo clas-sico sobre o suicidio proveniente desta escola e o de fimile Durkheim,Le Suicide, Paris: Presses Universitaires de France, 1973, l.a ed.: 1897.

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128 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

aj>arece entao comgum recurso descritivor A dimensao analitica noemprego de dados estatisticos e posta em evidencia atraves da utili-zagao de um recurso sintetizadqr^da mesma natureza que o empre-gado com .dados ™etnograficos, quando o cientista social procuratranscenderjt dimensao, empirica-dqs^ mesmos, em busca de um ni-vePinais prof undo de entendimento. '•

A construcao do fato social tern como finalidade a articujagapde^elementqs dispares; alguns sao facilmeute identificaveis com a.realidade empirica, outros, situados ao nivel das'representacoes, saomais abstratos. 0 esforco sintetizador pode nao ser bem sucedido,podendo transmitir impressao oposta a que se tinha em mente,quaudo o esforco explicativo nao ultrapassa o da confusao. Obs-curautismo aparece no lugar de clareza e inconsistencia no lugarde conhecimento sistematico. Ha pelo menos um critico constantedas obras ^de_Leyi=Strauss que tern questionado a base das ricasconstrugoes teoricas que o autor elabora. demonstrando a existen-cia de articulacoes arquitetadas sob base muito tenue.is In^ujcap^eimaginac.ao fazem parte de todo bom trabalho nas Cleacias Sociais;a~(lificuldade surge quando o que e irredutivel a um metodo apa-rece enganosamente como uma formula de criatividade quando atecnica esta ao dispor da ora9ao.

_^ Um modo de dar conta das djficuldades que psdem aparccer;no trabalho de generaHzacao, tem a ver com a tentative de supe-rar o nivel da experiencia, ampliando as possibilidades de contatodireto com os sujeitos da pesquisa pela escolha de categories rele-yantes, selecionadas atraves do processo de observacao participante.Estas categorias podem ser empregadas de modo amplo e sistema-tico com a utilizacap do questionario. O recurso pode aumentar avariabilidade dos dados pel'mitindo situar o fenomeno, em obser-vagao, dentro de um contexto mais amplo. O problema do privile-giamento do nivel local produzido pelo processo de observagao par-ticipante foi inadvertidamente tocado por Alvin Gouldner, em cri-tica enderecada a Howard Becker.11 Esta critica poderia ter sidoestendida a muitos sociologos, inclusive Erving Goffman, mestreda etnografia soeiologica.38 0 au£or,-,com-um forte sentido de iden-

\f

16 David Maybury-Lewis, "Science or Bricolage?" em Claude Levi-Strauss: The Anthropologist as Hero, E. Nelson Hayes e Tanya Hayes(orgs.), Cambridge, Mass.: M.I.T. Press, 1970, p. 162.

'17 Alvin Gouldner, "The Sociologist as Partisan" em For Sociology,Nova York: Basic Books, pp. 27-68.

^•9 Para o uso deste termo veja Erving Goffman, Frame Analysis, NovaYork: Harper Colophon Books, 1974, p. 5.

A AssociAgXo DAS TECNICAS 129

tificagao com os internados em um bospital psiquiatrico do sistemapublico, limita sua analise de poder ao mvel da interacao entrernernbros do estate e pacientes, perdendo de Vista a esfera maisampla.19 Gouldner refere-se ao enfoque local como representandouma alianca do pesquisador com as esferas federals burocraticasdo poder.20 A interpretagao sobre as preferencias politicas liberalsde observadores participantes, todavia, nao constituent, a meu ver,razao suficiente para entender a escolha do metodo, pois a mesmaavaliagao e estendida por outros aos usuarios de survey, principal-mente pela origem da utilizayao da tecnica, proveniente^ de iesqui-sas de opiniao pubHcaedeanaUse ^e mercado.21 Acredito todaviaque uma importante perspectiva foi sugerida por Gouldner sobrea interagao simbolica, pois o metodo de observagao eleito pelos se-guidores desta orientacao pode levar a perda de perspectiva do ni-vel mais amplo que o da experiencia imediata.

A critica de Gouldner, todavia, leva-me a meditar sobre meus'valores pessoais atraves da proposta que elabora sobre o desenvol-vimento do que propoe ser uma sociglogia Jgflggiya. Esta serialuma forma de ciencia dos vieses pessoais e dos dados que escapamas teorias, eivadas de tendenciosidade, geradas pelas preferenciasvalorativas que temos.22 Voltarei a esta questao.

Resta, agora, situar o problema da generalidadeja_partir dainvestigacao, que J^yei a cabo no Cariri, uma regiap no^Sul doCea-ra, composta pelos municipios de Abaiara, Araripe, Barbalha, Bar-ro, Brejo Santo, Cariria9U, Crato, Farias Brito, Grangeiro, Jardim,Jati, Juazeiro, Mauriti, Milagres, Missao Velha, Nova Olinda, Pe-naforte, Porteiras, Potengi e Santana do Cariri. Tomarei como pon-to je partida o ultimo problema aventado, isto e, a transcendenciada experiencia particular, revelando dados de minha biografia, e oque acredito haver permanecido em minim analise soeiologica daregiao, todavia associavel com a minha pessoalidade. Buscarei, emseguida, o_ nivel da construcao teorica como forma de transcendero ^iyel_bipgrafico. Termuaarei com a interacao entre duas_Jeenicasutilizadas, procurando demonstrar, ainda, os limites das possibili-dades de generalizacao atraves da estrategia escolhida.

19 Erving Goffman, Asylums, Nova York: Doubleday Anchor, 1961.20 Aivin Gouldner, op. cit.

&1 Sam D. Sieber, op. cit., p. 1335.22 Alvin Gouldner, The Coming Crisis of Western Sociology, Londres:Heinemann, 1972, capitulo 13.

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ssr

A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

Historia Pessoal e Elei$ao de um Problema Cientifico

Desde muito jovem viajava a terra de minha mae, o^Carirj.^ lo-cal que sempre havia representado para mim a aventura e o fol-guedo, sem relacao alguma com o trabalho intelectual. Constituia

I apenas dominio do meu afeto, regiao que eu queria bem porquesempre era~beiu recebida all pelos parentes, ainda muito chegactos,O Cariri era um lugar de passar ferias, lugar de lazer. Era o localdo sitio do meu avo, cbeio de poesia, onde eu andava a cavaloquando menina e me perdia no meio dos buritis, pitombeiras, pi-quiseiros, macaubeiras e araticuns. Terra onde chupava siriguela emanga rosa, trepada nos pes de arvore, terra muito amada por mim.

Neste lugar havia uma imensa fcira semanal a qual eu com-parecia para comprar bonecos e panelintias de barro, mobilinhas,bruxas de pano, chicotes enfeitados, chapeus de couro, cacnimbosem miniatura, historia de cordel e um outro sem fim de coisas.Para mim nao havia o que nao se encontrasse naquela feira, era£^^_dji_poesia_do_J[ugar. La eu tambem adquiria rusticos produ-tos da industrializacao local: alfenins, rapaduras e batidas.

Um belo dia, apos muitos anos, depois de formada e douto-; rada em Sociologia, comecei a pensar no Cariri como urn lugar

orfde era possivel realizar investigates cientificas. No comego comeerta relutancia, talvez temendo que a cieneia do Cariri fosse re-presentar a perda do lugar maravilhoso. Limitava-me, assim, a es-timular que fossem realizadas pesquisas naquela localidade, maseu mesma apenas servia de veiculo para a curiosidade intelectualde outros. Desta maneira acompanhei o trabalho de uma pessoamuito proxima a mim sobre "Planejamento e incentives ao Desen-volvimento", onde o autor procurava aquilatar a eficacia do uso deincentives fiscais para o desenvolvimento industrial. O Cariri eraum lafaoratorio de industrializagao na epoca. Nao e que o lugar naopossuisse experiencia de industrializacao, pois la havia engenhosde rapadura e beneficiadoras de algodao, atividades estas ampla-mente documentadas por escritores do lugar.23 Por muito significa-do que essas atividades produtivas representassem para a area, o fe-nomeno que la ocorria era cpisa nova. J) Cariri s<^ transf ormava emum experimerito. As indi^trias^recem-impiantadas^ eram modernas,iiovinhas em folha, tendo sido adquiridas no exterior ou no SuLEram de outra ordem, dJlerentes das velhas_fa_bricas, motive de or-gulho do povo, que vinha mostrar a mulher que morava~no~Rio^de^ iii ^ . v— — J-—- ~ -* ' x j.

Janerro o progresso chegado a regiao.

23 Irineu Pinheiro, O 'Cariri, Fortaleza, 1950, pp. 52-59; Jose de Figuei-redo Filho, Engenhos de Rapadura do Cariri, Rio de Janeiro: Ministeriada Agriculture, Service de Informacao Agrfcola, 1958.

A ASSOCIAQAO DAS TECNICAS 131

0 projeto de industrializacao da area foi imaginado pcra terimpacto, efeito_de_dempnstra5ap sobre como fazer o Nordeste se de-senvolver."Visitei industrias, sempre como acompanhante, e naocomo investigadora. Converse! com gerentes, conheci um~ semnumero 'de~visifantes, todos procurando observar de perto o mila-gre da industrializacao. Algo que talvez nos aproxime todos do lu-gar. O residente da area parecia pensar que transformagao Indus-triafe milagre, pois naquela epoca o idealizador do projeto era com-parado ao Padre Cicero, pelo impacto que exerceu na regiao.

Algum tempo depois voltei ao Cariri. Desta feita acompanlia-va a pesquisa de um amigo, com um trabalho sobre artesanato".Quando o autor do projeto perguntou-me sobre que lugares incluirneste seu estudo, respondi-lhe que certamente deveria incluir aque-la area em suas observagoes. Artesanato^ para mun, era o que sevendia na feira da minha meninice. Outro lugar como aquele naohavia, com tantos objetos elaborados a mao: colher de aluminio,sino de bronze, panela de barro, corda e vassoura de sisal, medalhade ouro, tapete e chapeu de palha ou de couro, rede de algodao,candeeiro de lata, para citar alguns exemplos da arte local.

Nesta segunda visita como acompanhante de pesquisa comeceia elaborar o meu~pr6prio objeto de investigagao. Deixei 09 sonKos

. /"da infancis Te^da juventude e comecei a me embasbacar com o lugarX. i P£L5^^5HH^^££^-is»^ca' ^E^^P^L3 observar, juntando a expe-;-

riencia das duas ultimas visitas, que muitos dos produtos que a in— - ' -- — "~~- ' — .-•"

dustna moderna elaborava eram tambem m^anufj^uradgs cointecnica primitiva, no que eu via um paradoxo. A especialidade qua.'o lugar "possufa" para mim, em termos afetivos, come9ava a entrarem minha vida professional, quando eu pensava naquela coexisten-cia como um fenomeno que a literatura nao dava conta. Artesana-to e industria manufaturando os mesmos tipos de objetos eram algum5_cois^_j5u^p^iiaya^s«f explicada, pois, nao era de meu conhecimento que ja houvesse si_dp_ teoricamente elaborada em SOTciojbgia.

Pajsegunda visita jg^_finaBdade^parjciaImente^ cientifica, per-maneceu um dos objetos do trabalb^r^^es^ratificagap Asocial. Para>estuda-la, naj_jerceira7'precisei fazer o trabalho teorico_de, vin-

f cular a forma gaode hierarquias sociais com a estrutura de diferen-I ___ ,-jJ^ " - •"— *** " ""• ' ' '' '-"..micip^JF-JL' Ht- r l- -. . -._,__; ^_ . __ ___ _,_ _^ ^^— -._ . . -^^»- "=- __ =-n- v l f:"

Vtes_moaos de producao. Destacarei este item rhais abaixo. Antes de' detalhar esta qiuestao desejo fazer referencias as formas de relacio-

/ namento afetivo que mantive com o lugar nessa tercgira situacaode pesquisa, quando ja escolhera meu objeto proprio de investigagaoe o encontrara junto ao que me era originario.

' "0 -- "-

- v,- •*

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132 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

^ c

Esta V4£g| ! durou seis meses,= com casa alugada em munici-pio vizinho ao dos meffs™parenfes.~t) trabalho se desenvolvia parale-

£-lamente a um projeto de analise comparada de desenvolvimento re-V gional estabelecido pelo programa de Antropologia onde eu traba-

Ifaava, ensinando Sociologia. O^dialpgo eptre estas correntes das Ci-,eneias Socials inspirava^a minha escoiha metodologica. Procure!,assim, morar no campo. Porem a regiao que elegi para estudo pos-flufa varies municfpiQS. 0 trabalho se desenvolveu em tres deles.Dois municipios_eram\competidores. Em um deles residia a maiorparte de meus familiaresl Aehei por bem morar no municfpio rivalao dos parentetrmenorpor escoiha racional que por disponibilidadede casas para alugar, no periodo em que eu necessitava. 0 local deresidencia, porem, mostrou ser muito util pois alem de ser relativa-mente equidistante dos lugares que eu desejava estudar, propicia-va tambem o distanciamento suficiente de familiares, o que mepennitia indagar as conseqiiencias do relacionamento tao proximocom pessoas da area. Esta questao e importante porque sempre quepude acionei as relagoes de parentesco. De outras vezes, quando es-tudava unidades produtivas no municipio rival, as relagoes de pa-rentesco de nada adiantavam; poderiam ate, suspeitava eu, atrapa-Ihar a minha insergao no lugar.

Ter parentesco ali gerava um problema, pois as pessoas come-eavam a ter expeetativas de acordo com as normas de comporta-mento local, o que seria impossivel para Tpim preenche-las, poiscram demasiadamente restritas com relagao ao comportamento damulher. Em varios lugares as pessoas faziam referencia a admira-gao que jwiusava_uma mae^de amiUa^_e^tar fazendp'pesquis^s emfjbncas,^no, meio de hpmens.

A [posijao "social atribuida a uma determinada pessoa, as ex-pectativas que o seu comportamento gera nos outros, imprimemum carater ao trabalho, que poucos cientistas socials tern se preo-cupado em analisar. Apenas aqueles que trabalham em fntima cooperagao com a psicanalise tem se' preocupado em formular o pro-blema.24 A teoria psicanalitica, tc^avia,_£=4n^ficj;enJEe_p_a^maveri-guar a questao, poisTiHa ape'nas com o jado afetivo. Os vieses esta-belecidos~~pelo pe^uisaHor~com relagao as pessoas que obser^ja^ouentrevista tem a ver com seu desenvolvimento afetivo,%iastamj:ie'mc«n^ouE:aT^feliaT^^Sa'dffl^*"de possfveis tendenciosidades, como asua insergao na sociedade. Talvez fosse este o lugaf de reunir a

I24 Eliseo Ver6n e Carlos E. Sluzki, Comunicacion y Neurosis, BuenosAires: Editorial del Institute Di Telia, 1970, capltulo 8; Elizabeth Bott,Family and Social Network, Londres: Tavistock Publications, 1972, vero capituto 2, escrito em colaboracao com o Dr. J.H. Robb, pp. 1-51.

A AssociAgXo DAS TECNICAS 133/ H V

/perspectiya reflexiva proposta por Gouldner a reflexao sobre a re-*i lagSo afetiva que o^pesquafador^manteni com as pessoas com que se(associa em seu trabalho.

No meu caso procure! tirar partido da estranheza que eu gera-va, averiguando em que condicoes mulheres trabalhavam junto aoshomens, e verificando se as mulheres casadas ou maes de familiatrabalhavam em companhia masculina, ou se somente as solteiras ofaziam, questao que aualisei em outro lugar.25

A populaeao, todavia, nao demorou muito ate aceitar a minhadivergencia do comportamento local, encontrando a explicacao nofato de que eu somente poderia ser uma professora, pois estas in-1*teragem com homens em situagoes de trabalho perfeitamente legi-timas. De outras vezes consideravam que eu era uma escritora, oque Ihes possibilitava acatar o que Ihes parecia ser uma certa ex-centricidade no meu comportamento. "Pagueras" e perguntas di-retas sobre o comportamento sexual das mulheres no Rio de Janei-ro tambem foram outras formas de questioner o que fazia ali, pro-curando saber que papel me atribuir. As dificuldades geradas quan-do bem resolvidas ou problematizadas demonstraram ser proveito-sas fontes de conhecimento.

Quando conduzi a pesquisa no meu municipio de moradia,utilizei, de inicio, \a ajuda do vigia^da casa~que-aluguei, que tinhao trabalho de tomar conta de' iima area residencial durante a noite.Como era conversador fiquei logo sabendo do seu relacionamentofamiliar com trabalhadores na ceramica onde desejava fazer obser-vagoes. Oparentesco do informante);=e_^nap o meu^neste.^casp,_|qi oelemento de aprojOPiagaQ. Tendo sido apresentada por um parente^Strahaliiadores, precisei depois ideiitificar-me perante o proprie-tario a fim de justificar minha presenga em sua propriedade e soli-citar permissao para a execu§ao do trabalho. 0 dono da empresapermanecia muito pouco tempo ali pois tinha varios outros nego-cios. Urn de seus filhos ja me havia visto em outra fabrica e o ou-tro que o auxiliava mais de perto lembrava-se da visita que fizeraao lugar, no ano anterior, quando acompanhava meu amigo queestava interessado em artesanatos. Mais abeito que o pai, pois es£econstantemente verificava se eu nao era uma fiscal do governo,possihilitou que eu realizasse o estudo e que retornasse posterior-mente com auxiliares para a aplicagao dos questionarios.

Em outras situagoes, apresentei-me no local de investigatesem nenhum mediador. Isto foi o que aconteceu poinaior cajjQ.das

25 "The Impact of Industrialization on Women's Work Roles intheast Brazil" in Sex and Class in Latin America, June Nash eSafa (orgs.), Nova York: Praeger Publishers, pp. 110-128-

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134 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

casas de farinha e olarias, quando dirigi-me de jipe para o locale geraltnente solicitei permissao ao zelador da fazenda para dei-xar-me olhar os trabalhos e falar com as pessoas que estavam fari-nhando ou fazendo telhas e tijolos, o que sempre resultou em pron-to acedimento.

Cabe apenas relatar as situagoes onde foncei maq ^lo xneu_ pa-rentesco, pu quando este me foi lembrado.

Alguns familiares ja haviam tido casa de farinha no passado.o parentesco e proximo, conduzir investigagao sociologica

apr&senta alguns problemas. Limites necessitam ser negociados.Meus familiares sVdispuseram com muito boa vontade a indicar-me onde eu poderia informar-me sobre farinhadas, porem ficavamrelutantes quando eu Ihes perguntava sobre a casa de farinha deles.Achavam ilegitimo e procuraram me fazer ver que nao dava certofazer pesqmsa com eles, pois nosso vineulo era de parentesco e naoconcebiam que eu pudesse relacionar-me com eles de outra forma.Apresentar-me a terceiros para que eu pudesse fazer meu trabalhoera"p£5itewdas"regras'de hospitalidade que seguiam. Nao desejavamporem sef~ oBjeto 'da'pesquisa, muito embora se d^usess'enV'deinuineras^inaneiras, a auxiliar-me no trahalho, nao apenas comapresentacoes, mas ajudando em pequenas tarefas, de forma volun-taria ou por contrato, copiando dados, desenbando mapas, apli-caudo e conferindo questionarios; os da nova geracao, conseguindocolegas, igualmente jovens, que se dispusessem a entrevistar, rece-bendo treinamento adequado, e inumeros outros trabalhinhos. Es-tas outras formas de cooperagao nem sempre eram previstas peloeodigo de parentesco do lugar, todavia foram aceitas.

Meu relacionamento familiar provocou inib"ic5eX dentre as pes-*" " - ""i-,. -_-,—— -T-- , - , =- .-,._ , _ - , ^^-:- '-"ri- - ' " *»—i—.^•*—rJ' t i 4.

soas que residiam proxmias as casas de meus parentes, e que ja ha-viam desmanchado mandioca em suas casas de farinha. Esse corn-portamento nao foi^ generalizado, porem houve pessoas que coloca-ram'deTmfdcT muito claro e franco que o meu parentesco Ihes pro-vocava dificuldades em responder as perguntas que eu Ihes formu-lava, muito embora ja ha mais de dois anos meus parentes hou-vessem fechado a casa de farinha, Procurei superar a dificuldadeobservando, tambem, casas de farinha mais abastadas. A^assjgtenciadejjois estudantes^de mestrado do programa onde_eu_lecionava_ajuhdou, quando em epocas subseqiientes observaram locals bem distan-ciados da area onde iniciei os trabalhos.

Em varias fabricas a apresentacao dos parentes foi crucial.Uma delas passava por dificuldades e a situagao foi cuidadosamen-te escondida, o acaso tendo possibilitado que viesse a conhecer a si-tuacao real, quando um credor da fabrica, encontrando-me em um

A ASSOOACAO DAS TECNICAS 135

outro munlcipio, revelou-me a extensao do problema. 0 que dantesera justificado como circunstancial, preeisou ser reanalisado. Va-rias fabricas passavam por dificuldades semelhantes. Meus parentesserviam de porta-voz para a regiao solicitando-me avaliar a situacaoque enfrentavam. Meu sentimento de empatia para com os pj^ble-nia^Jo^ajs_mantevje-se.,mui^~forte^Hur^te"t^db o trabajho de in-vestigaeap- Ideatificava-me nao apenas com as mulheres e os ho-mens trabalbadores, mas tambem com as vicissitudes do sistema fa-bril que sucumbia, as dificuldades agravadas pela epoca da seca.quando varias industrias fecharam definitivamente as suas portas.

.1 Conslrucao do Problema de Investigagao: , L # ^ , , ,: «r ".-ii da Biografia a Teoria n (^>,_c^ °^ F £ .-f Sr* • • • ' " u

*• Uma das questoes teoricas que precise! enfrentar dizia res-i |y-'peito a relagao entre artesanato e industria, pois a literatura preco-fe-' ''/^niza que uma vez seja introduzida a industria em um lugar o ar-JX>4'A

I tesanato desaparece da area. 0 acliado_na_regiao propiciou a anali-\\jse das condigoes de coexistencia entre artesanato e industria, que «***•-^ desenvolvi em varios lugares.38 Quando me propus estudar este pro- /„$,*•3~ vblema focalizei os aspectps da dlyisao_do Jrabajho e da tecnologia/

modos dec

^DTodugap. Mantive o interesse, despertado em uma das viagens aci-ma narradas, de jestudar a estratificagao social. Todavia, as anali-ses predominante_s^ ate entap ^ppunHam o. -estudo«.da~ estratif-ica9aosocial a estudps^de natureza estriitural^ pois consideravam que es-tratificagao social era .um prpduto da Sociologia Americana, por-tantp antagonico ap da Sociologia, Marxista e que tomava como pb-jeto ejementps da superestrutura, ou entao relatives ao mercado enao aos modos de produgao.2^ Foi_necessario um trafaalho teorico'ngandov as rjejire^mtagoes^^pbre ocupagoes e as_articulagojT destasocupagoes_de urn_mqdp determinado.38

""* A coexistencia de diferentes ruodos de producao dos mesmostipos_de -produtps^do Nordeste possibilitou a analise coniparada dos ielementos^componentes de um modo, as formas de cooperagao e :tecnologias empregadas, as relagoes com a natureza, e as modalida-^

26 idem e tambem "Divisao do Trabalho, Tecnologia e Bstratificacao ,-Social", Dados, 14, 1977, pp. 110-140.27 Rodolfo Stavenhagen, "Estratificacao Social e Estrutura de Classes"em Estrutura de Classes e Esiratificafao Social, A.R. Bertelli, MoacirG.S. Palmeira e Otavio G. Velho (orgs.), Rio: Zahar Editores, 1966.28 Neuma Aguiar, "Hierarquias em Classe: Uma Introducao ao Estudo<la Estratificapao Social" em Hierarquias em Classes, Neuma Aguiar(org.), Rio: Zahar Editores, 1974, pp. 13-50.

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136 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

V

des de emprego da mao-de-obra de acordo com a possibilidade tec-nica de controle da uatureza. As duas relagoes tecnicas de produ-gao, as relagoes socials de produgao, o processo de produgao, asocupagoes em volta do processo durante o dia, durante a semana,durante o mes, durante o ano e, enfim, as avaliagoes das ocupa-foes realizadas por pessoas que constituiam parte do processo pro-dutivo, tambem foram estudadaSj//

Esta elahoragao teorica permitiu-me^sistematizar a busca doseleruentos dos modos~3e proftugao e inventars recursos para ohser-va-los de acordo com o tipo de introdugao que eii~havia urilizadopara analisar as unidades produtivas. As dificuldades de obter da-dos sobre a depreciagao de salaries e oscilagao do nivel de emprego

^nas unidades as quais live acesso atraves de parentes foram com-pensadas pelas facilidades que encontrei para conseguir documentosescritos, em unidades onde me inseri de modo impessoal ou atravesde parentes dos trabalhadores.

Nestas ultimas, todavia, havia o temor de que eu pudesse seralguma fiscal do governo e colocasse, portanto, a empresa em difi-

\culdades com agendas oficiais. Nestes casos, os depoimenlos com*relagao aos salaries e desemprego tambem foi bastante mais rico,talvez porque esta indagagao sobre o meu papel de pesquisadoratambem fizesse parte da imaginagao dos trabalbadores, que nao sa-biam ao certo porque dados sobre assalariamento pudesse ser de in-teresse para alguem chegando na area. Nenhuma forma cleintrodu-S^° produz amplo..acessoJa..todos. os. jdados^ e a_naajtieira^e insergao,embora facilitando uma_via_ao c^onhecimento,^.pode yedar qutras.Mulfiplas formas de acesso. todavia, podem elucidar questoes oue

*s,*"~N, ^~~^. i ^~~- *~ -" "~-^—^ £-•-- ~ —f—v---v--—~~^ ^—"~~~ *sao _escondi"das no decoVrer^dp_coatato pesspal^ no processo_de ob-servagao participante. Bwgrafia e teorial foram acionadas como for-mas de ampliar as possibilidades~de~conhecitn.ento, a_ interagap en-

revelando vazios.em ter-

mos de informagoes, que as pesspas^flbservadas procuravam defen-der do meu conhecimento. A biografia colocava questoes que a teo-ria nao alcangava, tais como: avelhice^do processo de industriali-

"•zagao no lugar e a variedade e persistencia sda atividade artesanalicomo importante fator produtivo para a regiao. Todos esses compo-hentes permitiram_a. fqrmulagao_JeOTica pela_fusao da biografiacom^^jepria. Posso apontar tambem que a teoria, utilizada comoponto de partida primordial para o levantamento de dados,,ip63e ;pbs-±-f "~S^.. i. J— -"• ± — -•— — . -t - >- jcurecer^ certos aspectos da reaudade social_que o cientista jirocuraaveriguar, enquanto a mesma teoria elucida) outros_aspectos que

.4

A AssociAgAO DAS T^CNICAS 137

sem ela seriain negligenciados. Apentamos para a questao atraves,do exemplo fornecido por Erring Goffman que se introduziu in-c6gnito, para os pacientes e a maioria do estafe, em um_hospualpsiffuiatrico.28 Isto Ihe possibilitou uma visao constante da intera-gao entre os pacientes por seu status de auxiliar do~3ifetor~ile "atle-Hsmo.30 O papel que assumiu dificultou a observagao de outras ati-vidades, principalmente a interagao dos pacientes com o estafe hos-pitalar, e entre os proprios membros deste estafe.31 Pelo modo es-colhido de insergao na unidade de estudo, o autor parecia conside-rar que se introduzir com o status de soeiologo, elaborando investi-gagoes sobre o hospital seria considerado ilegitimo por algumas es-feras, uma vez que a diretoria do hospital estava ciente de seu ver-dadeiro papel. A forma de insergao, todavia, pareceu-me acentuaras caracteristicas da instituigao, p'ois denota que o autor ja partiudo pressuposto"~da^Hao'aceitasao do status profissional real do obser-vador participante, e que ja se via, a priori, em situagao negadorada propria identidade.32

Generalizacao ao Nivel da Coleta .de-Dados•- " -' " " " - " " - 1 •* — " —

Muito embora, como especificarei abaixo, tenha proem-ado-construir teoricamente o pi^lemiada _p_esguis_a, buscava um outronivePde generalizacao que a construgao teorica por si so nao eracapaz de dar. Refiro-me a generaliza5ap^_ao^ nivej. ^os proprios da-dos. fPosso exemplificar com a declaragao que obtive de um dos ope-rafios de uma~pequena empresa sobre a importancia do trabalho decarregador para a fabrica onde era empregado. Disse que o Iraba-Iho mais importante era o dele, pegando no pesado, pois isto era &que fazia a fabrica andar para frente. Os trabalhos leves, dizia ele,qualquer um faz, mas ninguem, ponderava ainda, quer saljer d&pegar no pesado. 0 trabalhador descarregava caminhoes, levandonos ombros enormes sacos de 60kg, os quais depositiva no arrna-zem para as maquinas, onde se iniciaYa a transformacao do rerilhoem varies produtos. A avaliagao elaborada por aquele trabalhadorsobre a importancia das ocupa5oe~s~rfaT fabrica colocava em questaoo meu pressuposto sobre o efeito da introdugao de maquinas, quan-do a introdugao de uma forca externa ao homem representariauma descontinuidade substantive com relagao ao sistema de produ-

^^

29 Erving Goffman, Asylums, op. cit., p. IX.30 idem, pp. 74-92.31 Idem.32 idem, p. IX.

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V

138 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

cao, onde a forga humana e a principal acionadora do processo pro-dutivo. Pressiu)unha_eu que as representagoes coletivas sobre o lu-gar_ da forga fisica corresponderiam ao desenvolvimento das foroasprodutivasr"IsTo^e", riaT unidades produtivas onde predominasse ouso do corpo como acionador do sistema de producao, eu csperavaencontrar maior valoracao da forga fisica. Outrossim, esperava queesta desse lugar a uma valorizagao maior das atividades em voltadas maquinas, com o deslocamento, para fora do homem, da Corjapropulsionadora dos instrumentos de produgao. Ejperaya, ^onse-quentemente, que o controle da atividade produtiva atraves da su-peryisao.jdo,- trabalho, desenvolvido paralelamente a liberagao damao^dejpbra, propiciada pelo emprego da maquina, (tivesp> C2m?consequ&icLik o distanciamentb, em termos da dimensao~avaliativa,entre as ocupagpes de supervisao e as^facilmenj^^subjtUuiveji^ pelaausencia de espeeializagao. -—~~^ jff- ~-

A altaL valoragao da forga fisica por parte Maquele trabalhadorpermitiu-me questionar_a_hipotese de que este valor~ desapareceriaou seria progressivamente abandonado pelo sistema fabril. Na ver-dade, coinja mtroduca^p_da_mj3qmnaria, Oijisgjd.a_forga__fisica_

;

nua presente ^p jistema fabril, muito embora estas fungoes ^tparcamente remuneradas pelas fafaricas, em comparagao com t» ti-a-balho mais especializado.

O trabalhador referido fez esta apreciagao apontando para adificuldade de obter a cooperagao dos outros trabalhadores. Sua en-trevisj:a, bem como a dos putros,^demonstrpu^existiT alta_^ompetiti-vip^3£"entre os operarips^&. competigao se dava nao so com os queexecutavam fungoes de supervisao, mas com os proprios compa--nheiros de trabalho e com as mulheres que, no dizer masculine,executavam "tarefas maneiras" ou trabalhos leves. A^Jnfprmagaofornecida pelo trabalhador poderia ser uma apreciagao particularsu1Hou'!ffaivez ser e^plic~aver"pela~~fungao de vaqueiro que ate bem

^pbuco executara. Poderia, contudo, ser^urtta^ caractejrfetica^mais .go-ral~3a^situagacT industrial^ e nap apenas_unia_qu^s^o_especifica re-lajiyiua-uqiJtraKalhador.

A fabrica que eu estava averiguando era muito pequena e a evi-dencia demonstrou que o vaqueiro nao era o unico que usava aque-la interpretagao_sobre p_ valor da forga fisica. A minha tjuestrio,dada__amsergap_ da industria no meio'TuralT^era sobrea possibilida-de daquela ser uma dimensao encontrada tambem em outras fabri-

\3^ jcasV Uma^parteira de um arruado urbano omle~^fesiHiam~alguns^ ^llrabalhadores fabris e trabalhadores em casas de farinha disse

que cobrava mais por um parto masculine- que por um feminino,pois "os homens valem mais porque tem mais forga". Acreditei que

\

A ASSOOAQAO DAS

-f r • 1

139

esta dimensao ideologica jjoderia^ser; _importante na avaliagao dasocupagoes. Esse Jato contradizia a minhajteoria e poderia ser maisextenso do que eu previra. Era importanfe, pois, usar um recursopara verjfica-lo. ~ —— ~—;

Era necessario saber formular a questao de modo que ela tam-bem pudesse ser apurada em unidades produtivas onde predomi-nava o uso da forga fisica como propulsionadora dos instrumen-COS fjQ plrOQ.ll.CaQ« J_X65tG CoSQ XO1 ptJHSXVCl OPSCjTVo£ 3 ID til. Of V&J.O1T123-

gao dos trabalhos que empregam forga, quando homens e mulhe-resT trabalham juntos. Da mesma maneirade_das avaliagoes.relacxonadas coin as fungous de cpmandpvisap, niesmo_jem__unidades._,produtiyas. predpminantemente _ma-nuais. Voltarei a essas avaliagoes mais adiante. Vale referir-me, nomomento, ao recurso que utilize! para a verificagao do lugar da for-c.a nas unidades produtivas. A opiniao inicial que desencadeou oquestionamento da teoria havia sido enunciada em uma pequenafabrica com lOempregados. Uma das ©.utrasMiabricas escolhidaspara o estudo possuia liproximadamente 400^empregados. Impjjs-sivel interagir com todos e entrevista-los demoradamente. '0'"survey^foi, entao, usado para ^ayaliar_a_.generalidade_.de_ determittaHas^KiT7 - ~._.-7—•• -'—-— - ^ - X - •"t—-- o— - — ~ --

poteses formuladas no contexto^ de utiHzagao_da. .observagao partici-

Especificagao Progressive*: Invertendo o Movimentode Generalizagao I \ / .*->,

G*neralidade_jQao e o unicp_ objetiyo que se abneja alcangarno processp de mvestigagap. Existem outros,_nao menos negligen-ciaveis, cpmp_a. e^pecificagao_do objeto de inyestigagao/

A especificagao dos conceitos esta relacionada com a forma deanaHsejeleita pelo~cientista social^gue a elabora. Umaejtrategiaanaliuca^ e^^a__cp^.stougao QeVtipos ideaisj Atraves deste metoo-O saoescolhidas algumas dimensoes, ateen'tuaaas de tal modo que o'con-junto delas nao e empiricamente encontravel,<Tporernxj constitui_ .—. ,-—- -*. ——~ - — ~ .— —. .^-^,1M__J1__ T & _3S

iniportante_parainetro.--analitico na orientagao de uma pe^quis"a.-A.trayes>,,das^dime_nsoes ^wtas sao extraidas variaveis que"podem serutilizadas em questignarigs, constituindo jescalias categoricas demenisurasa.o. Categorias mais ou menos constituintes^cTarealitt^esap^_utijizadas jeni^questionarios, /mesmo que nap_fagani^parte daexperiencia imediata dos fespondentesypois compoem os tipos^e_re-presentan^um^^iiyel _de^ 'J^sirasa6"^ubstantivol?AltpsLgraus de._dis-_tanciamento da experiencja^ empjrica^sao possibiUtados por este re-curso metodologico, engendrandpmpos' como o homem^mQclerno, a

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•i V\-/^i r-\ ivy / 'A BUSCA DA REAisroAfiE OBJETIVA

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M,

140

sociedade^ industrial ou a sociedade tradicional. Analises de estrati-ficagao social,como a realizada por Alex Inkeles situam-se no uni-verso""das sociedades industrials.33 A""industria, pressupoe ele, ternum efeito universalista pois uniformiza o perfil da estratificagaosocial. Em nivel transnacional o autor abstrai o homem moderno.com valores-.extoemamente semelhantes, movido pelo pressupostosobre fo efeito_unifprinizador do_ingresso do homem na sociedade de

3 icon^mo._As__p^icjildades de aplicagao do conceito generico_jle, ho-Hmem^mqderno se fazem liehtir' no" caso'Brasileifb"'5™

EspecificagBes^tofnam^ necessarias quando o uso das cate-gorias se cristaliza e elas sao empregadas de modo^automatico mes-mo que o criterio de maior ou menor pertinencia a realidade pendamais parao^lado negativo que para o positivo. lA faltade adequac.ao'

( a^^lenomenos'E^que elas se enderegani constitui o moforyde~fefor-mulacao em prpl de outras rnais especificas /Aldemanda^Ie^especifi-cagao"surge sempre com relagao a" ^ontextos_ hjstoricos determina-dps^i literatura sbHre ~estratiiicac.ao social pode fornecer um exem-plo' desta discussao pois a especificagao de tipos de industrializa-gao tornou-se necessaria quando observou-se que o perfiljocupacio-nal geradq_ pelas sociedades.. industrials,. denotado._ pelos censps, eradistinto.?4

Outro exemplo de especificagao pode ser oferecido a partir domeu trabalho quando pude constatar que as perguntas por mimformuladas_ nao eram universahoiente entendidaspeIiDs~trabalhado-res^ eni^ industria__cio J,\ ordeste* Ubservei, a partir de uma industriasituada em uma fazenda, que as formas de contratagao dp trabalhodivergjUni daquelas empregadas no Sul do pa£s.

As enlTevistas-.inforniais.~que_re^j.i.zei^nas unidades de inves-tigagao levaram-me a questionar desde logo as categorias sobre. balho do meu proprio vocabulario. Fiquei saibendo que os empre-gados daquela ceramica nao se referiam aos seus ganhos como sala-rio, pois todas as vezes que Ihes indagava qual era/o sarariS,que per-cebiam, eles me respondiam que nao percebiam salario algum. Estaresposta levava-me a aereditar que nao recebiam dinheiro pelo tra-balho que executavam. Logo pude observar que recebiam remune-racao em dinheiro. Procure!, entao, verificar como se referiam ao

33 Alex Inkeles, "Becoming Modern: Individual Change in Six Develo-ping Countries", trabalho apresentado ao VIII Congresso Mundial deSociologia, Toronto, CanadS, 1974, e "Industrial Man: The Relation ofStatus to Experience, Perception and Value", The American Journal ofSociology, 66, 1, Julho, I960, pp. 1-31.34 Gl£ucio Scares, "A Nova Industrializacao e o Sistema Politico Bra-sileiro", Dados 2-3, 1967, pp. 32-50.

A/

A AssociAgAO DAS TECNICAS 141

que ganhavam. Fui informada de que os trabalhadores com contratode trabalho e cartejra^ assinada eram os que eles co^sideravam comopercebedores de salario. Apenas trabalhadores (fixos) que tvabalha-vam'"direto eram considerados como ganhando"salario^JTrabalhado-res~c~6mo-eles.}trabalhavam soltos e ganhavamJaa djaria^segundoeles mesmos^Isto serviu"~pafalme_informar que as pers-untas que

<& t-tt-,— , ' '" """""•*• "" " " -~~ -- -——•'' - -—' 4-— • O -- ^ 1

eu^preje^d^jincluir no^meu^ questionario, buscando utilizar rendacomo Jndicador_de^ es^ratificagap social, nao seriam entendidas dom^p^compi_e.u..intencionava..fgrmula-las^Caso eu insistisse naque-la maneira de perguntar, as respostas'seriam erroneamente inter-pretadas^p^r^miin, pois eu poderia talvez" concluir que os trabalha-dores nao percebiam em moeda.

A''Uma outTaJfonte.- comum de erros partindo de estudos sobre aestratificacao social consiste em pedir que sejam avaliadas ocupa-coes desconhecidas pelas pessoas que compoem as arnqstrasi^Porexemplo, um dos estudos classicos soHre estratificagao social pedeaos componentes do survey que avaliem a posicao de fisico nuclear,a pessoas sem o menor conhecimento sobre esta profissao.35 Quan-do perguntaram a estas o que achavam que aquela ocupagao era,deram respostas que denotavam total falta de informacao sobre oque constituia a atividade.38

Para evitar que as mesmas cUficuld^des ocorressem nesta pes-quisa, apenas_as ocupagjoes que faziam parte do universo de traba-lho do trabalhador e avaliador_ das^pcupacoes^ foram _incluidas_ no/estudo.. Paraa selepagjdas que_seriam_ayaliadas, foram observadascuidadosamente todas as atividades, perguntando^se a varias pessoasnas unidades de jnvestigacao como se referiam as ocupagoes. Asvezes havia mais de uma.denominagao parajuni_trabalho, tendo sidoanotadas todas elas^para serem usadasjiQjpiestionari^ Por exemplo,a ocupagao de carirnbar rotulo nas caixas de ladrilho da segao deempacotamento da Ceramica Grande era chamada de Carimbadeirapor uns e de Carimbadora por outros. As duas formas foram refe-ridas nos questionarios. - ^ - - - ——

Paraelaborar a lisla das ocupag ws_ que^seriam^ avaliadaspelostrabalhadoresT figTiSaa minuciosa descrigap do fltixo-pfSHutivo, ten-do sido pbtidas_antecipadamente outras descrigoes dp processo rea-lizadas pelos supervisores. De posse destas, verifiquei o fluxo anc ,tandp as discrepancias entre as descrieoes dos informantes e o pro-cesso por mina~oK§ervado, principalmente com relagao a determi-

33 National Opinion Research Center, "Jobs and Occupations: A Popu-lar Evaluation" em Class, Status and Power, R. Bendix e S.M. Lipset(orgs.), Glencoe, III.: The Free Press, 1953, l.a ed., pp. 411-425.S6 idem, p. 417. , , f\

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TCtV

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142 A BUSCA DA REALIDADE OBJETTVA

F;

nadas operagoes, mais fluidas que outras, pois se alteraram variasvezes durante o decorrer da pesquisa, desde o inicio das observa-goes.

, 1 ^ ''•' Apj5s observer o processo, escolhi uma ocupagao em^cada.jiini-1

, s' . dade proHutiva para ser tomada como padrao. pelos^entrevjstados,que deyeriam avaliar as outras ocupagoes componentes da listagem.

»( / '• 0 crjterio utilizado para que uma ocupagao fosse tomada como re-\L ^-/^ferencia consistiu em sua ^siBilidade na unidade de investigacao.,,'•" Isto e, aquela_ ocupagao de vena relacipnar^e cQrn_um_nuiriergn bas-

K,.. tante grande de outras ocupag5es na unidade produtiva, de tal for-J,

;l'5*-,;ina que todas as pessoas entrevistadas tivessem conhecimento da-W n7; ^ *• *•

"C. :; quele trabalho. Em certas unidades produtivas haviam ocupacoes„ - V r,com menor visibilidade, pois havia setores secretos. Ja em outras,

m unidade era suficientemente pequena para que todas as ativida-des :fossem incluidas. Em uma das unidades fabris, de menor porte,

— i*' ~~' • *"- • -:f*\ r> ibuscou-se obter^avaliagoes de duas^maiieiras. Em^jgrimeirou-lugarprocurou entreyistar todas^as—pessoas. Em segundoXlugar) reaU-zou-se uma ampstra para^ a aplicacao de questionarios.formais. Asentrevist.as_obtidas__antes__dos_ _questionarips_forjim_suficieatementeextensas para que as perguntas elaboradas atraves do quesiiona-rio as especificassem.

Atividades_conhecidas por^tpdos foram selecionadas de jtnodo alevar em conta o vocabulario e eategorias empregados naquela lo-calidade a respeito do trabalho e permitiram especi£icar_ajx!oriaadeforma a^elaborar as perguntas do .questipnario, levando em consi-

, deragao o contexto de trabalho e o vocabulario dos trabalhadores em" unidades produtivas que eram objeto do estudo. Com este cuidado,,^ evitei as idipssincrasias] comuns_ aos pressupostos universalistas dos

'f ;questionarios, que provocam granilenndic^s^de variagao e de0^"abstengoes nas respostas, como no exemplo que dei acima sobre a

posigao atribuida a ocupagSes sofisticadas como fisico nuclear. Omesmo acontece com ocupagoes tradicionais que muitas vezes geram

7;discrepancias avaliativas. Defendo o^pgntojde vista jle que a avalia-gao ocupacional realizada "Hentro do contexto onde as atividadesocupacionais sao exercidas gera menor indice de discrepancies pro-vocadas pelas diferencas entre o universe cognitive do pesquisador e

que sao objeto de suas pesquisas./ I A atengatf cpm^o ^v^SK^mo, todavia, pode nos fazer parti-

/ ctiicLTiZai* 0.6 Taj, zoimicL uinfl siiUu.c3O 0.6 IIIOQ.O OTJ.G_ jiaO _sc^^poss&V ir _alem do contexto especificp. que deu origem^a ^uestao. No caso,

procurei elaBorJr^as^questoes de modo a que elas pudessem ser rea-lizadastajnto em unidades produtiyas onde a forga^dpjhomem pre-

A AssociAgXo DAS TECNICAS 143

dominasse, quanto em unidades produtivas onde preponderasse ouso""de ^niaquinaria no processo produtivo. A estrategia permitiuparticularizar diferentes formas de organizagao social na elabora-gao de um mesmo produto bem como generalizar atraves das va-rias organizagoes socials diferentes, tomando como objeto de com-paragao ocupacoes comuns a elas.

A pesquisa_ em _ ^questao versava sobre modos de organizagaosdcjal^da P££dugap_^stintgs^ mas^ cpexiste^.tes_ na_transformagao de.toes tipgs_de_materia-prima: milho, barro e mandioca.forma de jtrganizagao social da^ produgao busquejj observardades envolvidas na produgao, procurando connecer tambj?m^as_r.e.re^ntagpes ocupacionais elaboradas pelos proprios trabalhadores

que as exerciam.

T^3^Q-

Realizei um trabalho de observacao participante 'durante um- _ _ , ^"^^ \*,r*ii*.,mf£:-_-~.-rV*^- J- --

perioao_je_gejs^rneses nas^empresas escolhidas, quando estudej^duasoindustrias de prqdutos__ ceramicos_ e duas industrias^de farinfia, demilho. Durante mn_mes e niej.o__contei com a^juda.'de duas assis-tentes_parjsse_,tr,abalho. Alem disso, recolhi dadta's^por intemiedibde erifrevistas e documentos sobre uma quinta fabrica'^ de feculade mandioca, qu_e«bavia fechado. Nas quatro primeiras foram apii-cados 192 questipnaribs. Outros 58 foram obtidos em 11 casas defarinha e 6 olarias, sendo que uma casa de farinha e uma olaria\foram intensamente obseryadas. Dados adicionais ppsteripres so-brer^as duas ultimas atividades foram obtidos com a ajuda de dois

\ assistentes de pesquisa. - - - . - - - - - - . ,_"™" A unidade produtiva,^nesse caso a Casa de Farinha, poderiaser compreendida-a semelhanga das manufaturas descritas por Marxnas Formagoes Economicas Pre-Capitalistas. Preferi,Cjodavialfica-la como emnresa_dpmestica, pois, embora tenha UIQ d^envol-vido sistema de cogperacSo, por vezes faz uso do motor. Aintro-dugao da maqumaXtodavia, nao^reypluciona a. organizagao d^univdade produtiva, muitoi^abora^a_afete. A~ mesma estruttrraTjfle i-ela-g^s"de trabalho e mantida, com contratos de parceria e subcon-tratos de trabalhos por produgao e diaria, ao lado do trabalho fa-miliar nao remunerado ou remunerado em especie. A fprga Hsicanao e deslocada como imnressora^de-ritmo-ao processo^pr^Htrtivo,apesar—dp motgr^ reduzir o tempo de cevagem 'daT mandioca e onumero de trabalhadores no processo.

Na fabric a,-que-—tomo como estudo de caso, o__nume^o^.deocupagoe^ e muito mais_ amplp^que o deuma Casa de Farinha. Uti-

Page 74: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

144 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

lizo, aqui, algumas daquelas relacionadas com uma segao, a daspreusas. A etnografia=de -todas as : ttcupagoes envolvidas-no estudoestenderia.ps^pbjetivos do trabalhp nmito alem dos_Iimites .de^um"paper '. Remeto'oMeitor"ao liigar onde estas descrigoes foramelaboradas.87 Mostro, apenas, que enL unidades joroidutiyas ondepredomina a forea^de trabalho^ manual, as ocupagoes exigentes deforga, resisTencTa fisica e Habilidade manual rateiam^mais alto queas ocupagoes que solicitam menor esforco fisiccT. "Tomo, no caso,as valoragoes ocupacionais concedidas pelos trabalhadores que exe-cutam as fungoes da segao das prensas,

As ocupagoes das Casas de Farinha tambem foram avaliadaspelos que ~ali trabalham. Foi-lhes oferecida "a" ocupagao de carregarmandioca da roga para a casa de farinha como ocupagao padrao,detendo o valor de 10^ para avaliagao dos outros trabalhos quecompoem a^farhiliada. "As outras ocupagoes foram entao rateadas,usando uma tecnica desenvolvida por Robert Hamblin. As media-nas de todas as avaliagoes foram entab obtidas: Os resultados abai-xo referem-se aos tres criterios de julgamento que foram apresen-tados aos avaliadores.

Obtivemos rateios nao somente em Casas _de Farinha, inastaxnbem em outras "unidades produtivas. Apresento em seguida asayaliaspes ocupacionais de 16 atividades em_ uma segao da Cera-mica...Grande. Podemos cozaparar as avaliacoes elaboradas dentrode uma segao.

Nesta fabrica empreeuei o procedimento de apresentar aosJ. C* J- -"T—,,,„, ,L M i -..

avaHadoreg uma lista com todas as ocupa§5es de fabrica, que de-monstrou ser demasiadamente extensa. Houve necessidade de redu-zi-la, para tbrnar operacional utifiza-la em um questionario. Comohavia muitas ocupag5es que poderiam nao ser do conhecimento detodos pelo pouco contato possivel devido a divisao do trabalho e es-pecializacao na Ceramica Grande, ofereci, ao lado da lista maior deocupagSes, uma relagao reduzida. A aplicagao do^questionario en-volveu um consideravel trabalho, uma vez que ^a^tecnica de_apre-sentagao das perguntas exigia jjue_^aj^cupasoes fossem apresenta-das aos entreyistados^ em prdem aleatoriaXAlem disso, era necessarioensinar ao ayaliadpr jcomo_efetuar_ as estinaatiyas_nuniericas, atra-ves de um metodo de avaliacao dasjdistancias entre varios pontosdispostos ;em uma paginate" randomicainenfe) apresentados, tomari-do-se uma medida de referencia. A***ordem aleatoria, segundo oem ;

3' "The Impact of Industrialization on Women's Work Roles in Nor-theast Brazil", op. cit. e "Divisao do Trabalho, Tecnologia e Estratifica-520 Social", op. cit.38 Robert Hamblin, op. cit,, pp. 435-440.

I V

Q.

ASSOCIA£AO DAS TECNICAS 145

QUADBO 1}

MEDIANA DOS sRATEIOS' DAS ATIVIDADES NA .CASA DE FARINHASEGUNDO O CONHECIMENTO QUE A OCUPAgAO REQUER, A

IMPORTANCIA QUE TEM E A DIFICULDADE QUE APRESENTA *

ATIV WADE

Sexo quea desem-

penhaConheci-

mentoImpor-tdncia

Dificul-dade

1. RapHf - Mulher

2. Peneirar

3. Enxugar

4. Botar goma no sol

5. Tirar agua nacacimba Homem

6,00 8,00 8,00

MulherHomem

Mulher

Mulher

6,00

6,00

8,00

8,00

9,00

7,00

7,00

7,00

7,00

8.00 8.00 10,00

v. f^paiinai uiiuiui uw

na roca

7. Lavar

8. Cevar

9. Prensar

10. Torrar

tHomem

Mulher

MulherHomem

Homem

Homem

9,00

10,00

10,00

10,00

16,00

10,00 j

^— — — — '10,00

10,00

10.00

15,00

9,00 "'

10,00

10,00

10,00

15,00

* A i-ir-im!ii-5n fnTnnHn rnmA n;iHran narn inlr»5miaritf4 fr*i a de CaiTesauOr OC matl-

dioca da roca para a casa de farinha, com o valor 10.

Page 75: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

146 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

construtor do metodo diminuj^ as chances de erro, que decrescemtambem pelo ensino da forma "de avaliagao. Qutra tecnica de redu-caojie^rrpss..cpnsi5te n extragao de medianas das estimativas. tJspsmais sofisticados do metodo empregam media geometricas das_ ava-liacoes. Uma "das dificuldades de interpretacao dos dados consiste no

; privilegio que o metodo proporciona as representaspes do jiomemxfmediano. e nao as representacoes coletivas, referindo-me ligeiramen-

f iiiLu_ _. >-n»r ' ? r p^eoi a—-Sc- _- -- - *-«™i="- . -«' „-

•J*Je a polemica desenvolvida por Durkehim com yuetelet.As estimativas das ocupagoes foram feitas tomando o traba-

lho de ajudante de mecanico com o valor de 10, como medida pa-drao basica. Foram obtidas avaliacoes com os fnesmos criterios aci-ma referidos com relagao as ocupagSes da Casa de Farinha. Paraa dificuldade das tarefas, contudo, foi apresentada uma lista am-pla, que nao analisarei neste trabalho. Tpmarei aqui a jjnpoitanciadas ocupagoes. Tanto com relacao a utilizacao"deste criterio, quan-to com relacao ao conhecimento exigido pelas ocupagoes foi apre-sentada uma lista menor referente apenas as tarefas que faziamparte do ambiente da secao.

O Quadro 2 esta_5comppsto-na_o_ap£nas!1pclas_ medianas das ava-fliagoesocupacionais, como tambem por doj^ julgamentos^esvian-tes que considerei caracteristicos de um grupo minoritario e im-portaute. Achei necessario inclui-los no quadro para efeito^de^com-paragao^e^de interp^gtacao jos dsidoSj. Percebi "que-^asicfcupu^esco^°alta estima tem^a ver com Q^cpntrole da^fabrica. As ocupagoes.femininas eram,,em niimero de tres: uma^delas teve o .tateio,.baixo, as outfas "diias^tiveram"o-mesino valor que o carrcto de mas-sa e ligeiramente" acima do ajudante de limpeza.

A estrategia de mensuracao que empreguei esconde ^ariacoesque sao incorporadas na_categoria.jdeMgrro. Ao lado da norma, tomeid"desvi6, isto™e, algumas das variagoes escondidas, pois um oamedas avaliacoes individuals nos permite compreender melhor n iia-tureza dps valores que foram consignados as atividades da secao.

^_— „ ^ Relembvemosde acordo com um trabalhador industrial, dantes vaqueiro, e

depois carregador, o trabalho mais importante da fabrica era o .icle,frabalhando no pesado, pois isso era o que punha a fabrica parafrente. Afirmando, ainda, que os trabalhos "maneiros" qualquerum fazia, mas que ninguem queria saber de pegar ao pesado.Dentre os 46 entrevistados da secao das prensas,\10 avaliaram o

39 Emile Durkheim, Le~"SuiciaeT'op-.~cit:'l"pp. 337-344.

A AssoaAgSo DAS TECNICAS

QUADKO 2

147

( MEDIANA DOS RATEIOS DAS ATIVIDADES NA SECAO DE PRENSAS FIA» 'CERAMICA GRANDE, SEGUNDO A IMPORTANCLA--QUE A OCUPACAO

TEM, E DOIS DESVIOS TtPICOS ELICLESB.OS POlCyMAvREPRESENTANTJaDO SEXO FEMININO E' UM JDO MASCUDINO •

1.

2.

3.

4.

"N 5_

6.

7.

8.

f 9 .

/10.v.

ill.;12.

13.

14.

15.

16.

AT tV WADE

Peneirador

Classificadora deplaquetas

Retificador

Encarregado delimpeza

Ajudante de reti'fica

Carregador de massa

Encaixotadeira

Pegadora de ladrilhos

Prensista da prensa 5

Prensista da prensa 8

Prensista da prensa 11

Prensista de caixa

Auxiliar delabor atorio

Supervisor ouencarregadode secao

Supervisor dodepartamentode producao

Diretor industrial

Sexo quea desem-

penha

Homera

Mulher X^

Homem

Hcmem

Homem

Homem

Mulher X

Mulher y

Homem

Homem

Homem

Homem

Homem

Homem

Homem

Homem

tfVW&Impor-tancia

8,00

8,00

8,00

9,50

/ 10,00s!

10,00

10,00

10,00

10,00

10,00

10,00

12,50

12,50

13,50

15,00

17,00

-i f

DesvioTipico

Feminino

30,00

15,00

20,00

30,00

25,00

10,00

-20,00

-50,00 |-

15,00

30,00

40,00

35,00

30,00

30,00

35,00

35,00

DesvioTipico

Masculino

15,00

15,00

10,00

15,00

12,00

20,00

12,00

& 100,00 <•

12,00

20,00

20,00

20,00

15,00

12,00

10,00

10,00

* A ocupacao que foi apresentada como padrao de julgamento foi a de ajudantede mecanico, com o valor 10. -

Page 76: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

148 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

trabalho de carregador como tendo importancia igual ou superiorajlo diretor^ii^Wial,r Osi ".dados, contudo levam-nos mais alem.

JegesVram homens e quatro.mulheres. Observe-se que umaocupasao feminina tambem apresenta desvio da mesma natureza. Aoeupagfio de pegadora de ladrilhos registrou 18 valores (11 dadospor mulheres e 7 por homens) que a ratearam igual'ou acima^ade diretor industrial. A razao variava de 1:1 ate 10:1. Isso naose deve somente ad fato de ser essa uma ocupagao feminina,-poisuma outra ocupagao executada apenas por mulheres, a de encai-xotadeira, apresentou apenas 7 avaliacoes que a ratearam igual ousuperior ao diretor industrialwA exphcagao, a meu ver, deve-se ao'alto risco que a_ocupacao apresenta em; texixio^~Q£ ~acident.es. Este!'seria um outro lado do culto do corpo relative ao sexo feminine, jneste caso. A

J*-"-MC^^

Pode-se apreciar como^as hipoteses extraidas das entrevistast^. . _.-_ - - _ . ~,^— ^.• '-O^ii-#: '='-^-'Jjr-' ^-=c--1^" ^ f— --• •—: —^ -" •• - - - " ' -

quajitatiYas foram padronizadas em diferentes_unidade_s^.produtivascomponentes^de diferentesjiormas.de. brganizagao _spcial da produ-gao. Outfa maneira de tornar possrvela geueralizagao^dos^resulta-

MEDIANAS DE AVALIAC^ES DAS OCUPAQoES^ ^COMUNS AS TR£S EMPRESAS

123

4

567

8

9

Ocupacoes comuns astres empresas*

— Preparador de barro~™~—— Transportador de barro~-—— Arrumador do material

para secagem— Pegador do material

moldado— Foguista— Enfornador— Carregador do material

para enforna— Graduador do barro

nas maquinas— Supervisor

Olaria

—3,00~——-—I-25

7,00

3,507,008,50

3,00

——

CeramicaPeguena

27,5026,25

15,00

9,5032,5020,00

20,00

25,0030,00

Ceramica. Grande

10,0012,50

10,00

15,0012,0020,00

12,00

10,0015,00

Ocupasoes 8 e 9 existem apenas nas ceramicas. As avaliacoes dasocupapoes 5, 6 e 7 da Ceramica Grande foram emitidas por trabalha-dores da secao de fornos reversi'veis.

A AssociAgXo DAS TECNICAS 149

r"J"'-is.I i

dos consiste em comparar as avaliaeoes^efetuadas ._em unidades pro-,dutivas dos mesmos produtos em modos de produgaq diferentes.-^o"cas6 das wupacoes envolvidas na mamifatura de telhas e tijolosem uma olaria g=jima_fabrica^ situadas em uma fazenda, a seme- ^^lhanga de uma"plantacao, e uma ceramica maior, uma sociedadeanonima com capital local e que recebia incentives fiscais do Es-tado.

QUADEO 4

OCUPACOES CUJO GRAU DE UTILIZACAO DE TtiCNICASVARIA DE EMPRESA PARA EMPRESA*

CO*

f Razao das Avaliagdes

Ocupacoes Olaria Ceramica Pequena Ceramica Grande

2— 0,41

1 ,

4— 1,16

1

8

— —1

9

— —1

0,95

0,34

'0,90

1,09

1,25

1,50

1,00

1,50

Preparador de barro (1); Transportador de barro (2); Pegador do ma-terial moldado (4); Graduador do barro nas maquinas (8); Super-visor (9).

Uma an^ige^^as^cupa^ei^cjomuns atraves da comparasapjen-tre 'Ucsiuniiiau.os produtivas revela cruet \^^-1 a^.cu|^t^iicia_jslitre_^Q^estima das*^pcupaQ5es aumenta com a introducao de tecnologia;((Bjjalgumas ocupagoes^jimmuem de estima com a introduc.aode tecnologia, em outro lugar demonstfeL,que estas ocupa^oes pas-sam a ser executadas por menores;40 CjQCj^ ocupagoes que exigem

*> Neuma Aguiar, "Divisao do Trabalho, Tecnologia e EstratificacSoSocial", op. tit., pp. 121.

Page 77: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

\

150 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

maior conhecjmento^tecnico aumentam.de estima; ^('ITj) f ungoes desupervisaa tambem^ aumentam^de estima. As cpmparagoes entreocupagoes^foram realizadas tomando como referenda um!T~ocupa-gao suja que e a deLprepar^^fcang. Observe-se todavia que a com-plexidade deste trabalho tambem varia de uma unidade produtivapara outra.

Em resume^_esjes^achadp§^ci^jKrm.aiiam. os.,- pressupostos ted-ricosdicitados mais acima, nao fora a especificagao possjyel, esta-belecida por este trabalho, de <nie~>formas de cooperacao e o empre-

V "• " „" ' " ' ej**^— —"^SiL A - - _'• ._.'IVt-' g^r-r: *_•*-!•"''JSamBtmj.g. ._. -.*-

go de^tecnqlogiap^denQserrando_difgrenteg jiierafquias ocupacipnaii°~de acordo com o lugarda forgade Jrajbalhor^Estas ^articulagoes sao, no presente estudo,emnresa dpmestica) vinculada a^ area rural, como a Casa de Fari-nha aqui descrita, o a^esanato^tambein ligado a fazenda, como aolaria do presente estudo,^.fafe^^sjtuada na fazenda que a apro-ximada-"p'Za7i(at£o/i, embora corn o qualificativo de que o barro nao

a.^e a^Cefamica Grande, dentro da caracterizacao da graiM":~* •^*^r •""•' ••ii"""^ ' * ^Li.jtf'*^qe induggia^jcapitali^a. Todas constituem formas de combinagao

com distlntos sistemas*~aejre as ocupagoes. A analise da coexistencia entre elas, e do lugar )

cada /uma delas, principalmente aquelas que sao comuns as distintasjformas de organizagao social da produgao, pode ser feita gragas a Icombinagao ,de uma estrategia artesanal ^ industrial de investiga-'gao. / " "**

Conclusoea,?*™^~***.

De acordo com o modp de produgao.,...articulam-se diferentes moda-lidades^dte estratificagao social, o que pude revelar atraves de umaestrategia comum de analise da estima das ocupagoes. Esse fatoleva a questionar conclusoes obtidasjpa£tindo de surveys genericos,que nao consiHeram a estrutura de producao onde as ocupacoes seT. .^^""--VZSESK——••"• '*•''- -• ---—.-•,-'-•--« ..-*,! i_ - =aa . ^ .

inserem., Aca"tanqx>so"contexlo, efetuei Bgrguntas-sobre-a-estruturaocupacional que

*ode-se, todavia, indagar sobre a particularidade dos dadosaqui apresentadqs. Nao seria a coexisTencia~~dos modo^ de produ-gao uma anomalia que o tempo daria conta? Nao seria, por outrolado, uma situagao especifica do Cariri? Uma excepcionaUdadehistorica ou etnografica sem maiores consequencias em termos daestrutura mais ampla, em nivel extra-local? Tempo no Cariri e aminha prdpria memoria, e a de meus pais, e a de meus avos, e a

poovVLuo.^: \ \

A AssociAgSo DAS T^CNICAS 151

dos que vieram antes deles. A memoria nos mostra a velhice daexperiencia industrial no lugar, e a igual antiguidade destas ou-tras formas; casas de farinha, olarias, fabricas em fazendas e ou-tro numero sem fun de atividades similares.

A identifjcagao^de formas. diferentes de, organizasao^social^daprodugao permite analisar as^^iculdades^geradas-pelo carater^daindustrializagao. A grande indiistria capitalista (wnpSa* as distant 7cis sociais enl^ jd^erejites_ ooipacpes, que podem ser apreciadas \p'ela^compa^gao sistematicaCentre atividades comuns de diferentes Vumdailes produtivas utiUzando tecnolpgias diversas que vao desHe ja^ exeeugaeT"manual das tarefas ate um alto grau de controlo tla \naturez&^gela Itecnica. 0 estudo realizado de modo comparativo ^r

permite, a_generalizacao.~* 0 ^trcpproblema sobre a excencionalidade historica de uma

dada regiao perm^uMe~ em aberto. (J afeto ainda coloca""aquelaafea™e"n"tfe"; as impares™na^minha experiencia, ensinando-me, porexemplo, a quesUmai..a^modaUdades correntesjle estudo que fa-zem pouco uso de teoria, utilizando categorias muito genericas, porvezes residuals, de anaHse, em lugar"He^procurar dar "melHof" contadas modalidades de organizagao social da producao, atraves de umes^[r5p_de__espedficagao. Refiro-me agora aos estudos sobre o Iraba-Iho em regioes metropolitanas, onde as tarefas de construgao so-cial da realiaa^e~aJ^labofagao de sinleses como a proposta porMauss 'sobre o ]£jio^ 'social total tornan>se_mais_ compjicadas, po-rem nao menos enriquecedoras que a experiencia de pesquisa quefiz no Caririr ~"" "'""

Page 78: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

II

RECONSTRUgAO DE PROCESSOS DECIS6RIOS;A ANALISE DO PASSADO RECENTE

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Da Ignorancia Especifica (ou daEstetica Sociologica)

EDMUNDO CAMPOS COELHO

Em 1975 participei de um estudo interdisciplinar sobre plane ja-mento urbano na dupla fun^ao de diretor de projeto e pesquisador.1

Antes de prosseguir neste relato, devo confessar que na epoeaera absoluta minha ignorancia sobre o tema da pesquisa. Entre-tanto, uma conjungao de fatores, dentre os quais uma desconcer-tante e incomoda carencia financeira nao era dos menos importantes,levaram-me a aceitar a responsabilidade pela conducao do projeto.Menciono o fato apenas para iluminar este raconto com o esclare-cimento de uma circunstancia que, generica e prosaica, raramentee admitida por essa curiosa especie constituida pelos cientistas so-ciais.

Seja como for, do momento em que assumi ambas as fungoeso eventual sucesso do projeto passava a depender da resposta quepudesse encontrar para a seguinte questao: como colocar a igno-rancia a servigo do conhecimento? E certo que a ignorancia ppdeas vezes funcionar como estimulo para a busca de conbecimento,e na literatura sociologica existe ate mesmo um trabalbo que ver-sa sobre as funcoes sociais da ignorancia. Eu o li a procura deconforto e orientacao, mas infelizmente o argumento dos autores

1 Dimensoes do Planejamento Urbano (Rio de Janeiro: Convenio MJN-TER-IUPERJ, 1975). Participaram da equipe interdisciplinar Maria Apa-recida Aives Hime, Elisa Mendes de Almeida, Almir Femandes e Al-varo Pessoa. C^da um deles terd sua versao propria do projeto e da ex-periencia de pesquisa. Nao sao obviamente responsaveis pelos conceitos,avaliacoes e opinioes aqui emitidos.

Page 80: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

156 RECONSTRUgAO DE PEOCESSOS DECISORIOS

nao se apHcava ao meu caso. De qualquer forma, a solugao eu naoa encontraria em dissertacoes teoricas, mas na pratica.

Este artigo, incidentalmente, trata dessa experiencia parti-cular e constitui um honesto esforgo de justificacao a posteriorida ignorancia. Para ser precise, nao de qualquer ignoraucia, masdaquele tipo ao qua! nos referimos ao dizer: "sou ignorante nesteassunto", ainda que tal assertiva possa realmente se aplicar a umavasta gama de assuntos. Mas utilizando uma formula corrente nosescritos sociologicos, digamos que este ponto e irrelevante para ospropositos deste trabalho. Chamemos, pois, de ignorancia especi-fiea a tal tipo, notando, todavia, que sua dimensao mais caracte-ristica esta no fato de so admitir um valor. Ou seja: e ignoranciaespecifiea, mas absoluta.

Na epoca, diga-se de passagem, eu nao teria tidel o destemorde admitir com tal candidez de espirito a posse de tao criticavelestado de carencia. O mais provavel, e tambem o mais correto se-gurido as normas de boa conduta profissional, teria sido que dis-sesse: "este assunto nao e minba especialidade"'. Com o que teriasugerido ao meu ixnaginario interlocutor a posse de conhecimentoespecializado e abissal, provavelmente de natureza esoterica, aomesmo tempo resguardando a comunidade de sociologos das sus-peitas de incompetencia generica. Pois a especializagao nao impli-ca em que os sociologos nao possam penetrar no mercado das ideiasgerais e usufruir dos abnejados espagos nas paginas do JB (sobre-tudo, Caderno Especial dos domingos), das revistas semanais (Vejae Isto ;£, em ordem variavel) e, por que nao, de horarios nobresda televisao (Jornal Nacional e Fantdstico, nesta ordem).

Faco aqui uma pausa para confessar um artificio. Ao erigira ignorancia especifiea e absoluta em legituno tema de disserta-cao sociologlca, virtualmente em categoria metodologica, atribuo-Ihe um certo status cientifico que me permite discutir a minhapropria num piano elevado. A epoca da pesquisa, entretanto, talrecurso nao me ocorrera, causando-me alguns dilemas. Ora, se-gundo todos os canones da boa metodologia cientifica, a ignoran-cia especifiea e absoluta •— na verdade, qualquer tipo de ignoran-cia — nao permite a escolha de qualquer metodo ou tecnica deinvestigacao na medida mesma em que algum conhecimento previosobre o objeto do inquerito e condigao necessaria, ainda que nao su-ficiente, para a correta decisao metodologica. Traduzindo: existeuma correlagao positiva e alta entre ignorancia e ausencia de meto-dologia, o que era exatamente meu caso. Pode-se ver, pois, quaocritica era a situagao, e o melhor a fazer era mesmo ir a campoe iniciar os trabalbos de uma forma ou outra.

DA IGNORANCIA ESPECIFICA 157

numAs oito horas de tuna manna de sol carioca embarcamosjato da Cruzeiro, eu e a asslstente de pesquisas, tambem ela por-tadora da mais genuina ignorancia especifiea e absoluta.

0 Projeto

Em 1975 o Ministerio do Interior (MINTER) contratou aoInstitute Universitario de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)um estudo sobre o planejamento urbano de Curitiba. Aparente-mente, este era um caso unico de planejamento bem sucedido ajulgar pelos depoimentos de especialistas que a imprensa cariocadiariamente veiculava. Curitiba transformara-se de subito no pa-radigma da "cidade humanizada" com seiis metros de area verdeper capita, ruas de pedestres, equipamentos de recreagao e lazer,transito disciplinado e sistema de transporte de massa a fluir porvias urbanas hierarquizadas, projetos culturais e -o mais que seja.Tamfcem os "intelectuais ecologicos" nao se furtavam as compara-coes entre o paraiso curitibano e o inferno carioca, fazendo preverseu exodo em massa, o que teria provavelmente ocorrido naofosse pela impossibilidade de transplanter para o Parana pelo me-nos o caos da Zona Sul do Rio de Janeiro.

Para a equipe de pesquisa a tarefa era a de formular umaexplicagao convincente para tal sucesso. Que fatores fizeram deCuritiba tun caso bem sucedido de planejamento urbano? E comoesta experiencia poderia ser aproveitada, pelo menos de modo in-dicative, para a elaboragao e implementacao de pianos em outraslocalidades urbanas?

Ve-se por ai que o projeto era, rigorosamente, um estudo decaso. Nao era, por outro lado, "academico". Foi-Ihe dada uma co-notagao pratica no sentido de que o produto final deveria supos-tamente center orientacoes para politicas de planejamento. Naohavia o proposito de testar hipoteses teoricas, nem se imaginavaque dok estudo se extraisse uma teoria sobre planejamento urbano,Nao admira, pois, que o projeto nao tivesse despertado o minimointeresse entre os professores do IUPERJ, e tivesse consideravel re-pulsa entre os estudantes por sua "impureza" — em varies senti-dos — e pragmatismo.

A semelhanga de outras agendas piiblicas que financiam oucontratam pesquisa, o MINTER solicitou a apresentacao de umaproposta que detalhasse o projeto. Este documento foi elaboradonuma linguagem tao abstrata que serviria tanto para o casoCuritiba" quanto para o de Bom Jesus do Galho. Dissertava, emaltos voos teoricos, sobre o "sistema" urbano e os "subsistemas

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juridico, administrativo, tecnico e politico. Referencias ligeiras autilizagao de entrevistas e a analise de documentos constitulamsua parte "metodologica". Em suma, era um bom documento. Eao aprova-lo os tecuocratas do MINTER subscreveram, sem o saber,a premissa boje plenamente confirmada de que a qualidade d(=uma pesquisa nada tern a ver com, por exemplo, a metodologiaproposta, mas com a metodologia elaborada ao longo da execugaode um projeto.

A Conexao Burocrdtica

O prazo para a entrega do relatorio final foi fixado em dozemeses a contar da publicagao do convenio no Diario Oficial. E asparcelas de pagamento seriam liberadas somente apos o recebi-mento e avaliagao tecnica de relatorios parciais trimestrais. Istoimplicava em viagens a Brasilia e em desconcertantes encontroscom a tecnocracia ministerial para liberacao das parcelas.

Ainda tenbo vivido na memoria o cenario de um amplo ga-binete e a figura de um tecnico ministerial que sentado numa pol-trona defronte a minba folheava com inquietante rapidez os rela-torios parciais. 0 exame mais prolongado consistia quase sempreem fechar o volume e avaliar de varies angulos a sua espessura,sopesa-lo numa das maos como se na outra estivesse um gordo che-que. Era esta a prova da balanga que, segundo parecia-me, incli-nava-se sempre, na mente teenocratica, ao peso do imaginadocheque.

Esta nunca era uma avaliagao definitiva, embora nunca te-nha sabido por quais outros gabinetes passava o fragil produtode nossa sapiencia ou por quais outras sensiveis maos era ele so-pesado. Entretanto, e para manter a linha de honesta sinceridadedeste depoimento, ficou-me sempre a impressao de que a despeitode todo este ritual jamais os relatorios foram lidos por quern querque seja no MINTER. Na verdade, continua a ser um misterioinsondavel as razoes da contratacao do estudo que jamais foi di-vulgado sob qualquer forma. Simplesmente perdeu-se no labirintotecnocratico.

A Equipe

A equipe de pesquisa foi se formando aos poucos. Primeiro,o diretor do projeto, um sociologo, e a assistente com pos-gra-duacao em ciencia politica; depois, um arquiteto-urbanista e umadvogado com interesse em legislagao sobre usos do solo e relacoes

DA IGNORANCIA 159

entre niveis de governo; e finalmente, uma geografa com expert-encia em estudos de regioes metropolitanas. Com excegao do dire-tor do projeto e da assistente, que pertenciam aos quadros doItJPERJ, os demais iriam se encontrar pela primeira vez no decor-rer do projeto.

Embora as razoes, na epoca, tivessem sido outras, o fato deque a incorporagao de todos os pesquisadores nao tenha se dadode uma so vez facilitou o trabalho de coordenagao. Apenas quan-do um determinado aspecto da questao tornava-se relevante ou re-corrente decidia-se pela incorporacao do pesquisador competentepara aborda-lo; sua assimilagao ao grupo tornava-se mais facil, senao por outras razoes pelo fato de que encontrava uma situacaomais estruturada em termos de informacoes ja coletadas. Era-lhegeralmente solieitado respostas a questSes formuladas com base BOconhecimento ja adquirido, para o que colocava-se a sua disposi-cao os recursos necessarios e toda a "memoria" da equipe. Esteprocedimento nao planejado resultaria, sem que qualquer de noso desejasse conscientemente, em que as linnas basicas da pesquisa,a orientagao geral do inquerito e as enfases fossem definidas e bie-rarquizadas segundo a ordem de incorporagao dos pesquisadores aoprojeto. Sucessivamente, ao se incorporar a equipe, cada um delesja encontrava terreno mapeado, questoes formuladas e outras jarespondidas, decisoes tomadas; enfim, etapas ja vencidas que naocomportavam reformulagSes profundas sob pena de atrasos irreme-diaveis nos cronogramas.

Os relatorios parciais tambem serviram como um importanteelemento de coordenagao. Este tipo de documento e normalmenteconsiderado pelas equipes de pesquisa como um estorvo impostopelo cliente para efeitos de acompanhamento e avaliagao. Sua ela-boragao consome tempo precioso e o conteudo e, pela propria natu-reza do documento, pouco sistematizado e articulado ja que as in-formacoes sao ainda incompletas, algumas ate mesmo incorretasnas etapas iniciais do inquerito. Em sintese, relatorios parciais naoconstituent base adequada para avaliagao dos estagios da atividadede pesquisa, muito menos para prognosticos sobre resultados finais.Podem ser, todavia, um instrumento eficiente para coordenagaointerna das equipes.

No estudo do "caso de Curitiba" a elaboragao dos relatoriosparciais era uma atividade particularmente absorvente dada a di-versidade de enfoques disciplinares. Para que o documento naoresultasse numa colcha de retalhos mal alinhavada, numa merasoma de contribuigoes individuals, era necessario um esforgo con-sfderavel de integragao de perspectives. A redagao desses documen*

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tos, tanto quanto a do relatorio final, ficou a cargo do diretor doprojeto. For ai ja se alcancava certa homogeneidade de lingua-gem, o que exigiu nao raras vezes discussoes preliminares comcada especialista. Estabelecer os elos entre as contribui9oes indivi-duals com o proposito de dar unidade a cada documento requeriaum trabalho continue de "tradugao" de perspectivas, de interpre-tagao de intencoes e significados, um dialogo permanente ao qualnao faltou ate mesmo certo esforgo de persuasao. Mas elaborado orelatorio parcial, tinhamos um ponto de referencia objetivo paraorientar a reflexao critica e as fases seguintes do projeto. Surpre-endentemente, cada relatorio parcial integrava-se facilmente comos anteriores de tal forma que o perfil do relatorio final ia se de-senhando progressivamente.

Ainda que a epoca o fato nao despertasse minba atengac,parece-me hoje que houve uma excessiva ceniralizagao no cargodo diretor. Creio que foi algo inevitavel, sobretudo porque os pes-quisadoresj com excecao do diretor e a assistente, nao eram mem-bros do IITPERJ, exerciam atividades profissionais em organiza-$oes diferentes e nao podiam nem mesmo comparecer diariamentea sede da pesquisa. Nao foram freqiientes as reunioes de toda aequipe. O procedimento normal, que surgiu espontaneamente,consistia em reunioes do diretor com cada pesquisador, oportuni-dade em que eram debatidas tanto a contribuic.ao individual, soba forma de minutas de trabalbo, quanto aspectos gerais do pro-jeto e orientagoes a seguir no trabalbo subsequente de cada um.Ocasionahnente, outros debates paralelos eram realizados entre aassistente e os pesquisadores. Na verdade, aquela se tornara umelemento central da equipe pelo conhecimento detalhado de todosos aspectos do projeto e contribuic,oes sempre pertinentes a ana-Use dos dados e informacoes.

A avaliacao retrospectiva da forma pela qual a equipe se es-truturou e operou sugere algumas observacoes adicionais, aindaque formuladas de uma perspective muito pessoal. Por cxemplo,se a centralizacao a que nos referimos foi em ampla medida ine-vitavel, nem por isso deixou de refletir a inexperiencia da equipeem varies aspectos. Por exemplo, ficou explicito em diversas oca-sioes que os pesquisadores "delegavam" ao diretor uma margemexcessiva de arbitrio na conducao do projeto sob a alegagao deque nenhum deles tivera qualquer experiencia previa em pesquisa.Por verdadeiro que fosse o argumento, resultou na pratica em re-ducao excessiva do grau de participagao e envolvimento dos pes-quisadores, sobretudo ua parte relativa a integracao e unificagaodas contribuicoes individuals. Reunioes mais frequentes da equipe

DA IGNORANCIA ESPECIFICA 161

teriam promovido uma participagao mais efetiva dos especialistasno processo de "tradugao" de enfoques, um esforgo mais delibe-rado de apreensao das varias dimensoes analiticas do caso em es-tudo. Em sintese, teria sido evitada ou reduzida a predominantda "visao de tunel", excessivamente especializada, das contribui-goes individuals. Tal como se fez, era inevitavel a enfase nas di-mensoes sociologica e politica do "caso de Curitiba", menos porforca de uma orientagao propositadamente imposta pelo diretordo que por sua inabilidade e inexperiencia na condugao de umprojeto interdisciplinar.

A incorporagao simultanea de todos os pesquisadores na equi-pe teria provavehnente contribuido para a integracao mais har-moniosa dos diferentes enfoques especializados. Os custos desta al-ternativa teriam sido, todavia, muito altos dado que a primeiraetapa da pesquisa deveria ser, por necessidade, exploratoria, demapeamento de questoes, de prospecgao in loco de possibilidades.Do orgamento constavam recursos para determinado numero deviagens a Curitiba, mas a alocagao das cotas entre os pesquisado-res implicava em certas decisoes estrategicas. Se reunissemos aequipe de uma so vez ou nos piinhamos todos a viajar, com bre-ves intervalos entre um pesquisador e outro, com o que regressa-riamos com diferentes fatias de informacoes superficiais e desco-nexas, ou destacariamos um de nos para um levantamento pre-liminar intensive e aprofundado, com o que o restaute da equipeficaria ociosa. No primeiro caso, corriamos o risco de esgotar ra-pidamente nossas cotas de viagem na fase meramente explorato-ria e com resultados de valor questiouavel; no segundo, pagaria-mos salarios virtualmente por nada. Em ambos os casos, os custosde manutencao de toda a equipe seriam altos e nao prometiamretorno satisfatorio. Tudo isto talvez nao constituisse problemaserio nao fosse pelo fato de que nao tinhamos como prever, mesmoaproximadamente, a durayao da fase exploratoria por absoluta ca-rencia de conheeimento sobre o "caso de Curitiba". Desta forma,nao havia como promover reunioes preliminares para definir oque explorar no trabalho de campo nesta fase inicial, e distribuirtarefas. Simplesmente nao tinhamos nada para debater e discutir.

Decidi, assim, constituir uma expedigao exploratoria a Curi-tiba da qual participavam eu e a assistente. E verfamos depois oque fazer.

0 Trabalhs Inicial de Campo

Quando desembarcamos no aeroporto de Curitiba tomamos na-turalmente a linica decisao que nos ocorreu: a de procurar acomo-

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162 RECONSTRUgAO DE PROCESSOS DECISORIOS

dagoes num hotel. Decisao tao prosaica em terra estranha deu-nos,entretanto, uma reconfortante sensagao de competencia e tratamosde implementa-la com a maior gravidade.

Haviamos, no Rio, tentado obter atraves da representagao dpEstado do Parana qualquer material sobre o planejamento urbanoHe Curitiba. Tudo que conseguimos foram publicagoes grafica-mente perfeitas, mas absolutamente inuteis como fonte de infor-magoes tecnicas. No SERFHAU sabiam menos do que nos, o queera surpreendente dada a natureza deste orgao. Tentamos outrasagencias que a logica e o bom senso — e, depois, o desespero —indicaram como provaveis informantes: BNH, IBAM, IBGE, etc.Uma importante experiencia de planejamento urbano, amplamentedivulgada na imprensa diaria, estava em plena execugao e nin-guem, nenhum orgao publlco com atuagao ou responsabilidade di-reta ou indireta na area sabia coisa alguma a respeito.

Ja no hotel, decidimos- seguir a via mais simples e obvia deinvestigagao. Simplesmente transferir aos agentes locais encarre-gados do planejamento da cidade a questao que o MINTER nospropusera como tema da pesquisa. Teriamos, desta forma, um pon-to de partida concrete, pelo menos uma versao sobre a qual pu-dessemos iniciar o trabalbo. Comegariamos por entrevistar algumaspersonalidades oficiais cujos nomes estavam em destaque na im-prensa carioca.

Aquela seria certamente uma versao oficial dos fatos. E se-gundo principio de fe vigente entre sociologos, o que e oficial sera,para dizer o minimo, menos fidedigno do que informagoes ou ver-soes provenientes de outras fontes. Esta "dimensao conspiratoria"na metodologia supoe a premissa de que, ate prova em contrario,os individuos, sobretudo os que ocupam posigoes de poder e auto-ridade, estao predispostos a mentira, ao cinismo, ao servigo de in-teresses escusos e a distorgao premeditada dos fatos, tudo isso emcontraste com o idealismo, a pureza de sentimentos e o amor averdade que caracterizam os sociologos. Desta forma, um atestadoinequivoco de competencia metodologica consistiria em descobrirnuma entrevista a dimensao "oculta" dos fatos que seria quasesempre de natureza conspiratoria: inverdades, sofismas, ansias depoder, transagoes ~' ambiguas e outras miseries, Tal procedimentonada tem a ver com a utilizagao da duvida sistematica como prin-cipio metodologico ou com o emprego legitimo de tecnicas paraafericao de validade de informagoes.

Seja como for, nao tinhamos outra alternativa a nao ser a detomar como provisoria a versao oficial sobre os fatores do sucessodo planejamento urbano de Curitiba. Alem dessa questao, e para

DA IGNORANCIA ESPECIFICA 163

,.„„ expor nossa total ignorancia sobre os fatos, incluimos umaoutra que certamente superou nossas modestas expectativas: o queos entrevistados pensavam sobre o Piano Agache? Por esta ne-nhum deles esperava! E somente quem estivesse muito bem infor-mado poderia mencionar um Piano formulado na decada dequarenta!

Tomamos conhecimento deste Piano Agache — mas de ne-nhum dos seus detalhes tecnicos — de maneira inteiramente for-tuita. Lendo sobre a pesquisa num dos jornais do Rio, procurou-nos um cavalheiro que tomando-nos por consultores de planeja-mento viera sondar as possibilidades de utilizarmos os servigos*de sua firma que participara na formulagao do Piano Agache.Esclarecido sobre o equivoco, deixou-nos algumas folocopias de de-senhos tecnicos.

Mas ao mencionarmos o Piano Agache aos entrevistados for-neciamos, sem o saber, um marco que os estimulava automatica-mente a historiar, com maior ou menor precisao e riqueza de de-talhes, o processo de planejamento urbano de Curitiba. Porque oPiano Agache fora o primeiro esforgo planejado de ordenamentofisico da expansao da cidade. Tudo o que viera posteriormentefora conseqiiencia da insatisfagao com aquele Piano, num esforgopermanente de dotar a cidade de um conjuuto de diretrizes maisamplas e eficazes para sua expansao. Descobrimos assim que eii-traramos em campo no final de uma das ultimas etapas de umprocesso que ja era velho de mais de 30 anos!

Com toda certeza, nao estavam enderegadas a este esforgo demais longa duragao as loas dos tecnicos em planejamento e dos"intelectuais ecologicos". Quanto mais nao seja porque neste pe-riodo os insucessos, as frustragSes, os erros e indecisoes foram inii-meros ao longo das administragoes municipais nele compreendidas.Para a elite bem pensante o "planejamento urbano de Curitiba"era, ao contrario, produto de uma administragao apenas, quase dalideranga de um individuo apenas, um conjunto de decis5es tec-nicas e administrativas plenas de racionalidade, Uneares no seu en-cadeamento e alimentadas por uma rara preocupacao com o bempublico, com a qualidade da vida urbana, etc., etc. Nesta percep-gao ideaHzada e segmentada do planejamento confundia-se umade suas etapas com todo o processo, transformava-se esta fase noparadigma do processo e nao ocorria a ninguem inquirir sobre oproprio processo.

Tambem os entrevistados nao identificavam o processo maislongo com o "planejamento urbano de Curitiba". No discurso detodos o planejamento fora aquilo que se fizera durante a ultima

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administragao municipal, Tudo o que Ihe era anterior compre-endia o periodo das forgas negativas, fossem estas a incompeten-cia, as egoisticas ambigoes pessoais, os interesses turvos e, sobre-tudo, a politica miiida e irresponsavel a interferir com a "raciona-lidade tecnica" dos planejadores.

Estas primeiras percepcoes foram colhidas em entrevistas gra-vadas com o pessoal mais graduado das agencias municipals diretaou indiretamente ligadas ao planejamento. Posteriormente, ao ana-lisar as t ranscrigoes pudemos verificar que, no conjunto, conti-nham uma verdadeira teoria do plauejamento, surpreendentemen-te bem articulada e consistente. Nesta primeira excursao a Curi-tiba coletamos tambem. um vasto mimero de documentos: organo-gramas da administracao municipal em varios perfodos, leis de usodo solo, relatorios de administrates, mapas de natureza diversa,seqiiencias cronologicas de dados sobre as finangas do rnunicipio,copias de alas das reunioes da agenda do Piano, etc.

0 acesso a esta documentagao foi extremamente facilitadopela receptividade de todos • as nossas solicitacoes, o mesmo suce-dendo com relagao as entrevistas. Mas apesar desta genuina dis-posicao em informar e depor, receio que as circunstancias teriamsido outras fosse o nosso projeto um estudo de planejamento fra-cassado.

Pantos de Ancoragem

Durou uma semana essa primeira incursao ao campo, De volta aoRio, iriamos digerir a volumosa documentagao e um bom numerode gravagoes. Esperavamos obter o suficiente para elaborar questoesmais precisas, entrevistas futuras mais estruturadas e, simultanea-meute, reduzir o grau de nossa ignorancia especifica.

Mas ja estavarnos convencidos da necessidade de reconstruirtao detalhadamente quanto possivel todo o processo que viera sedesenrolando desde a elaboragao' do Piano Agache. Haviamos en-contrado indicagoes inequivocas de que tal reconstrueao era essen-cial, entre elas as circunstancias da criagao do Instituto de Pes-quisa e Planejamento Urbano de Curitiba e da formulac.ao doPiano Diretor, que evoluira de um Piano Prelimmar datado dealguns anos atras. For outro lado, alguns dos personagens asso-ciados a estes e outros empreendimentos haviam deixado a cenae julgavamos necessario colher seu depoimento. Mas a razao fun-damental para a enfase na reconstrugao do processo, por contrastecom um enfoque nos seus "produtos", so nos ocorreu na medidaem que examinavamos o material coletado, sobretudo quando co-mecamos a sistematizar a "teoria do planejamento'* contida naa

DA IGNORANCIA ESPECIFICA 165

entrevistas. Ocorreu-nos, simultaneamente, a importancia da di-mensao polftica do planejamento. 0 argumento que entao elabo-ramos pode ser reconstruido da forma seguinte:

. Parece correto afirmar que o planejaraento bem sucedidosupoe no minimo duas condigoes: 1) solugoes tecnicas adequa-das- isto e, nao se constroi TUTI viaduto onde estudos indicam umapassagem de nivel como alternativa mais correta; 2) as solugoespropostas devem ser tecnica, financeira e economicamente viaveis,Estas condigoes nao surgem todas a um so tempo, mas cada gualpode requerer um periodo proprio de maturagao. Nem ha porquesupor que naja uma ordem necessaria na seqiiencia em que taiscondigoes se dao. Por exemplo, alguns pioblemas encontram solu-gao tecnica em prazo mais curto que outros e pode suceder queexistam recursos financeiros para a implementagao de algumas so-lugoes e nao outras. Em sintese, a ideia •— inteiramente novapara nos — era a de que o planejamento e um conjunto de de-cisoes e acoes tomadas e implementadas ao longo do tempo, cadaqual ao tempo de maturagao das condicoes que as tornam possi-veis e sem um ordenamento necessario da seqiiencia, embora possasuceder que uma decisao ou agao na cadeia constitua condigaopara outras ao longo do tempo. 0 que torna esta seqiiencia de de-cisoes e agoes algo mais que um conjunto desordenado e aleato-rio e a existencia de um sistema de diretrizes, de vetores maisgerais que incorporam a preferencia de certos agentes por umestado future mais desejavel e de perfil mais ou menos claramentedefinido. Que num determinado tempo, de dificil previsao, a so-ma das solugoes anteriormente implementadas resulte na configu-ragao de uma fisionomia urbana inedita e qualitativamente su-perior e algo necessario, embora a nova qualidade de vida urbanaseja mais "vivida" do que percebida pela populagao no seu quo-tidiano. Normalmente, o aspecto "visivel" do planejamento estaconstituido pela implementagao de solugoes monumentais, espe-taculares ou suficientemente radicals para alterarem momentanea-mente o ritmo da atividade da aglomeragao urbana.

— Ainda com relagao as duas condigoes anteriormente men-cionadas, nao havia porque supor fosse privilegio de Curitiba aoperagao de algum processo inedito de chegar a solugSes tecnicasmais adequadas para problemas de crescimento urbano, ou quea competencia dos seus tecnicos para descobrir tais solugoes fossemaior do que, por exemplo, a dos tecnicos paulistas para solucio-nar os problemas da Grande Sao Paulo; e nem havia igualmenterazoes para supor que os problemas da Grande Sao Paulo ou doGrande Rio persistissem pela inviabilidade tecnica, financeira ou

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economica das solugoes propostas. Se a escala da problematica ur-bana nestes dois grandes centres e amplamente superior a deCuritiba, tambem o e a escala dos recursos tecnicos e financeirosdisponiveis, mantendo-se a proporcionalidade. Em principio, pois,e em termos de disponibilidade de recursos tecnicos e financeirosRio e Sao Paulo deveriam ser capazes de alcangar sucesso identicoao de Curitiba em seu planejamento. Que nao o sejam — ou naotenham sido — apenas sugere que o conhecimento de quais se-jam as solugoes adequadas e a posse de recursos diferenciados eem volume suficiente nao garantem que aquelas solug5es sejamimplementadas. Na verdade, a experiencia brasileira demonstra asaciedade que a disponibilidade de recursos nao tern impedido oarquivamento de pianos urbanisticos tecnicamente corretos e via-veis, ao mesmo tempo em que se permite a deformagao da fisio-nomia urbana das cidades e o agravamento dos problemas decor-rentes de seu crescimento desordenado. Uma hipotese razoavel era,portanto, a de que a dimensao relevante na explicacao do sucessoou fracasso de experiencias de plauejamento seria de natureza es-sencialmente politico em seus aspectos mais genericos. A escolhade um estado future desejavel dentre os varios possiveis e a sele-cao das solugoes a serem implementadas nos diversos tempos cons-tituiriam decisoes orientadas nao exclusivamente por criterios deracionalidade tecnica ou economica, mas essencialmente condicio-nadas por fatores politicos.

A Reconstrugao do Processo

Era evidente a desproporgao entre o volume de informagoesde que dispiinbamos e o que deveriamos ter para sermos capazesde reconstruir tao precisamente quanta possivel a historia do pla-nejamento curitibano. A cronologia dos marcos tecnicos e fisicos— estudos, pianos, diretrizes, leis especificas e obras — do pla-nejamento era menos problematica, e apenas com os documen-tos coletados na primeira expedigao exploratoria ja era possivelencaixar algumas pegas e formular ideias com grau variavel deprecisao, a respeito do que deveriam ser as ausentes. A seqiienciade cronogramas da estruturas admiuistrativa do municipio permi-tiam igualmente acompanhar as transformagoes havidas ao longodo tempo: a eliminagao de alguns orgaos ou departamentos e acriagao de outros, a sua localizacao em niveis distintos da hierar-quia ou ate mesmo mudangas no nome de outros sugeriam iufe-rencias, ainda que provisorias, a respeito do processo administra-tive subjacente. Da mesma forma, os relatorios financeiros das di-versas administracSes formavam utaa seqiieucia temporal comple-

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ta, o que permitia observar oscilagoes das receitas e despesas dasprincipals agencias municipals, sobretudo as direta ou indireta-mente vinculadas ao planejamento urbano, a composigao variavelde ambas e, de forma geral, o estado da saude financeira do mu-nicipio.

A ignorancia permanecia, entretanto, intacta quanta a dimeu-sao politica do processo. Quais haviam sido seus personagens prin-cipais? Que posigoes ocupavam e em que estrutura? Que recursoscontrolavam e em que montante? Que atitudes adotaram ou quecurso de agao implementaram? Em alianga com quern? Em opo-sigao a quern ou a que? De sua atuagao que consequencias resul-taram? Que interesses articulavam? Em sintese, tinhamos umamultidao de questoes, nenhuma resposta e tampouco indicagoes decomo obte-las atraves de outra exploragao in loco. Foi quando de-cidimos incorporar a equipe o arquiteto-urbanista.

A circunstancia mais notavel com relagao a sua participagaoe contribuigao a pesquisa consistiu em que ele ocupara cargo tec-nico de alta respousabilidade na equipe de planejamento de Curi-tiba durante uma etapa decisiva do processo. E a expectativa ini-cial fora a de que na qualidade de especialista em urbanismo comconhecimento do caso ele contribuisse com um estudo dos aspectostecnicos do planejamento. 0 que realmente veio a suceder.

0 que nao bavia sido cogitado fora a sua participate tam-bem na qualidade de informante para os demais componentes daequipe, capaz de fornecer por seu depoimento material tao ge-nuino e relevante quanto qualquer outro personagem ja entrevis-tado ou a ser entrevistado. Poderiamos obter por esta forma umaoutra versao dos fatos, provavelmente mais objetiva devido ao dis-tanciamento que o informante ja alcangara em relagao aos aeon-tecimentos. De qualquer forma, uma versao tambem sujeita a ve-rificac5es posteriores. Frequentemente, entretanto, ocorreu queatraves deste colega utilizassemos, de maneira indireta e obvia-mente nao muito ortodoxa, o metodo da observagae participante:afinal, ele acompanhara os fatos no exato momento em que suce-diam, convivera com os principals agentes do planejamento, reco-Ihera seu discurso e codificara sua retorica no proprio momentoda emissao, tivera acesso a reunioes de conselhos e diretorias. En-fim, estivera no centro dos acontecimentos. E seria em varias opor-tunidades no decorrer da pesquisa os nossos olbos e ouvidos comrelacao a fatos que nao presenciaramos e desconheciamos integral-mente.

Por escrito e verbalmente obtivemos deste novo membro daequipe uma versao reconsteuida, tao pormenorizada quanto possi-

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vel, da historia do planejamento urbano de Curitiba. Tanto quaii-to me recordo, esta reconstituigao tomou corpo em etapas, parteapos parte, cada qua! elaborada em torno de urn fato ou topicoespecifico. Por exemplo, a questao de como foi criado o IPPUGresultava numa reelaboragao parcial da historia, o que normal-mente revelava novos fatos ou descobria personagens ineditos. Co-mo era de se esperar, os juizos de valor eram parte relevante dorelato e forneceram indicagoes preciosas sobre o carater e motiva-goes dos personagens, sobre o sentido e conseqiiencias de suas deci-soes e acoes. Podiamos, entretanto, questionar estes juizos com asem-cerimonia que a situagao permitia, rever o depoimento quan-tas vezes julgassemos necessarias, solicitar esclarecimentos adicio-nais ou levantar suspeigao quanto as avaliagoes e julgamentos semincorrermos nas dificuldades e riscos que limitam o desempenhodo entrevlstador e entrevistado em contextos onde a relagao entreambos e a de uma interacao entre outsider e insider, entre es-traahos que se defrontam numa situagao interativa rigorosamentenegociada. Em nosso caso, eramos todos integrantes de uma mes-ma equipe, com a diferenga de que assumiamos, temporariamentee por periodos curtos e descontinuos, os papeis de entrevistador ede informante com a consciencia de estarmos usando a "represen-tagao" como recurso metodologico.

Seja como for, obtivemos desta forma um volume de infor-macoes factuais que dificilmente poderia ter sido acumulado como mero trabalho de campo, Passavamos a dispor priucipalmentede uma listagem exaustiva de personagens satisfatoriamente carac-terizados quanto a sua formagao profissional, trajetoria ocupacio-nal, vinculos de amizade ou lealdades politicas. Em duas outrasvisitas a Curitiba pudemos entrevistar a maioria deles e colher asversoes pessoais de sua propria participagao e sobre a dos demais,esclarecer pontos obscures pela comparacao de depoimeutos ousimplesmente solicitar informaeoes novas. Em contraste com as en-trevistas gravadas na expedigao pioneira, estas outras ajustavam-sea um formato mais estruturado. O conhecimento adquirido permi-tiu-nos elaborar um protocolo mais definido e um grau maior deobjefividade e especificidade na formulagao das questoes. Aindaassim, permitimos aos entrevistados uma margem de liberdade su-ficiente para encaminhar questoes que julgassem relevantes se-gundo criterios individuals. Tres ou quatro pessoas voltaram a serentrevistadas uma segunda vez.

Todo este trabalho foi sendo executado numa ordem nadalinear e de entremeio com outras tarefas. As questoes relatives aoconflito dos niveis de governo •— municipal, estadual e federal —

DA IGNORANCTA ESPECIFICA 169

comegaram a despoiitar e o quarto membro da equipe foi incorpo-rado para estuda-las; e no rastro delas vieram as relatives a insti-tucionalizagao da regiao metropolitans, o que determinou a inclu-sao do ultimo elemento da equipe. Com estes acrescimos, novas in-formagoes fluiram e varias questoes ainda obscuras foram obtendoresposta.

Quanto a reconstituigao do processo compreendido dentro doperiodo que identificaramos como o da "historia" do planejamen-to urbano de Curitiba, parece-me hoje que avangamos simultanea-mente de pontos diferentes e em pianos paralelos, mas superpostos.Escolhendo eventos significativos —- uma eleigao ou deliberagaoimportante, a criagao de uma agencia ou um episodio de confron-tagao entre atores centrals — desenvolviamos simultaneamente va-rios temas, "para frente" e "para tras", na medida em que as in-formagoes fluiam. Era como montar um quebra-cabegas a partirde varios pontos, progredindo mais em alguns que em outros, ateque todos convergissem para formar um padrao ou "desenho".O desenvolvimento destes temas avangava principahnente em dis-cussoes informais da equipe e as conclusoes nem sempre eram co-locadas no papel. Na verdade, tenho duvidas a respeito de se sa-biamos estar, nestas ocasioes, elaborando um trabalho de recons-tituigao. Talvez seja mais exato dizer que teciamos aos poucos aestrutura bdsica de uma versao da historia, carente ainda de deta-lhes e repleta de espagos temporais vazios. As discuss5es dentro daequipe eram sobretudo um mecanismo pelo qual cada um com-parava sua versao prelimiuar com a dos demais, encontrando pon-tos de convergencia ou de divergencia, fazendo retificacoes, expe-rimentando sequencias alternativas de eventos. Mas obtinhamossempre um substancial residuo de percepgoes concordantes, de in-terpretagoes identicas que iam se somando. A imagem analogicaque me ocorre e a de um escritor que elabora as linhas basicas deum enredo dramatico: os personagens carecem ainda de fisiono-mia distinta, de um perfil psicologico definido, os detalhes da acaoe os enredos secundarios e paralelos permanecem embrionarios oucomo meras possibilidades.

Da mesma forma como o desenvolvimento de um enredo seestrutura em capitulos ou atos — pelo menos no tipo classico ouacademico de narrativa — definimos tambem nossa "unidade dra-matica". No caso, uma unidade de tempo significativa e relativa-mente curta; ou seja, cada uma das tres administracoes munici-pals compreendidas no periodo a ser reconstituido. Estou certo <leque esta escolha nao foi intencional ou premeditada. O mais pro-vavel e que os proprios dados tenham sugerido naturalmente esses

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cortes temporals. Grande parte deles — relatorios financeiros, atasde reunioes de conselhos, organogramas, leis e codigos municipals— ajustava-se obviamente a essa perlodizagao. Ademais, descobri-mos que manipulavamos de forma mais agil o consideravel volumede dados e informag5es quando trabalhavamos unidade por unida-de, cada qual bem delimitada no tempo, sobretudo porque Kdava-mos de cada vez com um numero consideravelmente menor de in-formagoes e dados. E dentro de cada unidade — ou administra-gao — ficava mais facil estabelecer as relagoes entre eventos par-ticulares nas dimensoes financeira, tecnica, administrativa e poli-tica. A reconstituigao de cada periodo de gestao politico-adminis-trativa resultava num perfil ou padrao caracteristico. E verifica-vamos que cada novo dado ou informagao ajustava-se a este pa-drao, adquiria sentido dentro do conjunto, expandia-o e por issomesmo confirmava-o.

Finalmente, ao juntarmos em sua ordem cronologica as tresunidades reconstituidas emergiu o padrao mais amplo do processoestudado. Percebia-se claramente que cada unidade constituiauma fase ou etapa do processo. A primeira, de institucionalizacaodo planejamento, foi a fase da decisao de planejar, da construgaode suporte politico para a empresa, do estabelecimento de com-promissos irreversiveis com o planejamento e da montagem dosinstrumentos e estrategias requeridos; a segunda, de transicao, ea fase dos confHtos e processes de acomodagao decorrentes da in-trodugao das "inovagoes" de planejamento no sistema social; fi-nalmente, a terceira e a fase da implementagao, quando a fisiono-mia urbana comega a ser efetivamente modificada. Distinguimosainda uma fase de condigoes previas (de 1943 a 1963), sobretudode ordem tecnica e cultural. Nao a reconstituimos, mas deixamo-lacaracterizada por seus aspectos mais determinantes com respeito soplanejamento. Esta fase constituiria, digamos, a pre-historia do pla-nejamento urbano em Curitiba.

No conjunto, haviamos conseguido montar uma versao coe-rente e consistente do "caso de Curitiba". Como ocorre normal-mente em pesquisas de tipo quaHtativo, o criterio central parajulgar a validade da versao era o sentimento de que o conjunto"fazia sentido". Cada fase adquiria significado quando apreciadano contexto global da reconstitulgao, e fatos ou acontecimentos par-ticulares podiam ser explicados em termos de sua articulagao comoutros fatos dentro de uma ou mais fases. For exemplo, o isola-mento a que fora forgado o IPPUC na fase de transient), quandopor fatores politicos o Departamento de Obras passou a ocupar aposigao de lideranga na condugao do planejamento, explica em

DA IGNORANCIA ESPECIFICA 171

grande parte o "sucesso" da fase de implementagao, periodo emque Curitiba ganhou projegao nacional. Esta marginalizasao daagencia do Piano permitiu a sua equipe deseuvolver uma intensaatividade de elaboragao de estudos tecnicos, projetos e programas,o que permitiu a administragao seguinte, afinada com o corpo deprofissionais do IPPUC, passar imediatamente a implementagao.Outro fato que a versao reconstituida ressaltava era o surpreen-dente grau de autonomia financeira de Curitiba com relagao a en-tidades federals ligadas ao planejamento urbano, o que possibili-tou as sucessivas administragoes municipals escapar aos complica^dos procedimentos metodologicos e exigencias normativas impostoscomo condigao de financiamento. Isto permitiu ao planejador curi-tibano uma consideravel flexibilidade de agao e a plena utilizagaode seu profundo e genuino conbecimento da cidade, em nenhummomento constrangido pelos requisites de uma metodologia abs-trata.

Varias conexoes deste tipo vieram a compor boa parte do Re-latorio Final, que terminava com algumas recomendagoes de po-litica. Mas o que emergiu de mais importante do processo de re-constituigao e analise do "caso de Curitiba" foi a compreensao deque o planejamento tern uma dimensao politica meludivel quecondiciona os aspectos tecnicos.

O Planejamento como Politica

Os teoricos do planejamento sao viciados na pratica de umraciocinio extremamente simplista que consiste em catalogar fa-tores favoraveis de um lado, e de outro os desfavoraveis. Estas sim-plifieagoes levam quase sempre a analises distorcidas por instan-cias da chamada "falacia funcionalista": se determinada experi-encia de planejamento obtem sucesso e porque atuaram os fato-res positives; em caso contrario, os negatives. 0 receituario dosplanejadores urbanos e abundante nestas taxonomias, com o quese perde a perspective de que o necessario e a especificagao da1

dinamica da interagao entre fatores favoraveis e desfavoraveis daqual resultam processes reals de planejamento, bem ou mal su-cedidos.

Note-se ainda a tendencia em arrolar os fatores politicos nacategoria dos condicionamentos negatives. E neste particular o*rcaso de Curitiba" e ilustrativo. 0 que deu notoriedade a experi-encia curitibana foram as solugoes tecnicas aplicadas ao problemada expansao urbana, ainda que constituissem o aspecto menos ori-ginal do experimento. No entanto, o que ha de notavel no "casode Curitiba" e que tais solugoes puderam ser implementadas en-

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quanta propostas tecnicas igualmente corretas tern abortado emoutros centres urbanos. Nao e a tecnica do planejamento o aspectomais relevante do processo, mas a politica do planejamento.

0 fato de que a dimensao politico-institucional nao tenha des-pertado o mesmo interesse — se e que despertou algum — deve-se, provavelmente, a nogao tao cara a mentalidade tecnicista de<jue a politica constitui elemento de "irracionalidade" nao sendo,pois, susceptive! de ser listada entre os fatores responsaveis peloplanejamento bem sucedido. Dai se inferiu ou que nao houve po-litica no planejamento curitibano, ou que bouve a "boa politica",raciocinio que exemplifica bem a "falacia funcionalista". Ore, apolitica nao e sempre, e nem necessariamente, incompativel com oplanejamento. Pelo contrario, ela representa um necessario meca-nismo de correcao pelo qual se assegura que a "racionalidade" dopiano nao exceda o nivel de racionalidade possivel dentro de um dadocontexto social. Nestes termos, a politica e quase sempre um fatorde acrescimo nas probabilidades de sucesso do piano ao forgar oplanejador a abandonar a atmosfera rarefeita nas solucSes abstra-tas, da racionalidade sem referente empirico. E na mesma propor-cao em que o planejamento se viabiliza por tomar em consideragaoos condicionamentos politicos, ele introduz taxa consideravel de ra-cionalidade no sistema politico.

De principio, qualquer piano que aspire viabilizar-se tera deser, necessariamente, o resultado de um compromisso politico. Umpiano e uma proposta normative e, portanto, unia policy. Eleacolhe certos problemas e negligencia outros, propoe determinadasalternativas e nao outras, especifica certos instrumentos e nao outros.E essas preferencias tern pouco a ver com a aplicagao de criteriostecnicos de decisao. Antes, elas tern a ver com a politics, isto e,com o sistema de forcas politicas que prevalece em dado momentonum contexto social particular. Neste cenario, a tecnica apenasserve a politics na formulagao e implementagao da policy. Etanto e assim que, fosse outra a composicao de forgas, tambem aesta nao faltaria o suporte tecnico para justificagao da policy re-sultante. Ao recrutar seus tecnicos, os governantes, a qualquer nivel,nao escolhem os melhores entre os melbores, mas os melhores en-tre seus correligionarios.

Mas o compromisso que da suporte a policy — ao piano —e sempre, ou quase sempre instavel. Dai que o piano realmente im-plementado raramente seja identico ao proposto. As alterag5es in-troduzidas podem ser extensas e profundas ao ponto de desfiguraro piano original, tal como pode suceder ate mesmo que se "arqui-ve" o piano original quando Ihe falta suporte politico. E esta insta-

IGNORANCIA ESPECIFICA 173

bilidade, ao contrario do que se pensa, nao termina com o inicio dafase de implementagao. Pelo contrario. Devido ao seu carater gene-rico e mais ou menos abstrato, e mais facil formar um grau satis-fatorio de consenso em torno do piano exatamente na fase deformulagao inicial. Na etapa de implementacao, todavia, as is-teneoes do piano sao operacionalizadas em termos de alocacao derecursos financeiros, de poder e influencia: posigoes tecnicas e ad-ministrativas com capacidade de comando devem ser distribuidas,recursos orgamentarios serao alocados, relagoes de comando e su-bordinacao haverao de ser estabelecidas. Em sintese, alguns ganha-rao mais que outros, e a barganha politica podera alterar substan-cialmente a defmigao do que esta ou nao implementado. Dito deoutra forma, a integridade maior ou menor do piano — a extensaodas alteragoes introduzidas — dependera de quanto suporte a"coaUsao do piano" conseguira mobilizar.

Reavaliando a Ignorancia

A referencia anterior a dimensao politico-institucional do pla-nejamento e pertinente tambem num outro sentido, Estou persua-dido de que fosse eu um especialista e ela me teria escapado irre-mediavelmente, assim como a perspectiva "historica" que nos levoua reconstituigao do "caso de Curitiba", ambas de importancia cru-cial no entendimento do processo de planejamento.

Este ponto tern a ver com a mengao a ignorancia especifica eabsoluta nas primeiras paginas deste artigo. Realmente, eu nadaconhecia sobre o planejamento urbano em Curitiba. E quanto aoplanejamento na acepgao generica do termo?

Bern, qualquer sociologo sabe alguma coisa sobre processesdecisorios, exercicio de poder, relagoes interorganizacionais, pro-cessos de influenciamento, comportamento burocratico ou recur-sos de legitimagao de autoridade. Mais exatamente: qualquer so-ciologo conhece teorias ou fragmentos de teorias sobre estas coisas.TJns saberao mais sobre algumas delas do que sobre outras, mas oimportante e que dispoem de uma bagagem conceitual que se referea estes fatos ou processes num nivel de abstragao relativamentealto, assim como de um elenco de proposigSes genericas — geoera-lizacoes empiricas — que estabelecem as conexoes destes fatos ouprocesso com outros, ou entre componentes de nm mesmo fato ouprocesso. E assim, por exemplo, que a categoria "processo deciso-rio" e um instrumento analitico que o sociologo aplica na compre-ensao de coisas aparentemente tao dispares como a elaboragao deum orcamento e processes de expansao de uma empresa, o plane-jamento de uma cidade e uma eleigao presidencial. Em suma, o

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174 RECONSTRUgAO DE PROCESSOS DECTS6RIOS

que desejo dizer e que, qualquer que seja o fato particular em es-tudo, o processo de entende-lo consiste sempre numa operacao de"traduzir" o conhecimento imediato para a linguagem da discipli-na. Em outros termos, esta "tradugao" consiste em aplicar concei-tos, por defiuigao genericos e abstratos, a eventos particulars, eem subsumir as conexoes internas e externas destes eventos nas ge-neralizagoes empiricas.

Se este argumento e correto, o que se requer do sociologo e,em primeiro lugar, urn conhecimento tao solido quanto possivel dasua disciplina: a bagagem conceitual, as construgoes teoricas, osmodelos analiticos e o residue de conhecimento acumulado atra-ves de investigacoes empiricas." Quanto mais solido e vasto este co-nhecimento, maior sua capacidade de "traduzir" — isto e, de ana-lisar e explicar — uma gama mais vasta de fatos ou processes par-ticulares. Parece claro, por outro lado, que dispondo deste tipo defonnacao o corpo teorico da disciplina ja fornece ao pesquisador,desde o inicio da investigaeao, um contexto de interpretacao do ob-jeto em estudo. Ou seja, desde o primeiro contato com o objeto deestudo o pesquisador ja traz articulado um conjunto de categoriasanaliticas que constituem uma primeira e provisoria "tradugao"para a linguagem da sociologia. De certa forma, o pesquisador jaconhece alguma coisa sobre aquele objeto antes mesmo de dar ini-cio a investigacao. Por exemplo, chamassemos ou nao de "plane-jamento" o que sucedia em Curitiba — e a designacao do proces-so e ate certo ponto irrelevante — o fato e que se tratava, entre ou-tras coisas, de iudividuos tomando decisoes, de organizagoes inter-agmdo num contexto conflitivo ou cooperative segundo as circuiis-taneias, de atores que influenciavam e eram influenciados, deagencias burocraticas disputando recursos escassos dentro da admi-nistragao municipal. E com relagao a estas coisas e suas conexoes asociologia conta com um acervo respeitavel de formulacoes teoricase de conhecimento empirico. Neste sentido, "planejamento" naoera um processo que desconhecessemos inteiramente, ou sobre oqual nao tivessemos concepcoes articuladas, ainda que provisorias.

Em suma, para nos a questao resumia-se em "espeeificar" umprocesso social particular — o "planejamento" — a partir de umconhecimento generico sobre processos sociais em geral. Creio queesta e a operacao basica de que se utiliza a maioria dos socio-logos generalistas, e neste sentido a "ignorancia especifica" e aregra, nao a excegao. Nem constitui um tipo de deficiencia. Pelocontrario, e se tomarmos como modelo os grandes mestres da socio-logia classica e contemporanea, e possivel afirmar que uma solidaformacao na disciplina produzira quase sempre um generalista.

DA IGNORANCIA ESPECIFICA175

Este e, por assim dizer, o individuo especializado em snao neste ou naquele assunto particular. Ele e, por definigao um"ignorante especifico". 0 especialista e, inversamente, 0 socioloeoque perdeu pe em sua disciplina e reduziu o alcance de sua visaoanalitica dos processos sociais. Creio mesmo que a especializagac-de conhecimento — em temas, topicos ou areas — produzira qua-se sempre um tecnico ou algo muito proximo disto. fi ilustrativodesta afirmacao o fato de que na area da teoria organizacional, porvarias raz5es tao vulneravel a tendencia a especializacao e ao tec-nicismo, as contribuigSes mais fecundas e duradouras tenham sidoproduzidas por sociologos generalistas que, por exemplo, atravesde Weber mantem solidos vinculos com a tradigao teorica da socio-logia. Os que romperam o vinculo se espeeializaram e nao rarasvezes se estabeleceram na area da consultoria tecnica. Sao eles os"conhecedores especificos" e "ignorantes genericos".

Uma Satisfagao a Metodocracia

Finalmente, haveria ainda algo a dizer quanto a metodologiaempregada no "projeto Curitiba". Pensando bem, nao tivemos ne-nhuma preocupacao com nenhuma questao metodologica ou detecnica durante o decorrer da pesquisa. Procedemos como qual-quer individuo ou grupo que tern um problema a mao e que tratade soluciona-lo da melhor forma possivel tendo em vista as con-digoes e recursos disponiveis. Isto quer dizer que por comparagaocom as prescrigSes dos manuals de metodologia somos culpados deurn mimero de heresias metodologicas suficiente para despertar osfurores dos puristas e a cassagao de nossos direitos professionalspela metodocracia.

Nas entrevistas, por exemplo, simplesmente ligavamos o gra-vador — se o entrevistado nao solicitasse o contrario — e fazia-mos nossas perguntas da forma mais natural possivel. Tanto quan-to me recordo, todos entendiam perfeitamente o objetivo e o con-teiido de cada questao; quanto a nos, nao tinhamos dificuldadealguma em entender as respostas. Se sentiamos ,que algo nao fi-cara bem claro pelo conteudo da resposta obtida, simplesmentetentavamos ser mais claros na repeticao da pergunta. Muitas vezeso proprio entrevistado solicitava esclarecimentos. Enfim, o compor-tamento de ambas as partes era o de pessoas em bom estado desaiide mental, medianamente inteligentes e educadas, com domi-nio satisfatorio do portugues corrente e interessadas em estabele-cer e mauler um clirna de adequada cordialidade. Nao nos esfor-camos ern_ser espertos demais, nem os entrevistados em serem ci-nicos em demasia. Nestas circunstancias, eu nao saberia o que

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fazer com a parafernalia de principles e normas de tecnicas deentrevista que foram criadas para extrair informagoes que nao in-teressam ao pesquisador e que o entrevistado resiste em fornecer(ou que forneceria se fosse solicitado a faze-lo de forma direta enatural).

Nem nos preocupamos em estabelecer rcgras ou principles devalidacao das informagoes. Entretanto, estou convencido de quetodas foram checadas de alguma forma que nos pareceu satisiato-ria. Infereneias foram exaustivamente examinadas em debate den-tro da equipe de pesquisa, hipoteses de causalidade nao eram acei-tas sem passar pelo crivo da critica de cada pesquisador, e inter-pretagoes de fatos ou processes particulars eram submetidas aprova do confronto ilas divergencias. Mas tudo isso de forma na-tural, sem os constrangimentos de uma "consciencia metodologi-ca" a pesar nas decisoes. Enfim, praticamos a metodologia possi-vel, sem o compromisso de obedecer" a qualquer das metodologiascodificadas pelos manuais.

O processo todo foi algo desordenado e ilogico, pelo menosse julgado pelos criterios da "logica reconstruida", para utilizar oconceito de Kaplan. Mas creio que e exatamente a esta desordeme falta de logica aparentes o que ele chama de "16gica-em-uso".E e esta que deveria ser o objeto da avaliagao do metodologo co-mo critico dos procedimentos de pesquisa. Entretanto, como trans-mitir-lhe esta "16gica-em-uso"?

A tarefa e relativamente facil quando se trata da pesquisade tipo quantitative, cujos procedimentos ja se encontram satis-fatoriamente codificados e sistematizados. A transcrigao de umaescala, a descrigao do processo de construgao de um indicador, acomparagao entre a verbalizacao das hipoteses a serem verificadase as equagoes de regressao correspondentes, tudo isto constitui amateria sobre a qual se debruga a critica metodologica. Ela se tor-na possivel porque a reconstituigao da "16gica-em-uso" na pesquisaquantitativa e mais facil e fidedigna. Trata-se de uma "16gica-em-uso" razoavelmente sistematizada. Na pesquisa qualitativa a ques-tao nao e tao simples.

Um exemplo dessa dificuldade sao as paginas anteriores desteartigo. Relendo-as percebo a enorme distancia que vai do relatoda experiencia a propria experiencia, e nao ha nada que eu possafazer para remediar o fato de que no passo de uma a outra es-vaiu-se da memoria a "16gica-em-uso"; ou melhor, dela sobraramapenas os aspectos mais estruturados, fragao minima do fluxo deintuigoes, sentimentos, percepgoes e ideias que constitui o modulocentral da "16gica-em-uso". E ainda (jue em varies pontos eu in-

DA IGNORANCIA ESPECIFICA 177

sista no carater algo desordenado do processo da pesquisa, ficou-metambem a impressao de que nao e exatamente isto o que transmitona reconstituicao da experiencia. Finalmente, receio que algumleitor pergunte pelos erros e desacertos que fazem parte da expe-riencia de investigacao. Reahnente, o relato esta limpo deles, masa razao para isso provavelmente esta em que erros e acertos naotern seu momento proprio no fluxo da pesquisa qualitatitva. A per-cepgao do erro e os mecanismos de corregao confundem-se numtempo comum, e neste sentido o produto final parece ser o resulta-do apenas dos acertos.

Em sintese, se existe uma esfera de atividade em que a socio-logia aproxima-se mais da arte que da ciencia, esta e a area dapesquisa qualitativa. Ai e certo que se encontra a dimensao este-tica da disciplina, algo que os sociologos da vertente etnometodolo-gica e do interacionismo simbolico conhecem a sociedade.

O importante e dizer, contudo, que esse fato nao desmerecenem a arte, nem a sociologia. Muito pelo contrario.

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Voce Quer Ir a Paris? Ou de como Passeia Entender de Dissemina^ao de Resultados

de Pesquisas de Ciencias Socials entrePolicy-Makers" *

ALEXANDRE DE S. C. BARROS

Este artigo descreve uma pesquisa ou, se preferir o leitor, con-ta a historia de uma pesquisa que envolveu um ano e um mes denegociacoes previas a sua realizagao e apeuas nove meses de reali-zagao, alem de tornar os autores entendidos em algo em que elesnunca haviam tido interesse antes. No piano institutional, estavamenvolvidas na negociacao e na realizacao da pesquisa quatro enti-dades: uma no Rio de Janeiro, duas em Nova York e uma emParis. Como se nao bastasse isso, havia um coordenador interna-cional (parte do tempo em Paris e parte do tempo em Nova York)e um pesquisador no Brasil.

* Sou particularmente grato a Maria Liicia de Oliveira, minha mulher,por me haver desestimulado a intitular este artigo como acabei de inti-tula-lo. Paralelamente, sou tambem particularmente grato a Howard S.Becker por me haver estimulado a intitula-lo como o intitule!. Alem disso,discuti diversos pontos deste artigo com essas duas pessoas e muito lucreicom tais discussoes; no entanto, a responsabilidade por seu conteudo etotalmente minha. A Maria Lucia sou tambem grato por revisoes domanuscrito. Este artigo, num certo sentido, se constitui numa continuacaonatural do argumento que iniciei em meu outro artigo, "Gulliver emLilliput ou a Imagem que os Cientistas Sociais Tern de si Mesmos", publi-cado como Introdufao a um volume intitulado Organizofao e Politico daPesquisa Social (Rio de Janeiro: Fundacao Getulio Vargas, 1975),

VOCE QUER IR A PARIS? 179

ambos com ideias bem divergentes a respeito de diversos pon-tos do projeto.

Uma vez iniciada, a pesquisa envolveu uma equipe de trespessoas que entrevistaram 45 membros das elites politica e buro-cratica brasileira. Os resultados do projeto foram escritos num re-latorio mimeografado em que sao descritos com razoavel dose deexatidao os processos de tomada de decisao que levaram o governobrasileiro a eriar o Fundo de Garantia do Tempo de Servigo(FGTS) e o Programa de Integragao Social (PIS), decis5es estastomadas, respectivamente, durante a administracao Gastello Bian-co e durante a administragao Garrastazu Medici. 0 relatorio apre-senta tambem conclusoes a respeito de como circulam informacoesoriundas de pesquisas de Ciencias Sociais entre atores poL'ticos eburocraticos no Brasil.1

Parece muito, mas na realidade nao e, como o leitor vera len-do a historia.

O titulo do artigo e pouco ortodoxo, como tambem o e o ar-tigo. Quando Edson Nunes me convidou para colaborar com umartigo para este volume, eu decidi que nao escreveria um artigoconvencional de metodologia ou de tecnica de pesquisa. O tituloprovisorio do volume que ele me fomeceu, O Cotidiano da Pesquisa,me dizia que o artigo nao deveria ser algo que duplicasse livros demetodologia ou de tecnicas de pesquisa, pois estes existem em abun-dancia e ensinam metodologia muito melhor do que eu poderia fa-ze-lo, ja que nao sou metodologo. Desta forma, escrevi o artigoo mais "cotidiano" possivel, na tentativa de dar ao leitor uma ideiade algumas das coisas nao mencionadas nos manuals de pesquisaque a realizacao deste projeto implicou.

Adicionalmente a isto, o artigo reflete uma preocupa^ao mi-nha desde os tempos de estudante de graduacao, quando me fo-ram ensinadas poucas coisas uteis a respeito de pesquisa, e o poucoque me foi ensinado se provou de utilidade duvidosa na vida pro-fissional. Da maneira como metodologia me foi ensinada, sai dafaculdade, por um lado, com a impressao de que fazer uma pesqui-sa era uma tarefa quase impossivel, dadas as complicacoes meto-dologicas, os custos Bnanceiros e as complicacoes estatisticas; poroutro, acreditava que a pesquisa era fundamentalmente um proces-so individual de elaboragao do pesquisador, em que as coisas maisimportantes advinham da capacidade mental (fantasiosa ou nao)

1 Alexandre de S. C. Barros e Argelina M. C. Figueiredo, "The Crea-tion of Two Social Programs: The FGTS and the PIS — A Brazilian CaseStudy on the Dissemination and Use of Research for Governmental Po-licy-Making", Rio de Janeiro, 1975 (mimeografado).

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T80 RECONSTRUQAO DE PROCESSOS DECBORIOS

do pesquisador, e o mundo a ser pesquisado era irrelevante nosentido de que ele se comportaria de acordo com as minhas expec-tatlvas. As frustragoes dos primeiros anos de carreira foram gran-des, e tomou tempo aprender porque o mundo nao se comportavacomo os livros diziam que ele devia. Neste sentido, a tonica desteartigo e transmitir a nogao de que a vida real do pesquisador en-volve uma serie de complicacies das quais os livros nao falam eque podem ser muito desestimulantes.

For essas razoes, achei que devia apresentar ao leitor um tra-balho que fosse tao realista quanto possivel, no sentido de transmi-tir a imagem mais fiel possivel dos problemas nao metodologicosenvolvidos na realizagao de um projeto de pesquisa, problemas estesque podem "devorar" um projeto tornando-o mais um na lista deprojetos de pesquisa em Cieneias Sociais que nunca sao terminados.

A heterodoxia do artigo, a comecar pelo seu titulo, pode dar aimpressao de que ele e um artigo sobretudo — ou apenas — destina-do a "dizer que o rei esta nu". Num. certo sentido, ele (o rei) estanu, e ha muito tempo, mas isso nao torna a vida academica menosatraente nem menos excitante. Robert M. Hutchins disse uma vezque"depois de uma longa e penosa experiencia, ele havia chegadoa conclusao de que professores eram um pouco piores do que o co-mum das pessoas e que cientistas eram muito piores do que profes-sores. De urn certo ponto de vista, o que disse Hutchins e verda-de; no entanto isto nao torna a vida academica desinteressante deser vivida, desde que se esteja consciente de suas idiossincrasias, ee para algumas delas que o presente artigo pretende chamar aten-gao.

A maior parte dos livros de metodologia se parece aos livros deculinaria que sao utilizados por aspirantes a mestre-cuca. Se sesegue a receita a risca, maxim izam-se os problemas de coordenagaode tempos e movimentos; se nao se a segue, ha o risco de que as"pitadas" de fennento ou de qualquer outro ingrediente sejam ex-cessivas ou insuficientes. Resolvidos todos estes problemas — coisadificil para os aspirantes — as coisas acabam falhando porque en-tra uma corrente de vento no forno e o bolo fica "solado", assuntoe'ste da mais fundamental importancia do qual o livro nao seocupou.

Como os livros de culinaria, os manuais de pesquisa, por umlado, ensinam todos os ingredientes metodologicos e tecnicos semos quais o pesquisador tern a impressao ou de que sua pesquisanunca saira, ou de que, se sair, nao sera valida. Por outro, elesraramente informam a respeito dos outros problemas que sao tao

VOCE QUER IR A PARIS? 181

perigosos quanto os enguicos jnetodologicos, mas a respeito dosquais os pesquisadores nunca sao avisados de antemao.

Um dos primeiros pontos que raramente e mencionado pelo&"manuais de pesquisa e que as pesquisas que eles recomendam emgeral custam dinheiro, e muito dinheiro. Alem disto, nunca ficaclaro nestes manuais quern vai pagar pela pesquisa, e quais os pro-blemas que dai podem decorrer. Uma das primeiras coisas, portan-ito, a respeito das quais e importante estar consciente e de que, naniaior parte dos casos, projetos de pesquisa tern, de uma forma oilde outra, que ajustar-se aos fundos disponiveis para a sua realiza-gao. Caso a pesquisa seja "aplicada", ha de haver alguem interestdc em saber o que o cientista social tern capacidade de informar;caso seja "pura", ha que haver algum "mecenas institucional" (oEstado, fundagoes, universidade, ou o que seja) que se interesse econfie no cientista social para dar a ele o meio de troca com o qualpodera comprar os servigos de que necessita para a realizacao dapesquisa. _

Em consequencia do primeiro ponto e que, como diz o ditadoingles, "quern paga a orquestra tern sempre o desejo de escolhera musica". Sem diivida, a instituicao que paga os custos da pes-quisa — especialmente no caso de pesquisa aplicada — quer teralgum controle sobre os tipos de resultado que deseja, e nao ha nadade anormal disto, mas e importante que o cientista social estejaconsciente do fato. O problema surge quando quern paga a pes-quisa quer exercer controle sobre o conteudo dos resultados, coisaque ocorre especialmente no caso de pesquisas orientadas para po-licy-making, quando os policy-makers muitas vezes contratam pesrquisas para justificar "cientificamente" decisoes que eles ja toma*ram.

Estes dois pontos trazem a baila um aspecto importante a res-peito de pescpiisa de Cieneias Sociais ainda pouco difundido noBrasil, qual seja o de que a pesquisa e uma atividade professional,coisa que quer dizer, neste contexto, que quern paga nao tern o di-reito de controlar nem o metodo de execugao, nem tampouco osresultados. Em outras palavras, e uma situagao semelhante a quese encontra entre cliente e medico, na qual o ultimo e pago paraprescrever o tratamento que Ibe parece mais adequado e ao pri-meiro cabe pagar, tratar-se e tentar ficar curado, coisa que nao querdizer que o cliente tenha controle sobre o que faz o medico pro-fissionalmente. Esta uatureza ambigua da relagao, entretanto, naoexclui que o medico mantenha o cliente tao informado quanto pos-sivel a respeito dos tratamentos que esta realizando. O mesmo valepara o processo de financiamento de pesquisa.

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182 RECONSTRUgAO DE PfiOCESSOS DECEORIOS

Como Comegou a Historia

— Voce quer ir a Paris? — Foi esta a pergunta que me fez SimonSchwartzman em algum momento na segunda metade de 1973,quando trabalhavamos ambos na Fundagao Geulio Vargas.

— Bern, claro, mas de que se trata? Que e que eu tenhoque fazer?

— Recebi um convite para ir a uma conferencia e nao posso.Creio que voce gostaria de ir, e o tema tern algum interesse paravoee. Em principio, voce tern que escrever um paper sobre dissemi-nagao de informacoes de Ciencias Sociais entre policy-makers. Voudar a voce a documentagao que recebi e depois voce resolve.

Para encurtar a historia, fiz uma excelente viagem a Europae dois anos depois havia virado uma pessoa que entendia deste ex-druxulo assunto: "disseminacao de pesquisa". De la para ca japarticipei de outra reuniao internacional sobre o assunto, ja es-crevi — junto com Argelina Cheibub Figueiredo — um artigo, eja recebi cartas dos lugares mais inesperados a respeito do tema.

Achei que contar esta historia de como congou meu envol-vimento com o tema era importante, mas o assunto "deu panos paramanga" em casa, Minha mulher, que tambein e cientista social,me alertou que esta historia significaria me expor e que talvez viessea me "queimar" como oportunista. Confesso que hesitei. Discuti-mos o assunto e depois eu converse! com Howard Becker, que meencorajou fortemente a contar a historia, pois, afinal de contas,muitas das coisas que acontecem nas Ciencias Sociais (e nas nao-sociais tambem, diga-se de passagem) ocorrem desta maneira, emuitas pesquisas comegam de maneira semelhante.2

Retomando a historia, Simon me passou os documentos que elehavia recebido a respeito da reuniao. Li-os e verifiquei que nelase iria tratar de como as informacoes produzidas por cientistas so-ciais chegavam as maos de policy-makers governamentais. Comoeu tinha interesse pessoal em saber um pouco mais a respeito decomo se dava o processo de tomada de decisao no governo brasiloi-ro, me pareceu possivel acoplar os dois assuntos num so projeto.

2 Sobre as motivacces que levam cientistas sociais a escolherem umaespecialidade ou a fazer uma determJnada pesquisa, e muito ilustrativoler o irreverente "Dialogo com Howard S. Becker", no qual ele conta comoveio a fazer sua tese de mestrado sobre musicos profissionais, como setornou um cientista social especializado em ocupacoes e profissoes ecomo passou a estudar escolas de medicina, O diSlogo estd publicado emHoward S. Becker, Uma Teoria da Agao Coletiva (Rio de Janeiro: ZaharEditores, 1977), pp. 13-36.

VOCE QUER IR A PARIS? 183

I

Preparei um paper propoucto um estudo dos processos que ha-viam levado as tomadas de decisao que criaram o FGTS e o PISMinha escolha recaiu nestas duas decisoes em particular nao por-que eu tivesse especial interesse nelas, mas por se tratarem de de-cisoes de grande magnitude, que, segundo eu presumia, teriam sidosuficientemente complexas para constituir uma boa "amostra" doprocesso decisorio. 0 paper propunha tambem a investigacao decomo havia ocorrido o processo de feitura e circulagao das pesquisasde Ciencias Sociais que teriam sido feitas anteriormente a tomadade decisao.

Durante a reuniao apareceu o primeiro problema nao ante-cipado, e que permaneceu na pesquisa ate que ela terminou. Mi-nha perspectiva era de que a producao e a cireulacao de infor-macoes de Ciencias Sociais entre atores politicos era um processoessencialmente definido por "vdridveis de ordem politica> ou seja,as pesquisas que circulavam entre politicos e burocratas £aziam-no,ou deixavam de faze-lo, nao pela sua qualidade academica intrinse-ca, mas sim porque havia caracteristicas politicas das pesquisas, deseus resultados ou dos pesquisadores nelas envolvidos que faziamcom que algumas pesquisas circulassem com mais intensidade oufacilidade e outras circulassem com menos. A perspectiva dos pa-trocinadores da reuniao (ou ao menos de parte deles) era de que oprocesso de circulacao de pesquisas era um processo essencialmentedependente das caracteristicas extrinsecas da pesquisa (forma, ta-manho, etc.), bem como dos canals "comunicacionais" que fossemutilizados para dissemina-la, ou seja, se se tentava faze-la chegar aospolicy-makers atraves de correio, pessoalmente, durante reunioes ci-entificas, etc.

Este primeiro problema que se colocou nunca e tratado nos li-vros de metodologia. Utilizando com alguma flexibilidade a lin-guagem de Thomas Kuhn, havia uma diferenca de "paradigmas"entre quern iria financiar a pesquisa e quern iria realiza-la. O meu"paradigma" era politico, enquanto o da organizacao era "comuni-cacional".3

Apesar desta diferenga, ficou decidido que a organizagao pa-trocinadora da reuniao (que nao dispunha de fundos proprios) seencarregaria de atuar como intermediaria no sentido de conseguir odinheiro necessario para a reaUzaQao do projeto. Voltei ao Brasile esperei mais ou menos ansiosamente que algo fosse resolvido dii-

3 Estou Utilizando mais ou menos livremente o conceito de paradigmascientificos discutido por Thomas Kuhn em seu livro The Structure ofScientific Revolutions (Chicago: University of Chicago Press, 1970).

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184 RECONSTRUgAO DE PROCESSOS DEOSOEIOS

rante uns tres meses. Pouco a pouco, como nada acontecia, o assun-to foi esfriandq, as cartas rareavam e o dinheiro nao aparecia.

A reuniao de Paris foi em novembro de 1973. Entre o Natal eo Ano Novo de 1974 recebi um telegrama de New York que diziamais ou menos o seguinte: Money Available Stop Start ResearchImmediately Stop.

Desta forma, somente um ano e um mes depois da reuniao foique os fundos para a realizagao da pesquisa ficaram disponiveis.

Meti maos a obra e comecei a cuidar de contratar pessoal parainiciar o projeto. Havia, no entanto, uma preocupacao: eu iria co-megar o projeto em Janeiro de 1975 e em setembro do mesmo anoestava de viagem marcada para os Estados Unidos para terminarminha tese de doutorado, e isto era inadiavel. Assim, o projeto ti-nha que estar terminado antes da viagem, coisa que nao me davamais do que nove meses para terminar tudo. 0 problema era deorganizagao do tempo: dividir as tarefas de modo a ter tempo defazer tudo durante este perfodo e estar com o relatorio pronto antesde primeiro de setembro, se fosse possivel. Foi.

Em meados de Janeiro chegou ao Brasil o coordenador inter-nacional do projeto, que nao sabia qual era a moeda brasileira eimaginava que Copacabana fosse uma especie de "Promenade desAnglais" a moda do que existia na Riviera Francesa, cbeia deiates ancorados em frente da costa, com muitos turistas. Nao sei oque mais ele aehava do Brasil, mas a julgar por esta amostra,creio que sua imagem do pais devia ser bastante erronea. Assimmesmo, ele insistia comigo que as variaveis que definiam a dissemi-nacao de pesquisa no Brasil eram de ordem "comunicacional".

Assim sendo, voltou, durante sua estada, o problema de nos-sa diferenca de "paradigmas". Ele continuava a considerar (naoimporta o que eu tentasse dizer) os aspectos extrlnsecos da pesquisacombinados com os canais formais utilizados para sua dissemina-cao, enquanto eu continuava a dar importancia primordial as va-riaveis politicas. Alem disto, outro problema surgido nesta ocasiaoe, num certo sentido, relacionado com o problema dos "paradig-mas" era que eu estava preocupado com a disseminagao e com autilizacao (ou nao) dos resultados de pesquisa, enquanto para ele oproblemas cessava no momento em que a pesquisa fosse "lida". Asdiscussoes que nos permitiram chegar a uma posigao de conciliagaoforam longas e penosas, mas finalmente conseguimos, e saiu o ro-teiro de entrevistas a ser utilizado, o qual incorporava questoes rela-tivas aos dois "paradigmas".

De quebra, houve ainda o problema de que eu considerava oestudo a ser feito como urn estudo exploratorio, ao passo que ele de-

VOCE QUER IR A PARIS? 185

sejava um survey. De minha perspective, na medida em que as de-cisoes do FGTS e do PIS haviam sido selecionadas como representa-tivas do processo, eu entendia que nao fazia sentido "eleger umaamostra". Era mais sensato entrevistar o universo dos atores en-volvidos nas duas decisoes, coisa que era fisica e financeiramentepossivel. Isto, no entanto, levantava um problema de carater me-todologico: na medida em que a participagao dos diversos atoreshavia sido diferente tanto em intensidade quanta em qualidadc,nem todos poderiam responder a todas as perguntas que seriamfeitas. Esta, portanto, foi outra opgao que foi necessario fazer, ouseja: se, num estudo exploratorio, era mais importante chegar a al-gumas percentagens corretas a respeito de poucas coisas, ou, alter-nativamente, se seria preferivel ter uma gama ampla, de respos-tas, ainda que menos precisas. Um livro de metodologia recomen-daria, sem diivida, a primeira alternativa; entretanto, minha esco-lha foi pela segunda, ja que, dado o baixo grau de conhecimento arespeito do processo de tomada de decisSes politicas no Brasil, na-quele momento pareceu-me mais importante e mais sensato teruma visao geral que pudesse, de uma forma ou de outra, vir aorientar outros pesquisadores, em vez de buscar um alto grau dede exatidao sobre quase nada. A escolha da forma como os dadosserao coletados, portanto, nao depende somente do desejo do pes-quisador, mas da quantidade de fundos disponiveis, do "estado daarte" num dado momento, e do que considera mais importantesaber. No caso especifico do projeto em questao, minha escolha foiprimordialmente motivada pelo que eu considerava mais relevan-te saber; no entanto, os altos custos de um survey, combinados como pouco tempo disponivel para sua realizacao, tambem contaram.

0 outro problema de magnitude maior a ser discutido naquelaocasiao, este de natureza eminentemente pratica, tinha a ver com aorganizagao financeira do projeto. A serem seguidos os canais "con-vencionais", seria assinado um convenio entre a Fundagao GetiilioVargas e a entidade que administraria o projeto em nome da enti-dade que o financiaria, intermediado pela entidade que coordena-va o projeto no piano internacional. Sugiro que o leitor releia pau-sadamente a ultima sentenca e tente visualizar a quantidade denegociagoes burocraticas, cartas, etc, que seriam envolvidas caso oprocedimento "convencional" fosse adotado. Sendo mais otimista, asolucao do problema tomaria dois meses; sendo mais pessimista,quatro a seis, e o projeto tinha que estar pronto em nove. A esco-lha feita foi por nao assinar um convenio, mas por contratar o pes-soal necessario diretamente atraves da instituicao administradorado convenio em Nova York. Se, por um lado, esta escolha permitiu

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que o projeto fosse iniciado em tempo util, por outro, os pagamen-tos de pessoal, ao longo de todo o projeto, sairam atrasados (masforam todos feitos), ja que o processamento das autorizagoes de pa-gamento era uma questao complicadissima envolvendo assinaturasde varias pessoas e mais o correio.

Nao e em todas as ocasioes que esta simplificagao da adminis-tragao financeira pode ser feita; no entanto, quando e possivel, estae uma escolha melhor, na medida em que minimizam-se negocia-$oes burocraticas, embora nem sempre se minimizem os tramites.

A Realizagao da Pesquisa

Tendo ja tratado todos esses assuntos, nenhum deles abrangido pelostextos convencionais de tecnicas de pesquisa, chegou a bora de co-megar a pesquisa propriamente dita. Como ja foi dito, o objetivoera duplo, resultante da combinacao dos dois "paradigmas". Haviaduas etapas fundamentals de coleta de dados, uma de carater do-cumental e outra envolvendo entrevistas com os atores participantesdo processo de tomada de decisao.

A parte documental foi a mais simples, pois bastou consultarjornais em arquivos, tarefa que foi bastaute facilitada pelo fato deque um dos membros da equipe era casado com uma pessoa quetrabalhava no departameuto de pesquisa de um dos principals jor-nais cariocas: os jornais estavam la, o acesso era facil, e um dosmembros da equipe ainda podia trabalbar perto de sua mulher. 0objetivo desta fase era levantar informagoes basicas a respeito dequem havia participado da decisao (e de quern, havia resistido aela) de modo a que se tivesse uma ideia initial a respeito do um-verso de pessoas^ a serem entrevistadas. Fago questao de frisar umaideia initial, pois posteriormente apareceriam outros atores impor-tantes nas decisoes cujos nomes nunca apareceram no jornalt e decuja participagao so viemos a saber por outros entrevistados. Emoutras palavras, os jornais nos deram a sala de visita da decisao,enquanto os outros entrevistados nos deram a "copa-e-cozinha".

Dada esta situagao, a proporgao que faziamos entrevistas nossouniyerso aumentava com o surgimento de novos atores de cujaparticipagao uao sabiamos auteriormente. Terminamos realizando45 entrevistas.

0 ordenamento da realizagao das entrevistas na fase inicial foiorientado no sentido de "mapear" a decisao de cirua para baixo,isto e, partimos dos atores publicamente identificados com as deci-soes (que eram politicamente tambem os mais importantes) e fo-mos "descendo" para os esca!5es mais baixos da tomada de decisao.

VOCE QUER IR A PARIS? 187

Em termos dos tipos de entrevistados envolvidos, nosso uni-verso incluia, entre outros, dois ex-ministros de Estado (recem-no-meados embaixadores e de partida para seus postos no exterior aprazo curto), um ministro de Estado em exercicio da fungao, urnministro do Supremo Tribunal Federal, diversos senadores e depu-tados, e um grande numero de tecno-burocratas e representantes degrupos de interesse. Um dos fatos importantes era que a maiorparte dos individuos a serem entrevistados ja nao ocupava mais oscargos no exercicio dos quais haviam tornado as decisoes, Comose tratava de membros da elite, nao era dificil localiza-los, 0problema maior era conseguir o acesso para a entrevista, ou seja,conseguir que eles nos recebessem e concordassem em nos concederas entrevistas. Para isto, especialmente no caso dos atores mais im-portantes, foi fundamental que nos utilizassemos de "fiadores", istoe, de outros membros da elite que conseguissem marcar as entrevis-tas atraves do afiangamento de que eramos pesquisadores legitimose nao pessoas que iriam simplesmente tomar o tempo deles comperguntas idiotas. 0 sistema de "fiadores'* foi muito eficiente econsidero-o altamente recomendavel para quem tenha que eutre-vistar membros da elite. Outra coisa importante foi a utiUzagao dosproprios entrevistados com quem nos encontramos em primeirolugar como "fiadores" para outros entrevistadores com quem elestiubam relag5es politicas, pessoais, ou de negocios.

Apesar dos "fiadores", nao conseguimos entrevistar o minis-tro de Estado em exercicio, nem o ministro do Supremo TribunalFederal. 0 primeiro, por se encontrar fora do pais na ocasiao emque conseguimos o acesso, e o segundo por se haver excusado.Terminado o projeto, tenho certeza de que, se houvessemos entre-vistado estes dois atores, a importancia de suas respostas teria sidoapenas marginal, mas isto foi uma coisa que so viemos a salierquando o projeto estava quase pronto. De qualquer maneira, di-i-xamos claro no relatorio que nao haviamos podido entrevistar al-guns atores importantes cujas respostas poderiam ter sido impor-tantes.

Outro ponto a respeito das entrevistas tern a ver com o fatode que existe da parte dos pesquisadores um preconceito a respeitode atores politicos de elite que estejam ocupando, ou hajam oeupa-do, posigoes importantes em tempo recente. Em principle, tende-sea crer que tais atores serao 4tfechados" em termos de dar informa-§oes. Nossa experiencia foi contraria, ou seja, os atores mais impor-tantes tenderam a ser, em media, mais francos e mais informativosdo que os menos importantes. Ignore se esta afirmacao se aplica tam-bem a atores politicos que estejam ocupando posicoes importantes

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no momenta da entrevista, especialmente se a entrevista se relacio-na com algo que estes atores hajam feilo durante sua gestao na-quela posicao. De qualquer maneira, a licao que ficou de nossa ex-periencia foi de que so se vem a saber quao franco um entrevistadovai ser quando se o entrevista. Portanto, presumir que atores taisou quais nao virao a dar informacoes pode, por um lado, deisarde lado informacoes importantes e, por outro, expor o pesquisadora situacoes embaragosas quando seu trabalho for tornado pubHco:se houver inexatid5es, sempre pode um destes atores aparecer paracorrigi-las e alegar — com propriedade, diga-se de passagem —que suas respostas nao estao consignadas pelo simples fato de queninguem Ihe foi perguntar sobre o assunto.

A respeito da tecriica de entrevistar elites, ha um ponto parao qual Dexter chama atengao e que foi confirmado por nos.4 Elealerta o'pesquisador que vai entrevistar atores politicos de elite parao fato de que estes tipos de pessoas, em geral, nao compartilhamdas mesmas premissas dos pesquisadores, ou seja, nos, cientistassociais, teridemos a considerar a atividade politica como sendo mui-to mals sistematizada do que ela na realidade e, quando vivida porum politico ou tecno-burocrata. Para estes, a atividade politica e odia-a-dia e nao uma serie de preceitos, teorias e categorias analiti-cas. No caso' brasileiro, a maior parte destas pessoas desconbece oque a respeito delas escrevem cientistas" sbeiais em seus livros e arti-gos. Elas tendein a estar muito mais preocupadas com o que a res-peito delas escreve a imprensa. Desta forma, as premissas do cientis-ta social, ainda que possam ser corretas, nao sao parte do universode preocupagoes da maioria dos membros da elite politica. Se ocientista social insiste em centrar a entrevista (pu, simplesmente,iniciar a entrevista) "empurrando" suas premissas, ele corre orisco de aparecer aos olhos do entrevistado quer comb um pernos-tico, quer como um ingenuo, coisas que sem diivida prejudicam atarefa.

Cientes disto, optamos por iniciar as entrevistas pedindo aosentrevistadores que nos contassem a bistoria das decisoes segundohaviam sido vividas por eles.

Esta estrategia se provou produtiva. Os entrevistadores fica-vam muito mais a vontade, contavam historias e ilustravam seuepontos com outros casos comparaveis, fato que ajudava o pesquisa-dor a entender a ambience do processo politico. Somente depois dis-to — o que contribuiu muito para "quebrar o gelo" das entrevis-tas — e que entravamos em perguntas detalhadas.4 Lewis Anthony Dexter, Elite and Specialized Interviewing (Evanston:Northwestern University Press, 1970), especialmente pp. 5-7.

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Nossa primeira pergunta era: "Estamos investigando o pro-cesso de tomada de decisao que deu origem ao FGTS (ou PIS) esabemos que o senhor participou de tal ou qual maneira."

Esta pergunta, alem de dar liberdade ao entrevistado para queconte sua historia, tem tambem um outro elemento importante: opesquisador informa nela ao entrevistado que sabe que ele participoue como o fez. A importancia da colocagao do problema desta manei-ra reside no fato de que, se, por um lado, os atores politicos gos-tam de falar de suas experiencias, eles nao gostam de falar a pes-soas que estejam absplutamente "cruas" no assunto, pois se sentemperdendo tempo.6

As respostas recebidas a primeira pergunta (que, afinal decontas, era a que dava o "torn" e o "ritmo" do restante da entre-vista) variaram em duragao, mas foram, de maneira geral, maisamplas e mais extensas do que se houvessemos comegado por umapergunta (ou bateria de perguntas) que desse ao entrevistado aimpressao de que o estavamos "interrogando". Se, por um lado,esta forma de iniciar a entrevista nos dava informacoes mais abran-gentes, por outro existe o risco de que o entrevistador, caso nao te-nha "tarimba" de entrevista, venha a tornar-se repetitive pergun-tando ao entrevistado coisas que ele ja respondeu.

A adoeao desta estrategia, portanto, demanda a utilizagaoi decriterios por parte do entrevistador no sentido de "passar por cima"das perguntas que ja hajam sido respondidas.

No que diz respeito a "trabalhar" com as entrevistas na fasede elaboragao do_relatorio, a ado§ao desta estrategia tem vantagense desvantagens. Do lado das desvantagens, existem duas especial-mente serias. Primeiro, torna-se mais complicado "pescar" infor-magoes nas notas tomadas durante as entrevistas, sobretudo se fo-

5 Creio que existe, da parte de consideravel parcela da elite politicabrasileira uma atitude "colonial" a respeito de pesquisadores de CienciasSociais que faz coin" que estas pessoas concedam entrevistas com muitomais facilidade e deem - muito mais acesso a pesquisadores estrangeiros.sobretudo aqueles - oriundqs de papeis mais "desenvolvidos". Se por umlado isto e v^rdade, por, outro ha uma parcela de culpa da parte de al-guns dos pesquisadores brasileiros que tendem a ir para as entrevistas"muito crus", isto e," sem saber nada a respeito quer do tema quer doentrevistado, coisa qiie cria, por vezes, situacoes desagradaveis e embara-cosas, quando nao ofensivas, para com o entrevistado, Isto, sem falarna sensacao que tem o entrevistado de elite de estar perdendo tempo.Em uma ocasiao um jovem cientista social foi entrevistar o Senador Er-nani do Amaral Peixoto, ex-lider do Partido Social Democraticof atorpolftico atuante no primeiro piano do cenario politico brasileiro desdea decada de trinta e genro de Getulio Vargas, e perguntou-lhe se tinhaalgum parente que houvesse estado envolvido em politica!

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rem inuitas. na medida em que informacoes a respeito de teruassemelhantes aparecem em lugares diferentes nas varias entrevistas.Esta desvantagem e maximizada no caso de projetos onde quanti-ficacao e primordial, mas este nao era o caso do nosso projeto. Se-gundo, surge o problema de que muitas perguntas nao terao sidofeitas, coisa que deixa multos "brancos" aparentes na entrevista.A escolha ou nao desta estrategia depende dos objetivos do projeto.Do lado das vantagens, aparecem muito mais dados "de contexto"que auxiliam o pesquisador a entender o conjunto do processo d«tomada de decisoes, coisa que nao e o caso quando se segue urnroteiro rigido de pesquisa.

A adocao desta estrategia apresenta um outro problema, quetem a ver com o acesso que outros entrevistadores virao a ter aque-les mesmos entrevistados em futuras pesquisas. £ bastante comumem entrevistas pouco estruturadas com elite que os entrevistadosfacam comentarios ou deem informacoes e explicitamente mencio-nem que o estao fazendo em confianga, deixando claro que aquelasinformagoes estao sendo dadas apenas para facilitar o entendimentodo entrevistador, e nao para serem divulgadas. No caso da ocorren-cia desta situacao, cabe ao pestruisador respeitar a confidencialida-de da fonte, em primeiro lugar, por problemas eticos e, em segun-do, porque sua violagao pode vir fechar o acesso aquele ator paraoutros cientistas socials. Trata-se, portanto, nao so de um proble-ma etico, como tambem de um problema de preservar o interesse da"classe". Um ponto importante e que, no caso de ocorrencia des-tas situagoes, nada impede que o pesquisador tente encontrar amesma informaeao em outra fonte publica, ou mesmo em outraentrevista durante a qua! nao seja solicitada confidencialidade. Nocaso de o pesquisador conseguir a informagao de uma destas duasoutras fontes, cessa sua obrigagao de confidencialidade o respeito dofato com a primeira fonte que pediu confidencialidade.

Outro ponto importante a respeito de pesquisas relacionadascom o processo de policy-making se refere a necessidade de entre-vistar os atores poKticos "derrotados" no contexto de uma dadatomada de decisao, ou seja, aqueles atores que foram impedidosde participar da decisao embora quisessem te-lo feito, os que fo-ram eliminados no meio do processo, e os que tiveram suas suges-toes nao aceitas. Em muitos casos, as entrevistas destes persona-gens apresentarao um alto grau de amargura que, se, por um lado,pode diminuir a confiabilidade, por outro pode fornecer informa-£oes relevantes que nao hajam sido mencionadas pelos "vitoriosos".O confronto das entrevistas dos "vitoriosos" com os "derrotados"possivelmente dara ao pesquisador uma visao mais completa e maisequilibrada do processo.

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Finalmente, no que diz respeito ao problema de acesso para en-trevistas, nos utilizamos a estrategia de mandar uma carta antes daentrevista, solicitandc-a, e outra depois da entrevista, agradecen-do-a. Os dois tipos de cartas tem funcoes diferentes. No caso da car-ta solicitando a entrevista, especialmente nos casos em que nao seesta usando um "fiador", a maior parte dos entrevistados nuncarespondeu. E, inclusive, muito possivel, e ate mesmo muito prova-vel, que a maior parte deles nunca tenha sequer visto as cartas,pois elas nunca passaram da mesa de suas secretarias. Entretanto,o simples fato de que a carta haja sido mandada e que se possamenciona-la quando se telefona para marcar a entrevista ajuda mui-to, pois se o entrevistado viu a carta ja sabera do que se trata. Senao viu, dificilmente negara te-la recebido, pois isto dara a impres-sao de que ele nao cuida de sua correspondencia. Quanto a cartaagradecendo a entrevista, ela se coloca no piano da preservacaodoa "interesses de classe". Na medida em que o entrevistador epolido, aumenta a possibilidade de que, quando aquele ator sejacontactado por outro cientista social para uma entrevista, ele ten-da a estar mais predisposto a dar outra entrevista, devido a experi-encia anterior positiva. Uma carta de agradecimento de entrevista,portanto, e uma cortesia que custa pouco e beneficia a todos.

Ainda a respeito deste ponto, alguns entrevistados pedemque o entrevistador Ihes mande uma copia da entrevista para efei-tos de "conferir se esta tudo correto". No caso de ocorrer isto, eobrigagao do cientista social fornecer a copia pelas mesmas razoeseticas e de preservagao do "interesse de classe" mencionadas au-teriormente.

Depois dos Dados

A maioria dos livros de metodologia igualmente nunca diz oque vem depois dos dados no que se refere a parte nao metodolo-gica do processo, ou seja, a elaboragao do relatorio, livro ou artlgo.Howard Becker diz que um trabalho de Ciencias Socials so estapronto quando esta publicado.6 Neste ponto, a cultura academicabrasileira esta sofrendo modificacoes, felizmente. Ha alguns anos, medisse perceptivamente Amaury de Souza que, no Brasil, as pessoastendiam a publicar alguma coisa quando tinham cinqiienta anosde idade para confirmar um prestigio construido na base nao sesabe de que. Hoje em dia a situac.ao esta mudando: as pessoas jasabem que o prestigio se constroi mesmo e publicando, sendo criti-

6 Howard S. Becker, "Dialogo...", citado, p. 17.

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T

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cado, e aperfeigoando e, portanto, e fundamental escrever e publi-car de alguma forma os resultados da pesquisa.

Creio que, em algum momento, todos nos tivemos a fantasiade que iriamos escrever "o livro da vida", e acabamos nao o fazendo nunca. Em materia de livros, as coisas sao como taloes de jogodo bicho: so vale o que esta escrito. Alem disso, como dizia o meusaudoso amigo Joao Ribeiro dos Santos, so se aprende a escreverescrevendo. Nao adianta montar o relatorio na cabega e nunca pas-sa-lo para o papel. Livros na cabeija das pessoas existem muitos,mas so se pode ler os que estao escritos. Esta e a parte de que voume ocupar nesta segao do artigo.

No caso do relatorio do projeto que aqui esta sendo discutido,fiz uma coisa aparentemente simples, mas que tern seus aspectospenosos: escrevi. Achava que o relatorio era perfeito. Depois, rece-bi criticas mais criticas, fiquei chateado, mas, afinal, passou. 0que ficou claro foi que o primeiro relatorio e o mais difieil, o se-gundo e mais facil, o terceiro, mais ainda, e assim por diante. Alemdisto, depois a gente cria calo para as criticas, nao no sentido denao aceita-las, mas no sentido de cousidera-las normais, "cavacos dooficio", por assim dizer.

No que diz respeito ao relatorio, uma vez que a gente seconvenga de que ele nao vai ser perfeito, ha duas outras coisasque ajudam. Primeiro, ter uma data para entregaj e, segundo, es-creve-lo no periodo mais curto de tempo possivel.

E importante lembrar que o fato de que se demore mais tem-po para escrever uma obra nao a fara necessariamente nem maisperfeita nem melhor, e acaba sendo mera desculpa para naoescrever. Alem disso, a existencia de uma data para entregar umrelatorio ou urn original obriga a gente a se envolver com a partemais penosa e menos excitante do processo de pesquisa, no meu en-tender. No caso do relatorio deste projeto, ele foi escrito em maisou menos dois meses. Dele foram tiradas 100 copias mimeografa-das e ate hoje ainda nao foi publicado sob forma de livro, emboraja tenha resultado num artigo substantive,7 bem como no preseuteartigo. Nao sei se ainda escreverei um livro a respeito do tema, coisaque depende de rever o relatorio original, mas, passado esse tempotodo, o espago que o assunto ocupa na cabeca vai diminuindo, e agente acaba nao fazendo. Assim sendo, quanto mais rapido se ter-

7 Alexandre de S. C. Barros e Axgelina M. C. Figueiredo, "Dissemi-nation and Use of Social Sciences Research Among and By Policy-Ma-kers: Findings of a Brazilian Case Study", Interciencia, volume 2, nti-mero 2, 1977.

Vocfi QUER IR A PARIS?

minar tudo, inclusive a publicagao, mais provavel e que o processoocorra e menos custoso psicologicamente.

Terminada a versao mimeografada, havia um problema serio:afinal de contas, um dos temas de nosso projeto era como se disse-minavam informagoes de Ciencias Sociais entre policy-makers, e uoshaviamos descoberto bastante coisas a respeito do assunto. Era horade por em pratica o que haviamos descoberto, na medida em quedisseminar a pesquisa era um processo diretamente relacionadocom seu conteudo substantivo. Nos haviamos descoberto tanto meiosquanto canals politicos e "comunicacionais" (e aqui dou a maoa palmatoria — mas so pela metade — ao coordenador internacio-nal do projeto) o/ue contribuiam para a melhor disseminagao dosresultados da pesquisa. Nao se chegou, por razoes economicas e deordem pratica, a implementar todas as conclusoes da pesquisa emtermos de disseminagao, mas ainda assim fizemos o que foi possi-vel.

Distribuimos entre muitos de nossos entrevistados copias dorelatorio, entregues pessoalmente ou atraves de "fiadores" ou in-termediarios que, por sua posi§ao politicamente estrategica, ajuda-vam a melhor disseminar os resultados (esta havia sido uma dasprincipals conclusoes do relatorio). Nao tivemos qualquer especiede feedback a respeito da pesquisa da parte de policy-makers. En-tretanto, isso de ha muito deixou de me assustar, pois uma dascoisas que tambem descobrimos e que, contrariamente aos acade-micos, que se manifestam sobre resultados de pesquisa, os policy-makers tendem a ficar calados, confirmando a observacao de Wan-derley Guilherme dos Santos de que o Brasil e um pais onde naose tern feedback.

Decisoes Criticas Nao-Antecipadas

Dentre as impressoes erradas que os livros de tecnicas de pes-quisa dao esta a de que, se o pesquisador estiver certo, a pesquisanao pode dar errado. 0 maximo de concessao que os livros fazemse refere as hipoteses do pesquisador. Segundo os textos, se as hi-poteses eram boas, a pesquisa vira a confirma*las; caso contrarioelas serao desconfirmadas. Afora isto, raramente os livros se preo-cupam em dar ao leitor uma visao das dezenas de coisas que podemdar errado na pesquisa, coisas estas de carater nao-metodologico,nao-tecnico e nao-epistemologico. Desta maneira, nunca os livrosmencionam casos de entrevistados que foram para o exterior, deverbas que acabam antes do fim da pesquisa, de datilografas quecortam o dedo, de computadores que quebram, de filhos que jo-gam todos os cartoes IBM pela janela, e coisas do genero, todas

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194 RECONSTRUgAo DE PROCESSOS DECIS6RIOS

elas passiveis de acontecer. Neste sentido, e importante ter em men-te que nao basta fazer belos projetos, mas e importante fazer pes-quisas, ainda que nao tao belas, para nao se correr o risco de in-corporar a frustragao dos planejadores que fazem maguificos pia-nos (uma bela arte em si) mas que nunca se concretizam nemtampouco sao implementados. Estar atento para o fato de que pes-quisas sao sujeitas a acidentes, e estar preparado para eles, evitaque, quando eles ocorram, as energias da equipe passem a ser todasmobilizadas no sentido de tentar resolve-los, coisa que, em geral,tende a autofagicamente destruir um projeto.

Vou resumir nesta segao alguns dos temas ja mencionados an-teriormente e langar alguns outros novos a fim de dar uma ideiacompacta da quantidade de potenciais "acidentes" que podem setornar cumulativos, arruinando a pesquisa. A solugao destes pro-blemas pode, em muitas ocasioes, implicar na adogao de heterodo-xias_metodol6gicas que, se, por um lado, nao produzem as pesquisastao perfeitas que o pesquisador desejou, por outro fazem com quealguma pesquisa seja feita e que algo se agregue ao conhecimento.Em suma, trata-se de um problema de se se deixa tudo perder, ouse se tenta salvar os dedos, ainda que seja inevitavel que se vao osaneis. No caso do projeto em discussao os problemas foram os se-guintes:

1. O problema dos "paradigmas" — No fundo, ele signifi-cou apenas que o pesquisador queria fazer uma eoisa e o finan-ciador queria outra. Se o cientista social cede as pressoes do finan-ciador e abdica de fazer aquilo em que esta interessado, o resultadotende a ser desastroso, na medida em que termina por envolver-seem algo que nao Ihe interessa e que passara a ser tratado apenas bu-rocraticamente, no pior sentido do termo. Por outro lado, se o pes-quisador nao cede de maneira nenhuma, acaba por nao fazer a pes-quisa, quase sempre por falta de meios materials. De maneira geral,e possivel conciliar os interesses de ambos a fim de que o cientistasocial tenha o financiamento para coletar os dados correlates queIhe sao indispensaveis, bem como aqueles que sao indispensaveis aofinanciador. Desta forma, o pesquisador pode responder as pergun-tas do financiador e ter os dados para posteriormente trabalha-loscomo melhor Ihe interessar, do ponto de vista academico e intelec-tual.

2. 0 profalema da propriedade dos dados apos o termino dapesquisa — dependendo do financiador, este pode vir a ser umproblema importante. De maneira geral, financiadores "academi-eos" nao se important muito com isto; entretanto, financiadores de

VOCE QUER IR A PAWS? 195

pesquisas do tipo "aplicado" tendem a ser mais "egoistas" em re-lagao aos dados. Da perspectiva do pesquisador, qualquer uma dasduas solugoes — que os dados pertengam a ele, ou que pertengamao financiador — e aeeitavel. No entanto, e importante que estcponto fique claro desde o inicio do projeto de modo a evitar mal-entendidos posteriores, pois e extremamente frustrante para umpesquisador ter que coletar uma montanha de dados, usar umaparcela deles num relatorio e nao poder utilizar-se do resto para seutrahalho academico.

3. 0 produto da pesquisa — Esta e outra area importante aser acordada entre financiador e pesquisador desde o inicio do tra-balho, ou seja, o que se espera que a pesquisa venha a produzircomo resultado final. Um relatorio verbal? Um sumario? Um Ion-go relatorio de tipo "academico"? Uma serie de sugestoes de poli-ticas? Um livro? Um relatorio confidencial? Alguns artigos? Qual-quer pesquisa pode produzir um desses outputs, ou uma combinagaodeles. A importancia deste ponto reside no fato de que se o assun-to de qual(o resultado final da pesquisa ficar acertado desde o ini-cio evitam-se problemas posteriores.

4. 0 problema de quando comegar o projeto em fungao dasdisponibilidades financeiras — Em muitas ocasioes, existe a tenta-gao de comegar um projeto antes de que as verbas estejam efetiva-mente liberadas. Esta tentagao pode vir tanto do pesquisador, queesta ansioso para comegar a investigar um assunto de seu interesse,quanta do lado do financiador, que deseja que um assunto "saia daestaca zero" para justificar sua posigao perante seu empregador; ouo que seja. Se a tentagao for do lado do pesquisador, e o que elepretender fazer nao envolver nada mais do que seu trabalho indi-vidual, nada impede que se adote esta alternativa, embora eu naoa ache uma boa ideia, pois contribui para a perpetuagao da imagemda pesquisa de Ciencias Sociais como uma atividade amadorislica.Entretanto, se o trabalho a ser envolvido for de terceiros, acho queo pesquisador nao deve, de forma alguma, iniciar o trabalho emfungao de verbas hipoteticas ou prometidas. Isto por duas razoes:uma, a razao profissional mencionada anteriormente, e outra, pelofato de que em muitas ocasioes as verbas acabam por nao se mate-rializarem e termina o pesquisador com uma equipe que ele naopode pagar ou com servigos contratados para o pagamento dos quaisnao ha numerario.

5 . 0 tamanho da equipe — Apesar de os livros dizerem quea pesquisa vai correr como a receita, ja vimos que isto nao e verda-de. Desta forma, e unportante que o pesquisador tenha uma certaflexibihdade na equipe — flexihilidade esta que deve refletir-se na

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196 RECONSTRUgAO DE pROCESSOS DECISORIOS

proposta orcamentaria — no sentido de deixar claro ao financiadorque, segundo suas estimativas, a pesquisa deve custar xis cru-zeiros e envolver ipsilon mimero de pessoas, mas que e possivel quehaja aumentos ou diminuicpes em funcao do "comportamento domundo". Assim e bom, do lado orgamentario, ter um item "inespe-rados" ou "contingencias" e, do lado da composicao da equipe, naocontratar gente demais no inicio. Em outras palavras, a melhor al-ternativa e escalonar a contratacao da equipe e ver como vao fun-cionando as coisas. Se o pessoal for suficieute, ainda que em nume-ro inferior ao da proposta orcamentaria, tanto melhor; se nao for,ai entao contrate-se mais pessoal. Ainda neste ponto, se for umapesquisa que envolva diversas etapas, e interessante contratar pes-soas para etapas especificas pois, a proporgao que a pesquisa pro-gride, e possivel contratar alguns dos membros da equipe que sesaem melhor para continuar numa etapa posterior.

6. Relacionamento institucional — A maior parte das pes-quisa-s envolve pelo menos dois atores institucionais, um financia-dor e um "executor" — "administrador". Se o numero de institui-goes envolvidas puder ser mantido neste nivel, tanto melhor, poisminimizam-se negociagoes burocraticas e pequenos problemas quese multiplicam a proporgao que se somam entidades participantes,

- aumentando os custos financeiros e nao financeiros de administra-cao. Se isto nao for possivel, envolvam-se tantos atores quantosforem indispensdveis mas, neste caso, e importante estar preparadopara o aumento de contactos ao longo da realizagao da pesquisa,com o conseqiiente aumento de potenciais mal-entendidos.

7. Quando acaba o envolvimento do pesquisador com o pro-jeto? — Esta e uma pergunta muito mais importante do que pare-ce a primeira vista. For um lado, ela esta relacionada com as moti-vacoes iniciais da realizacao da pesquisa. Se vivessemos num mun-do de informaeao perfeita e gratuita, este nao seria um problema,pois sempre se poderia acoplar o financiador certo com o pesquisa-dor adequado. Entretanto, como ja foi visto, as coisas nao sao assim.Existem negociagoes e concessSes de parte a parte de modo a conse-guir uma area de eoincidencia entre os interesses do financiador eos do pesquisador. Este fato gera uma consequencia: o pesquisador,em muitas oeasioes, acaba, por seu envolvimento com um determi-nado projeto, virando um especialista numa area na qual ele jamaisiruaginou que viria a especializar-se. Sao muito mais comuns do quese pensa os casos de cientistas socials que se tornam especialistasnuma area porque uma vez se envolveram com um tema e depoiscnaram, de uma forma ou de outra, uma imagem publica de"experts" da qual nao mais conseguem desligar-se. Este resultado

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tende a ser inevitavel quando seu trabalho naquela area de conhe-cimento for publicado; a partir deste memento, seus contatos coma area deverao aumentar. Muito possivelmente, ele sera consultadopor indivfduos e instituigSes a respeito do tema, outros organismosoferecerao a ele financiamentos para continuar estudos naquelaarea, etc.

Da perspective do pesquisador, seu interesse pode cessar ounao, mas de qualquer maneira ele sera reconhecido publicamentecomo alguem que "enteude do assuuto" e se tornara, num certosentido, prisioneiro dos trabalhos que realizou.

Post-Scriptum

Relenilo o trabalho antes de encerra-lo, noto que nem todosos pontos em que toquei derivaram diretamente da experiencia como projeto de disseminagao, mas naturalmente incorporei, por assimdizer, a proporgao que o trabalho ia sendo escrito, experiencias deoutros projetos de pesqiiisa de que participei, alem daquele cujahistoria prometi contar. Nao acho que isso seja mau. Dado o obje-tivo do artigo, ao contrario, acho que e ate bom. Incorporei tantasexperiencias quantas me ocorreram a respeito do "cotidiano da pes-quisa", e acho que isso sera positive para o leitor.

Finalnaente, noto tambem que, em alguns pontos do artigo,fujo da promessa inicial de contar uma historia e assumo um tornde "dar conselhos", coisa que nao foi inicialmente planejada. Massaiu assim, e tambem nisso nada vejo de errado: tome o leitoros "conselhos" como tais, seguindo-os ou nao, dependendo de suadisposigao. No entanto, mais uma vez refirmo que tanto a his-toria (ou conjunto de historias, se se preferir) quanto os "conse-lhos" sao todos resultado de experiencias praticas — e uteis •— mui-tas delas dificilmente encontraveis em livros.

Hyde Park, Chicago, abril de 1977

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A RECONSTRUgAO HIST6RICA DEPROCESSOS POLiTICOS E SOCIAIS

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Coroneis e Burocratas no Brasil Imperial:Cronica Analitica de uma Sintese Historica

FERNANDO URICOECHEA

"Buth a method has the remarkable traitof being nothing in the abstract; it is pre-cisely in the application or execution thatit is a method."KIEHKEGAARD, Concluding Unscientific Post-script.

Esta fora de duvida que a reflexao critica sobre a metodologiada investigacao empirica e, em particular, sobre as continuidades edescontinuidades entre canones metodologicos e comportamentopratico de pesquisa constitui urn. bom indicio do grau de maturida-de alcancado por uma disciplina academica. De fato, uma reflexaode tal natureza evidentemente implica a fertil premissa de que aempresa cientifica nao se exaure ou nao esta totalmente contida naaplieagao formal de principios metodologicos e, em conseqiiencia,tambem na importante proposigao de que a empresa cientifica e elamesma tao historica quanto os objetos aos quais ela se aplica. Emoutras palavras, que a apropriagao do objeto de pesquisa por parte dosujeito tern a sua propria historia, seus eurekas e serenctipities.Existe ademais outra implicagao que e de particular relevanciadentro do contexto atual, a saber, a consciencia de que o processode criagao cientifica tambem compartilha de uma dimensao este-tica: existe na obra da ciencia como na obra de arte urn ingredien-te de subjetividade, de iniciativa individual, de interpretagao ori-ginal que nao estao contidas a priori nas formulas e nos procedi-

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202 A RECONSTRU^AO HISTOEICA

mentos de metodo.1 Fora de dtivida esta tambem que a necessi-dade de refletir criticamente sobre as tensoes e descontinuidadesentre metodo formal e investigagao empirica deve-se em parte aoformalismo e mitificacao do metodo pelos quais o treinamento aca-demico e tao responsavel. 0 divorcio ordinarip entre teoria e prati-ca, divorcio dolorosamente experimentado pelo estudante, tern le-vado a uma concepcao do metodo como um conjunto de formulascuja aplicagao mecanica abracadabriza os achados.

Quica uma boa maneira de ilustrar o alcance da responsabili-dade do academismo pela representacao enganosa de uma conti-nuidade entre canones metodologicos e sua aplicagao empirica ?e-ria apresentando as reacoes intelectuais de academicos e nao acade-micos ante esse topico. Parece haver pouca duvida de que a pro-blematizacao dessa questao e um indicador da surpresa com que osujeito reage ao ficar ciente da presenga dessa descontinuidade. Ocontraste entre um cientista social academico contemporaneo comoAmraham Kaplan, por um lado, e Karl Marx, um cientista socialnao-academico, pelo outro, ressaltara a diferenca no tipo de reacao.

Tres geragoes antes de Kaplan, Marx ja havia distinguido noPrefacio a segunda edigao de 0 Capital o que os sociologos contem-poraneos usualmente atribuem ao autor de The Conduct of Inquiry,isto e, a distingao entre a logica de investigagao (logica-empregada)e a logica do relatorio final (logica reconstruida). Nas palavras deMarx:

Naturahnente, o metodo de apresentagao tern que dife-rir na sua forma do metodo de pesquisa. Este ultimotern que se apropriar em detalhe do material, analisaras suas diferentes formas de desenvolvimento, tragar assuas conexoes internas. Si5 depois de esse trabalho estarcomplete e que o movimento real pode ser descritoadequadamente. Quando isso e feito com exito,quando a vida do objeto (subjec-matter) se reflete ide-almente como num espelbo, entao parece como se ti-vessemos diante de nos uma mera construgao a priori.2

1 A importancia metodologica da dimensao estetica foi apontada porKant. Segundo ele, o jui'zo estetico — com o seu princfpio da finalidadeformal da natureza — prepara o caminho para que o entendimento possaaplicar o conceito de finalidade a nossa representacao do mundo. Veja-se a sua Critique of Judgment (Nova York: Hafner Press, 1951).2 Karl Marx, Capital: A Critique of Political Economy (Nova York;The Modern Library, 1906), trad, de Samuel Moore e Edward Aveltng,Prefacio a segunda edigao, pp. 24-25. Grifos meus.

CORONETS E BUROCRATAS NO BRASH. IMPERIAL 203

O que para Marx e um datum, uma distingao evidente daqui-lo que e parte constitutiva da rotina da investigagao, torna-se paraKaplan, num topico problematico, um "topico relative a forca nor-mativa da logica com relagao a ciencia."3 0 carater problematicoque Klapan atribui a tal topico fica bem manifesto na observa-cao seguinte:

Grande parte da questao gira em torno de se a cienciae vista como um corpo de proposicoes ou como um em-preendimeuto que as gera; como produto ou como pro-cesso. Uma exposicao das normas que tem a ver com oproduto final {the finished report] de uma investigagaobem que poderia esperar-se que deferisse de outro preo-cupado com a conduta da propria investigagao.4

Em contraste com a visao de Marx, para quern a tensao entreas duas logicas e dialetica e organica, nao simplesmente analitica econceitual, para Kaplan a tensao e, dada a natureza probabilisticade sua ocorrencia, apenas problematica.

E esta tensao radical, iniludivel e dialetica entre pratica deinvestigagao e canones metodologicos que esta ganhando terreno esubstitumdo a postura "ilustrada" de academicos sofisticados comoKaplan (postura superior, naturalmente, a dos realistas metodolo-gicos ainda sem consciencia da tensao em primeiro lugar).

No entanto, a distincao entre logica-empregada e 16gica-re-construida e, a rigor, incompleta quando a distingao e consideradaa partir do proprio princfpio dialetico de classificagao que a gera.Existe, com efeito, uma distincao que e igualmente instrutiva paraa compreensao da praxis da pesquisa: a distingao entre a logica-empregada e o que eu gostaria de chamar a logica-antecipada. Opapel desta ultima e ocupar-se do desenho da pesquisa, da estrate-gia metodologica a ser empregada e das teses a serem elaboradasou das hipoteses a serem verificadas. E possivel desta forma captu-rar tres momentos em toda pesquisa: a logica-antecipada, a logi-ca-empregada e a logiea-reconstruida, esta ultima sendo a srntescdas duas anteriores.

3 Abraham Kaplan, The Conduct of Inquiry: Methodology for Behavio-ral Science (Sao Francisco: Chandler Publishing Co., 1964), p. 6.4 Op. cit., p. 7. Grifos meus.

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204 A HLSTORICA

0 presente trabalho e apenaS uma exposigao dessas tensoesocorxidas numa pesquisa referente a organizagao patrimonial do es-tado burocratico brasileiro durante ° seculo IX.°

II

Para os propositos expositivos deste trabalho, e possivel captu-rar tres momentos nos quais foram mais protuberantes as descon-tinuidades, isto e, as discrepancies entre a "logica-empregada" e alogica reconstruida: primeiro, as versoes do problema; segundo, adefinigao da metodologia; e, terceiro, a selegao de estrategias efontes.

Muito embora o trabalho de pesquisa para a monografia men-cionada acima tivesse sido desenvolvido entre o ultimo trimestrede 1974 e o ultimo trimestre de 1976, houve versoes previas doproblema que tiveram algurna influencia na definigao da area depesquisa. A apresentagao mais geral e ambiciosa do problema foiformulada como projeto de pesquisa para um semiriario de pos-gra-duagao dirigido por Arthur L. Stinebcombe no Departamento deSociologia da Universidade da California em Berkeley.

O problema que era de maior interesse nessa epoca consistiana compreensao e identificagao das forgas que historicamente leva-ram o aparelho administrativo de diversos estados politicos a tor-nar-se burocratico. Essa questao emergiu de uma insatisfagao pes-soal com o tratamento sociologico caracteristico da epoca com res-peito as burocracias publicas. A maioria desses estudos consistia emmonografias que analisam as organizagoes burocraticas "a partir dedentro". Pouca coisa se diz sobre a rede de relagoes mantidas entrea organizagao e a sociedade maior e muito menos ainda sobre agenese dessas estruturas administrativas.0

Uma primeira abordagem do problema foi feita mais em ter-mos do grau de poder politico concentrado nas maos das burocra-cias puhlicas do que em termos so do processo de burocratizagaopropriamente. 0 objetivo consistia em estudar as condigoes histo-ricas que aproximaram alguns sistemas politicos a uma especie de

5 The Patrimonial Foundations of the Brazilian Bureaucratic State:Landlords, Prince and Militias in the xixth Century (Berkeley: Universityof California, Tese de Doutorado, 1976), versao em portugues sera pro-ximamente publicada pela Bditora Difel.6 Boas excepoes sao Philip Selznick, TVA. and the Grass Roots: A Studyin the Sociology of Formal Organization (Nova York: Harper Torchbooks,1966) e Reinhard Bendix, Work and Authority in Industry: Ideologies ojManagement in the Course of Industrialization (Nova York & Evanston:Harper Torchbuoks, 1963).

CORONEIS E BUROCRATAS NO BRASH, IMPERIAL 205

despotismo burocratico, ao passo que outros optaram por versoesmais brandas de poder que os aproximavam da nogao de burocraciade bem-estar social. 0 objetivo era, pois, um exame das fontes his-toricas do autoritarismo burocratico.

Minha orientagao teorica geral pressupunha que as sociedadespolfticas viram burokrdticas, isto e, que o aparelho burocratico tor-na-se mais proeminente na formulagao de politicas, nos casosonde o processo de centralizagao do poder ocorre em contextos 1)nos quais nao ha uma tradigao estabelecida de participagao popularna decisao das questoes politicas mais miportantes, de forma quetal praxis possa ter servido como um alicerce para uma oposigao or-ganizada contra as tendencies centralizantes das agencias adminis-trativas; e 2) nos quais o processo de centralizagao administrativaprocedeu sem nenhuma oposicao por parte das classes proprieta-rias e privilegiadas.

Essa primeira versao surgiu da con^iccao de que os funda-mentos das formas contemporaneas de "despotismo burocratico"dentro de uma comunidade politica podem ser atribuidos histori-camente ao estilo de formagao estatal, quer dizer ao periodo ini-cial de gestagao da burocracia publica nos circulos mais centricosdo aparelho de estado. fi entao, de fato, quando aparecem os arran-jos organizacionais e institucionais caracteristicos, isto e, a formapeculiar e o estilo de administragao que dao uma configuragao pre-cisa a estrutura e a organizagao politica. E entao, por exemplo, quese estabelecem as formas peculiares de acomodagao, articulagao eintegragao de diferentes interesses sociais vis a ms o aparelho admi-nistrativo do estado. O modo como o aparelho burocratico "pro-cessa", por assim dizer, esses interesses diversos vern a definir e aconstituir as regras do jogo entre "burocracia" e "sociedade". Essasregras vao desde a definigao de areas de arbitrio burocratico ate ajustificagao eventual da forga e da coergao, da conciliagao, coopta-gao, corrupgao, patronato, etc. Historicamente, todas essas praticasse estabeleceram e foram graduahnente definidas atraves da longabatalha do poder burocratico contra todo tipo de grupos e associa-§6es. Institucionahnente, elas viraram as novas regras do jogo po-litico — na medida em que as praticas de governo por parte daselites burocraticas diferiam das praticas patrimoniais e feudais queconstituiam o painel de fundo dessa evolugao politica. Gradual-mente essas regras foram se institucionalizando (quer na formaestereotipada de um direito administrativo que regulava as relagpesentre o estado e a sociedade civil, quer na forma de uma "tradigaoe de convengoes piiblicas mais ou menos aceitas) em grau tal queeventualmente contribuiram para definir um estilo politico nacio-

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206 A REcoNSTRugAo HISTORICA

nal", uma cultura politica "nacional", etc.7 Enfira, a prioridadeemergeute quer de uma orientagao politica quer de uma orientagaoadministrativa da burocracia constituia o precipitado de toda essaluta.

Em resumo, a forma do relacionamento entre a sociedade eseu aparelho administrative depends fundamentalmente do modocomo as diversas forgas e interesses sociais conseguem que seus va-lores, direitos e prerrogativas sejam veiculados e reconhecidos pelaburocracia; e, em segundo lugar, a faurocracia desenvolve um corpoestabelecido de praticas e um tipo de orientagao como resultado fi-nal desse proprio relacionamento.

A versao original do projeto objetivava ilustrar esse esquemade interpretagao mediante uma comparagao historica na qual secontrastassem o estilo de formagao estatal das burocracias autori-tarias com o das burocarcias nao autoritarias. Esperava-se per adescoberto, mediante o exame do processo de formagao estatal daPrussia, Franga, Inglaterra, Estados Unidos e Colombia, padroes Slg-nificativos de desenvolvimento politico aos quais poder-se-ia impu-tar as diferengas no comportamento burocratico. Confiava-se quemediante o descobrimento do tipo de contexto estrutural a partir d«qual iniciou-se a diferenciacao dos orgaos centrals de governo con-tribuiria para determinar a orientacao politica ou administrativado funcionalismo burocratico; isto e, que as variagoes no processohistorico de centralizagao eram importantes para explicar as varia-coes no carater da praxis burocratica. Para poder validar tal inter-pretagao era precise, de acordo com o ponto de partida teorico ori-ginal, demonstrar empiricamente que a Colombia, os Estados Uni-dos e a Inglaterra tinham desenvolvido formas concretas de oposicjao"aristocratica" ou "senhorial" organizada junto com uma oposigaolocal organizada com respeito ao processo de centralizagao adminis-trativa e que estas comunidades politicas diferiam tipicamente nes-ta dimensao da experiencia tida pela Franga e pela Prussia.

A versao teorica anterior constituiu a logica-antecipada portras da minha monografia sobre o desenvolvimento do estado buro-cratico brasileiro durante o seculo XIX. Muito embora eu tivesse ela-borado algwmas racionalizacoes para justificar como sendo empiri-camente viavel como tese de doutoramento uma pesquisa funda-da essencialmente em fontes secundarias, houve outras considera-goes praticas — entre elas minha vinda ao Brasil para ensinar e

7 Alexis de Tocqueville foi um dos primeiros sociologos que ressaltarama relevancia da interacao entre diversos tipos de arranjo politico e acultura politica de um povo. Veja-se Democracy in America (Nova York:Schocken Books, 1961), vol. 1.

CORONEIS E BUROCRATAS NO BRASIL IMPERIAL 207

trabalhar no IUPERJ — que me levaram a modificar o proietooriginal e a definir um projeto menos abrangente.8

Igualmente importante para a reconstrugao monografica finalfoi a logica-antecipada entre o periodo de minha chegada ao Brasilno primeiro trimestre de 1973 e meados de 1974. Antes que eupudesse me embarcar em qualquer processo concrete de investiga-cao empirica no Brasil, era preciso que a versao teorica ganhasseprimeiro certo grau de especificidade historica no que diz respei-to a historia social e institucional e ao desenvolvimento politico bra-sileiro. A aquisigao desse complexo basico de informagao deu-se si-multaneamente junto com a leitura da literatura basica e especia-lizada sobre a questao da formagao estatal no Brasil. l£ desnecessa-rio enfatizar, naturalmente, que, execao feita aqueles textos maisintrodutorios e simplificados, a informacao sobre os processes His-toricos basicos se configurava e se condicionava pela postura assu-mida pelo autor respective vis a vis a questao da formacao estatalbrasileira. No fundo, isto e, a informagao sobre o movimento his-torico durante o passado brasileiro, em grande medida, transfor-mou-se num conhecimento sobre as diferentes escolas de interpre-tacao das relagoes estabelecidas entre o estado e a sociedade civil.Os antecedentes literarios da logica-empregada desenvolvida duran-te esse segundo memento encontram-se na classica controversia brasi-leira sobre o estado e a sociedade. A questao controversa para o pro-cesso de reconstrugao historica reside na avaliagao dos graus rela-tives de poder do estado e da sociedade brasileiros, o grau de cen-tralizagao e descentralizagao, o volume de autoridade central vis avis o volume de poder local, etc. !E a adogao de um desses dois polosdo continuum que estrutura a representa§ao intelectual do desen-volvimento historico do estado brasileiro moderno.

8 Economia de tempo foi a primeira racionalizacao para o emprego ex-clusivo de fontes secundarias. Uma segunda foi a crenca (valida) de quea informacao mediante fontes secundarias dispensa o estabelecimento dograu de validez e do significado da informacao obtida de outra forma.Uma terceira tinha que ver com o processo de interpretagao: via de re-gra, o significado da informacao historica depende do contexto do qualse deriva tal informacao. Agora a elaboracao desse significado 6 levadatao a serio pelos historiadores que eles tern justificado a classificacao dapesquisa historica em a) pesquisa dedicada ao estabelecimento da valideze do significado das fontes historicas; e b) pesquisa dedicada ao desen-volvimento de relacoes sistematicas entre fenomenos historicos. A pri-meira, a pesquisa "que cria fatos", por assim dizer, e tradicionalmente cha-mada de analise historica; a segunda, a pesquisa "que cria interpretacoes"tem sido chamada de smtese historica. £ essa divisao institucional do tra-balho cientffico entre os historiadores, alias, o que confere urn cardterautorizado e confidvel as fontes secundarias — carater de que nossa in-formacao quotidiana carece.

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208 A RECONSTRUgAo HlSTORICA

Sem diivida, os dois polos tern recebido suficiente numero deadeptos. Com efeito, existe uma escola de interpretagao representa-da por Faoro,9 que considera que a forga institucional mais impor-tante por tras do processo de desenvolvimento de um sistema na-clonal de instituigoes foi o Estado e o seu aparelho administrative.Uma burocracia corporativa e centralizada teria sido capaz de con-trolar as redeas de poder e de sustar o desenvolvimento de classeslocals dominantes. Nesta versao, a sociedade era fraca e o estadoera forte. Para otitra escola, quiga a mais popular e com maioraceitagao, argumenta junto com Buarque de Holanda e Nestor Du-arte10 que o oposto foi, na verdade, o caso real: nao so existia umaprivatizagao excessiva das bases do poder e da autoridade, mas oEstado era que dependia das — 'e era controlado por — forgasagrarias da sociedade. Houve, pois, uma organizagao feudal da co-munidade politica que foi possivel pela imensa quantidade de po-der nas maos dos senhores de terra. Em lugar de um estado buro-cratico poderoso e centralizado, argumenta essa escola, o que existiude fato foi um Estado descentralizado com caracteristicas feudais.

A relevancia deste debate brasileiro para o problema formula-do antes em Berkeley era obvia: o jogo politico que se estabeleceuhistoricamente entre o Estado brasileiro e a sociedade agraria foium fator importante para compreender as caracteristicas posterio-res da vida institucional brasileira. Era natural, entao, que eu mesubmergisse dentro dessa literatura com a esperanga de achar alios dados necessaries para dar alicerces empiricos a minha propriainterpretagao.

O grosso dessa literatura, contudo, esta insxificientetnente do-cumeutado no que diz respeito a sua evidencia empirica. Geral-mente o trabalho de interpretagao nao tern apoio em foutes prima-rias mais ou menos imunes a uma leitura controversa mas se baseiaem fontes secundarias que sao o produto de uma interpretagao an-terior. Alem disso, as premissas da interpretagao restringem seria-mente a possibilidade de reeonstruir processes historicos em termosdiferentes aos termos dualistas do debate. Existe, isto e, um pos-tulado monista por tras de muitos destes trabalbos de tal formaque, por exemplo, o a priori de um Estado forte e uma sociedadefraca e vice-versa. Por exemplo, se se postula a presumida forga deum estamento burocratico, entao a burocracia estatal e concebida

0 Raymundo Faoro, Os Donos do Poder: Formagao do Patronato Poli-tico Brasileiro (Rio de Janeiro, Porto Alegre, Sao Paulo: Editora Globo,3958).10 A Ordem Privada e a Organiza$ao Politica Nacional, 2.a ed. (SaoPaulo: Companhia Editora Nacional, 1966).

CORONEIS E BUROCRATAS NO BRASIL IMPERIAL 209

como o ator principal do drama historico; se, pelo contrario, a ^dados revelam a existencia de um poderoso estrato de senhores deterra, entao e o Estado que e representado como um instrumentodas elites agrarias. Quer administrativo quer agrario, geralmentese postula uma interpretagao monista como o esquema apropriadopara revelar os padroes de desenvolvimento historico.

A literatura anterior, enfim, e tambem debil desde uma pers-peetiva metodologica, particularmente no seu emprego do metodocomparative. Quiga a deficiencia mais generalizada no empregodesse metodo acha-se na negligencia das mediagoes historicas con-cretas como instrumento de imputagao causal. Em geral nao seenfatiza suficientemente que o metodo comparative, ou melhorainda, o canon da diferenga unica sobre o qual esta baseado o me-todo, revela causagao apenas quando comparamos estados antece-dentes de um caso singular; efetivamente, e so entao quando pode-mos observar ou detectar uma mudanga com a qual podemos asso-ciar um processo de causagao. Porem, quando o canon e emprega-do para a comparagao de proposicoes empiricas, em lugar de esta-dos antecedentes, o que observamos nao e uma mudanga, uma ocor-rencia, mas apenas uma diferenga na classe de causas. Estritamen-te falando, no segundo caso nao observamos uma ocorrencia masconceitualizamos uma diferenga. O processo de abstragao caracte-listica deste segundo tipo de aplicagao do canon simplesmente ge-neraliza proposigoes causais que tinham sido previamente estabele-cidas mediante a aplicagao do canon a casos individuals, empiricosdo metodo comparative no primeiro tipo. Nao levar em conta estadiferenga metodologica obviamente estimula a nogao erronea deque as mediagSes concretas sao dispensaveis para o processo de impu-tagao quando elas sao, na verdade, a base da imputagao causal.Weber, como bom historiador, colocou o problema anterior de for-ma sucinta quando disse que "o problema da causalidade nao euma questao de Ids [i.e.: as generalizagoes do segundo tipo] masde relagoes causais concretas [i.e.: as imputagoes do primeiro

Um progress© evidente com relagao a versao especulativa,literaria do debate "Estado vs. sociedade" no Brasil e o represen-tado pela versao contemporanea do debate, Qriginahnente estimu-lada por Simon Schwartzman no final da decada dos anos sessen-ta, a discussao tern sido liderada pelo que poderiamos chamar a es-cola mineira: o proprio Schwartzman, Jose Murilo de Carvalho e Fa-

il In Max Weber, "'Objectivity' in Social Science and Social Policy,in Edward Shils e Henry Finch (orgs.), The Methodology of the A«i«Sciences (Nova York: The Free Press, 1949), p. 78. Grifos de Weber.

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210 A RncoNSTRugAo HISTORICA

bio Wanderley Reis.12 Em contraste com a versao literaria, e muitomais positiva na sua orientagao metodologica: muito mais preo-cupada pelo problema de evideneia empirica e muito mais consciada indispensabilidade de um metodo empirico de analise. O que o&membros desta "escola" compartilham e .antes de tudo a conscien-cia da necessidade de superar os termos classicos do debate maisque qualquer outro traco. Na verdade as diferencas neste grupo saomais pronunciadas que na geragao mais velha. A ponte com a ge-ragao anterior foi estabelecida mais nitidamente pela interpretacaodada por Fabio Wanderley Reis. Com Oliveira Vianna, ele aceita aprivatizagao do poder como inevitavel dadas a grande extensao doterritorio, a pobreza nos fluxos de comunicacao e a politica rnetro-politana nessa area. Essa "feudalizagao" do poder, contudo, teriaprocedido junto com a criagao de uma burocracia central. Reis, por-tanto, nao comete o erro freqiiente de inferir daqueles traces "feu-dais" um Eatado correspondentemente fraco. Naturalmente, ele acei-ta a presenea de nucleos locais poderosos, mas a relacao entre o Esta-do e os grupos civis e vista mais em termos de compromisso para ga-rantir a continuidade do processo de institucionalizagao do poder.Em lugar de um monismo agrario ou administrative, Reis inter-preta a interacao entre essas duas forgas em termos de uma seriede fases do processo de formagao estatal, cada uma delas com umpadrao caracteristieo de interacao. Esta versao sem duvida repre-senta um progresso com relagao as interpretacoes monistas dosclassicos". A sua contribuicao mais original acho que deve ser iden-tificada na sua insistencia de que a natureza processual do dialogoentre o Estado e a sociedade afasta a possibilidade de caracterizaro padrao de forma monista. A primazia de qualquer das duas esfe-ras institucionais, pelo contrario, dependeria do estdgio de desen-volvimento politico e de institucioualizacao do poder. Esse esque-ma supera as alternativas inexoraveis ou-ou rigidamente impHcitasna abordagem classica a la Faoro ou a la Duarte. Deste modo, con-segue-se evitar uma permanencia de estruturas rara vez compativelcom os processes historicos. A tese de Reis, porem, nao conseguefugir de outra modalidade de rigidez, a saber, aquela implicita naperspectiva evolucionista do desenvolvimento politico e da formacaoestatal. Assim, o estagio de politica tradicional ou "pre-ideologica"

12 Veja-se Simon Schwartzman," Representacao e Cooptacao Politica noBraail", in Dados, N.° 7, 1970; e tambem Sao Paulo e o Estado National(Sao Paulo: DIFEL, 1975); Fabio Wanderley Reis, "Solidariedade, Interes-ses e Desenvolvimento Politico," Cadernos DSP, 1: marco, 1974; e "Bra-sil: 'Estado e Sociedade' em Perspectiva," Cadernos DCP, 2: dezembro,1974; e Jose1 Murilo de Carvalho, Elite and State-Building in ImperialBrazil (Stanford; Stanford University, Tese de doutorado, 1974).

CORONEIS E BUROCRATAS NO BRASIL IMPERIAL 211

que corresponde ao estagio da sociedade fracamente integrada doBrasil Imperial distinguir-se-ia pelo fortalecimento de uma perife-ria social fazendo com que a presenga de um Estado central vigorosoassumisse um carater circunstancial e episodico. O que se eviden-eia aqui e uma permanencia de estagios historicos que e tao aprio-ristica como a anterior permanencia de estruturas.13

Um divorcio mais radical com o debate tradicional foi o deJose Murilo de Carvalho em seu Elite and State-Building in Impe-rial Brazil, onde ele articula um elenco impressionante de eviden-eia empirica em apoio de seus argumentos. Com efeito, no que dizrespeito ao metodo, a meticulosa e abundante evideneia apresenta-da no texto contrasta notoriamente com o teor predominantementeliterario da geragao anterior. A obra de Carvalho, de fato, e prova-velmente a discussao mais genuiuaraente indutiva e historica napresente geragao de estudiosos. Com base na evideneia acumulada,consegue ele liquidar proposicoes aceitas mas fracamente estabe-lecidas com respeito ao passado brasileiro, ao passo que gradual epacientemente elabora uma interessante interpretagao empirica-mente fundada dos padroes de coaliz5es entre as elites burocraticase agrarias do pais.

Carvalho afirma corretamente que e um equivoco interpretara sociedade brasileira do seculo passado como estando sujeita aocontrole do Estado ou vice-versa. Isto e, ele se define contra o mo-nismo classico. Propoe, em troca, a existencia de um esforgo con-junto por parte do Estado e da sociedade para manter a adaptabi-lidade do sistema face as pressoes internas e externas de naturezadisruptive. Essa, por assim dizer, empresa cooperativa entre o Es-tado e a sociedade torna, segundo Carvalho, sem sentido qualquerinterpretagao em termos de conflitos estruturais. Em conseqiiencia,acrescenta, o mais sensato e abrir mao do debate de vez.

Semelhante pedido e um poueo excessive e injustificado. Naoha, na verdade, nenhuma incompatibilidade entre o esforgo estrit-tural de Carvalho por definir os elementos do sistema, os mecanis-mos de adaptagao e o contraponto entre os atores, por uma parte e,pela outra, a abordagem genetica por tras do esforco por definir epor a descoberto a estrutura do sistema, a forma como ele emer-giu e a forma de seu desenvolvimento. ]£ importante, alem do mais,salientar que a proposisao de uma solugao empirica de um proble-ma, de forma alguma elimma a validez da questao teorica na13 Uma tese evolucionista classica foi a elaborada por Justiniano Josfida Rocha, "Acao Reagao, Transacao: Duas Palavras acerca da atualidadepolitica do Brasil", in R. Magalhaes Junior, Tres Panflet&rios do SegundoReinado (Sao Paulo: Cia. Editora Nacional, 1956), pp. 161-218.

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212 A RECONSTRugAo HISTORICA

qual repousa. Em outras palavras, o fato de que o Brasil tivessetido esse tipo de arranjo — um fenomeno contingente, historico —torna-se teoricamente significative e e tratado emprricamente emfuneao precisamente das opgoes em debate. Uma vez que se estabe-lece uma distingao nitida entre a "solugao" empirica e a questaoteorica, o pedido para deixar de lado o debate perde toda forga.

Igualmente radical na sua rutura com o passado e o trabalhode Simon Schwartzman cujo valor deve ser principalmente vistono carater inovativo das suas teses. Em lugar de tentar entendero fenomeno politico atraves da divisao em "estagios" que expli-cariam as suas variacoes e a sua complexidade, Schwartzman pro-pee tomar em consideragao as variagoes regionais e nao o Estado-nagao como um todo indiferenciado. 0 resultado e um interessan-te contraste entre o sistema de representagao politica e o sistemade cooptagao que explicariam as diferengas entre o papel repre-sentado por Sao Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, etc.Nao ha duvida de que a solugao de Schwartzman e mais proximada de Faoro, o defensor da tese do Estado forte. Com efeito, a po-sicao residual e periferica de Sao Paulo, o unico Estado que secoaduna com o esquema de representagao de interesses, contrastanotavelmente com o predominio do padrao de cooptagao politicanojresto do pais. Ora considerando que esse ultimo padrao e ofruto de uma vigorosa administracao central que mantem o con-trole do processo de participagao desde acitna, fica manifesto queSchwartzman subscreve a tese do Estado forte. Alem das observa-goes criticas apresentadas paginas acima no que diz respeito aeste tipo de abordagem, e tambern precise apontar que a eviden-cia trazida por Schwartzman nao e das mais solidas. Seria umgrave erro, porem, invalidar por isso o seu trabalho. Na verdade,e nessa aparente fraqueza que, a meu ver, reside a contribuigaomais original e fecunda de Schwartzman: em lugar de testar pro-posigoes, o que ele visou foi proper um novo modelo de inter-pretagao, uma nova sintese intelectual desde uma perspectivafresca para a compreensao significativa do desenvolvimento poli-tico do Brasil.

Ill

O fim do estagio relative a revisao da literatura discutida nasegao anterior representou uma mudanga importante na logicadesenhada para atacar o profalema maior da minha pesquisa.

Apes ter lido as teses classicas e as contemporaneas, ahjunspontos relatives a estrategia metodologica ficaram definidos. Em

E BlTROCRATAS NO BfiASIL IMPERIAL 213

primeiro lugar, qualquer esforgo de minha parte que contribuisseapenas a controversia literdria •—• esforgo que em algum momentofoi seriamente considerado — ficou descartado.14 Quica a maiorlimitagao das versoes classicas do debate e precisamente o seu ca^rater literario, especulativo em desmedro, em termos gerais, dadiscussao positiva, empirica.

Um segundo ponto ao qual cheguei apos a conclusao daqueleestagio foi a convicgao de que qualquer contribuigao relevantepara o desenvolvimento do debate teria que assumir uma formu-lagao positiva, isto e, a interpretagao teria que estar empiricamen-te alicergada.

Uma terceira e final consideragao foi a nogao de que os pro-blemas gerais deviam ser discutidos dentro do marco de referen-cia de um modelo teorico de interpretagao. Em outras palavras,os processes a serem examinados deveriam ser inscritos dentro deum contexto intelectual de interpretagao em fungao do qual essesprocesses ganhariam significagao.15

A definigao de uma estrategia que pudesse reconciliar, emforma balanceada, as questoes gerais de vasta significagao teorica,junto com um tratamento tao empirico quanto possivel foi o pro-blema prdtico mais importante da investigagao toda. Nao so eranecessario desenhar a construgao de dados que projetassem luzadequada, relevante sobre o processo de formagao estatal brasi-leu-a como tambem achar uma matriz de dados com escopo e ex-tensao suficiente para gerar juizos indutivos de validez geral, istoe, nacional. Eu tinha certeza de que so depois da definigao ten-tativa daquela estrategia poderiam os processes historicos em ques-tao serem discuiidos adeguadamente em fungao do contexto inte-lectual sugerido no paragrafo anterior.

A leitura de Instituigoes Brasileiras de Oliveira Vianna mesugeriu a pista para resolver o problema pratico mencionado aci-ma.16 Foi na leitura dessa obra que a existencia da Guarda Na-cional chamou a minha atengao pela primeira vez. Contudo,para efeitos de compreensao da logica antecipada visando umainvestigagao baseada no exame da Guarda Nacional, e precise pri-

14 o esforco contemporaneo por fazer uma revisao critica do debatemais importante na sua forma especulativa € Latifundium et Capitalismau Bresil: Lecture Critique d'un Debat, Moacyr Palmeiras (Paris: Tese de3.o ciclo, 1971).15 A necessidade de um marco teorico nao implica necessariamente queele deva ser de carrier sistematico. Esse ponto e metodologicamente cru-cial mas nao pode ser desenvolvido aqui.16 Oliveira Vianna, Instituigoes Politicas Brasileiras, vol. i. (Rio de Ja-neiro: Livraria Jose Olympio Editora, 1955).

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214 A RECONSTRugAo Hisr6iucA

meiro delinear muito esquematieamente a versao do problema talcomo ele aparecia nesse momento, para depois disso associaressa versao ao modelo de interpretagao com o qual estava entaotrabalhando.

O cerne da controversia entre os cientistas socials brasileirosno que diz respeito ao Estado e a sociedade e a caracterizagao po-litica dessas duas associagoes e, mais especificamente, saber qualdas duas tornou-se a associagao fundamental para a criagao e de-senvolvimento de uma comunidade politica. Qua! das duas, emoutras palavras, foi responsavel pela organizagao de um sistemanacional de instituigSes e pela definigao de uma ordem piiblica. 0burocrata? Ou o senhor-de-terras? Essa e, esquematicamente, afonte da controversia. Um complemerito desse esquema tern sidoa presurnida caracterizagao da comunidade politica como sendoem grande parte feudal ou patrimonial. Aqueles que identificamo Brasil do passado como uma organizagao patrimonial atribuema burocracia central a responsabilidade pela criagao de um Estadomoderno; inversamente, os que veem nesse Brasil principalmenteuma formagao feudal destacam o papel da classe de senhores-de-terra e das elites agrarias como os grupos mais importantes portras do desenvolvimento do Estado moderno. fi como conseqiien-cia dessa formulagao que a maioria das contribuigoes tentam daruma resposta mediante o exame da organizagao agraria do Brasi]pre-industrial.

A selegao da Guarda Nacional como uma organizagao cujoestudo me permitiria penetrar dentro da organizagao concreta domundo rural do seculo XIX e, oportunamente, da organizagao po-litica geral do Brasil desse seculo foi, assim, evidente. A GuardaNacional era, com efeito, considerada como uma organizagao po-litica de senhores-de-terra e como um instrumento de dominagao.Nada mais simples, entao, que avaliar factualmente a relevanciaconcreta dessa associagao, para depois tirar as inferencias logicasrelevantes para o debate.

Desde o inicio, porem, nao me senti a vontade com a perma-nente, recorrente, excessiva e incorreta associagao feita entre cen-tralizagao e patrimonialisnio, por uma parte e, pela outra, entredeseentralizagao e feudalismo. Semelhante perspectiva constitui,por assim dizer, uma concepgao demasiadamente administrativadas formagSes socials pre-industriais e, em consequencia, umaconcepgao incompleta e inadequada.17 Na realidade, a ideia gene-

17 A apresentagao introdutoria dada por Bendix da obra de Weber 6 emgrande medida responsavel por essa interpretacao incorreta. Veja-se sen

Weber: An 'Intellectual Portrait (Londres: Methuen, 1966).

CORONEIS E BUROCRATAS NO BRASIL IMPERIAL 215

ralizada no Brasil de que o patrimonialismo Integra e centralizae incorreta. TJma das indugoes historicas mais importantes deWeber nesse respeito e no senjido de que a dinamica do estadopatrimonial conduz mais a difusao e dispersao do poder do que aqualquer outra coisa. Existe, de fato, uma tensao entre patrimo-nialismo e centralizagao. Foi por esse motivo que ao revisar otexto de Faoro, conclui entao: "Eu me inclinaria a pensar que oproblema historlco correto a ser interpretado com relagao ao Brasile a questao: como e que o Estado brasileiro pode durante o seculoXIX centralizar a administragao de governo a despeito de seu ca-rater patrimonial. . . "la

A premissa de que a presenga de grupos locals fortes cons-tituem um indicio de arranjos feudais e de que uma burocraciacentral forte e expressao de uma organizagao patrimonial e, por-tanto, incorreta. A marca distintiva de uma formacao feudal e,melbor, a existencia de uma consciencia corporativa entre os mem-bros do estrato local de notaveis com um estilo definido de vidae uma honra social propria. Em consequeucia, a melhor forma depesquisar com relagao aos fundamentos patrimoniais ou feudaisdo Estado brasileiro era, assim, precisando o grau de solidariedadecorporativa exibida pela classe de sennores-de-terra na organizagaoda Guarda Nacional. Uma pesquisa sobre a estrutura e a organi-zagao da Guarda Nacional poderia, entao, fornecer os meios paraavaliar o carater politico dos senhores-de-terra como um grupo,in toto. Em outras palavras, apos examiuar essa organizagao mi-liciana eu estaria em condigoes de determinar a natureza da so-lidariedade social existente entre os senhores-de-terra.

Ate esse momento eu tinba finalmente conseguido definiruma estrategia empiricamente aceitavel e intelectualmente satis-fatoria para lidar com a questao geral do poder agrario evitandoo risco de cair numa discussao especulativa do tema. Nos primei-ros meses de 1974, um ano apos minha vinda ao Brasil, tinhachegado a conclusao de que uma pesquisa da associagao para-niilitar de_ senhores-de-terra poderia resultar bastante proveitosapara dar uma resposta interessante ao tipo de questoes que tinhamsido levantadas,

A minha informagao sobre a Guarda Nacional era entao taoescassa e superficial como correspondia a leitura de qualquer dasapresentagoes standards dessa associagao nos textos de introdugaoa historia. Meu conbecimento, isto e, nao passava da proposigaofolclorica porem imprecisa de que o Brasil agrario esteve prenhe

18 Estado e Sociedade no Brasil: Exame Critico de Algumas Teorias(IUPERJ, numero de maio, 1973), in6dito.

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216 A RECONSTRugAo HISTORICA

de senhores-de-terra com o titulo de coroneis e que, como tais,gozavam de uma quantidade consideravel de poder local e, en-fim, que esses coroneis constituiram o ponto de partida do coro-nelismo. Longe estava eu de perceber — e a historiografia con-temporanea ainda ignora — que por duas geragoes o Estado Im-perial confiou a Guarda Nacional fungoes administrativas de go-ve'rno local que fizeram dela um instrumento fundamental naorganizagao e desenvolvimento do Estado brasileiro moderno; queo service miliciano angariou nao so as classes dominantes do Bra-sil agrario como tambem os homens livres pobres do Imperio,dando assim uma escala formidavel a organizagao da corporagao;e que, por exemplo, em contraste com o exercito profissional queregularmente mobilizava uma media de vinte mil pragas, a GuardaNacional podia mobilizar em qualquer momento mais de duzen-tos mil homens livres desde as primeiras decadas de sua criagao.Algum tempo passaria para poder mudar a representagao equivo-cada da Guarda Nacional como um clube politico de senhores-de-terra — fenomeno valido apenas para a Republica Velha e os ul-timos anos do Imperio — pela imagem de uma corporagao milita-rizada de senhores-de-terra em franco e permanente processo dearregimentagao quotidiana das camadas de homens livres pobrespara permitir a continuidade da admiuisrragao patrimonial degoverno local do jovem e buroeratico porem indigente e inefici-ente Estado imperial.

IV

"By studying any state of affairs as a whole, as thesum of its parts and something more, we are oftenable to understand it in a way we could not other-wise have done. This i& a commonplace, but like manycommonplaces is important and often forgotten." Geor-ge C. Homans, English Villagers of the ThirteenthCentury.

Ja foram discutidas acima as diferentes versoes do problemaa ser pesquisado incluindo a sua forma final, a saber: ate queponto foi a Guarda Nacional uma associagao genuinamente corpo-rativa de um estamento de senhores-de-terra que contribuiu a

reforgar o poder das classes agrarias durante o Imperio. No que sesegue, vai ser discutido o processo de definicao da metodologiapara atacar essa questao.

CORON&S E BUROCRATAS NO BfiASIL IMPERIAL 217

O processo de formalizagao da metodologia esteve em grandsmcdida condicionado pelas circunstancias vinculadas ao proieto depesquisa apresentado a um concurso organizado pela FundagaoFord no segundo semestre de 1974. Quiga o contraste mais dras-tico entre o projeto metodologico tal como ele foi formalizado en-tao e as estrategias metodologicas posteriormente empregadas este-ja no uso dado a informagao sobre a Guarda Nacional. Com efeito, o projeto estava desenhado visando a fazer uso dessa inforraa-gao para testar diversas proposigoes relativas a grau de centraliza-gao, poder territorial e organizagao corporativa.

Permita-se-me explicar brevemente isso. Tendo rejeitado apremissa de qualquer principio evolucionista e, portanto, de qual-quer teoria evoluciouista para dar conta dos periodos sucessivosde centralizagao e descentralizacao durante o seculo dezenove, eupropus examinar a passagem de um periodo a outro em funcaodos mutaveis arranjos de interagao entre a organizagao domini-cal19 dos grupos de terra e a capacidade de lideranga e de auto-ridade corporativas dali derivados. A proposigao geral era a de quese a Guarda Nacional tivesse sido em alguma medida instrumen-tal para favorecer a manutengao de uma dominagao territorial vi-gorosa vis a vis o poder politico central, entao seria razoavel pos-tular que naqueles periodos e naquelas provincias onde a corpo-ragao paramilitar de notaveis locals fosse forte seria mais prova-vel que aparecesse uma intima associagao com periodos de des-centralizagao. Eu queria entao coletar evidencia para testar a hi-potese de que as variagoes nos graus relatives de autonomia pro-vincial estavam estruturalmente vmculadas as variagSes na orga-nizagao militar do senhoriato local. Esse programa de pesquisaestava justificado na ideia de que representava um passo a frentecom relagao aos esforgos anteriores de outros estudiosos de defen-der interpretacoes feudais na base da simples presenga de estru-turas senhoriais, por um lado, ou, por outro, interpretacoes patri-moniais com base na existencia de uma administragao de funcio-narios. Enfim, eu me propunha limitar o exame as seis provinciasque representavam os micleos maiores de poder territorial segundoas pistas dadas pela distribuigao da nobreza titular.

Dado, por outro lado, o fato de que ordinariamente as chan-ces historicas do feudalismo ou do patrimonialismo tern estado or-ganicamente viuculadas a presenga ou auseucia de exercitos auto-

19 O conceito dominical (do latim, dominus: aenhor) e deliberadamen-te empregado para evitar qualquer conotagao estamentalizante e empiri-camente problematica na hist6ria do Brasil agrario que existe no con-ceito senhorid.

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218 A RECONSTRUgAO HIST6RICA

equipados capazes de balancear um poder principesco de outraforma absolute e arbitrario e capazes de reforgar reivindicag5es dedireitos jurisdicionais sobre territories locais, a Guarda Nacionalera, coeteris paribus, um instrumento apto para avaliar empirica-mente essas chances.

QUADRO 1

PERCENTAGEM DE NOBRE2A TITULAR SEGUNDO PROV1NCIADE NASCIMENTO DURANTE O IMPERIO

Rio de JaneiroMinas GeraisBahiaSao PauloPernambucoRio Grande do Sul

Para

Total

26,018,013,212,910,56,7

2,1

189,4%

FOKTE: Calculos feitos com base em Carlos G. Rheingantz, Titulares doImperio (R.J.: Arquivo Nacional, 1960), passim.

Assumindo, alem do mais, que a capacidade local de mobili-zagao roi liter do habitante riistieo estava condicionada pela elasti-cidade da oferta permitida pelo regime economico local tipico dosdiferentes contextos dominicais de produgao — ac.ucar, cafe, egado — eu planejava desenhar um perfil geral da organizaeao do-minical caracteristico de cada provincia para empregar como va-riavel de background para explicar a forga relativa da organiza-eao miliciana.

For fim, no que diz respeito a propria Guarda Nacional, oproposito formal era duplo: em primeiro lugar, codificar milharesde patentes de nomeacao e promocao de oficiais de forma que operfil oficial da estrutura militar provincial derivado dessa codifi-cacao facilitasse inferencias relativas aos vinculos entre organiza-gao militar, organizaeao dominical e interagao centro-periferia.Em segundo lugar, codificar a informagao dos registros munici-pals de matriculas relativas aos membros locais das milicias comvistas a conseguir informagao sobre o perfil tipico de estratifica-cao social agraria. Existia, enfim, como fonte residual e suplemen-tar as publicacoes ministeriais sobre a corporagao.

..1

CORONEIS E BUEOCRATAS NO BRASH IMPERIAL 219

Uma vez de posse dos dados pertinentes para essas provin-cias em periodos selecionados de centralizagao e de descentrali-zagao, a analise comparativa permitiria avaliar as relagoes no tem-po e no espago entre organizaeao dominical, estrutura das miliciase relac5es centro-periferia.

Essa era, de forma sucinta, a logica antecipada da investiga-cao tal como ela aparecia antes do processo de execugao. O quee notavel desde a perspectiva da logica-empregada e da recons-truida e a modificacao sofrida pelo desenho original. Em contrastecom__o produto final que visava a sintese e interpretagao de pa-droes historicos que tiveram origem e desenvolvimento dentro daadministracao do Estado imperial, a enfase do desenho era maispara a analise de associagao de varidveis; ao passo que a analiseda Guarda Nacional estava originalmente destinada a servir comoinstrumento de verificacao de algumas generalizacoes empiricastiradas de outros contextos, ao final a relagao entre teoria e ob-jeto se iuverte de forma que agora sao os construtos teoricos quesao empregados para dar sentido e significacao a Guarda Nacio-nal e interpretar seu papel dentro da sociedade rustica e a estru-tura administrativa do Estado.

Naturalmente que nao havia nada de fortuito ou acidentalno desenho original ou nas modificagSes que foi sofrendo a me-dida que foi sendo executado. Na verdade, um conjunto de fato-res estava operando no sentido de dar ao desenho e as modifica-goes um carater necessario.

Minna ignorancia relativa, por exemplo, com relagao ao papelhistorico da Guarda Nacional dentro do desenvolvimento do Es-tado burocratico brasileiro era um convite para abordar essa cor-poragao desde uma perspectiva meramente externa. A minha igno-rancia com respeito a organizagao interna da corporacao levou-mea tentar resolver originabiente de forma meramente morfologica asua estrutura. Em ambos os casos, patenteava-se uma resistenciaP'rofunda ao conhecimento vivo, monografico, concrete; e essa re-sistencia que ajuda a dar conta da enfase na quantificagao e asso-ciagao de variaveis como tamhem da perspectiva analitica antesque sintetica, teorica antes que historica, quantitativa antes quequalitativa, formal antes que dialetica. Uma vez que meu conhe-chnento da corporagao tornou-se mais rico e concrete foi possiveltratar a prohlematica geral desde perspectivas alternativas que ti-nham ficado latentes ate entao.

Igualmente importante para entender as mudangas de enfasesao as circuustancias academicas que rodearam o desenho original.O projeto original foi escrito para ser submetido a um comite de

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220 A RECONSTRUgAO HlSTORICA

cientistas socials que a Fundacao Ford tinha designado para con-ceder dotacoes para pesquisa. Nessas circunstancias, o projeto ti-nha que preencher os requisitos exigidos pelo comite com relagaoao desenho de pesquisa: a elaboragao de um marco teorico, a for-mulagao de hipoteses a serem testadas, e a especificagao da meto-dologia a ser empregada. Tudo isso esta ruuito hem quando o es-tudo em questao e de carater demonstrative e o proposito consisteem explicar um problema empirico mediante a sua subordina-530 dentro de um esquema nomologico e dedutivo. Um bom de-senho de pesquisa e, nessas circunstancias, aquele que torna ope-rativa e plausivel a verificagao da hipotese segundo a qual o pro-blema ou caso e uma instancia de uma generalizayao empirica an-terior ou aquele que contribui mediante comparacoes analiticas aenriquecer o estoque acumulado de proposigoes empiricamente es-tabelecidas. 0 processo de verificacao e falsificayao de hipoteses eentao crucial. Esse processo e a derivagao pratica do fato segundoo qual, em modelos analiticos como o anterior, um caso constituiapenas uma extensao da teoria. Em outras palavras, nessa pers-pectiva, o processo cientifico consiste em determinar qual e o con-torno, a extensao, o limite da teoria; isto e, quais sao as classesde fenomenos que podem ser sistematicamente explicados (sub-sumidos) pela teoria. Um bom marco teorico e, nesse caso, obvia-mente aquele que estabelece uma conexao sistematica, "silogistica"com as hipoteses propostas. Subjacente a esse tipo de metodolo-gia e a prioridade da teoria e a formulaeao de leis. A unidadetematica se constroi ao redor do sistema teorico.

O conhecimento progressivamente intensivo e em profundi-dade das milicias imperiais abriu a porta para a alternative meto-dologica consistente em construir a unidade tematica ao redor doproprio objeto bistorico. Subjacente a esse tipo de metodologia ea subordinagao da teoria como instrumento para a compreensaointeligente do fenomeno. Frente a .uma porgao consideravel de da-dos, ficou patente que a melhor forma de esclarecer a problema-tica era adotando uma estrategia historica, sintetica e interpreta-tiva. Entao, em vez de explicar certos padroes de interagao emfungao das associagoes de variaveis dentro da estrutura do mundoagrario, a logica reconstruida operou da seguinte maneira: a ta-refa "explicativa" consistiu muito mais num processo de sintesedos elementos significativos apanhados gradualmente durante o pro-cesso de coleta de dados, elementos esses com os quais seria possi-vel construir um padrao coerente e historicamente significative.

A logica da pesquisa esteve, enfim, afetada por uma ultimaserie de circunstancias: a selecao das fontes arquivisticas, que sera

CORONEIS E BUEOCEATAS NO BRASIL IMPERIAL 221

objeto de discussao na segao final. Nao gostaria de concluir apresente secao sem antes observer, porem, que a lista de fatoresque determinaram mudancas metodologicas nao e de maneira al-guma exaustiva. E importante observar, nesse sentido, a influen-cia de um fator rara vez discutido na literatura: a pesquisa de umaquestao vai sempre acompanhada de "resfduos" teoricos nao ver-balizados nem explicitamente formulados que, todavia, condicio-nam o processo, a direcao da pesquisa quando encontram o mate-rial apropriado para seu tratamento manifesto. A ausencia de umaformulaeao literaria ou conceitual desses residues e, para todos osefeitos praticos, adjetiva. 0 importante e que o curso da pesquisaesta em principio sujeito a essa fonte de mudanga. Foi esse, porexemplo, o caso com a discussao das mudangas nos padroes nor-mativos por tras da orientacao administrativa dos funcionarios pa-trimoniais e burocraticos do estado brasileiro. A questao dos fun-damentos normativos da agao social, e desnecessario quica enfati-zar, e um dos problemas mais importantes na discussao das basesinstitucionais de uma comunidade. 0 tratamento empirico dessaquestao, entretanto, e infreqiientemente elaborado nos trabalhos his-toricos e sociologicos devido, entre outras razoes e no melhor doscasos, ao carater "elusivo", "obUquo" do material ordinariamenterequerido para tal proposito. Um bom exemplo desse tipo de tra-balho —• e das dificuldades inerentes a ele — e a monografia deBendix, Work and Authority in Industry. A despeito, pois, da im-portancia fundamental dessa questao, originalmente nao pensei quefosse possivel elaborar uma discussao sistematica com respeito aacao administrativa do funcionario brasileiro do seculo passado.Nao e facil, com efeito, achar o tipo de testemunhos qiie permi-tam desvendar a orientacao subjetiva e quotidians, que tipifica umestilo (administrative neste caso) de conduta institucional. Umavez, porem, que apareceram as primeiras indicagoes documentaisde que era possivel tentar reconstruir esses padroes normativos eacompanhar seu desenvolvimento, isso transformou-se em um dosobjetivos^specificos que entraram a condicionar o processo de pes-quisa do material.

O periodo de coleta de dados arquivais foi de treze meses. Come-gou em meados de Janeiro de 1975 e concluiu em meados de feve-reiro de 1976. A maior parte do material apanhado provinha doArquivo Nacional em Rio de Janeiro. Contudo, realizaram-se visi-tas a outros arquivos estaduais por perlodos que iam de duas a qua-

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222 A RECONSTRUgAO HlSTORICA

tro semanas. Foram visitados os Arquivos de Porto Alegre, Salva-dor, Belo Horizonte e Niteroi (este ultimo por urn periodo de tiesmeses). Realizou-se tambem uma visita curta de urn dia ao ArquivoMunicipal de Valenca, Rio de Janeiro. Uma estimativa^conserva-dora dos documentos examinados durante todo esse periodo e deaproximadamente cinquenta mil. A grande maioria deles sendo acorrespondencia oficial entre os funcionarios patrimoniais dos dife-rentes comandos locals da Guarda Nacional nos munieipios e co-marcas dessas provincias e as autoridades burocraticas do Estadocentral, principalmente o Ministerio da Justica; e a corresponden-cia entre esse Ministerio e os presidentes de provincia. Tambemincluida nessa correspondencia esta a gue estabeleceu entre os co-mandantes locals e os comandantes superiores (quer de legiSes mu-nicipais, quer municipais, quer provincials, etc.). Em suma, o flu-xo da correspondencia entre comandos e entre eles e 1) o Ministe-rio da Justiga e 2) os presidentes de provincia; entre presidentesde provincia e o Ministro da Justiga; e entre cidadaos privados ouex-comandantes e o Ministro da Justica. Uma segunda classe de do-cumentos examinada foram as listas de matricula mencionadas an-teriormente. 0 periodo examinado foi de 1831 a 1889, isto e, des-de a criagao da Guarda Nacional ate o final do Imperio. Algumadocumentac.ao anterior e pertinente relativa a formas miliclanas decomegos do seculo foi tambem examinada.20

Simultaneamente ao exame das fontes arquivisticas ocupei-medo problema relative a eonstrugao de um perfil dominical de cadaprovincia a partir da perspective do regime economico caracteris-tico de cada uma. Como foi sugerido anteriormente, a ideia portras disso era definir as possibilidades objetivas de conscienoia es-tamental entre os membros do senhoriato. Com efeito, o postuladoera que aqueles contextos locais de produgao com maior proporeaorelativa de dependentes forneciam um minimo de condigoes paraa criacao de vinculos de solidariedade entre os dependentes e o se-nhor-de-terras, vineulos estes que podiam entao servir como fontede afirmagao de status dos senhores. Uma leitura "sociologica" daFenomenologia de Hegel levou-me a pensar, todavia, que a possi-bilidade de criacao de tal comunidade de vinculos era apenas opera-tiva quando a subordinac,ao do dependente constituia-se com rela-cao a um senhor (lord) e nao a um patrao (master).39 Em termos

20 Aproveito esta oportunidade para agradecer a valiosa assistencia _ecooperacao prestada por Maria da Graca Salgado, sem cujo concurso naoteria sido possivel um trabalho tao vasto de levantamento.21 G. W. F. Hegel, The Phenomenology of Mind (Londres: George Allen& Unwin, 2. ed., 1949).

CORONEIS E BUROCRATAS NO BRASH, IMPERIAL 223

concretos, isso significava que a populacao escrava dos grandes do-mfnios tinba que ser retirada do calculo da populagao total de de-pendentes (parceiros, sitiantes, tropeiros, etc.). Tal perfil resultouser extremamente ambicioso levando em conta a insuficiencia dainformaeao necessaria para a sua construcao. 0 abandono dessa pis-ta e o abandono da codificagao das patentes — codificacao que foirapidamente suspensa22 — restringiram a pesquisa ao emprego defoutes primarias tiradas dos arquivos.

Assim, poucos meses apos ter comegado, a coleta de dados fi-cou restringida a 1) correspondencia entre servidores patrimoniaise funcionarios buroeraticos, e 2) codificagao das listas de matrfcu-las. A atengao ficou centrada nessas duas fontes pelo resto do pe-riodo de coleta de dados.

0 periodo de analise comecou a principios de mareo de 1976.Antes de dar inicio a anaUse qualitativa da correspondencia, os doisprimeiros meses foram dedicados a tabulagao e processamento ele-tronico das Ustas de matriculas apanbadas. O objetivo desse traba-lho consistia na elaboragao de um conjunto variado de tabelas cru-zando variaveis tais como provincia, regime economico, periodo,renda, e status hierarquico dentro das milicias. Dessa forma espe-rava eu iniciar o exame das variagSes entre organizagao rnihtar lo-cal e relagSes centro-periferia, como foi discutido na secao anterior.A despeito das energias consideraveis dedicadas a esses dados e aconstrucao das tabelas, a logica reconstruida tornou inteiramentedispensavel o emprego dessa informagao. Muito embora esses dadosrevelassem as formas caracteristicas de interacao dessas variaveis,as tabelas nao foram integradas na versao final por duas razoes apa-rentes: em primeiro lugar, como ja disse, o desenvolvimento in-terpretativo do texto podia perfeitamente abrir mao da discussaoquantitativa das formas especificas de estratificagao agraria(E importante, por sua vez, apontar que esse desenvolvi-mento interpretative pode dispensar essa discussao em razao de mo-difieacoes que se operam no movimento da logica-antecipada alogica-empregada: efetivamente, a primeira assumia como valida a

22 A codificacao foi suspensa pois nao consegui achar um registro cen-tralizado da expedi?ao dessas patentes. As que foram acliadas, bem quenumerosas, eram "avulsas", isto e, o unico criterio que as unificava eraa provincia de residencia do titular da patente e nao forneciam maior in-formac.ao. Nao existindo um registro sistematico e exaustivo era impos-siyel controlar duplicagoes na tabulacao de miles dessas patentes. Etifim,nao existia nenhuma proporgao razo^vel entre a energia e tempo dedica-dos a essa tarefa e a utilidade derivada dela. Aproveito a oportunidadepara agradecer a Angela Maria Ramalho Vianna pela assistencia que mebrindou nesse processo.

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224 A RECONSTRUQAO Hisr6EicA

formulagao monista da questao central segundo a qual um Estadocentralizado supunha uma sociedade civil fraca ou, vice-versa, umasociedade civil forte pressupunha um Estado fraco, ao passo que nalogica-empregada questionou-se a validade dessa colocagao em fa-vor de uma interpretagao mais dialetica das relagoes entre o Estadoe a sociedade.) Em segundo lugar, a inclusao dessas tabelas teriasignificado a organizagao de um capitulo independente que tera,a despeito da sua relevancia intrinseca, uma relagao relativamente"externa" com o corpo geral da discussao. Considerando a extensaodo manuscrito, achou-se prudente deixar essa discussao por fora.

As analises qualitativas, eomecadas em maio e praticamenteacabadas em setembro, foram entao elaboradas principalmente combase na correspondencia dos comandantes da corporacao entre si ecom as autoridades hurocraticas. A leitura e exame dessa correspon-dencia tornou-se, depois de urn tempo, um processo relativamentemonotono. Ainda que contenha pedidos, requerimentos, queixas, su-gestoes, propostas, etc. revela um padrao esquematico que se rea-firma quotidianamente uma vez desvendado. Nesse sentido, uma vezsuperada a etapa dos "e-isso-ai", dos "pois-e!" e dos eurekas e se-rendipities, a tarefa desafiante deixou de ser a reconstrugao dessespadroes de relagoes que vigoravam entre o centro burocratico e aperiferia patrimonial: o aspecto desafiante era poder acompanharas mudangas desses padroes nas provincias e nos diferentes periodoshistoricos.

Os padroes patrimoniais da experiencia miliciana com o gover-no local tornaram-se bem aparentes desde o comego. Assim, antesda classificagao dos dados coletados segundo um esquema de topi-cos teoricamente relevantes para a organizagao posterior da analisee da interpretagao, esses padroes tinham-se revelado de forma bas-tante nitida ao longo do periodo de coleta de dados. 0 trabalho declassificagao serviu, na verdade, para capturar as nuances mais im-portantes da experiencia patrimonial e seu impacto sobre a estrutu-ra burocratica de governo e as variagoes que estas nuances assumi-ram ao nivel regional. Naturalmente, algumas dessas nuances ti-nham-se revelado durante o processo de levantamento; elas se n»nifestarani completamente, porem, durante o processo de classifica-gao, particularmente as variacoes no tempo e ao nivel provincial.Uma vez classificado, o material apresentava pouca "novidade" esua fungao era, por assim dizer, mais ilustrativa que reveladora.Foi o processo de ordenacao do material historico de acordo com ascategories de um esquema interpretative que permitiu um enten-dimento significativo da corporagao e de seu papel administrativona organizagao do Estado.

CORONEIS E BUROCRATAS NO BfiASIL IMPERIAL 225

E, enfim, particularmente sugestivo que, a despeito das expecta-tivas originals, nao tenha sido a analise "extensiva" das milicias comrelagao a outras instituigoes nacionais o que permitiu obter um qua-dro compreensivo de seu papel historico. Na verdade, o oposto foimais correto, isto e, quanto mais mergulhava dentro da corpo-ragao e mais "intensiva" era a informacao coletada, mais significa-tivamente podia eu relacionar a corporagao a sociedade nacional cir-cundante. De fato, o conhecimento detalhado da organizagao daeorporagao fez com que aspectos que de outra forma teriam prova-velmente passado despercebidos pudessem entao ser devidamentesituados. Formulas literarias para concluir uma carta ou um ofi-cio, por exemplo, revelam, aos poucos, os tragos tipicos de um es-tilo que se torua, por sua vez, revelador de valores culturais quepodiam, entao, ser detectados e acompanhados na sua metamorfosehistorica.

Nada disso estava antecipado ou previsto como parte do pro-cesso de pesquisa; a relevancia desses aspectos pode, porem, serapreendida no memento em que a tensao entre o projeto e o seudesenvolvimento foi vista nao como um obstaculo a ser evitado, mascomo um momento virtuahnente fecundo para a reconstrugao finaldo objeto.

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^10)

Heconstitnigao Empirica dePolitico Radical1

HELGIO TRINDADE

A principal tentacao a que se exp5e o pesquisador ao reconstituir,alguns anos apos a conclusao de seu ciclo, uma experiencia de pes-quisa e a de racionalizar a logica intema do "processo de investiga-530. Esse risco deve ser coriscientemente colocado sob controle quan-do o objetivo do texto e descrever as etapas^ de^ uma.experiencia depesquisa produzida ao longo de cinco anos.

Jf rocurando reduzir ao maximo a influencia deste fator, decidielaborar vim texto descritivp que atendesse ao espirito de coletaneae servisse de subsidio aos que pretendem enfrentar as vicissitudesda pesoniisa soDre^movimentos politicos radicals no BrasilT^Este tra-

X *•__ . r , r^Z—; —-•„ ' ""-- ~. i —e-balho tera, pois, uma preocupagao emmentemente didatica, estru-turando-se em jorno das Ias"e"s ___mais _signi'£icatiyas do prqcesso~realda pesquisa.

A primeira parte versara sobre a qrigem do tema e sua delimi-tagao; a segunda apresentara o processo de organizagao da estrutu-ra do trabalho e sua influencia sobre a clarificagao do objeto deestudo; a tercejra descrevera a elaboragao do corpo de hipoteses e

l O presente ensaio refere-se a tese de doutqramento defendida pelo au-tor, em dezembro de 1971, na Universidade de "Paris (Pantheon-Sorbonne),sob o titulo original, L'Action Integraliste Bresilienne: un mouvement detype fascists des annees 30 e que foi, posteriormente, publicada em co-edi-gao, pela Difusao Europe"ia do Livro e Editora da UBGS: Integralismo: OFascismo Brasileiro na J>ecada de 30, S. Paulo, Difel, 1974, 388 p. O au-tor agradece aos colegas da area de Ciencia Politica, Francisco Ferraz,Maria Isabel Noll e Mercedes Loguercio Canepa, que tiveram a gentilezade ler o texto manuscrito e ofereceram valiosaa sugestoes.

o EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 227

a quarta, finalmente, analisara a _estrategiajle pesquisa e os proble-do levantamento de campo.

Origens do Tema

Scm fugir a uma tradicao que tem algo em comum com ageragao intelectual das primeiras decadas do seculo, descobri o Brasildos anos 30 em Paris.2 Frequentava, no outono de 1966 o Institutd'Etudes Politiques da Universidade de Paris e interessei-me porum dos seminaries, a nivel de doutorado, do Cycle Superieur d'Etu-des Politiques, intitulado "Ideologies: les annes 30", sob a diregaode Jea^ Touchard, Rene Remond e Raoul Girardet. 0 seminariotinha-'por objetivo inventariar as manifestagoes intelectuais, politi-eas e ideologicas na Franga da decada dos 30. Os participantes de-veriam definir suas pesquisas dentro de um programa de estudosbastante flexivel e apresentar sua contribuigao sob a forma de umprojeto de pesquisa ou de um documento de analise sobre o periodo.

A partir da leitura de uma coletanea de textos produzidos naprimeira fase do seminario (1965/1966), e sendo o unico latino-americano do grupo, fui tentado a pensar sobre a realidade brasi-_leira da epoca. A curiosidade intelectual despertada no contexto doSeminario, e a descoberta da ausencia quase total de estudos espe-cificos sobre o movimento integralista, conduziram-me quase intui-tivamente em diregao ao tema. Neste momento o integra'Iismo apre-sentava-se ao meu espirito como um enigma cheio de estereoriposejpreconceitos. Lembrava-me vagamente, alem dos lugares comunse das facciosas analises encontradas na maioria dos livros que, naseleigoes presidenciais em 1955 ouvira, ainda adolescente, conduzi-do por meu pai, um discurso de Plinio Salgado, no Teatro Sao Pe-dro, em Porto Alegre. Guardara na memoria a imagem de um pe-queno homem retorico, falando de olhos fechados, com um estra-nho sotaque caipira.

Buscando maiores informac5es sobre o tema, alem das generi-cas informagoes dos Hvros de bistoria e da referencia de ThomasSkidmore sobre uma tese escrita por um teuto-brasileiro na Ale-manha, em 1937,3 defrontei-me, em Paris, corn dois fatores favo-

2 Como dma Paulo Prado, em 1920, a respeito de Oswald de Andrade:'Numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place-Clichy — umbigodo mundo — descobriu deslumbrado a propria terra."3 Skidmore (Thomas) — Brasil: De Getulio a Castelo, Rio, Saga, 1969.Vide nota 39, p. 410. Refiro-me a tese de doutoramento, em Filosofia,para a Universidade de Berlim de Hunsche (Kaul-Heinrich), Der Brasi-lianische Iniegralismus; Geschichte und Wesen der Faschistischen Bewc-

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228 A REcoNSTRugAo Hisx6sicA

ravels. De um lado, havia uma estudante brasileira, aluna tambemdo IEP, e que estava preparando um "memoire" sobre o Partidode Representagao Popular (PRP), que foi o movimento suceda-neo ao integralismo no Brasil do apos II Guerra. 0 estfmulo pelas'discussoes em torno do tema, especialmente sobre as origens do PRP

^5g[J.n^gr^]ista^grasileira ( AlET i undad a- , .em 1932 por Plinio Salgado, comegou a produzir algumas refle-xoes e gerar as primeiras hipoteses tentativas sobre o^assunto. Q/outro fafor f avoravel foi que, na pequena biblioteca da Maison duBresil na CiHaHe Universitaria deParis havia, por coincidencia tal-vez,uma colegao em 20 volumes das obras completas de Pliniojjial-gadoT JEnibora com reservas, por tratar-se de textos reeditados aposa extincao da AID, encontrei-me diante de um rico manancial deinformacoes ideologicasrArtar^ponto a descoberta de novas fontesaumentou minhlT motivagao com relayao ao tema que, a partir deinicios de 1967, consultei o Prof. Touchard soEre a viabilidade detransformer meu estudo explorat6rio.num projeto de tese para dou-toramento. A reagao inicial do professor foi de enorme curiosidadecom o tema cujo conteiido era conexo ao do Seminario dos anos 30,embora sugerisse, como de Pjgge, a elaboragao de uma proposta for,-mal de tese. Desde entao comegou o Processo de elaboragao da tesepropriamgnte dlta .

Num primeiro momento, rninha tendencia natural era abor-dar o tema da forma^ o mais abrangente possivel. Face a esta pre-disposigao totalizante com relagao ao objetp de estudo contrapu-nham-se diferentes alternativas ou niveis analiticos: o corte notempq^ e no espago, a insergao do tema no contexto historico do pe-riodo, a articulagao do conjunto de hipoteses exploratorias e es-parsas, a combinagao de afa^rda^nT^alaabilticas, de tecnicas de pes-quisa e estrategias de anaUse, etc. Nesta fase, a criatividade desdo-bra-se^, sem limites, em todas as diregoes: a cada nova leitura, acada hipotese exploratoria, recompoe-se o universo dentro do qualse mp ve o fio condutor do processo de teorizagao da pesquisa. Aospoucos, jjorem, certos balizamentos comecam a circunscrever acriatividade em torno do objeto de estudo em fungao da viabili-dade da pesquisa. Este momenta to^n^eTiniitador porque dinien-siona os parametros do estudo em termos de custos e da capacidadedo pesquisador em desenvolyer sozinhq^as djiferentes etapas do pYo-

"jetOT Qutra"s~limitacoes, porem, sao de natureza substantiva e po-dem afetar niais decisivamente a definigao do esquema conceitual

gung Brasiliens: Stutgart, 1938, cujo exemplar consegui localizar, atravesde um service nacional bibliogrSfico alemao, na Biblioteca Municipal deManhein.

RECONSTRugAo EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 229

da pesquisa. Refiro-me a relagao entre questoes teoricas e a dispo-nibilidade dejinfoTmacoes referentes ao conjunto" de~Hirecge^s_^na-Eticas a^jue se propoe g projeto. INo caso do estudo TIo Integralis-mo, o problema de exeqiiibilidade da pesquisa colocava-se em ter-mos de fontes, considerando que se tratava de um movimento ex-tinto ha^uag^e quarenta anos^ Portanto, a primeira comgatibiliza-cao a fazer nesta eiapade elaboracao do p£OJetp,_era entre os ohje-tivos pretendidos e suas diversas Alternativas teoricas e metodolo-gicas com a acessibilidade de dados cruciais capazes de permitir oteste das hipoteses. Em suma, tratava-se de um trahalho que pre-tendia estudar um movimento poHtico radical de extrema-direitaou fascista, cujas fontes bibliograficas poderiam ser precarias oucujo acesso a antigos militantes prejudicado por fatores de dife-rente natureza.

No levantamento de informacSes a respeito, comecei a con-vencei'-me jrue, em principio, as fontes eram provavelmente aces-siveis. Localizes, aos poucos os principals textos politicos do movi-mento que me permitiriam estabelecer um corte longitudinal naestruturagao da ideologia integrahsta: conseguir reunir, desde oslivros dos teoricos e ideologos do integralismo, passando por en-saios e artigos de dirigentes nacionais e regionais, ate a imprensanacional e regional onde poderia encontrar manifestagoes de diri-gentes e militantes locais. Como pretendia, porem, reconstituir ummovimento politico cuja natureza nao decorria apenas da analiseda produgao doutrinaria escrita, mas tambem das motivagoes deadesao e do universo ideologico concrete dos militantes, era im-portante poder entrevistar um numero significativo de ex-integra-listas. Pelizmente, ua epoea, embora a maioria dos ex-dirigentese militantes estivessem na faixa etaria dos 55 aos 70 anos, comexcecao de alguns poucos personagens centrals ja falecidos,4 aqnase totalidade dos integralistas importantes ainda vivia e pode-ria oferecer urn depoimento sobre sua participagao no movimento.

/Consideraudo, pois, estas condigoes favoraveis para a realizagao do/ estudo, que, provavelmente, nao se reproduzem para outros movi-

mentos politicos radicals do periodo, tentei com os dados disponi-1 veis, ainda em Paris, estruturar o projeto inicial de tese para

discutir com meu orientador.Neste ponto gostaria de acrescentar um pequeno comenta-

rio sobre a evolugao de minha atitude diante do tema durante odesenrolar doyprocesso de pesquisa. Quando iniciei a pesquisa tinha

4 Refiro-me, de modo particular, a Gustavo Barroso e a Olbiano deMello.

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230 A REcoNSTRugAo HISTORICA

quase a convicgao de que estava trabalhando sobre um tema se-pultado pela historia politica brasileira ao/iinal dos anos 30. En-tretanto, na medida em que avangava no levantamento, buscandonovas fontes e entrevistando antigos militantes, comecei a desco-brir que meu objcto de estudo nao .estava tao morto. Ao contra-rio, como uma especie de fantasma, ele insistia em sair do baudo passado e rebicarnar-se no presente. Aos poucos a sensagao deque estudava algo que procurava difusamente reincorporar-sena cena politica brasileira parecia tao nitida que, ao concluir otrabalho, escolhi como epigrafe uma estrofe do Poema da Forta-leza de Santa Cruz de Plinio Salgado, cujo significado, diferente-mente do original, tradiizia, simbolicamente, a presenga sonam-biilica do "ethos" politico integralista na recente historia politicabrasileira: /

/"Quando os patios da velha Fortaleza,como' pratos de pedra, abrem-se ao luarum' fantasma passeia,passeia devagar..."

Estruturagao do Trabalho

Um dos aspectos cotidianos com que me defrontei no processode pesquisa era a necessidade de uma clarificacao constante doobjeto de estudo. Normalmente, o pesquisador ao iniciar seu tra-balho, mesmo tratando-se de um tema circunscrito, consegue terapenas uma visao imprecisa e difusa do objeto de investigagao.Os conhecimentos dTsponiveisTio comeco da pesquisa",~^"s^**pistasanaliticas inspiradas na literatura e as hipoteses exploratorias ge-radas na reflexao sobre o tema, constituem-se, num conglomeradobruto de informagoes, sem contornos definidos e cuja delimitagaoser;T fruto do proprio processo deJ pesquisa. Tal problems torna-va-se mais enfatico quando o tema a ser pesquisado ainda naofora suficientemente explorado, como era o casp do integralismQ.Nesta situagao, os primeiros esbogos de organizacao do trabalhoapoiados na bibliografia ^xistente, embora viabTlizassem um estjue-nia conceitual preliminar careciam de estrutura coerente e de ri-gor metodologico . Mesmo assim, por mais fragmentarias que se-jam as informagoes de que dispoe o pesquisador sobre o seu objetode estudo, ele deve tentar estabelecer os primeiros marcos de re-ferencia do universo de pesquisa. Ao definir o que pretends pes-quisar numa determinada area de conjiecinientos, ^ele^ preclsa fazerum est'orgo preliminar para definir os objetivos de sua jnvestiga-

RECONSTRugAo EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 231

cao. Com esta preocupacao basica proeurei demarcar generica-mente meu objeto de estudo. Uma forma preliminar de delimTta-gao do tema realize! pela exclusao das questoes e abordagens queestivessem fora de meu campo analitico. Tratando-se de preparar,como no meu caso, um doutoramento em Ciencia FoHtica, incli-nei-rae a selecionar os problemas e as jtbordagens analiticas cpie seintegrassem a problematica teorica e metodologica da^ area, afas-tando, do meu centro de interesse, enfoques complementares. _,

Uma_ das_ primeiras decisoes foi nao desenvolver uma analise ^centrada na historia do _rnovi5enlq7~emB"6ra"" a reconsfituicao domovimento, inserido no processo historico do periodo, fosse indis-pensavel a compreensao do fenomeno em sua globalidade. Meu in-teresse Prhicipal era o de estudar o mtegralismo enquanto pri-meiro movimento politico de massa em ambito nacional. A partirdesta piimebra opgao, miuhas preocupagoes direcionaram-se priori-tariameute para uma analise situada ao nivel do movimento, a Ifim de melhor caracterizar a sua natureza f politico-ideologica. Re- ^jeitava implicitamente a tendeucia de aceita-lo "a priori" comoum fascismo resultante de um mero mimetismo ideologico, semraizes nacionais definidas e desvinculado da dinamica historica eestrutural da politica brasileira dos anos 30.

Inicialmente, minha principal preocupagao foi a de descobriros eventuais elos de ligacao entre a ideologia integralista e a evo-lucao politica^ da sociedade brasileira. A diagnose do movimentoe a compreensao de sua natureza ideologica nao parecia viavel semiuseri-lo na epoca historica em que\i\ia_joJBrasil, com seus con-Hicionantes iuternos e eiternos. Em fungao desta linha de inte-resse decorreu uma putra decisao relativa ao periodo cronologicoa ser estudado. Emboia a duragao do movimento integralista "latosensu" tenha prolongado sua existencia ate 1965, quando foramextintos os partidos politicos entao vigentes, o corte cronologicolimitou a pesquisa a fase de funcionamento da Acao IntegralistaBrasileira (AIB) de 1932 a 1937. 0 pressuposto era que o inte-gralismo em sua primeira yersag,^correspondia de forma maisautentica as suas origens do que na fase clandestina que se iniciacom a dissolugao do movimento, apos o putsch de 1938, ou nafase de redefinieao liberal-democratica do apos II Guerra Mundial,quando se tornou um partido politico convencional (Partido de Re-presentacao Popular), participando do jogo democratico no seio dosistema multipartidario. Essas duas fases posteriores sao, certamen-te, muito importantes para a compreensao global do fenomeno in-tegralista, mas, ao meu ver, secundarias para responder a indagacao

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232 A RECONSTRUgAo HlST6RICA

basica sobre a natureza do movimento de massa que fora a AIB nadecada de 30." Foi visando, pois, estudar o integralismo no periodo de 1932/38 que elaborei, em inicios de 1967, a primeira versao, ainda quegenerica, da estrutura do trabalho. Esse esquema geral, reunindo

Wuinhas primeiras preocupacoes analiticas, compreendiaquatroareas de pesquisa que foram qrsanizadasde forma cronologicaTNaprimeira7~pr5pu51ia-iae a pesqnisar "as origens~Ha~ideol6gla inte-gralista", buscando caracterizar o processo de evolucao ideologicado futuro chefe do movimento, cuja passagem da literatura ao en-gajamento politico deveria ser explicada. Estava previsto, nestecontexto, que seria indispensavel reconstituir o ainbiente de for-magao intelectual de_Plinio Salgado, a partir da hipotese geral deque ele teria sido influenciado por acontecimentos internacionais(I Cuerra Mundial, fascismo italiano e revolugao bolchevista) e,por condicionantes infernos (mudangas economico-sociais, moder-nismo, renovagao catolica e revoltas politicas tenentistas). Numsegundo momeuto, propunha-me deslindar o impacto do influ-xo interno e externo sobre seu itinerario intelectual, intitulando-ade "a progressiva tomada de consciencia politica (1926-32)". Aestruturac,ao desta fase revela algumas hipoteses implicitas sobreo "nacionalismo intuitivo" de Salgado, ligado ao periodo do pos-modernista dos movimentos Verdamarelo e da Anta, a crescenteinquietagao politica no momento posterior e, finalmente, a ideo-logizagao decorrente do contato diretp com o fascismo italiano emviagem a Europa, em 1930..Esse periodo de 1926 a 1932 foi de-nominado "a progressiva tomada de conscieucia politica".

A segunda parte, enfocaria especificamente a "ideologia inte-gralista de 1932/33", inspirada nos escritos de Salgado e definidacomo um "nacionalismo espiritualista e autoritario". A hipotesesubjacente era que a primeira versao da ideologia integralista te-ria uma conotagao mais nacionalista do que fascista. Esta hipotesepoderia ser comprovada pela analise dos textos ideologicos dos pri-meiros tempos da AIB. Nesjes primeiros documentos parecia con-figurar-se um pensamento politico preponderantemente "nacional-espiritualista". A terceira parte, buscaria definir as principals di-regoes da "evolugao da ideologia integralista" no periodo de 1933a 1938 com a incorporagao da produgao ideologica de MiguelReale e Gustavo Barroso. No final desta parte, propunba-se tam-bem a explorar as relagoes entre integralismo e catolicismo, cujaamplitude e complexidade levou-me a abandonar a ideia no oon-texto _dp projeto. A quarta parte, finalmente, pretendia respondera pergunta central do trabalho: "o integralismo eum_moximento-

RECONSTRUgAO EMPlRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 233

fascista?". Nesta direcao considerava indispensavel fazer toda umadiscussao teorica, baseando-se na literatura sobre o fascismo, queestahelecesse as oUferengas e relagoes entre os conceitos de direita,extrema direita, integralismo, nacionalismo, autoritarismo e fascis-mo. Pretendia desenvolver uma analise apoiada no estudo teorico,desde o pensamento contra-revolucionario frances ate as experien-cias fascistas europeias, buscando fixar os criterios definidores dofascismo ideologico, que convergeria para uma analise compara-tiva entre o discurso ideologico integralista e o fascismo europeu.

Minha primeira tentativa de estruturar o trabalho tinha a se-guinte configurac.ao sintetica:

f

I — Origens da Ideologia Integralista:

1 — 0 ambiente da formagao intelectual de Plinio Salgado(1922/26)

a — Contexto internacionalb — Contexto interno

2 — A progressiva tomada de consciencia politica (1926/32)

0 "nacionalismo' intuitivo"0 despertar politicoContacto direto com a Europa (1930)A fundac.ao da AIB

II — A Ideologia Integralista de 1932/33

1 — 0 Nacionalismo Espiritualista e Autoritario

a — A concepgao do homem e da sociedadeb — A concepgao do Estado, Nagao, Corporativismoc — A revolugao integralistad — O Chefe, a milicia e os srmfaolos

III — A Evolugao da Ideologia Integralista

a — O integralismo segundo Salgadob — 0 integralismo segundo Barrosoc — 0 integralismo segundo Reale

IV — O Integralismo e uma Ideologia Fascista?

a — Do reacionarismo contra-revolucionario ao fascismob — Caracterizagao do fascismo ideologicoc — Analise comparativa entre integralismo e fascismo

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234 A RECONSTRugAo HISTORICA

Apos meu retorno ao Brasil, em fins de 1967, para iniciar0 trabalho sistematico de coleta de inforniagoes, procure!, na me-dida em que descobria novas fontes historicas e doutrinarias, bemcomo colhia os primeiros depoimentos de antigos militantes inte-gralistas, avaliar e problematizar meu piano de analise inicial. Umanova estrutura do trabalho, definida em meados de 68, procurourearticular o conjunto do projeto guardando, obviamente, osgrandes tracos do piano inicial, mas precisando melhor seus ob-jetivos.

f "A diferenga entre um e outro esquema analitico residia nu-)ma caracterizagao mais definida da prinieiraparte do trabalho,ou seja7 a insergao 3as~ "origens da ideologia no contexto historicobrasileifo~dos"^iios"20~partin3io~lla analise Inais especificada dosfatores geradb'res J<Ja mutagao ideologica e sua influencia diretasobre o itinerario intelectual de Plinio Salgado de 1922 a 1930.Da mesma forma, na segunda parte, o surgimento da AIB deita-rir, raizes na bistoria brasiieira dos anos 30, deixando de ser ape-nas um fenomeno exotico ao contexto nacional para transformar-se numa tentativa de resposta aos desafios e contradigoes da socie-dade brasileira em crise na busca de uma transformagao economi-co-social, A incursao que me propus realizar no terreno dos fatp-res que condicionaram a evolugao do periodo entre as duas Guer-ras Mundiais, mostrou-se muito fertil em hipoteses e diregoes ana-Hticas. 0 cotejo sistematico entre a formagao intelectual de Sal-gado. o desenvolvimento daT ideias nacionalistas autoritarias que£-j .... . -3 — "-""•- ' ' " —•—•-•• • • r-™ — -tJ

estao no bo jo do movimento integralista e a analise dojteriodohistorico nos seus aspectos economicos^sociais er~pblificos, foramfundamentais a apreensao totalizantg do.^_ejigm_e3QO_^i__s,ua_integr.a-cao real no jprocesso politico brasileiro. 0 novo esquema que pro-curava traduzir estas novas perspectivas analiticas orgaaizou-se daseguinte, forma:

1 — A Decada de 20 e as Origens da Ideologia Integralista

1 — A transicao da sociedade brasileira e a mutagao ideo-logica

2 — 0 itinerario intelectual de Plinio Salgado de 1922 a1930

II — O Nascimento do Integralismo

1 — 0 contexto politico brasileiro dos anos 302 — A ascensao das ideias autoritarias e a fundagao da AIB3 — 0 nacionalismo espiritualista e autoritario de Plmio

Salgado

.y

S

RECONSTRUCAO EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 235

4 — A organizagao do movimento5 — A renovagao catolica e o integralismo

III — Evolugao da Ideologia Integralista

1 — • A ascensao da direita e dos fascismos na Europa2 — 0 processo de fascistizagao do integralismo3 — 0 fascismo juridico de Miguel Reale4 — 0 nacional-integralismo de Gustavo Barroso _.

IV — Integralismo e Fascismo

1 — Analise comparativa dos movimentos fascistas2 — Natureza do movimento integralista

Ate este nfvel de amadurecimento da problematica do inte-gralismo, havia uma predisposicao major em valorizar a mutagaonistorica condicionadora da evolugao ideologica de Plinio Salgado

! e sua influencia sobre o advento da AIB do que em definir linhasde investigagao sobre o movimento propriamente dito. Somsnte apartir de um conhecimento mais sistematico das relacoes entre o

i movimento integralista e as transformacoes da sociedade em crist\e que surgiram novas hipoteses explicativas sobre o signifieado doiintegralismo no processo politico brasilcirgj^J^s questoes cen-trais _referentes ao movimento enquanto orgamzagao politica e asua_jiatureza seriam somente expIicitaHas com a decisao de reali-zar_ujrr"ievantamentode dados atraves de pesquisa de campo. Adescoberta 35 exisHncia 3e certas iiiformagoes sobre diferentesniveis do movimento tornou pertinente a colocagao de algumasquestoes fundamentals sobre a natureza do movimento. Esta foia tarefa central da estrategia da pesquisa de campo, articulada comas analises exploratorias aateriores e a partir da elaboraeao pro-gressiva de uma baterla de hipoteses de trabalho, que sera des-crita a seguir."~|

Emergencia das Hipoteses

hipoteses de um trabalho_ de pesquisa nao emergem emconjunto num momento de inspiracao excepcional. Ao contrafio.

relas_surgem. ^spontan.eamentee vao se expUcita!Taro~r[a~r5edida emque a absorgao cta~literatura teorica

e, ate mesmo, __.enqua_ntpps Jnstru_mentos de pesquisa~~seelaboram, como uma_ especie de subproduto geradoTpela^ropriareflexao continua em Jprnq d'o tema. Neste sen^Ho7~ao~^ipresentar

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236 A REcoNSTEugAo HIST^RICA

hipoteses em bloco, ordenando-as logicamente segundo sereferem a analise da formagao do movimento integralista ou aoestudo da natureza do movimento, deve-se entender como uma for-ma jle_-re'agrupamento didatico visando uma melhor compreensaodo seu conteudo e nao como uma descrigao do seu processo realde elaboragao. ~~

0 corpo de hipoteses subjacentes a elaboragao do trabalhonasceu progressivamente de um estudo exploratorio de naturezahistorica e ideologica. A hipotese geral era de que o integralis-mo emergiu, na decada de 30, enquanto movimento-politico-ideo-

Togico, e logrou implantar-se em amplos segmentos da populac.aobrasileira, pela conjugagao de condigoes historicas internas favo-raveis e o influxo de um modelo'die referenda externo jfascista. _.

A analise desenvolvida nesta diregao sobre as condigoes his-toricas contextuais ao surgimento da Agao Integralista demonstrouque a ideologia elaborou-se num periodo de crise da sociedadebrasileira. A mutacao da sociedade que se acentuou no apos Pri-meira G-uerra, engendrou novos conflitos politicos e socials queprovocaram a crise social. 0 inicio da formacao de um proleta-riado industrial e, sobretudo, a insatisfacao das classes medias ci-

... ~ "vis e militares em ascensao, provocaram contestagoes sucessivas aosistema politico da Primeira Republica. Os conflitos socials doapos-guerra e o ciclo de insurreigSes tenentistas introduzindo atviolencia extra-sistematica na arena politica, constituiram-se nainfra-estrutura da crise ideologica das elites intelectuais. A consci-encia nacionalista, sob diversas formas, radicalizou-se, a revolugaomodernista rompeu com os valores esteticos tradicionais e a reno-vaeao catolica mobiliza amplos setores intelectuais para a ac.aosocial e politica.

O marco de referencia interno que explica, pois, o surgi-mento da Agao Integralista e a Revolugao de 30. Desde as origensdo movimento ate sua dissolugao, persistiu uma ambiguidade ba-sica na relacao entre o integralismo e os grupos politicos emergen-tes no apos 30. As posigoes do integralismo alternam-se entre ocortejo, a cumplicidade e o odio cujos episodios simbolicos sao odesfile de apoio a Getiilio antes do golpe de 37, o Piano Cohenforjado no interior da AIB e o atentado ao Presidente da Repu-blica no Palacio da Guanabara em 1938.

Outra hipotese referente a formagao intelectual e a sociali-zagao politica de Plinio Salngado postula que a evolugao ideolo-gica do futuro chefe integralista do fim da I Guerra ate as vespe-ras da Revolugao de 30 se explica mais pela influencia da revo-

EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 237

Alugao literaria do que por sua experiencia politica em partidostradicionais.^ Esta hipotese procura explicar um paradoxo~obser-vado entre os fatores que condicionaram a formacao politico-ideo-logica de Salgado. Sua agao ate 1930 envolvia uma contradigaobasica: embora engajado num. partido politico tradicional, parti-cipava da vanguarda da revolugao estetica modernista. 0 peso deseu passado levou-o a integrar-se aos grupos oligarquicos, emborasua atividade o estimulasse a romper com os padroes vigentes nasociedade. A ultima tendencia predominou quando Salgado, aposter participado de uma tentativa frustrada de renovagao do Par-tido Republicano Paulista, decidiu tentar uma nova experienciapolitica. Na realidade, a consciencia politica do futuro chefe inte-gralista desenvolveu-se no embate dessas contradigoes. Republica-no, catolico e nacionalista desde sua juventude, encontrou em SaoPaulo um dos ambientes mais polarizados por essas tensoes socio-politicas e inquietacoes ideologicas. Percebendo os limites do jogopolitico tradicional, Salgado militou intensamente nos movimen-tos literarios pos-modernistas. Em conseqiiencia, a experiencia mo-dernista, mais do que a politica, o instigou a novos engajamentospoliticos. A validade desta hipotese foi verificada atraves da lei-tura de sua produgao literaria Iniciada com seu romance social "0Estrangeiro". Observe! que o principal efeito da revolugao lite-raria sobre o pensamento politico de Salgado foi o de transformarsua atitude em face da politica: tornou-se um escritor engajado. Refe-ria-me aos ensaios reunidos em 1927, sob o titulo de "Literaturee Politica", onde ele esboga sua primeira interpreta§ao poUticada sociedade brasileira. Apos a analise da trilogia de romances ondese percebe uma crescente politizagao da tematica do autor, pareciajustificada a bipotese de que a metaformose ideologica de PlinioSalgado se processou sob a atmosfera intelectual da revolugao este-ticaT^ua obra romanesca, escrita em pleno periodo modernista, es-tabeleceu a ponte entre suas ativida'des de escritor e de ideologopoh"tico.

A publicagao, em 1926, do romance 0 Estrangeiro fixou omarco inicial da mutagao ideologica do futuro chefe integralista:"Meu^primeiro manifesto foi um romance". Portanto, quando ten-tei ponderar a importancia relativa dos diversos fatores menciona-dos sohre a formacao ideologica de Salgado, conclui que foi suaexperiencia intelectual nos grupos pos-modernistas que o estimu-lou a afastar-se da politica tradicional e engajar-se progressiva-mente na acao ideologica. Mais do que uma concepgao literaria eestetica, o modernismo representou para Salgado um metodo de

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238 A RECONSTRUCAO HISTOBICA

analise da realidade brasileira e de aprofundamento de sua atitudenacionalista.

Posteriormente, Plinio Salgado viajou a Europa, as vespera^daRevolucao de 30, ondeTenT cont'ato^ com a experienciade Mussolini,cobriu a fra^ilida^erlla^democracia~liBefal. Esta fase se caracterizapelo processo de maturagao de uma nova doutrina politica, aposo rompimento com o Partido Republicano Paulista. Os contornosdefinitives da ideologia em elaboracao se definiram durante suaviagem ao Oriente e a Europaj de abril a outubro de 1930. Desi-ludido com o partido ao guaj^pertejicia, Salgado medita sobre apolitica brasileira a luz da experiencia europeia da epoca. Nesseperiodo, a ideia fascista se insinuou de forma expTicita em seu es-pirito.

— — -

No que concerne ao periodo "pre- integralista" de 1930 a 1932,minha hipotese era que a situagao politica brasileira apos a der-rubada daJVelha Republica e a expansao dos fascismos na Europasuscitararn eondigoes injerjoas favoraveis a criagao de um movi-~ "

i mento fascista noEssa hipotese recusava a posigao simplista de explicar um

movimento do porte da AIB e sua transformagao em movimenlode massa atraves da mera imitagao de movimentos fascistas euro-peus. Diferentemente, postulava que a fundagao da AIB nao foium fato isolado, mas resultou da cristalizagao das ideias radicalsde direita no Brasil nos anos 30 e da integracao por Salgado de di-versos movimentos precursores, como resposta aos problemas da so-ciedade brasileira na epoca.

Com a derrubada da Republica Velha, apos 30, abriram-senovas perspectivas para a agao politica. Salgado posicionou-se aolado das correntes antiliberais, tentando atraves do jornal A Razdoe da Legiao Revolucionaria de Sao Paulo influir nos aconteci-mentos. A Revolugao de 30, logo apos a tomada do poder, defron-tou-se com um impasse: de um lado, a ausencia de uma definigaoideologica da parte do Governo Provisorio fez com que a luta pelaconvocacao da Assembleia Constituinte representasse o confUto po-litico maior; de outro lado, esta situagao de vazio ideologico e debusca de uma nova organiaagao politica favoreceu o desenvolvi-mento de ideias de extrema-direita entre uma nova geragao in-quieta, cetica e antiliberal. 0 fracasso das tentativas de influirsobre o processo politico e a proliferagao de grupos intelectuais emovimentos antiUberais no pais convenceram Salgado da viabi-Udade da criagao de um novo movimento ideologico com vocagaonacional capaz de beneficiar-se do contexto politico. A preparagao

RECONSTRUQAO EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 239

mais imediata da futura AIB desenvolveu-se no seio da Sociedadtde Estudos PoKticcs (SEP) e o principal papel de Salgado foi ode reagrupar os intelectuais e as organizacoes que defendiam umasolucao autoritaria de direita.

Neste sentido, retomando a hipotese geral, se a influencia fas-cista foi decisiva para definir o conteudo laeologico do novo movi-mento, foram as contradigoes politicas internas que criaram jimclima favoravel a irrupgao de movimentos e de revistas de extremadireita, fascistas ou monarquistas, que estao na origem da AIB./" Este conjunto de hipoteses foi elaborado e verificado a partirHo universo historico e ideologico do integralismo. Todavia, estashipoteses nao respondiam a uma questao crucial: qual a naturezado movimento? Aparentemente certos aspectos exteriores da orga*nizagao integralista e alguns temas ideologicos pareciam identifi-car-se com o fascismo internacional. Mas, a pergunta que se im-punha, a fim de nao assimilar acriticamente os estereotipos e ospreconceitos, deveria indagar se o integralismo seria um movi-mento de extrema direita com aparencia fascista ou ttm__ fascismoautentico?7A busca de uma resposta a esta questao conduziu-mea devolves- uma estrategia de pesquisa de campo cujo objetivoseria desenvolver uma analise sistematica sobre a natureza do mo-vimento. 0 estudo empfrico da natureza da AIB transformou-senum novo nucleo da pesquisa,

A Estrategia da Pesquisa

Nesta nova diregao de pesquisa, decidi verificar sistematica-mente a ideia presente na literatura e nos depoimentos de que ointegralismo seria urn movimento de tipo fascista. Uma respostaadequada a esta questao nao poderia ser obtida somente atravesde uma analise tradicional dasfHeologiaspoliticas ao nivel dostextos. Neste sentido, considerei indispensavel combinar a analiseda ideologia, apoiada em documentos escritos, com o estudo dasatitudes ideologicas dos dirigentes e militantes de base: entendiaque a determinagao da natureza e um movimento fascista, forado contexto europeu supunha nao somente a presenga de temasideologicos em comum mas que o tipo de organizagao do partido,as motivagoes de adesao, as atitudes ideologicas e as bases socialsfossem semelhantes ao modelo de referenda europeu dos anos 30.Minha abordagem, a partir de entao, encaminhou-se para a ana-lise da Agao Integralista, integrando o enfoque classico do estudodas ideias politicas com o enfoque o psicossociologico.

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240 A RECONSTRUQAO HISTOEICA

A definigao do desenho de _umajgesquisa^upoe nap apfcnaaa escolha dos^objefivos gerais e das tecnicas de levantamento _a se-rem ufUizadas, jnas o mapeamento exaustivo das fantes de dadossuscetiveis de serem explorados. Enquanto encontrava-me na Fran-ca^distante do local da pesquisa e dispondo de informacoes frag-mentarias sobre o seu universo, a tentativa de definir uma eslra*tegia de pesquisa, parecia um mero exercicio intelectual. Somentea partir de uma visao mais concreta das fontes jixistentes e de seuacesso jifetivo, e que pude determinar definitiyamente minha^^s-trategia de trabalho de campo. Tal situacao correu, em meados de1968, quando as informacoes reunidas sobre as diversas fontes deinformacao e sua acessibilidade permitiram uma estruturacao defi-nitiva do desenho da pesquisa. Neste momenta, procurei articularos couhecimentos historicos e ideologicos preexistentes com a novaproblematica do levantamento do campo propriamente dito. Nestaepoca havia praticamente concluido a leitura do conjunto de obrasideologicas produzidas por teoricos e dirigentes do integralismo.Inclusive, ja havia iniciado a leitura sistematica dos periodicosdo movimento, desde as revistas intelectuais e ilustradas ate a im-prensa nacional, com algumas incursoes na imprensa regional elocal. Esta primeira visao de conjunto do universo ideologico inte-gralista, em seus diferentes niveis de elaboragao, colocou-me dian-te de uma indagagao fundamental: ate que ponto o discurso ideo-logico, produzido pelos intelectuais e lideres do movimento, atra-ves de um processo de mimetismo ideologico havia penetrado nouniverso politico dos dirigentes e militantes locals? Nao se pode-ria imaginar a possibilidade de que a ideologia tivesse, ao nivelmais elafaorado, uma configurable tributaria da produgao ideolo-gica dominante de inspiragao fascista, mas que, analisada de outroangulo, na otica da sua percepgao pelos militantes de base, se con-figurasse apenas com um palido reflexo ideologico captado atravesde algumas ideias-forca e de slogans fragmentarios? Dito de outraforma, qual a viabilidade de testar a penetragao da ideologia inte-gralista em diferentes camadas de militantes e qual o grau dehomogeneidade dessa incorporagao ideologica?

A tentativa de resposta a esta questao condicionou-me a intro-duzir no projeto inicial da pesquisa uma coleta de depoimentosjunto a ex-militantes integralistas, com diferentes tipos de viven-cia ideologica no seio do movimento. A descoberta de que grandeparte dos dirigentes nacionais e regionais, e inclusive, de que ofundador do movimento, poderiam ser entrevistados, reforgou mi-nha opcao de pesquisa nesta diregao. A partir desta nova diregaode pesquisa, o grau de unidade ideologica do integralismo e suas

RECONSTRUCT EMPIEICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 241

peculidridades regionais poderiam ser tambem explorados atravesde testemunhos de militantes. Seria igualmente interessante que,aproveitando os contatos com ex-integralistas, fosse feita algumaanaUse no terreno das motivagoes de adesao, a fim de caracterizarempiricamente os condicionamentos da opgao ideologica. Final-mente, como subproduto do levantamento de informagoes indivi-duals de tipo blografico e socio-economico, teria condigoes de co-Iher dados capazes de definir um perfil geral sobre origem socialdos militantes, em termos de ocupagao, nivel educacional, etnia emobilidade iutergeneracional.

0 objetivo principal desta nova parte do estudo, concernentea natureza da AIB, foi de definir e verificar um outro conjuntode hipoteses particulares inspirado no estudo comparative dos fas-cismos europeus, articulado com a hipotese geral de que o con-"teudo fascista do integralismo resultaria da conjugagao entre ummodelo de referencia externo fascista e condig5es historicas inter-nas favoraveis. A nova bateria de hipoteses foi formalizada nos se-guintes termos: o integralismo seria urn movimento fascista emfuncao da composicao social de seus aderentes; das motivagoes deadesao de seus militantes; do tipo de organizagao do movimento;do conteudo explicito do discurso ideologico; das atitudes ideolo-gicas de seus aderentes; enfim, do sentimento de solidariedadedo movimento com relagao a corrente fascista internacional.

Diante da relevancia da coleta das informagoes capazes depermitir o teste das hipoteses referidas, a estrategia do levanta-mento organizou-se basicamente em tres niveis: primeiro, buscan-do contato com os principals teoricos e dirigentes nacionais ou re-gionais distribuidos nas diversas regioes do pais e procurando rea-lizar com eles uma entrevista longa e gravada, a partir de umroteiro informal de questoes. Este roteiro foi organizado atraves dequatro tipos basicos de informagao: 1) uma questao desencadea-dora da entrevista e de carater dissertativo ("O que significou parao senhor sua adesao ao Integralismo?"); 2) questoes relativas abiografia politico-ideologica do entrevistado; 3) questoes sobreideologia enfatizando os principals temas e tendencias ideologicasinternas; 4) e, finalmente, uma bateria de questoes atitudinaisreferentes aos principals momentos da historia polltica brasileiradesde 1930 (vide Anexo 1). 0 segundo nivel deveria ser desen-volvido a partir das informacoes e hipoteses geradas pelas entrevis-tas em profundidade e que se estruturaram num questionario pa-dronizado sobre as principals dimensoes acima referidas, alem deum conjunto de questoes sobre o contexto individual dos dirigen-tes e militautes locals (vide Anexo 2). Finalmente, num terceiro

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242 A RECONSTRUgAo HlSTORICA

nivel surgiu a ideia, inspirada num estudo desenvolvido junto aestudantes franceses sobre o nacionalismo, de incorporar a^todas asentrevistas com ex-integralistas, uma caracterizacao empirica dasprincipals dimensoes do fascismo ideologico (vide Anexo 3). Esteultimo nivel fundamenta-se no fato de que, geralmente, as Cana-lises sobre o fascismo se Hmitam a analise do discurso ideologicoou da organizacao fascista. Este enfoque tradicional poderia sersuficiente para o estudo dos movimentos europeus cuja naturezaideologica era indiscutivel. No entanto, quando o objetivo era de-terminar a natureza de um movimento de aparencia fascista im-plantado num pafs periferico, parecia indispensavel integrar o es-tudo das atitudes ideologicas dos militantes. Desta forma, amplieio campo analitico do trabalh-o possibilitando, atraves de analises_e&;tatistieas, determinar o tear de fascismo da ideologia vivenciadaindividualmente, pelos integralistas, o grau de radicalisnio ideolo-gico dos integralistas com relagao a outros grupos de controle cons-tituidos por nao integralistas e, finalmejite, o nivel de homogeneirdade da propagagao ideologica entre os dirigentes nacionais-regio-nais e os dirigentes-militantes locais.

Entretanto, o estudo do integralismo, utilizando-se de levan-tamentos de campo junto a antigos militantes, apresentava umadificuldade metodologica, na medida em que, nao havendo um fi-chario com a relagao dos aderentes do movimento, nao se podiadesenhar uma amostra representative do universo de integralis-tas. Alem disso, havia um problema conexo: a extrema dificulda-de de localizar militantes disperses que pertenceram a um mo-vimento extinto ha mais de 30 anos. Diante desta situagao a unicaforma de resolver o impasse foi recorrendo a lista de dirigentesnacionais e regionais referidas na imprensa integralista, especial-mente no jornal Monitor Integralista, que continha informagoesoficiais sobre estatutos, regulahientos, rituals, resolucoes e nomina-tas de dirigentes. Nestas circunstancias, a escolha das pessoas aserem entrevistadas foi feita segundo um duplo criterio: determi-nagao das rggioes geograficas ondc a AIB era mais forte e es-colha manipulada de ex-integralistas que permaneceram fieis aideologia, a fim de que o testenmnho nao fosse deformado e asatitudes ideologicas pudessem ser avaliadas. As informagoes sobreantigos militantes de zonas urbanas ou rurais, obtidas junto a in-tegralistas e nao-integralistas*, permitiram-me entrevistar, durantedois anos de pesquisa, uma centena de dirigentes locais e militan-tes de base. Esta pesquisa por questionario foi precedida de trintaentrevistas semidiretivas com antigos dirigentes nacionais e regio-nais do movimento e de uma serie de entrevistas de controle com

EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 243

personalidades nao integralistas que acompanharam as atiindadesda AIB. A partir da localizagao destes, com quern realizava entre-vistas longas, fui obtendo indicates sobre enderegos de dirigentese militantes de base de auas regioes. Por este processo consegui in-formagoes precisas sobre a qnase totalidade de integralistas queresponderiam, posteriormente, minha pesquisa por questionario.

Portanto, se este conjunto de dados sobre os dirigentes e mi-litantes de base da AIB nao for representative da totalidade domovimento, pretende, ao menos, ser expressive das "provincias"integralistas onde o movimento era mais forte: Rio Grande doSul, Santa Catarina, Parana, Sao Paulo, Guanabara, Espirito San-to, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Babia e Ceara.

Com a finalidade de verificar sistematicamente as hipotesessupra-indicadas sobre a natureza da agao integralista, foi desenvol-vida uma analise compreendendo diferentes niveis. No que con-cerne ao estudo da origem social dos militantes, um dos criteriosutilizados para determinar a natureza do integralismo foi a com-paracao entre a estrutura social da AIB e a dos fascismoseuropeus. Ainda que as informagoes sobre a base social dos mo-vimentos fascistas na Europa sejam bastante fragmentarias, elasrevelam a preponderante adesao de certas camadas sociais, ao me-nos nos casos do fascismo italiano ou do nacional socialismo alemao.

As informaeoes obtidas de antigos integralistas atraves depesquisas ou de documentos oficiais da AIB pennitem a recons-tituigao bastante aproximada da origem social dos dirigentes e mi-litantes integralistas. Parece importante, porem, distinguir analiti-camente a origem social dos dirigentes nacionais regionais, situa-dos hierarquicamente na ciipula do movimento, da dos dirigentes/militantes locais. A aglutinagao destas ultimas categories se jus-tifica na medida em que nos pequenos e medics municipios o re-crutamento dos dirigentes e dos militantes se faz, em geral, nomesmo meio social.

Os dirigentes nacionais e regionais foram separados em qua*tro categorias. A primeira corresponde aos dirigentes executi-ves nacionais: o Chefe, os membros do Conselho Nacional (maistarde, o Conselho Supremo) e os Secretaries responsaveis pelosdepartamentos exeeutivos nacionais; a segunda reiine a diregaoexecutiva ao nivel regional: os chefes arquiprovinciais e os chefesprovinciais; a terceira e quarta englobam os orgaos consultivos, onseja, a Camara dos Quarenta no ambito nacional e a Camara dosQuatrocentos, composta de personalidades integralistas de todas asregioes do pais. Este conjunto de orgaos executives e consultivos,

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244 A RECONSTRUgAO HlST6RICA

que formam a Corle do Sigma, constitui a camada de dirigentesno sentido amplo da Agao Integralista.

As informagoes sobre os dirigentes dos orgaos de diregaoexecutiva nacional e regional da AIB confirmam a hipotese deque seu recrutamento se faz predominantemente entre as cate-gorias socio-profissionais representativas das classes medias urba-nas em ascensao nessa epoca. Em primeiro lugar, porque na de-cada de 30 o grupo preponderante e formado pela media burguesiados profissionais liberals, em grande parte radicalizada ideologi-camente para a direita. Alem disto, constata-se a participagao deuma pequena proporgao de jovens oficiais das forgas armadas geral-mente motivada para a acao politica pelo movimento "tenentista"e por este polarizada numa tendencia de direita e noutra de es-querda.

A analise da composigao socio-profissional dos orgaos de di-regao executiva nacional inostra, pois, que a quase totalidade deseus membros pertence as camadas intelectuais da classe media su-perior, especialmente originarias das profissoes liberals. Esta obser-vaeao e valida tamhem ao nivel dos dirigentes executives regionais,onde se constata uma participagao nao negligenciavel de oficiaisdo exercito.

Os dados sobre a origem social dos dirigentes e militantes lo-cais, porem, apresenta uma composigao mais diversificada do queentre os dirigentes nacionais e regionais. As categorias sociais pre-ponderautes no seio dos dirigentes hierarquicamente superiores tor-nam-se minoritarias e a media burguesia transforma-se no niicleomais amplo dos militantes locais: os profissionais liberals se limi-tam a menos de um quarto do total, o mimero de oficiais das for-gas armadas e reduzido e os representantes da burguesia desapa-recem. Neste nivel, o grupo majoritario e a pequena burguesiaformada pelos burocratas dos setores publieo e privado, que re-presenta cerca de 40% do conjunto dos dirigentes e militanteslocais, ainda que as camadas populares (trabalhadores agricolas,pperarios de industries e independentes) constituam quase umquarto da base do movimento. Esta estrutura social inverte total-mente a composicao socio-profissional verificada ao nivel da dire-cao nacional e regional: tres quartos dos aderentes locais sao pro-venientes da pequena burguesia ou das camadas populares, aopasso que a media burguesia intelectual ou militar nao ultrapassaa um quarto do total.

A conjugagao destas informagoes sobre a base social da AgaoIntegralista permitia conclulr que, ao nivel da direcao nacional eregional, era a classe media superior (profissoes liberals e oficiais)

RECONSTRUgAO EMpfRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 245

que controlava o aparelho do partido. Quanto aos dirigentes e mi-litantes locals, sua base social estava constituida de duas catego-rias: a maioria dos aderentes provinha da classe media inferior(pequenos proprietaries, empregados e funcionarios) com uma re-lativa afluencia das camadas populares, constituida por trabalhado-res (a maioria em pequenas e medias industries), de agricultoresou trabalhadores rurais (em geral de zonas de pequenas proprieda-des) e de alguns artesaos. Esse perfil da estrutura social integralistaparece aproximar-se muito dos modelos facistas europeus, espe-cialmente do fascismo italiano e do nacional-socialismo alemao.

Outro aspecto relevante na definigao da natureza do integra-lismo e a analise das motivacoes da adesao ao movimento nocontexto dos anos 30. 0 termo "motivagao" esta sendo utilizadoabusivamente, de vez que nao se trata de proceder a um estudo demotivacoes no sentido psicologico do termo, mas de explorar siste-maticamente uma serie de informacoes que permitem reconstituiras principals razoes que condicionaram os militares a inscreverem-se na AIB. A pergunta foi formulada da seguinte maneira:"Como explica sua adesao ao integralismo"? No corpo do questiona-rio esta questao aberta era apenas precedida por duas outras per-guntas de simples informagao que nao contaminaram as respostas.As entrevistas com os militautes foram conduzidas pessoalmentepelo autor de forma semidiretiva a fim de evitar que os motivesmais sensiveis fossem conscientemente camuflados ou inconsciente-mente censurados. 0 problema mais delicado foi, sem diivida, de-termuiar a influencia dos movimentos fascistas europeus na opgaodos integralistas, sobretudo para os descendentes de imigrantes ale-maes ou italianos que se preocupavam, gerahnente, em demons-trar maior vinculo afetivo ao Brasil do que qualquer lealdade ideo-logica.

A analise foi conduzida com o objetivo de determiner a £re-qiiencia relativa de cada motivo indicado, sem considerar a ordemem que as respostas foram dadas, porque nem sempre o primeiromotivo referido revelava necessariamente a razao principal de suaadesao ao movimento. 0 problema mais delicado e o da validadeque se pode atribuir a "motivacoes" indicadas em 1970, sobre op-goes politicas feitas trinta anos antes. As entrevistas com antigosintegralistas ainda fieis a ideologia, todavia, revelaram que, paraa grande maioria, a participagao na AIB foi uma experienciapessoal marcante e, em decorrencia, que os fatos relacionados como integralismo perrnaneceram extremamente vivos em sua memo-ria. Havia , tambem o risco de que a reconstituigao intelectual eafetiva a posteriori de uma adesao politica pudesse dar margens

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246 A RECONSTRUgAO HlSTORICA

a operagoes de racionalizagao, idealizacao ou de censura, A expe-nencia adquirida preliminarmente com trinta entrevistas de tiposemidiretivas e registradas em gravador, com antigos dirigentes na-cionais ou regionais, permitiu-me tuna penetragao suficientementeampla no universo politico-ideologico dos integralistas para obter^num. clima espontaneo, informagoes validas e controlaveis. Alemdisto, a satisfacao da maioria dos entrevistados de serem objeto depesquisa universitaria e dentro de uma situaeao politica diferentedo apos-Segunda Guerra Mundial, os liberou, em grande parte, docomplexo fascista, cuja melhor prova e o conteiido franco das res-postas dadas, demonstrando que nao havia nenhuma intengao deli-berada em dissimular a verdade dos fatos.

Nesta perspective, o estudo desenvolveu-se em dois niveis: noprimeiro, considerei a freqiiencia relativa de cada motivo, to-rnado isoladamente dentro do complexo de motives menciona-dos; no segundo, determine! a relagao entre o motivo consideradopelo entrevistado como principal e os outros indicados na resposta.0 conjunto de respostas foi agrupado em nove categorias em fun-gao do tipo de motives indicados: nacionalismo, corporativismo,valores espirituais, anticomunismo, valores autoritarios, anti-semi-tismo, oposigao ao sistema politico vigente, deseuvolvimento do paise simpatia pelos movimentos fascistas europeus.

A "motivagao" principal que ocasionou a adesao de cerca dedois tergos dos integralistas e o anticomunismo. Considerando quea forga politica do PCB foi muito secundaria ate o surgimento,em 1935, da Alianca Nacional Libertadora, grande parte da im-portancia atribuida a este motivo provem provavelmente da inspi-racao anticomunista dos movimentos fascistas europeus, e, ao mes-mo tempo, de um anticomunismo reflexo.

O segundo motivo e a simpatia pelo fascismo europett; amaioria absoluta das respostas confirma a influencia sobre os ade-rentes integralistas da ascensao dos movimentos fascistas. Quan-do nao havia uma atragao pelos regimes fascistas, mostravam-se,ao menos, sensiveis a luta desencadeada pelos movimentos fascis-tas contra o liberalismo e o comunismo. A proporcao de respostasconcentradas neste motivo (56%) e superior a qualquer previsaoa priori, reforcando a hipotese do parentesco ideologico entreo integralismo e o fascismo.

0 nacionalismo, que por hipotese podera ser considerado comoo motivo provavelmente mais freqiiente, e mencionado pela me-tade da amostra. O tema do nacionalismo esta sempre presents naideologia, tanto no piano afetivo como no intelectual, tendo um pa-pel central na radicalizagao nacionalista dos anos 30. 0 naciona-

RECONSTRUQAO EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 247

lismo literario provocado pelo modernismo da decada de 20,tiza-se rapidamente e o integralismo torna-se a sua encarnacao naextrema direita apos a decada de 30. Neste sentido, nao existe con-tradigao com a importancia prioritaria atribuida aos dois motivesanteriores, porque o nacionalismo e mais um estado de espirito euma atitude afetiva do que uma dimensao ideologica.

Enfim, o quarto tipo de "motivagao" e a oposigao ao sistemapolitico. Apos a tentativa de Salgado, atraves das "notas polftlcas'*publicadas em A Razao, de influenciar o Governo Provisorio deVargas, uma das preocupacoes principais do integralismo era com-bater o retorno ao sistema liberal, simbolizado pela Constituicaode 1934. Neste sentido, a importancia relativa da oposigao ao go-verno, indicada pelos rcspondenles, explica-se, embora freqiieiite-mente essa critica se manifeste sob a forma de uma hostilidade ge-neralizada com relaeao a todos os regimes politicos republicanos.

Os outros motivos indicados sao representatives do universoideologico integralista, mas influenciam pouco, significativamente,nas adesoes: um quarto dos integralistas aderiu por identificagaocom valores autoritarios (discipline, ordem, antiliberalismo) ou comvalores espirituais.

0 segundo aspecto da analise pretende ultrapassar a mera des-criagao das "motivagSes" individualmente consideradas e estudarsua articulacao com o conjunto completo de cada resposta. 0 quese observou nas constelacoes de motivagoes foi que elas se organ!-zavam em torno de tres niicleos principais constituidos pelos mo-tives mais freqiientes considerados isoladamente (o anticomunis-mo, a simpatia pelo fascismo e o nacionalismo). A partir desta pri-meira observagao, pode-se comparar a importancia relativa de cada"motivacao" com relaguo as tres dominantes. Os dados revelaramque as motivagoes mais fortemente associadas eram o anticomu-nismo e a simpatia com os fascismos: dois tergos dos que fizeremreferencias ao anticomunismo mostraram-se tambem favoraveis aofascismo, e a reciproca tambem e verdadeira para os tres quartosde pro-fascistas.

0 tipo de estrutura organizativa do integraUsmo e outra carac-terfstica importante para definir a natureza do movimento. Nao sepode dissociar, num movimento fascista, a ideologia e a organiza-cao porque existe uma relagao explicita entre a estrutura desta e oconteudo da outra. Geralmente as organizagoes politicas autorita-rias se estruturam hierarquicamente com o objetivo de enquadrareficazmente seus militantes. A organizacao integralista, entretanto,supera esta funcao meramente instrumental: alem da estruturavertical e rigida, sob o controle de organismos de enquadramento e

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248 A REcoNSTRugAo HISTORICA

socializagao ideologica, a AIB incorporou uma nova dimensaocapaz de transformar a organizagao na pre-figuragao do Estado in-tegral. 0 tipo de organizagao, as relacoes entre o Chefe e os diversosorgaos estabelecem as bases de uma estrutura estatal. Portanto, aorganizagao da AIB e nao somente um meio eficaz, voltado para aagao politica, mas um instrumento de elaboragao e experimentagao,em escala reduzida, do Estado Integralista.

A estrutura da AIB, desde o Chefe ate os militantes de base,forma uma organizagao burocratica e totalitaria. A burocracia da or-ganizagao manifesta-se atraves de um complexo de orgaos, fungoes,papeis, comportamentos previstos minuciosamente pelos estatutos^resolugoes do Chefe e rituals; o carater totalitario, por sua vez,atraves das relagoes rigidas entre os orgaos de enquadramento dis-ciplinado dos militares (a partir das organizagoes da juventude atea milfcia) e da submissao autoritaria e f idelidade aos superiores hie-rarquicos. Neste sentido, o totalitarismo e a burocracia sao ele-mentos indissociaveis na organizagao do integralismo. A organiza-gao integralista desempenha, pois, uma triplice fungao: fornecerao chefe meios poderosos para dirjgir o movimento; realizar umaexperiencia pre-estatal ao nivel da organizagao, inspirada no mo-delo teorieo do Estado Integral; constituir-se num instrumento desocializagao politico-ideologica dos aderentes.

Qanto as atitudes ideologicas, um conjunto de proposigoes foielaborado para avaliar as atitudes dos integralistas atraves de com-portamentos verbais. 0 instrumento de medida das atitudes foi es-tabelecido a partir do nucleo de proposigoes ideologicas que ten-tava reduzir as suas dimensoes basicas o modelo fascista italiano,com algumas dimensoes do nacional-socialisino. A atitude fascis-ta nao seria caracterizada, em conseqiiencia, na otica das pesquisasde Adorno, sobre a "personalidade autoritaria", mas em termos defascismo ideologico, quer dizer, dos principals temas, valores e pre-conceitos associados a ideologia fascista.

As dimensoes ideologicas escolhidas foram o nacionalismo, oanti-socialismo, antiliberalismo, o antiplutocratismo, o anticapita-lismo internacional, o corporativismo, o soeialismo-nacional, os,valores e preconceitos (anti-semitismo, visao hierarquica, antima-gonaria, visao pessimista da historia, exaltagao dos valores autorita-rios, espirituais, tradicionais, valorizagao dos grupos naturals, dasvirtudes militares), a etica fascista (fidelidade, discipUna, amiza-de, sacrificios), a mistica da transformagao social e a solidariedadeem face dos fascismos europeus. Procure! tamfaem, ao eonstruir asquestoes references a cada dimensao, fermular proposig5es capazesde exprimir os temas e os valores fascistas e de os introduzii em

RECONSTRUCT EMPffilCA DE UM MOVIMENTO RADICAL 249.

uma linguagem que levasse em consideragao o vocabulatrio ideolo-gico atual, sem descaracterizar a linguagem fascista. A outra difi-culdade que deveria ser levada em conta na elaboragao das questoesera o fato de que elas se enderegavam a indivfduos sensiveis a umestigma historico de "fascistas" e utilizando-se de temas ideologicosem grande parte superados pela evolugao historica (vide Anexo 3).

A primeira dimensao ideologica considerada foi o nacionalis-mo. Uma vez que todo movimento fascista se estrutura a partir deuma atitude profundamente nacionalista. Mesmo quando este na-cionalismo nao se explicits nos textos doutrinarios, o faseismo e es-senciahnente a mobilizagao de um sentimento nacional exacerbado.As perguntas do questionario que incluiram esta dimensao pro-curaram captar o nacionatismo fascista em sua totalidade. Elas re-feriam-se aos temas do desenvolvimento da consciencia naeional(01), da independencia politica nacional (19), da supremacia danagao (44), da identificagao com o passado e a tradigao (39), dadefesa intransigente da soberania nacional (20), do nacionalismoeconomico (64), e da crenga no destino historico da patria (40).6

Outro trago caracteristico da ideologia fascista e a recusa dosodalismo sob todas as suas formas. As questSes destinadas a mediro grau de anti-socialismo apoiaram-se em varios temas: a rejeigaoda tese marxista da socializagao dos meios de produgao (03); aassimilagao do socialismo ao comunismo (42); a percepgao de umaameaga comunista comprometendo o futuro da America Latina(23); a condenagao da revolugao cubana (27); a necessidade decombater toda a forma de socialismo (71), e enfim, a utilizagao dosmeios violentos na luta contra o comunismo (47).

A terceira dimensao comum a todos os movimentos fascistasfoi o antiliberalismo. A concepgao autoritaria do Estado Fascistaconstitui-se na antitese do Estado Liberal classico nao intervencio-nista. Era necessario distinguir no antiliberalismo fascista dois as-pectos: o primeiro, que decorre de sua analise da evolugao historica,era o combate aos ideais da Revolugao Francesa e a neutralidadedo Estado liberal; o segundo traduzia-se na recusa, em nome daunidade da nagao, dos mecanismos democraticos responsaveis pelasua fragmentagao.

As questoes formuladas que tentaram avaliar a atitude dosintegralistas face ao liberalismo referem-se a estas duas dimensoes:quanto a primeira, os integralistas afirmam sua critica radical aoliberalismo como "um dos elementos mais nocivos de nossa civili-zagao" (25) e responsabilizam o Estado liberal pela desordem do

V

5 Os numeros entre parlnteses correspondem ao questionirio do Anexo 3.

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250 A RECONSTRUgAo HISTORICA

mundo atual (07); quanto a segunda, a quase totalidade dos inte-gralistas considera que os partidos politicos e o sufragio universaldividem a nagao (43 ) e manifesta-se favoravelmente a sacrif icar omecanismo liberal-democratico das eleigoes a fim de realizar osobjetivos da nagao (49).

A quarta dimensao e o antiplutocrattsmo e o anticapitalismointernadonal. Estes dois aspectos estao ligados porque o estudoda ideologia fascista comparada a experiencia historica jevela umacontradigao, embora o objetivo do fascismo seja o de revitalizar ocapitallsmo liberal em crise, atraves de um nacional-capitalismosob o controle do Estado Corporativo, o discurso ideologico exterio-riza-se freqiientemente numa Hnguagem anticapitalista.

As proposigoes que concernem a estes dois aspectos enfatizama condenagao do espirito burgues (16), a dominagao oligarquica(26); a crenca de que os privilegios da plutocracia — sao maio-res que os da nobreza (68) e enfim oposigao ao capitalismo inter-nacional.

A quinta dimensao ideologica Integra o mito da transforma$aosocial, simbolizado pela ideia da "revolugao fascista". O fascismo,apesar de postular um projeto globalmente conservador, naodefende o imobilismo, mas aceita o reformismo social. A hipoteseimplicita e que o fascismo, embora sendo uma ideologia de con-servagao social, nao e apenas um movimento reacionario na medi-da em que admite e propSe certas mudangas no seio do Estado, quee um produto da sociedade moderna. Se a solugao corporativa e aexaltagao dos valores do passado representam a dimensao tradicio-nalista da ideologia, este retorno as raizes nacionais tern tambemo sentido de busca de energias para construir um futuro mitico.Mesmo que essa atitude nao passe de urn reformismo social, o de-sejo de realizar a transformagao do Estado e um dos tracos que dis-tinguem o fascismo dos nacionalismos de extrema-direita tradicio-nais.

Cinco questoes procuram captar a existencia nos integralistasde uma atitude reformista. As duas primeiras referem-se a ampli-tude da transformagao: "uma mudanga global e unitaria das estru-turas da Nagao" (15) ou (uma profunda transformagao das estru-turas ultra passadas" (59). Em seguida, as tres outras medem aaceitagao de alguns aspectos do reformismo social: a planificagao daeconomia pelo Estado (58), a socializagao da industria de base (24)e a necessidade de uma reforma agraria (66).

A sexta dimensao e o espiritualismo. Se nao se pode consi-derar como um aspecto ideologico essencial do fascismo (o nacio-nal-socialismo, por exemplo, nao se proclama espiritualista), ele

1

RECONSTRugAo EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 251

esta presente nos textos doutrinarios do fascismo italiano e, sobre-tudo, nos da Falange Espanhola e do Rexismo Belgi.. No fascismoitaliano, a referenda ao espiritualismo e vaga, embora proclame aimportancia dos valores religiosos e dos principles morais na evo-luQao historica. Neste sentido, a Falange e o Rexismo sao maisexplicitos na proclamagao dos valores religiosos porque estes doismovimentos pretendem criar uma sociedade fundada nos principlescristaos e creem na transformagao espiritual do homem. No Brasil,o integralismo, sensivel a tradigao religiosa do povo brasileiro e es-timulado pelo catolicismo de Salgado, incorpora a doutrina umaconcepgao espiritualista do homem e da historia.

O conjunto de proposi§5es elaboradas exprime p espiritualis-mo sob varias formas: a primeira exalta a fe e a submissao a umser sobrenatural ('9); a segunda considera cpie a conversao espi-litual do homem e a condigao previa da reforma social (11); aterceira, que a virtude se encontra numa vida sobria e religiosa(02); a quarta valoriza o papel da religiao na historia (04) e, en-fim, a quinta afirma que a degradagao da civilizagao contempo-rauea e provocada pelo abandono dos principios morais e religio-sos (28).

A setima dimensao forma o nucleo da "revolucao fascista":a transformagao do Estado. 0 Estado, que no fascismo deve serurn instrumento de implementagao do reformismo social, e tarn-hem um fim em si. 0 fascismo proclama que a revolugao fascistareside na transformagao do Estado. E precise, porem, distinguir osdiversos nfveis da reforma do Estado fascista a fim de analisarmosas atitudes dos integralistas.

A concepgao fascista de revolugao deve, em primeiro lugar,gerar o Chefe capaz de encarnar a ideia da transformagao do Esta-do: e a exaltacao e o apelo ao Chefe (46); o papel deste e o de sus-citar a formagao de uma nova elite dirigente que substitua a anti-ga (22). Estes dois elementos, associados a oportunidade historica,desencadeiam a revolugao que triunfa a condicao de quern um Es-tado forte se imponha para substituir o Estado liberal (41); enfim,resta mencionar que o objetivo principal do Estado e a organiza-c.ao da Nagao (10) e que sua organizagao transformadora repousana implantacao do sistema Corporativo (38).

E necessario acrescentar uma ultima dimensao ideologica es-tabelecendo a relagao entre a percepcao dos integralistas sobre anatureza de sua propria ideologia e a ideia de que o fascismo e,em ultima analise, um socialismo-nacional que pretende superar omarxismo e o internacionalismo. Levando em consideragao o temordos integralistas em serem taxados de "nacional-socialistas", a

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252 A RECONSTRUgAO HlSTORICA

questao formulada procura, de forma indireta, descobrir se os mili-tantes aceitam que a ideologia ideal seja uma combinagao entresocialismo e nacionalismo ("A sintese ideologica ideal seria a queconciliasse o primado da justiga social do socialismo com a defesados interesses nacionais do nacionalismo") (06).

A oitava dimensao do fascismo refere-se a um certo numerode preconceitos e valores do universo ideologico fascista que se in-corporam ao integralismo sob a influencia do nacional-socialismo.Refiro-me ao anti-semitismo, ao preconceito da desigualdade na-tural entre os homens e as nacoes, a visao pessimista da historia ea exaltagao dos valores autoritarios (31, 60, 70, 12, 55, 17, 30, 35,21, 45, 57, 18, 34, 65, 67). Um dos paradoxes do fascismo e queele preconiza, ao mesmo tempo a renovagao e o retorno ao passa-do: ao lado da exaltacao da juventude e do mito da nova sociedadefascista desenvolve-se uma nostalgia dos valores tradicionais (05,29, 39).

A ultima dimensao a considerar baseia-se numa hipotese fun-damental para determinar a natureza fascista do integralismo:trata-se de saber ate que ponto havia, nao obstante o carater na-cional da AIB, um sentimento de solidariedade face aos movimen-tos fascistas na Europa. Nao parecia suficiente para que um movi-mento fosse considerado como fascista que tivesse similaridadesformais ou ideologicas com os fascismos europeus, mas era necessa-rio que seus proprios militantes tivessem consciencia desta relagaode parentesco (63).

A analise da distribuicao marginal das respostas, em todas asdimensoes ideologicas tipicas de uma atitude fascista, confirmaramamplamente a hipotese do alto grau de identificacao ideologica dosintegralistas com o fascismo europeu.

Considerando-se o conjunto de questoes, constata-se que, em87,5% das questSes respondidas, existe uma concentracao de res-postas, no nivel mais intense de identificagao (concorda muito oudiscorda muito), que varia de 66% a 100%. Tal dado em si mes-mo significative, porque revelador de um alto grau de homogenei-dade nas atitudes ideologicas dos integralistas, torna-se mais expressi-vo quando se sabe que o movimento extinguiu-se ha mais de tresdecadas.

Um outro aspecto da analise e a determinasao do grau de ho-mogeneidade ideologica dos militantes comparando as atitudes dosque tern uma funcao de diregao nacional ou regional com a dosintegralistas de base. A hipotese postula que numa organizacao au-toritaria dispondo de meios para socializar politicamente os mili-tantes, o discurso ideologico tende a se difundir de uma maneira

RECONSTRugAo EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 253

uniforme entre os dirigentes e militantes de base. A verificacao des-ta hipotese supoe que as mesmas questoes sejam aplicadas aos mi-litantes nos dois niveis de participacao e que um indice permitacomparar seu grau de homogeneidade.

A determinasao do indice de uniformidade6 sobre o conjuntodas respostas dadas demonstra que, de uma maneira global, o graude homogeneidade ideologica dos integralistas e bastante elevado,porque somente menos de 15% das respostas apresentam uma in-consistencia relativa, isto e, um indice de uniformidade baixo.

Apesar do grau bastante elevado de uniformidade ideologica,os militantes de base tendem a ser mais radicals que os dirigentesnacionais e regionais. Aplicando-se o test design sobre o con-junto de respostas dos dois grupos integralistas (dirigentes/base)constata-se que os dirigentes e os militantes locais concentram-sesobre a alternativa de resposta mais radical.

Quanto ao radicalismo ideologico o objetivo era verificar ograu de extremismo ideologico comparando as atitudes dos mili-tantes da AIB com a dos grupos de controle nao integralistas.Para estabelecer esta comparagao, dois grupos de controle foraminstituidos: o primeiro, um grupo de controle adulto, formado porindividuos nao integralistas pertencendo a mesma geracao dos diri-gentes e militantes integralistas; o segundo, um grupo de controlejovem, integrado exclusivamente por uma centena de estudantesuniversitarios. A hipotese postulava que os integralistas, com rela-c.ao as dimensoes do fascismo ideologico, se encontravam distribui-dos entre as atitudes mais radicals.

0 metodo utilizado foi o da construcao de escalas de atitudesa partir de um conjunto de questoes sobre o fascismo ideologico.Procurou-se, por essa tecnica integrar hierarquicamente questoesindividuals constituindo nucleos ideologicos unidimensionais. 0teste da hipotese sup5e, de inicio, que as questoes administradas seorganizam em subconjuntos ideologicos homogeneos; se esta con-digao previa se realiza, o grau de radicalismo ideologico sera medi-do pela comparaeao entre os "scores" dos tres grupos entrevistados,onde se espera sempre mais uma forte proporgao de integralistasnos escores mais elevados.

6 O indice de uniformidade estabelece a relacao entre a percentagemda resposta esperada mais intensamente (concorda ou discorda muilo,conforme a proposic^o seja positiva ou negativa) dos dirigentes nacionais/regionais com relagao aos dirigentes militantes locais.

indice de Uniformidade =% dirig. nac./reS-

% dirig. Mil./Loc.X 100

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254 A RECONSTRUgAO HIST6EICA

Utilizando-se as tecnicas da analise hierarquica (escalas deGuttman e Loevinger), nove escalas de atitude foram construidascom as principais dimensoes do fascismo ideologico, as quais, elabora-das sobre o grupo de controle adulto, foram bastante satisfatorias(vide Anexo 4).

0 conjunto de dados reunidos a partir de diferentes fontes deinformacao durante o processo de pesquisa produziu urn acervo deinformacoes superior as necessidades teoricas e analiticas do estu-do. Nesta ocasiao, recolocou-se enfaticamente, o problema de umanova estruturagao do tema com vistas a analise que deveria iniciar.Essa fase de organizagao final do piano detalhado da analise, emfungao de todo material disponivel, foi crucial para o trabalho por-que estabeleceu seus contornos definitivos, redefinindo e clarifican-do, pela ultima vez, o objeto de estudo e suas hipoteses centrais.Este ultimo piano procurou ser suficientemente compreensivo eanalitico para permitir uma estruturacao mais consistente e equili-brada do tema, valorizando a importancia relativa de cada partena descrigao e explicagao do fenomeno. Esta ultima elaboracao foifeita, em fins de 1970, ao retornar a Paris para a redacao do tra-balho e discussao com o orientador da tese. Tomando como refe-renda os dois esquemas anteriormente citados e incorporando emsua estrutura as novas direcoes analiticas, o ultimo piano trans-formou-se, em seu conteudo esquematico, no proprio indice do tra-balho em sua versao definitiva.

I — Emergencia do Chefe

1. Uma sociedade em transicao da decada de 20

a) A mudanga socio-economicab) Contestagao do sistema politicoc) A mutagao ,ideologica

2. A formagao politica de Salgado

a) A origem republicanab) 0 fermento nacionalistac) A metamorfose ideologica

II — Genese da Ideolodgia

1. 0 desafio da Revolugao de 30

a) A descoberta do fascismob) 0 jornalismo politicoc) Uma ideologia em maturagao

1

RECONSTRUgAO EMPfRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 255

2, A ascensao das ideias autoritarias em 1930 eo nascimento do integralismo

a) A literatura antiliberalb) Os movimentos politicos autoritariosc) A fundagao da Acao Integralista

III — Natureza do Movimento

1. Os militantesa) Origem Socialb) Mobilidade socialc) Motivacoes de adesao

2. A organizayao

a) 0 chefeb) A mobilidade socialc) A socializacao ideologica

3. A ideologia

a) Fundamentos doutrinariosb) A organizacao social e politicac) Os inimigosd) Atitude em face do fascismo europeue) Atitudes ideologicas

Tentando, a guisa de conclusao, reconstituir a logica internado meu processo de pesquisa constata-se que as principais etapasorganizaram-se, em sintese, da seguinte forma. Inicialmente, reuni

ras principaisUibras teoricas, textos de propaganda, ensaios ideologi-cos e periodicos integralistasJ Uma primeira leitura deste acervo

I de textos e documentos conduziu-me a uma serie de indaga9oes so-\bre a natureza e caracteristicas do movimento. Em fungao desta(analise exploratoria, um conjunto de hipoteses foi sendo elabo-tado para ser testado atraves da analise historica, do discursoideologico e das entrevistas em profundidade com antigos dirigen-tes nacionais e regionais do integralismo. Esse conjunto de depoi-mentos e testemunhos produziu novas hipoteses, as quais inspirarama elahoracao de um questionario padronizado a ser ministrado emantigos dirigentes e militantes locais, cujo resultado viabilizou aanalise do perfil socio-politico dos militantes jntegralistas.

As reflexoes teoricas e o material ernpirico produzidos ao longodo processo de pesquisa procuraram integrar-se numa analise ar-

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256 A HISTORICA

ticulada, segundo as diretrizes estabelecidas na estrutura final dotrabalho. Em conseqiiencia, a reconstituigao de um processo depesquisa nao consiste apenas em descrever suas principals etapasteoricas, colocando sob controle o risco de racionalizagao como foidito no inicio, mas em demonstrar a indissociabilidade pratica noprocesso real da pesquisa entre a escolha do tema e sua estrutura-gao, a reflexao teorica e metodologica, a elaboracao das hipoteses,a coleta e a analise dos dados.

Porto Alegre, fevereiro de 1977Anexo 1

I — ENTREVISTA SEMIDIRETIVA(DIRIGENTES NACIONAIS/REGIONAJS)

A — DISSERTACAO01 — O que significou para o senhor sua adesao ao Integralismo?

B — BIOGRAFIA POLfTICO-IDEOLOGICA02 — Como conheceu o movimento integralista?03 — Em que ano aderiu ao Integralismo?04 — Como explicaria sua adesao?05 — Que func.oes exerceu no movimento?06 — Antes de sua adesao ao Integralismo, pertenceu a outras orgw-

nizacoes political, culturais ou religiosas?07 — Seus melhores amigos tambem simpatizavam com o Integra-

lismo?OS — Eles tambem entraram no movimento, ou sua adesao foi in-

dividual?09 — Seus pais interessavam-se por politica?10 — (Se am) Com que mbvimentos ou partidos tinham mais afini-

dades?11 — A adesao ao Integralismo dava-se predominantemente entre

que categories sociais?12 — Quais eram as condigoes para aderir-se ao movimento?13 — Como se organizava internamente a AIB?14 — Existe, na sua opiniao, alguma diferenfa entre a Acao Inte-

gralista e o PRP?15 — Como explicaria a forte implantacao do Integralismo no Rio

Grande do Sul?

C — IDEOLOGIA INTEGRALISTA

16 — Quais eram, na sua opiniao, os problemas mais importantesdo pals na d6cada de 30?

17 — O que pretendia a Acao Integralista enquanto movimento po-litico?

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258 HISTORICA

IS — Quais os aspectos da doutrina ou do programa integralistacom os quais concordava mais?

19 — Discordava de alguns aspectos da doutrina ou programa?20 — Na sua opiniao, quais seriam algumas caracteristicas da eocie-

dade imaginada pelo Integralismo para o Brasil?21 — Que ideologies considera incompati'veis com o Integralismo?22 — Que ideologies considera ter afinidades com o Integralismo?23 — Que fatos politicos da dpoca, ocorridos dentro ou fora do

Brasil, na sua opiniao, tiveram alguma importancia na for-macao ou evolucao da ideologia integralista?

24 — Quais eram os pensadores brasileiros que mais influfram sobreos teoricos do Integralismo?

25 — Frequentemente os te6ricos integralistas referem-se a umaserie de pensadores europeus (Sorel, Maurras, Pareto, Barres,Sardinha, Primo de Rivera, Rocco, etc.): que contribuicaoestes autores teriam dado a doutrina integralista?

26 — Houve alguma influencia da doutrina social catolica sobre aideologia integralista?

27 — Qual era a atitude da Igreja e dos cat61icos com relacao aointegralismo?

28 — Na sua opiniao, a ideologia integralista evoluiu ou semprepermaneceu a mesma?

29 — (Se sim) Em que evoluiu?A que se deve tal evolucao?Na sua opiniao, ela foi positiva ou negativa para o movimento?

30 — Na sua opiniao, sempre houve acordo ou haviam posicoesdivergentes entre os te6ricos do iutegralismo?

31 — (.Se sim) Com que teoricos estava mais de acordo?32 — Qual o significado da revolucao integralista quanto aos seus

objetivos e metodos?33 — Como se organizaria o Estado Integral?34 — Quais as vantagens da democracia organica sobre a demo-

cracia liberal?35 — O Integralismo era favoravel a forma monarquica de governo?36 — Como se organizaria o corporativisrno integralista?37 — Qual era o papel do Chefe National?38 — Qual era a funcao das Mili'cias?39 — Qual o significado dos simbolos integralistas?40 — Como se caracterizaria o nacionalismo integralista?

D — ATITUDES POLITICAS

41 — Qual foi o significado da Revolucao de 30 para a sociedadebrasileira?

42 — E o peribdo getulista?43 — Como interpreta a evolucao polltica do Brasil nas ultimas duas

decadas?44 — Algumas pessoas falam em ameacas que pesam sobre o Brasil:

por quern ou por que coisas o Brasil esta ameacado atualmente?45 — Na sua opiniao, quais os problemas mais importantes que

enfrenta o Brasil atualmente?46 — Quais as perspectives da doutrina integralista em nossos dias

e no futuro?

Anexo 2

II — QUESTIONARIO(DIRIGENTES/MILITANTES LOCAIS)

(01) COMO CONHECEU O INTEGRALISMO?

atraves de amigos ou parentes integralistasatraves de discursos de Plfnio Salgadoatraves da leitura de livros integralistasatraves da divulgacao do Manifesto de Outubroatraves de panfletos e propagandaatraves de desfiles integralistasoutra forma:

1.2.3.4.5.6.7.

(02) EM QUE ANO ADERIU?

(03) COMO EXPLICARIA SUA ADESAO?

(04) SUA ADESAO FOI ISOLADA OU COM UM GRUPO DEAMIGOS?

1. adesao isolada2. adesao em grupo

(05) ANTES DE SUA ADESAO AO INTEGRALISMO, PERTENCEUA OUTROS MOVIMENTOS?

1. Sima) Politicos 2. Nao

Qual?

b) Religiosos

c) Culturais

1..2,

SimNao

Qual?

1.. Sim,2. Nao

Qual?.

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260

f05.a) SEUS PAIS INTERESSAVAM-SE POR POLiTICA?

1. sim2. nao

(05.b) COM QUE MOVIMENTOS OU PARTIDOS TINHAM MAISSIMPATIA?

(06) NA SUA REGIAO, A ADESAO AO INTEGRALISMO DA-VA-SE PREDOMINANTEMENTE ENTRE QUE CATEGORIASSOCIAIS? (indicar ate 3, por ordem)

1. proprietaries rurais2. funcionaiios publicos3. operarios e trabalhadores rurais4. empregados do comercio e da industria5. profiasionais liberals t6. comerciais e industrials7. padres8. militares9. classe m6dia em geral

(07) COMO EXPLICARIA O DESENVOLVIMENTO DO INTEGRA-LISMO EM SUA REGIAO?

(OS) QUAL ERA A FINALIDADE DA ACAO INTEGRALISTA?

(09) SE OS INTEGRALISTAS TIVESSEM TOMADO O PODER,QUAIS SERIAM ALGUMAS DAS CARACTERfSTICAS DASOCIEDADE IMAGINADA PELO INTEGRALISMO PARA OBRASIL?

(10) COM QUE ASPECTOS DA DOUTRINA ESTAVA MAIS DEACORDO? (indicar ate /res)

(11) COM QUE ASPECTOS DA DOUTRINA ESTAVA MENOS DEACORDO? (indicar ate tres)

(12) QUAIS ERAM OS PRINCIPAIS LlDERES DO INTEGRALIS-MO NO SEU MUNIC1PIO?

(13) QUAIS ERAM OS PRINCIPAIS LtDERES DO INTEGRALIS-MO NO ESTADO?

RECONSTRUgAO EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 261

(14) QUE FUNC6ES EXERCEU NO INTEGRALISMO

a) Fun f d o :Ano:

b) Funfao;Ano: . .

c) FunfSo:Ano:

(15) COM QUE FREQTJENCIA PARTICIPAVA DAS ATIVIDADESDO MOVIMENTO OU PARTIDO?

1. Uma vez por semana ou mais2. Uma ou duas-vezes por-mes - • • • • - - . = . .3. Umas poucas vezes por ano4. Nunca

(16) QUE ACONTECIMENTOS OU FATOS POLlTICO-SOCIAISMAIS INFLUIRAM EM SUA MANEIRA DE PENSAR, ANTESDE SUA ADESAO AO INTEGRALISMO? (Indicar ate ires, emordem) '

(17) QUAL FOI SUA MELHOR EXPERIENCIA COMO INTEGRA-USTA?

(18) QUAL SUA OPINIAO SOBRE A REVOLUgAO DE 30?

(19) E SOBRE A REVOLUCAO CONSTITUCIONALISTA DE 32?

(20) NA SUA OPINIAO, A ORIENTACAO DOUTRINARIA O(JPROGRAMATICA DO INTEGRALISMO ENTRE 1932 E 1937:MUDOU, EVOLUliJ "ou PERMANECEU' A MESMA?

(21) (5e a resposta for posiliva) EM QUE MUDOU OU EVOLUIU?

(22) QUAL A DIFERENCA ENTRE,' O PRP e a AIBi NO'PLANODOUTRINARIO?

(23) NA SUA OPINIAO, O PRP AFASTOU^SE DOS VERDADEI-ROS IDEAIS INTEGRALISTAS?

(24) COMO DESCREVERIA A FIGURA DO CHEFE PLlNIO SAL-GADO?

Page 133: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

262 A REcoNSTRucAo HISTORICA

(25) QUAIS AS MIJDANCAS OU TRANSFORMAg6ES MAIS IM-PORTANTES OCORRIDAS NOS tfLTIMOS 50 ANOS NOBRASIL? (Indicar at£ tres, em ordem)

a) no piano economico:

b) no piano social: ...

c) no piano politico: ..

(26) DE QUE MAIS SE ORGULHA COMO INTEGRAtlSTA?

(27) DE QUE MENOS SE ORGULHA COMO INTEGRALISTA?

Ill — CONTEXTO INDIVIDUAL

01 — Sexo: 02 — Cor: „ .03 — Estado Civil: 04 — Idade: . *~.-05 — Onde nasceu? .....,«,.

06 — Na zona urbana ou rural?

07 — Ha quanto tempo mora no Municfpio?OS — Qual era sua ocupasao, na epoca de sua adesao ao Integralismo?

(espetificar)

09 — Atualmente, qual 6 sua ocupacao?

10 — Que estudos realizou?

11 — Que instrusaq possufa seu pad? -

12 — Qual a profissao de seu pai?

13 — Religiao:

1. catdlica2. protestante3. espfrita4. israelita5. outra (espetificar)6. sem religiap

RECONSTRUCAO EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 263

14 — Com que freqiigncia participa de atividades religiosas?\. uma vez por semana ou mais2. uma ou duas vezes por mes3. umas poucas vezes por ano4. nunca

I4a — Qual a importancia da religiao em sua vida?

1. muito importante2. pouco importante3. nenhuma importancia

15 — Origem etnica:

paterna:materna

16 — Numero do Questiondrio;17 — Local da Entrevista; . . . .

Page 134: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

Anexo 3

IV — ATTITUDES IDEOL6GICAS *(DIRIGENTES REGIONAIS/MILITANTES LOCAIS)

GOSTARIA DE SABER SE . . . . . . .ESTA EM ACORDO OU EM CONCORDA DISCORDADESACORDO COM AS SE-GUINTES PRASES: CM CP DP DM •*

01 — Somos uma pais, mas nao ain-da uma nacao: despertemos anacao! CM CP DP DM

.02 — A virtude do homem estdnuma vida s6ria, austera e re-ligiosa. CM CP DP DM

03 — A propriedade privada € umdireito natural e nao deve emnenhum case ser abolida. CM CP DP DM

04 — A religiao nao tern sido histo-ricamente uma forca positivana vida cfvica dos povos. CM CP DP DM

05 — Proteger os grupos naturaisda sociedade e fundamentalna vida politica sa. . CM CP DP DM

06 — A sintese ideo!6gica ideal se~ria a que conciliasse o prima-do da justica social do socia-lismo com a defesa dos inte-resses nacionais do naciona-lismo. CM CP DP DM

07 — O mundo esta em desordemporque o Estado liberal efraco. CM CP DP DM

CM

CM

CM

CM

CM

CP

CP

CP

CP

CP

* Este conjunto de 71 questoes foi aplicado & totalidade dos integralistasentrevistados para o estudo de suas atitudes ideo!6gicas.** CM = Concorda Muito CP = Concorda Pouco

DM = Discorda Muito DP = Discorda Pouco

RECONSTRugAo EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 265

08 — Deveria haver uma igualdade CONCORDA DISCORDAabsoluta entre homens e mu-Iheres. CM CP DP DM

09 — O Partido Comunista deve serdeclarado legal para ser me-Ihor combatido. CM CP DP DM

10 — Nao 6 a natao que gera 'Estado, mas, ao contrario, anacao e criada pelo Estado. CM CP DP DM

11 — Nao adiantam transformacoesestruturais na sociedade semestarem precedidas de uma re-forma espiritual do homem. CM CP DP DM

12 — Nem todos os povos tern omesmo grau de inteligencia ecapacidade para o trabalho. CM CP DP ' DM

13 — Os militares sao a melhor ga-rantia da seguranca nacional.

14 — o governo nao deve limitar odireito de greve. CM CP DP DM

15 — Nao ha solugao isolada para, ,os prqblemas nacionais; ne-

cessitamos de uma reformula-cao global e unitaria das es-truturas da nacao. CM CP

16 — O espirito burgues dominanteem nossas elites tem retarda-do o desenvolvimento do pais. CM CP

17 — Embora a histfiria esteja emconstante movimento, naocreio no mito da felicidade edo progresso indefinido.

18 — A juventude brasileira atualprecisa e de disciplina para ocorpo e para o espfrito.

19 — O Brasil precisa de uma poli-tica extsrna independents,contra todas as formas deimperialismo. CM CP

20 — A integridade da soberania na-cional nao pode jamais subor-dinar-se a nenhum interesseou valor internacional. CM CP

21 — A obediencia e o respeito aautoridade dos pais sao asprincipals virtudes que deve-mos ensinar a nossos filhos. CM CP

22 — £ preciso estimular o desen-volvimento de uma nova elitede homens mtegros, energicose capazes para restaurar adignidade da nacao e seu pro-gresso. CM CP DP DM

DP

DP

DP

DP

DP

DP

DP

DM

DM

DM

• DM

DM

DM

DM

Page 135: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

266

23

A RECONSTRugAo

O futuro da America Latina CONCORDA DISCORDAdepende de nossa capacidadede resistlr ao perigo comu-nista. CM CP DP DM

24 — A socializacao crescente dossetores basicos da industrianacional e estrangeira e ne-cess£ria ao desenvolvimentodo pais. CM CP DP DM

25 — O liberalismo, fruto da Revo-lucao Francesa, 6 um dos ma-les da nossa civilizacao. CM CP DP DM

26 — A dominafao oligarquica dapolitica e da economia e umdos nossos maiores males. CM CP DP DM

27 — A revolucao cubana xepresen-tou um progresso social paraa America Latina. CM CP DP DM

28 — Um dos problemas mais gra-ves da civilizacao contempo-ranea e a decadencia dosprinciples morals e religiosos. CM CP DP DM

29 — O sistema capitalista produzi-do pelo liberalismo economico implantou a grande indus-tria, sufocando o artesanato,o que foi uma coisa ruim. CM CP DP DM

30 — Tal como 6 a natureza huma-na sempre haverd guerras econflitos. CM CP DP DM

31 — Os judeus sao associados aosurgimento do comunismo ecapilalismo internacionais. CM CP DP DM

32 — As Forcas Armadas represen-tarn a elite mais preparada danacao. CM CP DP DM

33 — A democracia liberal & o re-gime politico adequado paraas nacoes em desenvolvimento. CM CP DP DM

34 — A fidelidade a. doutrina e aoChefe deve ser o fundamento6tico de toda organizacao po-litica. CM CP DP DM

35 — A democracia 6 um idealigualitario inatingfvel. CM CP DP DM

36 — A intervencao dos militarescontra o governo Goulart foinecessaria para acabar com aanarquia. CM CP DP DM

37 — O Brasil necessita continuarainda com um governo forteapoiado nas Forcas Armadaspara manter a ordem. CM CP DP DM

RECONSTRUgAO EMPfRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 267

3S — A organizacao das classes em CONCORDA DISCORDAcorporacoes nao e a solucaopara a luta entre grupos sociais. CM CP DP DM

39 — Conservar a tradigao nacional6 garantir a identidade dapdtria e seu progresso.

40 — O Brasil tern uma missao his- CM CP DP DMtorica a cumprir na evolugaoda humanidade. CM CP DP DM

41 — Precisamos de um Estado for-te, nascido das prdprias raizesda nacao, que paire acimados partidos, grupos financei-ros ou classes. CM CP DP DM

42 — Nao ha" diferenca substancialentre socialismo e comunismo. CM CP DP DM

43 — Os partidos politicos e o su-fragio universal dividem a na-gao. CM CP DP DM

44 — Nao existe nenhum interesseque supere os interesses danacao. CM CP DP DM

45 — A perda do senso de hierar-quia esta na raiz dos nossosproblemas. CM CP DP DM

46 — O Brasil sempre precisou deum homem providencial, comqualidades excepcionais, paratirar o pai's da crise em quevivemos h5 muito tempo. CM CP DP DM

47 — fi preciso ate mesmo usar daviolencia para impedir a ex-pansao do comunismo. CM CP DP DM

48 — A crise interna da Igrejap6s-conciliar e um progressoindiscutivel para a renovacaoda religiao tradicional. CM CP DP DM

49 — A realizacao dos objetivos danacao e mais importante quea existencia de eleicoes comsufr^gio universal. CM CP DP DM

50 — Desde a Proclamacao da Re-publica, instaurou-se no paisa instabilidade poHtica, acorrupcao e as crises perio-dicas. CM CP DP DM

51 — A milicia integralista, a!6m daformacao moral e cfvica, ti-nfaa como fun?ao proteger omovimento contra os ataquesde seus inimigos. CM CP DP DM

52 — O Segundo Imperio foi oapogeu de nossas instituicoespoliticas, nao por ser parla-

Page 136: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

268 ^

mentarista, mas porque o re- CONCORDA DISCORDAgime monfirquico era a basedo seu equiUbrio. CM CP DP DM

53 — Nao existe problema racial noBrasil porque os negros acei-taram sua posicao de inferio-ridade. CM CP DP DM

54 — A revolucao de 64 esta reali-zando verdadeiramento sousobjetivos. CM CP DP DM

55 — No mundo sempre havera po-vos superiores e inferiores z,para o bem de todos, e me-Ihor que os superiores gover-nem o mundo. CM CP DP DM

56 — A Igreja nao esta infiltradade eaquerdistas. CM CP DP DM

57 — O que o pais mais necessita,em vez de leis e programaspoliticos, e de chefes. CM CP DP DM

58 — O planejamento estatal daeconomia, conforme os inte-resses. da nacSo, tem primaziasobre os interesses da iniciati-va privada. CM CP DP DM

59 — Nosso pais precisa de umaprofunda transformacao dasestruturas socio-economicassuperadas.

60 — O espirito judaico e umaameaca permanente para ahumanidade.

61 — O Congresso deve permanecerfechado porque e inteiramen-te dispensaVel.

62 — O "nacionalismo realista" dc-nuncia a espoliacao do nossopovo pelo capitalismo interna-tional. CM CP DP DM

63 — Embora o integralismo fosse _um movimento genuinamentenacionalista, sentia-se moral-mente solidario com os movi-mentos politicos europeus queexaltavam valores semelhan-tes, como reacao ao materia-lismo liberal e marxista. CM CP DP DM

64 — Devemos conceder a empre-sas estrangeiras a exploracaode nossas riquezas minerals. CM CP DP DM

65 -r- Cultivamos como valor funda-mental o espi'rito da amizade,que queremos elevar ao nivelda amizade nacional. CM CP DP DM

CM CP

CM CP

CM CP

DP DM

DP DM

DP DM

RECONSTRUCAO EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 269

66 — O Brasil precisa de uma re- CONCORDA DISCORDAforma agraria profunda, inclu-sive com desapropriagao deterras da aristocracia latifun-diaria. CM CP DP DM

67 — Falta as geracoes atuais o gos-to pela aventura e pelo sacri-ficio a patria. CM CP DP DM

68 — A plutocracia capitalista gozade privilegios mais amplos doque os privilegios antigos danobreza e do clero. CM CP DP DM

69 — Todos devemos ter fe absolu-ta em um poder sobrenaturalcujas decisoes temos que acei-tar. CM CP DP DM

70 — Toda organizagao secreta arti-culada internacionalmente, co-mo a maconaria, deve sercombatida. CM CP DP DM

71 — Mesmo o chamado socialismodemocratico deve ser comba-tido por todos os meios. CM CP DP DM

Page 137: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

Anexo 4

ESCALAS DE ATITUDES IDEOLOGICASCALCULO DO COEFICIENTE DE LOEVINGER *

1) Escala de Nacionaiismo

A escala de nacionalismo & constituida por quatro questOes que formamo nuc.leo da atitude nacionalista: a necessidade de despertar a consciencianacional (01); a supremacia do interesse do Estado-Nacao (44); o naciona-lismo antiimperialista (62) e, finalmente, a primazia da soberania nacio-nal (20).

QUESTOES

1. Consc./Naciona! (01)2. Suprem./Nacional (44)3. Capit./lnternab. (62)4. Sober./Nac.ao (20)

0,464

(012)

0,385

(44z)

0.306

. (623)

0,231

(20:)

0,536 (012)

0,615 (442)

0,692 (62j)

0.7G2 (202)

\0,330

0,533

0,258

\

0,429

0,458

\0,425\

0.380

0,399

0,461

0.387

* Trata-se do coeficiente de Loevinger calculado para coda ctdula ecoda linha cujo valor mfnimo tolerado e de 250. O pequeno numero, colo-cado ao lado da referenda da questSo, indica o local do corte retido entreas quatro alternativas de respostas,2) Escala de Autorilarismo

REcoNSTKucAo EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 271

A escala de autoritarismo Integra tres elementos essenciais a atitudeautoritaria, O primeiro se constitui dos valores ligados a uma visao hie-rarquica da sociedade: a fidelidade ao Chefe (34); a obediencia a autori-dade (21) e a valorizafao da disciplina (18); o segundo, o apelo ao Chefe(57) e a espera do homem providential (46); enfim, a exaltacao dasestruturas polfticas autoritarias: a defesa do Estado forte (41) e a for-macao de uma nova elite (22).

QUESTOES

1. Fidel/Chefe (34)

2. Homem/Provid. (46)

3. Necess./Chefes (57)

4. Estado/Forte (41)5. Obdien./Autor (21)

6. Nova/Elite (22)7. Disciplina (18)

0,646 0,631 0,554 0.338 0,292 0,185 0,169

(34i) (46i) (572) (41;,) (212) (222> (183)

0,354 (34i)

0,369 (46!)

0,446

0,662 (412)

0,708 (21 z]

0,815 (222)

0,831 (1g3)

\0,309

0,372

0,611

0,398

0,292

1

\

0.549

0.880

0,576

0,544

0,700

\

0,596

0.523

0,627

0,587

\

0,606

0,746

0,589

\

0,412

0,463

\0,332\

0,437

0,533

0,521

0.663

0,500

0.493

0,537

Page 138: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

272 A REcoNSTRugAo HISTORICA

3) Escala de Anti-socialismo

Esta escala e composta de cinco questoes: duas rejeitam o socialismosobre o piano teorico (defesa do principle da propriedade privada) (03)e sobre o piano hist6rico (condenacao da experiencia cubana) (27); duasoutras manifestam predisposicao a ac.ao anticomunista (23) e a violenciaanticomunista (47); enfim, a ultima se opoe inclusive ao socialismo demo-cratico (71).

QUESTOES

1. A/Social2. Violen./A-Comun3. Amea^a/Comun.4. Propr./Priv.5. Revel/Cub.

(71)

(47) 0,138 (710

(23)

^ 0,308 (470

0,462 (23.)

0,785 (032)

0,831 (273)

0,862 0,692 0,538 0,215 0,169(710 (47,) (230 (03a) <273)

\

0.659

0,561

1

0.343

\

0,813

0,773

0,713

\

0,846

0.808

\

0.421\

0,655

0,757

0,777

0,670

0,573

RECONSTRUQAO EMpfwcA DE UM MOVIMENTO RADICAL 273

5) Escala de Anticonservadorismo

Nesta escala, quatro dimenaoes formam uma atitude que se poderiachamar genericamente de anticonservadorismo. Trata-se de um anticapita-lismo pre-capitalista (29) e de uma posicao antiburguesa (16), ao mesmotempo de uma crenca na mudanca das estruturas (15) e na transformacaoglobal da sociedade (59).

QUESTOES

1. A/Capit. (29)2. A/Burgufes (16) 0,154 (2903. Mudanc. a/Global (15)4. Transf./Estrut. (59)

0,600 (16,)

0,738

0,954 (593)

0,846 0,400 0,262 0,046

(29,) (160 (150 (SSa)

0,625 0,414

0,559

0,862

0,626

0,472

0,540

4) Escala de Antiliberalismo

As questoes desta escala se agrupam em torno de quatro temas anti-liberais: a recusa da doutrina liberal (25); a condenagao do Estado liberal(07); a rejeicao dos mecanismos da democracia liberal (49) e, enfim, oceticismo face ao ideal democratico (35).

6) Escala de Tradicionalismo

Os temas tradicionalistas da escala combinam a valorizacao dos gruposnaturais (05); da organizacao corporativa (38); a defesa do artesanato(29) e a crenga em um poder sobrenatural (69).

QUESTOESQUESTOES o,9os 0,708 o.sos 0.231

(25;) X07i) (350 {49?)

1. A/Liber. (25)2. Estado/Liber.. (07) 0,092 (25,)3. Democ./lrregl (35)4. Eleit./Sufrag. (49)

0,292 (070

0,492 (350

0,769 (49a)

\0,292

0,681

0,286

\

0,561

0,313

\

0,325 \

0,469

0,455

0,5)7

0,377

0,754 0,600 0.336 0,123(383) (292) (693) (053)

1. Organ. /Corpor. (38)2. Pre./Capit. (29) o,246 (383)3. Poder/Sobrenat. (69)4 Gruoos/Naturais (05)

^ 0,400 (292)

0,662 (69s)

0,677 (053)

\

0,480

0,819

1

\

0,659

0,367

\

1 \

0,648

0,536

0,796

0,806

Page 139: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

274 A RncoNSTEugAo HISTORICA

7) Escala de Religiao-Moral

Esta escala compreende as questoes de cunho espiritualista: crenpana conversao do homem (11); nas virtudes morais (02); na decadihicia dosprinciples morais na sociedade atual (28) e na submissao do homem aum ser espiritual (69).

QUESTOES

1. Homem/Virtuoso2. Poder/Sobrenat.3. Decad./Moral4. Convers./Espirit.

0,600 0,338 0.24G 0,108

(020 (693) !28a) (113)

(02)(69) 0,400 (02i)(28)

(11)0,662 (693)

0,754 (28?)

0,892 (11 a)

\

\

0,770

0,847

0,651

\

0,528

0,789

\

0,432 \

0,779

0,667

0,626

0,610

8) Escala de Fatalismo-Pessimismo >

Incorpora certas atitudes relacionadas com a crenpa na superioridadede certos povos (55) a uma concepfao pessimista (35) ou tragica da his-t6ria (30).

QUESTOES

1. Povo/Super. (55)2. Guerras/Conflitos (30) 0,292' (55i)3. Demo./lrreais (35)

0,585 (30i)

0,769 (353)

0,703 0,415 0,231(550 (30i) (35s)

0,744

0,544 0,541

0,672

0,637

0,548

RECONSTRUgAO EMPIRICA DE UM MOVIMENTO RADICAL 275

9) Escala de Preconceitos

Os preconcedtos se fimdamentam basicamente sobre o anti-semitismo(60-61); sobre uma atitude antimagonica (70) e sobre a visao de umadesigualdade natural entre os homens (12).

QUESTOES

1. A/Mat;on (70)2. Desigual/Homens (12) 0,262 (70.)3. Ameaga/Judaica (60)4. Consp./Judia (31)

0,471 (12!)

0,477 (603)

0,646 (31

0,738 0,569 0,523 0,354

(700 020 (60s) (31s)

0,383

0,657

0,687

0,249

0,417 0.633

0,564

0,359

0,478

0,590

Page 140: A aventura sociológica   edson oliveira nunes - organizador

110 Ator, o Pesquisador e a Historia:

Impasses Metodologicos na Implantacjiodo CPDOC *

ASPASIA ALCANTARA DE CAMARGO

Advertencia

Procure!, com este breve testemunho pessoal, retratar os desa-fios e dificuldades que acompanham a implantacao de um traba-Iho institucional de pesquisa. Infelizmente, nao e um depoimentoacabado, mas unicamente a avaliacao parcial de um projeto sobre"Elites Politicas", ainda em curso, que portanto me impede umhonesto balance final.

Espero, ainda assim, que possa retratar alguns aspectos relr--vantes do que e a praxis cientifica em um campo novo, que pretendeincorporar aos metodos tradicionais da disciplina historica outrosprocesses e tecnicas, consagrados por outras disciplinas, e que conci-liem a coleta de documentos com a analise e processamento do ma-terial que utiliza.

Algumas das questoes iniciais, explicitadas como normas jaem nossos primeiros passos — como a opgao por conciliar do-cumentagao e pesquisa — engendraram numerosas outras alterna-tives, que exigiam pronta e definitiva resposta. A medida em quese desdobravam os projetos, as frentes de reflexao se ampliavam emesforgo duplo: por um lado, definir estrategias institucionais quecongregassem os objetivos especificos de cada projeto, e por outro,em cada setor, particularizar a dupla orientagao de organizar dados

* Centro de Pesquisa e Documenta?ao de Historia Contemporanea doBrasil,

O ATOR, o PESQUISADOR E A HISTORIA 277

brutos, para servir a comunidade de estudiosos e pesquisadores, e aomesmo tempo processa-los, segundo seus proprios objetivos.

Ao final dos primeiros 3 anos de atividade, com cinco setoresorganicamente integrados — Arquivos (documentos pessoais). Dicio-ndrio Historico-Biogrdfico (informasoes biograficas tematicas),Pesquisa (analise monografica), Historia Oral (entrevistas grava-das) e Brasiliana (levantamento e analise bibliografica) — defini-ram-se coletivamente as linhas basicas de um trabalho que sistemati-zava, sob diferentes angulos, dados e reflexSes sobre os mesmos ato-res e uma mesma Historia.

Por limitagoes de espaco, optei por retratar aqui tres tipos deproblema, a niveis de abstracao diversos.

Em primeiro lugar, a questao complexa, e, no texto, proposi-talmente bastante simplificada, da montagem dos projetos na fasede implanta5ao do Centro. Tendo em vista a enorme dificuldade queteria em decompo-los um por um, optei por uma visao de conjuntoque nao dispensara, futuramente, reflexoes criticas sobre cada umdos projetos mencionados.

Em segundo lugar, analiso mais em profundidade o que foi aimplantacao de um dos projetos, o de Historia Oral, que coordeneipessoalmente em suas diferentes etapas, e que, por isso mesmo, co-nhego melhor. Com relagao aos demais projetos, parece ter sidotambem aquele que mais serios impasses metodologicos criou, porapoiar-se em uma tecnica pouco codificada, sujeita a interpreta-c5es polemicas e aplicagoes arbitrarias. Estas dificuldades refleti-ram-se a todos os niveis: formacao de equipe e treinamento depessoal, coleta, transcricao e interpretacao de dados. Esforgar-me-eipois, em reconstituir o cammho percorrido no cotidiano da pesq**'-sa, nele incluindo a reflexao necessaria a que fui levada, sobre ascondigoes de objetividade cientifica em terreno aparentemente taomovedigo.

Em uma palavra final, tratarei de abordar a questao delicadadas condigoes sociais que favoreceram a implantagao do CPDOC, oque Ihe deram um singular dinamismo inicial. Com esse testemu-nho mais pessoal, pretendi apenas aceitar a proposta do organizadordo presente volume, que tao oportunamente soube avaliar a impor-tancia da auto-reflexao, e, por isso mesmo, suas resistencias inter-nas, tanto maiores se o ciclo de trabalho e ainda, como o meu, in-completo.

1. Um Ponto de Partida: Documentagao e Pesquisa

Quaudo foi criado, em juubo de 1973, no Instituto de DireitoPublico e Ciencia. Politica da Fundagao Getulio Vargas, o Centro

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278 A RECONSTRTjgAO HJST6RICA

de Pesquisa e Documentacao de Historia Contemporanea do Brasilfixou-se um duplo objetivo: criar um acervo basico de fontes prima-rias relacionadas com o periodo que se iuaugura com a Revolugao de1930, e, ao mesmo tempo, trabalha-las sistematicamente, em areasrelevantes de pesquisa.

A opgao assumida constituia, sem diivida alguma, um fatonovo que contraria os criterios correntes de organizacao de arqui-vos, em geral a cargo de especialistas sem pretensao de trabalM'los tambem para seu proprio uso, em suas pesquisas. De fato, nosCentres de Documentagao e Arquivos, na Europa ou nos EstadosTJnidos, a preparacao dos documentos para consulta desvincula-sede finalidades academicas de processamento das informagSes obti-das, e de sua divulgacao atraves de livros e artigos. Separam-se as-sim, drasticamente, as fungoes de documentagao e de pesquisa, sen-do a ultima exercida apenas pelo publico, anonimo, que os utiliza.

Desde logo, na montagem do Setor de Arquivos, o caminhoescolhido gerou dificuldades e tropegos: a lentidao da cataloga-gao e indexacao dos 25.000 documentos do Arquivo Gelulio Var-gas e dos 80.000 documentos do Arquivo Oswaldo Aranha (osprimeiros a serem doados), incluindo neles correspondencia pes-soal, folhetos, relatorios, discursos e recortes de jornal, que tive-ram seus conteiidos cuidadosamente resumidos: a tentativa (frus-trada) de submeter de saida os documentos a camisa de forga dosdescritores;^- a diversidade dos temas de pesquisa sugeridos pelo le-vantamento preliminar dos arquivos; a dificuldade em identificar,de imediato, os personagens mencionados, envolvidos na trama dosacontecimentos assim como as tendencies e interesses com os quaisse identificavam em cada periodo.

A escassez de recursos pouco permitia. Para contorna-la, a so-luc.ao adotada pelo embrionario $etor de Pesquisa2 foi utilizar atitulo experimental os resumos de documentos do Arquivo Vargaspara um estudo de Coujuntura Politica, no periodo compreendidoentre a Revolucao de 1930 e o Golpe de 1937.

Curiosamente, a proposta de um tema abrangente de Pesqui-sa no Arquivo Vargas partiu dos proprios estagiarios, em intimaconvivencia com os documentos do periodo, cujos resumos faziam.

1 O descritor e a palavra-chave que sinteticamente classifica o conteudodo documento de maneira a que possa ser subraetido a um programa decomputador. Ficou evidente que a selegao de descritores deveria ser an-tecipada por um conhecimento mais sistematico do conteudo dos acervos,adquirido a partir da indexacao dos documentos. S6 entao seria possivela utilizacao de descritores adaptados a informacao real dos arquivos. .2 " O Setor de Pesquisa, se assim se pode chamar, era constituido de umcoordenador e 4 estagiarios dos cursos de Histdria e Ciencias Sociais.

O ATOR, o PESQUISADOR E A Hisi6RiA 279

Dada a preocupagao constante da Diregao de Pesquisa •— em deba-tes e seminaries internes — com o jogo crucial da Centralizagaoe da Descentralizacao de poder, expresses pelo Regionalismo e oEstatismo, a proposta sugerida foi a de examinar essa oposigao ba-sica, atraves de dois atores que se destacam na correspondencia daepoca: Goes Monteiro, representante do Exercito, e Flores daCunba, porta-voz do Rio Grande do Sul — o mais poderoso sub-sistema regional do periodo. Do embate entre as duas tendenciasseria possivel melhor compreender a articulagao de cada projetopolitico, assim como o papel arbitral de Vargas em seu percursorumo ao Golpe de 1937, eliminando Flores da Cunha e fortalecendoGoes Monteiro3. Desse levantamento, resultou inicialmente umacronologia de documentos, que longamente discutida em grupo,originou uma andlise documental11, orientada para os arquivos, ede carater provisorio, como primeira contribuicao do Setor de Pes-quisa.

Paralelamente, as inicipientes fichas de identidade?, de utili-dade imediata para os Arquivos, sugeriram a possibilidade de em-preeudimento mais sistematico e mais global. 0 proximo passo foi,pois criar, dentro do CPDOC, um departamento voltado para a ela-boragao de um Projeto de Diciontrrio com vistas ao estudo biogra-fico das elites politicas, nele incluindo tambem o levantamentode temas significativos da Historia Contemporanea brasileira. Atu-almente, sao 800 os temas relacionados e mais de 4.000 as biogra-fias referidas, de 1930 ate os nossos dias.

Os resultados dos levantamentos Goes Monteiro — Flores daCunha constituiram o ponto de partida para numerosas especula-

3 Em outubro de 1937, o Governador Flores da Cunha e obrigado a de-mitir-se, e abandona o pai's rumo ao Uruguai. No mes seguinte, a 10 doNovembro, Vargas, assessorado por Goes Monteiro, da o golpe, inaugu-rando o Estado Novo.4 A falta de outro termo, designamos como andlise documental o tipode documento de trabalho que resulta do estudo intensivo de uma fontcde informacao historica, tomada como unidade significativa da recompo-sigao dos fatos. Como tal, pressupoe que a fonte seja rica e relativamen-te completa, o que permitiria abstrair a existencia de outras fontes, coma exclusive finalidade de extrair de si mesma todas as virtualidades. Emfungao dela, pretende-se obter, mais do que dados, uma hierarquizacaode problemas.5 Fichas de identidade eram as biografias utilizadas como apoio aos re-sumos e classificacao da correspondencia, com a finalidade de identificarhistorica e politicamente as personalidades mencionadas nos Arquivos.Fichas de assunto eram as referencias a temas relevantes do periodo, in-cluindo partidos, movimentos, e alguns eventos que embora relevantes,nao finham ainda sido satisfatoriamente tratados pelas fontes de consultadisooniveis.

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280 A RECONSTRugAo HISTORICA

goes em torno da articulacao dos sub-sistemas regionais, de seu pa-pel crucial na politica de Vargas — e na implantagao do novo regi-me. Ao mesmo tempo, ficou patente que tal trabalho exigiria o le-vantameuto de oulras fontes de consulta, alem dos arquivos. Comesse fim, selecionamos 4 subsistemas considerados estrategicos: Mi-nas, Rio Grande do Sul, Sao Paulo e Pernambuco, para atraves de-les acompanhar as reacoes do poder central face a setores regionaishistoricamente sedimentados (e com lideranca propria), capazes.portanto, de respostas politicas especificas diante dos apelos e pres-soes da maquina estatal6.

Tendo em vista a carencia de estudos historicos sistematicos eexaustivos, caberia, como primeira meta, selecionar conjunturas,em um levantamento preliminar e extensivo. Pistas e indicacoes,procuramos busca-las em um conjunto de arquivos7, para posterior-mente confronta-las com outras fontes, especificamente jornais eentrevistas.

Nao e de surpreender que a amplitude de temas potencialmen-te relevantes, e a extensao do periodo, tenbam tornado arduo o le-vantamento de dados, que pretendia, de inicio, abarcar a faixa his-torica de 1930 a 1945, e que cobria um tanto caotica e superficial-mente informacoes diversas e desencontradas sobre o periodo. Defato, no decorrer dos primeiros meses de coleta, fez-se necessarioo parcelamento da pesquisa em etapas distintas: uma primeira, co-brindo de 1930 a 1937, momento em que o pais enfrenta profun-das e continuadas crises e em que se elaboram alternativas confli-tuosas para o modelo politico; uma segunda, o Estado Novo, emque prevalecem as bases autoritarias de um acordo que garante,temporariamente, estabilidade politica e administrativa.

O passo inicial seria operar com os conceitos de conjuntura ede crise, empiricamente identificados, por feixes de acontecimentos etenrencias conflituosas, em seus condicionantes passados e implica-c.5es futuras. Em outras palavras, 'conciliar metodologicamente odiacronico ao sincronico, destacando o peso funcional do ator nosistema e ao mesmo tempo inserindo o sistema politico na Historia.Como unidades basicas de reflexao, destaque seria dado ao ator

6 A equipe ficou constituida de 9 pesquisadores: 6 estagiarios em final d«graduacao, dois pesquisadores cursando mestrado, e um coordenador-mestre.7 Arquivos Oswaldo Aranha e Francisco Antunes Maciel.8 Ator politico aqui entendido como pessoas ou grupos (imediatamentedetectdveis, representados por pessoas) que desempenham papel relevantenas decisoes politicas, por acao direta ou pressao difusa.

O ATOR, o PESQUISADOR E A HISTORIA 281

e ao acontecimento9 com os elos significativos que os fazem mo-ver-se.

Criou-se, em torno do levantamento de jornais, e nao sem ra-zao, grande expectativa. Tratava-se, na verdade, de testar a fidedig-nidade das informasoes dos Arquivos, e seu valor heuristico. Ateque ponto, confrontados com os dados da Imprensa, seriam inedi-tos, e historicamente reveladores os dados ja obtidos? Seriam elesdiseociados, complementares ou excludentes? 0 teste dos jornais foi,para nos, decisivo. De fato, a despeito de sua maior diversidade, emraras situacoes ocorreu que noticias veiculadas pela Imprensa du-plicassem as informacoes mais confidenciais dos Arquivos, Essaespecificidade das fontes revelou a enorme autonoraia e privaci-dade dos centres de decisao politica, conferindo, portanto, aos Ar-quivos sua importancia estrategica para o estudo do periodo.

Do levantamento preliminar e extensivo, acima descrito, ficouevidente que o proximo passo seria hierarquizar assuntos e par-ticularizar hipoteses de trabalho para momentos criticos da conjun-tura politica, acompanhando seu impacto direto sobre o sistema.

Como resposta formal prevaleceu a opgao por uma serie mo-nogrdfica cujos temas foram selecionados com respaldo no levan-tamento de dados ja referido. Sem diivida, o periodo escolhido(1930/1937) induzia a tal abordagem, pela extrema diversidadede seus contrastes em lapso de tempo relativamente curto: um mo-mento revolucionario inicial que congrega liderangas, projetos eideolpgias de diferentes matizes10; um bipartidarismo gaiicho desolidas raizes historicas, que faz a Revolucao em Frente Cnica, paraa seguir se ver corroido pela nova ordem que se consolida11; a im-plantagao de uma legislagao trabalhista, que imprime ao Estadouma feicao reformista, e Ihe dara esteio em anos subsequentes, definindo o perfil do regime12; uma contra-revolu?ao regional, quaseepica, que contesta o centralismo e o autoritarismo revolucionario

9 O acontecimento tern sido, de longa data, a mate"ria-prima dos histwriadores. Para os autores positivistas do final do seculo XIX, a Hist6rianada mais era do que o estudo do passado "pelo encadeamento continuede acontecimentos". Temporariamente relegado, em parte, por influenciado avanco de outras disciplinas vinculadas as Ciencias Sociais (e por issomesmo com maiores pretensoes ao estudo de estruturas e sistemas) o acon-tecimento parece redefinir-se hoje, em um novo espaco. Os comentarios dePierre Nora confirmam: "O acontecimento tern como virtude reunir umfeixe de significagoes esparsas. Cabe ao historiador desvenda-las para che-gar da evidencia do acontecimento a evidencia do sistema". Pierre Nora— "Le Retour de 1'Evenement", in Jacques Le Golf e Pierre Nora — Fai-re de mistoire, Ed. Gallimard, 1977, vol. 1, p. 225.10 Monpgrafia sobre Projetos Poh'ticos da Revolupao de 1930,11 O Bipartidarismo Gaucho e a Revolucao de 1930.12 Lindolfo Collor e a Criacao do Ministerio do Trabalho.

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282 A RECONSTRUgAO HlSTtfRICA

que relanga as bases de uma abertura politica13. Uma Constituinteque restaura o regime representative, reaproximando temporaria-mente a Sociedade Civil do Estado14. E ainda, urn "caso mineiro",que alija proceres revolucionarios regionais e Integra pacificamenteMinus as hostes de Vargas15. Como pano de fundo de tao diversi-ficados episodios, presencia-se um confronto civil-militar, com a ra-dicalizacao tenentista, o combate a Sao Paulo. Intermitentes cons-piracoes de cupula e um putsch comunista, que restaura involun-tariamente a ordem e a disciplina no Exercito, em preambulo auma solida alianca que se concretiza com o Golpe de 1937.16

Precedendo a montagem das primeiras monografias, dois rtr>vos projetos surgiram: o de Historia Oral e o da Brasiliana. O pri-meiro, que iremos examiner em detalhe mais adiante, comple-mentou tendencies ja definidas nos projetos do Dicionario e daPesquisa, por um programa de entrevistas com liderancas politicas,desta vez explicita e deliberadamente voltado para a origem, de-sempenho, projetos, percepcoes e trajetoria do ator politico. Paraisso, contou com a massa de material biografico fornecido pelo Di-cionario, e com problematicas e indagacoes comuns aos pesquisado-res na medida em que se dispunba de projetos e temas ja definidos.

No Projeto Brasiliana, procuramos autonomizar o campo in-telectual da epoca, localizando-lhe as fontes principals, seus maisdestacados atores, bem como a natureza de suas contribuicoes faceas mudangas que se processam com a Revolugao de 1930. Comisso, poderiamos posteriormente confrontar projetos politicos atra-ves de seu duplo suporte: as elites intelectuais e as liderancas po-liticas, cujas relagoes seriam em si mesmas objeto de estudo relevan-te, a fim de esclarecer a origem das matrizes idologicas propostasa comunidade de politica.

2. Historia Oral, Entrevistando Lideres

a) Primeiras Opgoes

O objetivo inicial foi ampliar as fontes de informacao histo-rica, em momentos decisivos da vida politica brasileira, onde osarquivos e a historiografia pareciam mais carentes, e cujo escla-recimento poderia ser obtido pela memoria de testemunhas de epo-ca.

13 A Revolufao Constitucionalista (1932).14 A Constituinte de 1934.15 A Crise da Sucessao Mineira (1933).16 Crise Militar e o Golpe de 1937.

O ATOR, o PESQUISADOR E A HISTORIA 283

De imediato, procuramos definir as linhas gerais do programaem torno de depoimentos completos de kistoria de vida17 que, em-bora mais demorados e de mais dificil preparo, seriam os limcos aexaurir longas trajetorias politicas, dentro das quais os fatos maisrelevantes seriam elucidados por uma percepgao e uma vivencia glo-bal do periodo. Aereditavamos que, se a memoria humana e falhana reconstituicao de detalhes — datas e acontecimentos •— e seleti-va nos elementos que registra, indubitavel seria sua eficacia narconstituigao do clima de epoca, do papel que nela desempenharamdiferentes personagens, na localizacao de clivagens, e na auto-ava-Uacao de trajetorias politicas e de vida.

Como o antropologo, mais do que testar hipoteses, de antemaofixadas, buscavamos a certeza de compreender um universo contra-ditoriamente familiar e estranho. Familiar, sem duvida, pois acon-tecimentos, pessoas referidas, eram por demais conhecidos, parteintegrante de uma mitologia cujo legado receberamos da geragao an-terior de intelectuais e politicos. Estranho, na medida em que. maisdo que fatos, pretendiamos entender as situagoes em que o atorse move, com suas conexoes passadas, presentes e futuras. A pos-sibilidade de compreeusao pelo dialogo pareceu-nos imensamenterica e aberta ja em conversas informais com remanescentes do pe-riodo. Dominou-nos, pois, a conviceao de que o testemunho espon-taneo, global e, na medida do possivel, exaustivo, seria um legadoimportante para o entendimento e reconstituigao da Historia Po-litica do periodo.

Quern escolher? Organizamos uma listagem exaustiva de possi-veis depoentes, que por sua longa experiencia atuaram nos anos tu-multuados que antecedem a Revolugao de 1930, participaram daimplantagao do novo regime, aderiram ou refutaram o EstadoNovo, prepararam ou presenciaram. sua queda, acompanharamos grandes embates dos anos 50 ate a Intervengao Militar de 1964.Esta lista incluia presidentes da Repiiblica, governadores e minis-tros, lideres de partido, militares revolucionarios, juristas e mem-bros do Supremo, ministros de Estado e assesores da presidencia ede ministerios. Por escassez de recursos, fomos induzidos, inicial-

i' Nem todo programa de Historia Oral interessa-se por Historias davida e vice-versa. Enquanto as iniciativas de programas de Historia Oraloriginarn-se principalmente de niicleos de historiadores, as historias de vidatern sido mais objeto de preocupacao da Antropologia Urbana, emboraclassicamente os historiadores tenham se interessado pelos Grandes Vul-tos intelectuais, politicos e religiosos. Hoje, diferentes disciplinas utilizam-se, para seus fins espectficos do mesmo instrumento de recomposicao davida social, cf. George Ballan — Historia de vida en Las Ciendas Sociales,Buenos Aires, Nueva Vision, c. 1974 — p. 217.

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284 HISTORICA

mente, a dar prioridade aos movimentos mais recuados, que pre-cedaram a Revolugao de 1930, reservando para etapa posterior osdepoimentos com atores que afluiram a cena politica em data maisrecente. Em termos de arqueologia das liderancas, iniciaraos o ci-clo de entrevistas com os Tenentes, deixando para uma segundafase aqueles que se integraram as fungoes de mando em periodo jaconsolidado.

Quanto a ordem de prioridade na escolha dos depoentes, tam-pouco pudemos defini-la rigidamente. Ainda na fase inicial do pro-jeto, observamos a imprevisibilidade e lentidao dos contatos pessoaisque precedem as entrevistas, e sua relevancia no sentido de inspiraro respeito e confianga necessaries ao depoimento franco e aberto.Desde logo, procuramos distinguir entre o relate topico, de impactoimediato, para efeitos de divulgagao, e o testemunho historico quealmejavamos, a partir do dialogo entre o ator e o pesquisador. Dessedialogo, acreditavamos resultar um tipo de documento singular,com a contribuigao de cmbos. A participagao do entrevistado seriafundamentalmente ativa e, mais do que esclarecer fatos, teria comoobjetivo revela-los e interpreta-los a luz de uma vivencia politicaacumulada ao longo dos anos. Solicitariamos dele, nao apenas a su-cessao articulada dos acontecimentos (em si mesma importante),uma visao do mundo e da politica, eomo tambem uma avaliagao pes-soal de suas grandes mutagoes, e de suas recorrencias: em suma,um balance dos desafios e respostas que povoaram os ultimos 50anos da Historia brasileira.

Com objetivos e metodos tao generalizantes e difusos, naoadotamos, nem o poderiamos fazer, um cronograma rigido de or-dem e duragao das entrevistas. Nao tendo um esquema estruturadode perguntas e respostas, como conciliar o rigor necessario a pes-quisa com a espontaneidade do dialogo? E, problema pratico, comoorganizar a equipe para atender a indagagoes tao heterogeneas quan-to as que prevalecem nos diferentes trajetos de historia de vida?

Alem dessas, outras questoes espinhosas, eclodiram: como is-sinalar o desempenho de um ator politico ao longo de periodos taovastos, em trajetorias tao diversas? Desde logo ressaltou a extremaheterogeneidade de fungoes e de cargos, que, caso nos conduzissea uma especializagao das entrevistas, diluiria os objetivos iniciaisdo empreendimento. Como separar Merarquicamente a informagaovaliosa da testemunha da informagao direta do prdprio ator? Cabe-ria sistematicamente privilegiar a segunda em detrimento da pri-meira? Em que medida o grau de envolvimento de ambas, nao sen-do o mesmo, implicaria, necessariamente, niveis de isengao diver-sos e relerancia historica equivalentes?

O ATOR, o PESQUISADOR E A HISTORIA 285

A flexibilidade do roteiro e a improvisacao na entrevista foram,desde logo, as opg5es escolhidas. Tentativas de consulta previa dosroteiros (por solicitagao do entrevistado) mostraram desde logoseus inconvenientes, encaminhando as conversances para entrevistaspreviamente montadas, replica de um discurso escrito, sem a espon-taneidade desejada. Ademais, dado o parti-pris inicial de que o atorimprevisivelmente revela situagoes inesperadas, que fazem parte doseu mundo, e em seu relato, desvenda, acrescenta (ou contradiz)questoes e diividas suscitadas pelo pesquisador, teriamos por issomesmo que reservar, no roteiro, um espago livre para registrara sua praxis, estimulando, inclusive os vaivens significativos dodiscurso em fungao de sua logica, e de suas percepgoes. Ao entre-vistador caberia apenas o papel ativo e vigilante de receptar im-pressoes, induzindo-as e articulando-as com dados ja codificados einterpretacoes divergentes, e quando necessario reavivando o dialo-go pela reconstituigao improvisada, mas alusiva, dos elementos con-textuais do debate. Caberia tambem a ele, pesquisador, uma vez fa-miliarizado com o universo do ator, adequar, gradualmente, o roteiroaos rumos de entrevista, a fim de extrair dela a coerencia e unidadeque singularizam diferentes desempenhos.

De fato, desde o inicio ficou evidente que cada ator e um per-sonagem, e que os estilos de agao politica, embora muitas vezesproximos, ou afins, raramente se repetem. £ na singularidade (eem seu carater insubstituivel) que as liderangas se afirmam.

Seguindo esta alternativa, dela resultou um exaustivo trabalhode levatttamento historico, que, se por um lado imprimiu len-tidao ao programa (de numero, mais do que de duragao das entre-vistas), por outro, forneceu a equipe uma visao de conjunto de umlongo e diversificado periodo.

No que diz respeito a importdncia das fungoes desempenha-das pelo depoente, mantivemos tambem uma orientagao ecletica,entrevistando ao mesmo tempo personagens centrais e assessoresem cargos de confianca (de preferencia aqueles que seguiram tra-jetoria politica em fase posterior, dando continuidade a uma car-reira publica). No entanto, o ecletismo conduziu-nos a algumas di-ficuldades. Como encaminhar bistorias de vida entremeadas porlongas ausencias da vida publica, extensos periodos de silencio, ousimplesmente, as que abruptamente se interromperam, por incom-patibilidade programatica, desilusao da politica, ou solicitagoes pro-fissionais mais prementes? A volta ao escritorio de advocacia, aoExercito ou ao mundo dos negdcios tern, de fato, ocorrido com enor-nie freqiiencia. Em tais casos, embora tenha permanecido a decisaoiuicial de reconstituir trajetorias politicas em sua totalidade, criou-se a possibilidade de recompor mementos cruciais da vida politica.

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286 A REcoNSTRugAo HIST^RICA

com um conjunto de entrevistas de menor duracao, em torno deuma participate comum. Partiamos para urna orientagao temdti-ca, antes rigidamente descartada por destacar excessivamente o acon-tecimento, em detrimento de uma visao de conjunto do sistema edas fungoes politicas. Procuramos, no entanto, adapta-la aos obje-tivos prioritarios de reconstituigao de padroes de carreira, buscan-do, atraves de uma ocorrencia historica significativa — de dimen-sao sincronica •— reconstituir tendencias testadas ate entao diacro-nicamente.

As vantagens oferecidas por essa abordagem foram inume-ras. Deu-se maior flexibilidade a equipe, em certos momentos en-torpecida por entrevistas de longa duragao. A adogao de cortes his-toricos delimitou, tambem, de antemao, as pesquisas preparatoriespara elaboragao de roteiros convergentes, apoiados todos em umaCronologia comum. Um bom exemplo de experiencia bem sucedidacom entrevistas tematicas realizou-se com os siguatarios do Manifes-to dos Mineiros, ja em fase final. Facilitaram-se os contatos compossiveis entrevistados, uma vez que, ja no primeirb encontro, fa-ziam-se claras as intencoes do entrevistador e as finalidades da en-trevista. Do mesmo modo, estimulou-se a iniciativa de outros pes-quisadores do CPDOC. Em apoio, por exemplo, a monografia sobrea "Crise da Sucessao Mineira de 1933" foram feitas entrevistas comproceres mineiros testemunhas do episodic, como ja ocorrera, noinicio do programa, com uma serie de curtos depoimentos bem su-cedidos com as liderangas pernambucanas com duragao de 1 a 3boras.

As finalidades do projeto eram, a longo prazo, ambiciosas,mas as condigoes de trabalbo imediato, bastaute precarias. Com oniimero infimo de um pesquisador e meio18 e orgamento quase sim-bolico, o programa nao se expandiu no ritmo desejado gerando o re-tardamento das transcrigoes e processamento das entrevistas em be-neficio de um maior avango na realizagao das xnesmas.

Com isso, foram imimeros os embaragos surgidos: o engarra-famento das transcrigoes de fitas acentuou-se com a concentragaodos quadros na area de entrevistas, em prejuizo de um necessariocontrole de qualidade do material ja obtido; a lentidao no ritmode alguns depoimentos particularmente longos e a dispersao tem-poral de temas agravou-se com sucessivas interrupgoes por inadia-veis compromissos profissionais ou politicos; a heterogeneidade deinformagoes, era fungao de modelos diversos de historia de vida,

18 Um pesquisador a tempo integral, que era tambem o coordenadordeste e de outros programas, e um a tempo parcial, dividido com outrastarefas fora do CPDOC.

O ATOR, o PESQUISADOR E A HISTORIA 287

gerou novos problemas teoricos e praticos, exigindo maior homo-geneizagao de roteiros e entrevistas. Permitiu, no entanto, captaro universo do ator em sua diversidade — passo inicial para a formu-lagao e teste de hipoteses mais precisas. Finalmente, a carencia deprofissionais especializados, tanto na area tecnica quanto cientifica.

Por tudo isso, ficou evidente que estavamos sos. Todas as ques-t5es, desde as mais abstratas as mais concretas teriam que ser re-pensadas. Os manuais estrangeiros pouco nos ajudaram, e algumasavaliagoes de programas revelaram-se surpreendentemente discre-pantes dos resultados por nos obtidos19.

Da praxis da pesquisa surgiu a uecessidade radical ^e avalia-gao dos metodos e procedimentos empregados. Intuigoes iniciaisforam desdobradas, operacionalizadas (como, por exemplo, a ideiade desenvolver modelos alternativos de trajetoria politica, a partirde historias de vida). Outras, imperceptivelmente relegadas, porinoperantes ou simplistas, diante da eloqiiencia de fatos acumula-dos, e de novas percepgoes intuidas. Foi o caso, por exemplo, daparticipagao de um "intermediario" nas entrevistas que servissecomo interprete e mediador entre entrevistador e entrevistado, porconbecer melhor o universo e a vida do depoente.20

Com novos recursos e novas contratagoes reestruturamos o pro-grama com distribuigoes de tarefas mais precisas. Nomeamos umcoordenador de transcrigoes, para rever os textps e acelerar a libera-gao dos depoimentos para consulta. Fatos historicos foram gradual-mente sendo rearticulados em Cronologias, de grande utilidade nodecorrer das entrevistas. A classe politica, genericamente conside-rada, subdividiu-se em segmentos funcionais (militar, politico-par-tidario, tecnico-administrativo, etc.), que facilitaram a classifica-§ao de temas relatives a sua atuagao historica e a pratica profissio-nal de cada atuante.

Mais precisamente, procuramos definir os topicos que, siste-maticamente, seriam cobertos pelas historias de vida, tais comogenealogist, socializagao cultural e politica, desempenho, logica desucessao de cargos, etc.

Como questao maior, impos-se a neeessidade de uma avaliagaometodologica dos procedimentos empregados, bem como de sua

19 O tempo medio de tramcripao foi, em uma das fontes consultadas,avaliado em 4 ou 5 horas por hora de fita gravada. Posteriormente veri-ficamos que em outros programas, como o da Biblioteca John Kennedy,a media subia para 12, 15 horas. cf. Willa K. Baum. Oral History for theLocal Historical Society, Nashville, 1974.20 A tentativa fracassou porque marginalizava o entrevistador do di6-logo, criando excessiva cumplicidade entre pessoas ligadas por longo co-nhecimento e experiencia comum.

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288 A RECONSTRUgAO HlSTOBICA

complementaridade e autonomia com respeito a outros metodos, jaconsagrados. Tais indagagoes, ao final de uma experiencia inicialatribulada (embora rica e estimulante) tornaram-se urgentes, exi-gindo a codificagao de tecnicas e procedimentos utilizados, com suaspossiveis virtualidades e limites.

b) Delimitagao de um Tema

Alguns problemas metodologicos, insistentemente recorrentes, epartindo dos mais diversos setores, do leigo ao erudito, exigiammais refletida resposta. Em que medida o testemunho parcial datestemunha elucida a Historia? Sendo como e, pega chave de umperiodo ou de um acontecimento, nao desvirtua fatalmente a ocor-rencia em fungao das posigoes que assumiu e do papel que desem-penhou? Por que imprevistos caminhos nos permitimos identificaro termo Historia Oral, que designa correntemente colegoes de de-poimentos gravados (e transcritos) como testemunbas de epoca,com a Historia, discipline tradicional e milenar, quase tao velbaquanto o proprio Homem? Em que medida os metodos da HistoriaOral podem e devem ser exclusivamente historicos? Ou ainda, se omaterial obtido e inevitavelmente sujeito a fortes aderencias ideo-logicas, como operar com eles, convertendo-as em um possiveJ. alia-do, ao inves de mere elemento dissonante de um quadro idealizadopelo pesquisador. Dai, uma indagagao que envolveu a todos que di-retamente participaram das entrevistas: como conciliar o dialogohumano de individuo a individuo, com as finalidades cientificas eacademicas do depoimento e da pesquisa?

E, questao, maior de graves implicagoes teoricas: Como situaro ator na conjuntura historica, e na propria Historia? Defronta-mo-nos, nesse particular, com duas visoes aparentemente contradi-torias, mas em realidade complementares. A primeira atribui aoindividuo um papel condutor que abstrai as relagoes estruturaise sistemicas21. A segunda, ao contrario, relega-o a mero subpro-duto de um sistema que o precede e que o transcende22. Respostasopostas a uma questao identica, pois partem ambas do pressuposto,

21 Cf. Thomas Carlyle/Sartor, Resartus — On Heroes, Hero-Worshipand the Heroic in History, Londres, J. M. Dente & Co. 1909.22 Cf. Louis Althusser — "Note sur le culte de la Personalite" in Repon-se a John Lewis, Paris, Maspero, 1973. Embora procedentes as observa-coes de Althusser no que se refere as criticas ao estalinismo, sua exces-siva preocupacao com as "determinacoes em ultima instancia" relegamcomo superficiais o que ele chamaria de determinancies juridico-poMticas,ideologicas, e, com mais forte razao, os condicionamentos de Hderangapessoal em uma estrutura de poder.

O ATOR, o PESQUISADOR E A HISTORIA 289

discutivel, de que as relacoes entre o ator e o sistema (politico, re-ligioso, etc.) sao definitivamente fixadas, aprioristicamente, comocategoria ontologica, em sua essencia.

Trata-se, em realidade, de uma relacao historicamente dada,mais indagagao do que resposta, para a qual, a despeito de in-gentes esforgos, nao se atentou ainda lucidamente.

Levando em conta a heterogeneidade de variaveis que encobreo conceito de conjuntura, e sua decorrente fluidez, seria dificil ig-norar o papel central que nela desempenham os atores-individuos,que pouco provavelmente poderao ser identificados a la lettre cominteresses especificos de categorias e grupos: existe sempre mar-gem de combinacao e composigao sobre a qual repousa o desem-penho, dando ao ator a especificidade que o distingue dos denials,e a necessaria legitimidade politica. Evidentemente, a pauta de al-ternativas de acao e historicamente dada. Tal constatacao no en-tanto, longe de encurtar o caminho, compHca-o, pois cabera ao es-tudioso nao apenas detectar as decisSes assumidas, como tambemaquelas, igualmente relevantes que, por razoes diversas, foram des-cartadas.

Dessa forma, deparamo-nos com o micleo central de indaga-goes que constitui o pano de fundo da pesquisa. Sem ser suficien-temente elucidado, de imediato, adiauta algumas questoes basicasque permeiam o levantamento de dados e a conducao das entrevis-tas. A partir delas, gradualmente delimitamos a otica de nossa pes-quisa: estudar elites politicas a luz do ator em suas articulacoescom o campo politico e com a conjuntura historica. Com uma vi-sao mais abrangente do conceito de "elite", pretendemos nele in-cluir nao apenas aqueles que exerceram fungoes governamentais,como tambem a lideranga civil de maior destaque constituida derepresentantes de associacoes de classe, jornalistas, lideres religio-sos, intelectuais, que por suas aptidoes especificas presenciaram ouiuterferiram nas grandes decisSes e impasses que marcaram o pe-riodo.

A intengao e, por um lado, conhecer melhor o ator e sua tra-jetoria, bem como as variaveis sociais que a definem (origem so-cial e geografica, formas de socializagao intelectual, politica e ideo-logica, rede de relagoes pessoais que o caracterizam politicamente,fixagao de perfis politicos, com estilos inconfundiveis de atuagao,etc.). Por outro, estudar mais detidamente sua participagao noschamados "grandes acontecimentos" (Manifesto dos Mineiros,FEB, 11 de Novembro, eleigoes de Janio Quadros, etc.), e poresses canals, verificar possiveis modelos de trajetoria politica, cli-vagens, oposigoes e lealdades diante de situagoes historicas con-cretas, articukdas entre si. Explorando duas vertentes, a primeira,

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290 A RECONSTRUgAO HIST6RICA

mais exclusivamente voltada para o ator, e a segunda procurandoextrair de sua historia de vida conexoes mais dinamicas com aPolitica e a Historia, pretendemos, em ultima instancia, identifi-car o nosso modelo de sistema politico — grau de abertura e fe-chamento, de endogamia, formas dominantes de consenso, padroesdominantes de trajetoria poKtica e de carreira, e, possivelmente,modo de articulagao de funcoes e de cargos, vistos sincronica ediacronicamente.

Em outras palavras, nossa proposta formal e estudar o sistemapolitico atraves do ator — partindo do pressuposto que, sendo eleindissociado e indissociavel do sistema, poderemos recuperar umpelo outro, atentos as conexoes que se tecem entre ambos.

0 ator, parece ser, e nossa suposigao, a sintese condensada deuma estrutura em sua dindmica, com os graus de condicionamentoe liberdade que a delimitam. E ainda o nodulo central de umarede de comunicaeoes que aciona o sistema transmitindo mensa-gens que, uma vez decifradas, ajudarao a compreender as motiva-coes reals que o ativam. Recuadas no tempo, permitirao ao histo-riador confronta-las, nao mais em termos de conjuntura, mas derecorrencias estaveis, regulares, que sintetizam modelos de sistemapolitico em longos periodos.

c) A Velha e a Nova Questao da Objetividade

A reaeao imediata do estudioso, e mesmo do leigo, em face da pos-sibilidade de contribuicao historica de um programa de entrevistastem sido, algumas vezes, de diivida, perplexidade ou receio. Inge-nuamente, perguntam-se se o depoente diz sempre "a verdade", senao confunde datas, e se nao se nega a responder as questoes maiscandentes.. . Em outras palavras, indagam-se se seriam conf ia-veis as informagoes nele contidas e de que maneira o pesquisadorneutraliza as falhas da memoria humana, para garantir a fidedig-nidade dos dados obtidos. >

Certamente, este nao e um problema privativo das tecnicasde Historia Oral. Qualquer que seja a abordagem utilizada pelohistoriador ou sociologo, para chegar ao dado ou ao fato a mesmaindagagao o persegue, e cabe a ele, em cada situagao, definir oslimites das tecnicas utilizadas, as circunstancias especiais em quese operou o levautamento de dados, de tal maneira que se tornemexplicitos os parametros de sua pesquisa e os possiveis erros sis-tematicos em que incidiu.

Em Historia Oral, porem, o toque folclorico, sedutor, irresis'tivel, do material de analise — literario, familiar, ligado a uma

O ATOR, o PESQUISADOR E A 291

vivencia humana, intrinsecamente pouco "cientifica" — inspiraredobradas desconfiangas e incisivas crfticas. Sobre elas gostaria-mos de nos estender por um momento, acreditando que possamosesclarecer possiveis equivocos, e como pretexto tambem para trazera tona, a luz de nossa experiencia, a atualidade de uma questaotao relevante quanta antiga: a da objetividade cientifica.

d) Entrevista como documento historico

Caberia inicialmente indagar sobre o significado exato dotermo "Historia Oral" e suas possiveis relagoes com a Historia, dis-ciplina que se volta para a reconstituigao de relagSes socials pas-sadas, a fim de desvendar a teia de personagens, instituigoes, fa-tos que as presidiram, dando a uma epoca seu trago final. Essa re-constituicao se utiliza de material diverso, e nela os documentosfuncionam como evidencia de que as descrigoes, relacoes e inter-pretagoes estabelecidas pelo analista retratam com fidelidade situa-g5es efetivamente ocorridas. Entretanto, a possibilidade de coinci-dencia total entre o discurso do historiador e o curso da Historia,mais do que um objetivo possivel e o alvo almejado, e nunca al-cangado, nao apenas por razoes heuristicas — o real e infinite —como tambem porque nenhuma contribuigao isolada poderia por siso esgotar todas as dimens5es essenciais que a leitura de seu mate-rial suscita. Acrescente-se, alem do mais, que a documentagao e,em si mesma, falha e incompleta, diante dos fatos que seu teste-munbo ilumina.

Um documento, tornado isoladamente, nada tem de definitive,e constitui-se enquanto peca de um conjunto de outros documentosafins em apoio as bipoteses do pesquisador. Enquanto o estudo deuma fonte historica pode invalidar concepcoes ja aceitas, questio-nando os estereotipos da historiografia corrente o documento em simesmo tem um valor relative face a complexidade da Historia,embora possa, em circunstancias excepcionais, ver acrescida suaimportancia diante de interpretagoes ou fatos cujo registro e con-traditorio. Relevantes sao os conjuntos de documentos articuladospor ideias e conceitos que os explicitam, em fungao das premissas,e mesmo da composigao temdtica da dissertagao. Com novos temase premissas outro sera o uso a que se destina o documento, e outras,eventuahneute, as conclusSes do autor.

Documentos, sao, por definigao, a historia fragmentada, ouaquela parcela dos fatos e tendencies que resistiu a agao dissol-yente do tempo, chegando, por inesperados caminhos, as maos doinvestigador. Por isso mesmo, exige dele uma artesanal e benedi-

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292 Hisr6RiCA

tina recomposigao artjueologica, em que o estudioso nao detem oconirole total das evidencias que manipula, deixando sempre cami-nho aberto ao surgimento de novas evidencias. A integridade dotodo se recupera, pois, por uma colagem e articulagao de suas dife-rentes partes, criando-se fatalmente um certo hiato entre a objeti-vidade e a coerencia do discurso e a "objetividade" do( s) do-cumento(s) que utiliza. 0 primeiro, forgosamente globalizante,procura recompor aquela parcela desarticulada de fatos passiveisde investigagao. Por isso mesmo, quanto maior o numero de fontese documentos utilizados (e sua relevancia) maior o desafio — poismais complexa sera a reconstituicao e a compatibilizagao de evi-dencias21 e mais abrangentes QS resultados obtidos.

Tais consideragoes, aparentemente obvias, pretendem apenassituar em contexto mais amplo as argumentagSes contra a tecnicade entrevistas, sob a alegagao de que e baixo o grau de confiabi-lidade dos documentos que registra.

A Historia Oral e uma tecnica. A Historia, disciplina. A en-trevista e o documento, parte integrante de uma fonte historicamais ampla, constituida de um conjunto de documentos — depoi-mentos. fi da natureza do documento ser "parcial" e debaldadosserao os esforgos de reconstituir por seu intermedio a integridadeda Historia em seu sentido mais global.

Con£unde-se tambem a Historia disciplina com a Historia flu-xo sucessivo de acontecimentos. Dai a ambigiiidade do termo His*toria Oral — nem Historia, nem Historia — fonte documental ob-tida atraves da tecnica de entrevistas sob interferencia direta dopesquisador.

De fato, o que ocorre e que cada fonte documental possui ca-racteristicas proprias, que podem e devem ser habilmente explo-radas nas reconstituigoes de epoca. Um relatorio oficial, ou umconjunto de decretos nao fornecem informagoes de natureza equi-valente a que podemos obter em uma correspondencia familiar ouprivada. Um discurso ou declaragao piiblica em nada se aproximade um relato de Memories, ou de uma entrevista — embora sepossam acumular evidencias comparaveis atraves de metodos decompatibilizagao. Cada fonte tern sua especificidade propria, quecabe delimitar. Assim, se um decreto atesta, de maneira insofisma-vel, a ingerencia da iniciativa governamental no dominio publico,dai nao se pode concluir que tenha sido rigorosamente aplicado ouque tenha originado, na pralica, os objetivos esperados por quem

21 Compatibilizagao de evidencias seria a combinacao de dados articula-damente complementares e significativos, embora parte integrante de fon-tes diversas. Como veremos adiante, a "evidencia" de uma correspondea-cia nao & a "evidencia" de um decreto.

O ATOR, o PESQUISADOR E A HISTORIA 293

o criou. Nesse caso, uma serie de precaucoes devem ser tomadas,a fim de garantir a objetividade da informagao.

O mesmo nao se poderia dizer de uma correspondencia pes-soal, ou de uma coletanea de discursos. Ambos certamente podemser utilizados para elucidar importantes aspectos da realidade sociale politica, cada um a seu modo, mas em nenhuma circunstanciaserao o retrato perfeito e acabado da verdade historica: nada maistemerario do que tratar impressoes e comentarios emitidos em umacarta como se fossem fatos, sob pena de confundir os referenciaisdo ator com os do sistema em que se insere; igualmente em umdiscurso, eujas finalidades rituais e integrativas fantasiam e dra-matizam predisposigoes e fatos, quando nao, propositalmente, osomitem. Sendo como e, uma mensagem coletiva, nele nada e gra-tuito, nem necessariamente veridico. Cada emissao tern em vistao publico a que se destina. Supoe-se, assim, que os elementos sig-nificativos do momento que retrata estao ali presentes, sob formade apelo eventualmente em posigao refratada ou invertida.

Nas entrevistas gravadas, a fonte historica 6 o Homem e suamemoria, reavivada pela presenga ativa do entrevistador-pesquisa-dor. Tal como em um discurso, ou em uma correspondencia, tra-ta-se de uma versao parcial e pessoal de situagoes e acontecimentos,sob interferencia da ideologia. Mas enquanto em cartas ou dis-cursos a ideologia se cristaUza no momento em que foi gerada, epor isso registra reagoes concomitantes ao(s) evento(s) a que sereporta, em memories ou entrevistas, a reconstituigao e total, e aideologia se movimenta, deslocando suas fronteiras, pois o atorreinterpreta antigas percepgoes e sentimentos, em funcao de umasituagao presente.

No caso de elites dirigentes, e natural que a importancia dasfungoes que exerceram ou exercem interfiram muitas vezes nainterpretagao ou omissao de fatos, conduzindo a transmissao deuma imagem consistente com suas atribuigoes atuais ou passadas.Esse parece ser, no entanto, um dado tao real para o pesquisadorquanto o proprio fato que busca. Nesse particular, cabe ao estu-dioso, e nao ao ator, estabelecer elos explicativos entre o persona-gem e suas representagoes dos outros homens e de si mesmo, assimcomo de seu papel no bojo dos eventos em que esteve envolvido.0 sentido de sua presenga e justamente explicita-los e induzi-los,acumulando provas.

Para neutralizar a subjetividade de urn depoimento, ou de umconjunto de depoimentos, o pesquisador utiliza numerosos recursos.O primeiro deles e diversificar testemunhos de maneira a obteruma amostragem significativa de variadas tendencias, de tal for-

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294 A RECONSTRugAo Hisr6RiCA

ma que, ao final do programa, seja possivel confrontar pontos devista dissonantes. Isso nao implica que o analista tenha que "to-mar posigao" em face da massa de informagoes que ele coleta. Aocontrario, e de se supor, que o conhecimento substantive que delasresulte abedega a canones outros que os dos relates nos quais se ba-seia. O que e conflituoso para o ator-testemunha, nao o e para opesquisador. Embora ele nao seja passive e indiferente aos relatesque ouve, nem albeio as suas implicagoes sociais, e da naturezade seu proprio trabalho reartieular fatos e acontecimentos em fun-cao de conceitos ja codificados e consagrados, que, por isso mesmo,em parte indepeudem e antecedem suas reagoes pessoais face aoobjeto de estudo. Por outro lado, a subjetividade nem sempre in-terfere de maneira tao decisiva quanto parece. Em nosso progra-ma tivemos a surpresa de verificar interpretagoes aproximadas emtorno de fatos reeuados, e, muitas vezes embora os enfoques e gru-pos de referenda variem, deles emerge uma visao consensual quan-to as questoes mais abstratas que nos ajudam a retragar o perfilsocial e politico do periodo. Dai a importaucia de um quadro con-ceitual subjacente as entrevistas, articulando-as mais alem do des-critivo e do casuistico, pois ao contrario do que poderia supor oobservador mais ingenuo, o compromisso do pesquisador com umreferencial articulado — qualquer que seja ele — longe de com-prometer a objetividade do relato, na verdade, reforga-a. Nada maisfugidio e arbitrario do que o dado bruto; sem elaboragao previaele nao conduz a parte alguma, pois a descrigdo nao e a eviden-cio. Ganha, no entanto, especial ressonancia se articulado a outrosfatos, que Ihe valorizem a existeneia, tornando mais explicitas suas

• 1 • -* " *•* • *>Ocausas, imphcagoes e conseqiiencias^.Levando a reflexao adiante, tambem merece cuidados a cren-

ga simplista, tantas vezes assumida, de que a subjetividade e aideologia acompanham o ator, enquanto o analista se identifica coma objetividade cientifica em nome da qual ele produz. Nao fosseuma extensa literatura para provar as profundas querelas do mun-

23 No decorrer de um depoimento onde se discutiam as eleigoes presi-denciais de 1955, reportamo-nos uma vez mais a acontecimentos ja aven-todos, isto €, ao episodic do suicidio do Presidente Vargas. Inesperadamen-te, retoma-se um fato que adquire, de um relance, especial relevancia: quegovernadores de Estado haviam comparecido as cerimdnias funebres noRio ou em Sao Borja? Nesse particular, a presenca do governador de Mi-nas, Juscelino Kubitschek se destaca, selando uma alianca com as forcasgetulistas que Ihe garantirao a presidencia. Fora do contexto, a recons-tituicao desse mesmo fato talvez se perdesse em um emaranhado de ou-tras ocorrencias.

O ATOE, o PESQUISADOR E A HISTORIA 295

do intelectual e academico24 e, ainda assim, poderiamos esponta-neamente reconhecer que o pesquisador e, ele tambem, um ator emsua comunidade profissional, e que esta e dividida em correntesde ideias e pensamento que influenciam desigualmente aquelesque dela participam. Nesse sentido, tambem ele pode interferirsubjetivamente sobre o personagem que entrevista, minimizandofatos relevantes de sua experiencia, ou simplesmente ignorando-osporque nao se coadunam com suas percepgoes e premissas. Emoutras areas, os -sociologos imimeras vezes incorreram em falhasdessa natureza, muitas vezes comprometendo toda uma linha depesquisa25.

Objetividade stricto-senso nao existe. A busca de objetividade,ao contrario, e parte integrante da praxis cientifica, por razoes mo-rais e eticas, e bem verdade, mas tambem por razoes mais concre-tas, inerentes ao processo de legitimagao do que se produz. Defato, o reconheeimento do valor de uma contribuigao depende ape-nas em parte de um publico mais amplo que o consome, visto quefundamentalmente se afirma por seu impacto no universe maisrestrito dos produtores intelectuais e pela importancia que a elaatribuem os demais membros da comunidade intelectual e cienti-fica, quer a obra seja devidamente divulgada ou nao26.

24 Ver o iconoclastico trabalho de Wright Mills A Imaginafao Sociolo-gies. (Zahar Editores), onde analisa criticamente as bases da socielogiaparsoniana. Mais recentemente, as tendSncias da "nossa sociologia". Emuma linha radicalmente de esquerda, situam-se os marxostas, que serecusam a empregar conceitos da chamada "sociologia burguesa". Parauma importante reflexao em torno do engajamento e de sua relacao com aproducao cientffica, ver Howard Becker — "Politica Radical e PesquisaSocioldgica: Observacoes sobre Metodologia e Ideologia" in Uma Teoriada Acao Coletiva, Rio, Zahar Editores, 1977.25 fi o caso das pesquisas sobre "comportamento desviante" que men-ciona Howard Becker, op. cit. — influenciadas pelas premissas normati-vas do pesquisador.26 A relevancia de uma contribuicao pode ser avaliada quantitativamen-te pela freqiiencia com. que o autor e a obra sao citados, e qualitativa-mente pela natureza dos comentarios emitidos (contextual ou topicos) .Assim, se e verdade que a redescoberta de um autor ou obra dependeainda, em nosso pais, um pouco do acaso e da erudicao de alguns exe-getas, uma vez revelados ao mundo academico, sua difusao processa-se ra-pidamente, como se a eloqiiencia da contribuicao compensasse a inefi-ciencia dos canais de divulgagao e comunicacao. Como ilustracao, tome-mos tres grandes classicos do pensamento politico brasileiro: Vitor Nu-nes Leal, Raymundo Faoro e Azevedo Amaral, cuja marginalizacao pro-longada dos circuitos de divulgacao nao impediu o reconheeimento domeio academico, e o consume de suas id£ias, abundantemente citadas, porautores recentes.

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296 A REcoNSTRugAo HISTORICA

Ora, e o processo de legitimacao de um produto intelectualque garante, nao a neutralidade, mas o ponto otimo de objetivi-dade possivel. Pois se e certo que a neutralidade pressupoe distan-cia e alheamento em face das querelas de Escola (com suas implica-goes inevitaveis no campo teorico, metodologico ) e, nesse sentidoe utopica, pois separa drastica e artificialmente os meios dos fins,a bused da objetividade ao contrario, e um dado real do processode reflexao, visto que a obra se destina ao confronto, no embatede ideias que historicamente a demarca, com as reacoes correti-vas, avaliativas, que todo debate suscita. fi do interesse, portanto,do produtor intelectual que, seguindo as premissas que partilha,seja objetivo, isto e, revele mais dos mecanismos da realidade so-cial que analisa do que o que inevitavelmente obscurece ou escon-de. Cabe aos outros, seus pares, avaliar pelo entrechoque de ideias,e por mecanismos difusos ou implicitos, mediates e imediatos, apertinencia das hipoteses, os graus de evideneia acumulados e o al-eauce da obra.

Quanto ao ator, a despeito das conotagoes parciais e subjeti-vas de seu depoimento — tribute final a comunidade, coroamentode longo desempenho politico — tambem ele procura retratar ex-perieneias com consistencia, objetividade e coerencia. Sendo a en-trevista o dialogo franco e aberto com um especialista que, emprincipio, conhece sua biografia e a historia do periodo, e de seesperar — e o fato realmeute ocorre — que se guie por um es-forgo de isengao em resposta as inquirigoes e diividas de quern oentrevista. Por isso, sua presenga e tao decisiva: o interlocutor de-fine o debate. Nao sendo um opositor publico, nem arbitro, nemjuiz, sua funcao e bem mais modesta: reconstituir o fato, o movelpolitico,

A presenca do pesquisador e tambem decisiva, trazendo a tonafatos e situagoes pertinentes que o estimulam a definicoes preci-sas. Por diferentes caminbos, ator e pesquisador se movem por ob-jetivos identicos: o esforco comum e sincere de perseguirem jun-tos a reconstituigao de longos e acidentados percursos, escudados,por um lado na tradigao historiografica e nos dados disponiveis, epor outro, na imprevisivel e misteriosa memoria humana — queinesgotavelmente revela e encobre, articula e discrimina, em umjogo incessante de aventura e desafio.

e) O Processo de Entrevista

Esclarecidos alguns equivocos basicos, quanto a suposta neu-tralidade cientifica, e a excessiva parcialidade do ator, trataremos

O ATOR, o PESQUISADOR E A 297

de explicitar o que enteudemos como esforgo sistematico de objeti-vidade na pratica quotidiana de nossa pesquisa, e que procedi-mentos concretes a condicionam em um processo de entrevista.

Antes de mais nada, minuciosa preparagao de roteiros, curri-cula vitae, cronologias, que constituem o ponto de partida inicia!sem o qual pouco se obtera de uma entrevista. Por esse caminhoo entrevistador se familiariza com o universe pessoal e historicode quern entrevista, para poder extrair dele diversificada gama deobservagoes, bem como as reflexoes em profundidade que dela de-rivam. Com os curricula vitae, situamos a trajetoria do persona-gem, e, com a ajuda de cronologias reconstituimos sequencias deacontecimentos em que esteve envolvido. A partir dai, torna-se via-vel a elaboragao de um cuidadoso roteiro, que nada tern de arbi-trario, visto que resulta de uma superposigao de curriculum e cro-nologia a partir da qual revelam-se as imensas potencialidades daentrevista, atraves de questoes que obrigatoriamente constituiriamobjeto de interesse ao longo da bistoria de vida. Com isso, o pes-quisador prepara-se para encaminhar um dialogo tanto mais dificile complexo quanto elasticos e imprevisiveis os rumos que os guiam,Atraves dos personagens captam-se afinidades, antagonismos e con-flitos do meio em que viveram, mais alem dos suportes concretos(fatos pessoais: conversas, reacoes, ocorrencias presenciadas) atra-ves dos guais eles se revelam. As vezes desordenadamente, suce-dem-se reflexoes de natrureza diversa, referentes a episodios emque tiveram envolvimento ora indireto, ora decisivo. Alguns epi-sodios de maior alcance sao discutidos mais em fungao de seu im-pacto social e politico e de suas repercussoes, do que de envolvi-mento direto, postando-se por isso mesmo a niveis de abstragaomaiores (Revolucao de 1930, Queda do Estado Novo, etc.). Outras,ao contrario, prendem-se ao universo imediato do ator, e, por seuintermedio, esclarecem pautas de comportamento sedimentadas porum ambiente social e uma epoca. Nessa multiplicidade de regis-tros, e indispensavel nao perder o fio condutor que dara unidade econsistencia informativa ao documento. Disso resulta o princi-pio de fixar para cada ator uma estrategia, pois, como pudemosconstatar imimeras vezes, as pessoas revelam enfoques diversos,visoes de mundo especificas, que caracterizam estilos proprios depercepcao politica, alem de naturais preferencias por episodios de-terminados de suas vidas, em detrimento de outros, de igual rele-vancia para o pesquisador. Isso significa que a entrevista se fazem uma busca permanente de comunicagao entre o que interessaa um e desperta e mobiliza o outro.

Sob esse aspecto, e determinacao do programa estimular umalivre e pessoal manifestacao de ideias — e de nenhuna modo, sob

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298 A HISTORICA

nenhum pretexto ferir a singularidade do depoimento com a an-siedade (explicavel) de adapta-las rigidamente a expectativas pre-concebidas. A frustragao de uma pergunta sem a resposta esperadatern sido muitas vezes o caminho aberto que conduz a novas desco-bertas — pois atesta a riqueza e especificidade de um universepessoal que se revela ao pesquisador no decorrer da entrevista.

No cotidiano da entrevista opera-se, portanto, permanenteincorporagao de observagoes examinadas, polemizadas, dbcutidas,de tal maneira que conduza a atualizagao do roteiro, em que o pes-quisador assimila e elabora, em termos de sua problematica, a vi-vencia dos atores. A partir dai, novas questoes serao formuladas, enovas respostas obtidas.

Como e natural, sendo entrevistador e entrevistado conduzi-dos por discursos diversos, surgem, fatalmente, nas entrevistas,descompassos entre ambos, que se traduzem por uma possivel indi-ferenca e insensibilidade face a problemas suscitados pelo pesqui-sador. Tais dificuldades em nada surpreendem pois simplesmentedemarcam os limites do depoimento, seja em funcao de uma bis-toria de vida ou de uma insergao social — com. percepgoes, cren-§as e valores bem definidos, seja em decorrencia de um estiloproprio de atuagao e de sensibilidade politica. 0 circulo vicioso dodialogo fechado, com questoes e respostas que se repetem infinita-mente, pedidos para desHgar o gravador, questoes nao-respondidas,ou dfrslocamento proposital dos rumos de uma conversacao seriamalguns dos aludidos obstaculos, que bem comprovam os contornossociais de uma relagao sui-generis entre o pesquisador e seu objeto,ao mesmo tempo ator e depositario da memoria politica.

Por isso mesmo, o desenrolar da entrevista depende nao so-mente de um controle factual de eventos, dos rumos e alternativesde uma discussao em pauta, mas igualmente de uma avaliagao in-tuitiva das potencialidades do dialogo — que nos indica quandodevemos abordar ainda uma questao mal explorada, e quando e.a que prego devemos abandona-la, prosseguindo ou encerrando umciclo de questoes, ou o proprio relato. Nao e sem surpresa que, fre-qiientemente, o pesquisador se depara com um subito esclareci-mento de questoes e episodios ja discutidos — elaborados eles tam-bem, gradualmente, pela memoria e pela reflexao. £ que a ver-dade individual como a verdade Historica, situa-se a niveis de or-denagao diversos, em complexa relagao com o tempo, Desse mer-gulho deliberado, consciente, que e a entrevista, afloram recuadaspercepg5es e vivencias, por associagao de ideias, repetigoes, anteci-pagoes e recuos. Em vista disso, por definigao, o tempo de entre-vista deve ser necessariamente longo, esticado, em vagarosa in-

O ATOR, o PESQUISADOR E A HISTORIA 299

cursao a um passado ja hierarquizado, que o pesquisador pretenderevelar a posteridade ao mesmo tempo que o descobre.

No desenrolar da entrevista, outras dificuldades se impoem..TJma delas e o fato, natural, de que o relato tenda a retratar situa-Soes e imagens ja longamente trabalhadas, em razao de sua im-portancia para aquele que o narra. Cria-se, em virtude disso, umacerta rigidez, que e precise veneer com a duvida sistemdtica. Oque parece obvio nao o e.27 Por esse caminho, busca-se introduzirna ordem, a desordem, para que se desvende a teia real de ocor-rencias sepultadas por uma versao fechada, acabada, dos fatos.

A realizagao de uma entrevista e relagao humana das maisenvolventes. Ao contrario de outros tipos de levantamento, ator epesquisador constroem juntos o depoimento historico. £ muitasvezes uma longa convivencia, que se estende por meses, criandcenvolvimento de parte a parte, em um continuo dar e receberque alimenta o dialogo. Por essa razao, sao tao necessarios os me-canismos de controle ja mencionados: comentarios e avabiagSes deentrevista, que, tal como o didrio de campo do antropologo, regis-tram ocorrencias e reagoes fundamentals, de maneira a esclareceraos demais pesquisadores as condicoes em que se elaborou o do-cumento. Ao final de um ciclo de entrevistas, sucede-se o inven-tario formal dos dados, e sua sistematizagao, desligados do contextomais imediato do relato. Nesse processo, as reagoes mais subjeti-vas se diluem, no territorio mais neutro de uma problematica.

No entanto, e preciso frisar que o exito de uma entrevista naodepende tanto quanto as ultimas observagoes sugerem, de fluxosinter-subjetivos: o interesse deliberado do entrevistado em desven-dar seu proprio passado, seja em fungao de um forgado isola-mento, ou desterro, seja como uma avaliagao dos serviyos presta-dos, ou mesmo como nm necessario recuo, e estimulado pelo des-ligamento em idade avangada28. O certo e que dificilmente pode-riamos obter resultados felizes de um homem piiblico em plenaatividade, cujas reflexoes e atitudes teriam, par la force des choses,exagerada ressonancia. Mesmo nos casos em que se opera maiordistanciamento, e inegavel que o objetivo do depoimento deve ser,necessariamente, reforgar uma imagem, como se ele fosse, mais

27 Ocorre freqiientemente que certos acontecimentos, que o historiadorreputa importantes ssjam reduzidos a uma explicacao psicoiogica, ondeinterferem unicamente fatores de ordem pessoal. £ um campo de espe-culacoes que o estudioso rejeita, em parte porque opera com variaveismais amplas, em parte por falta de instrumentos para avaliar personali-dades e reagoes politicas.28 Cf. Introdugao de Edward Crankshaw as Memorias de Nikita Krus-chov, Rio, Artenova, 1971, p. 9.

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300 A RECONSTRU£AO HlSTORICA

introspectivamente, uma continuagao da propria vida politica. Forisso mesmo, questoes mais delicadas e de dommlo piiblico devemser francameute abordadas, e, em caso de resistencia, relegadas,visto que a finalidade do depoimento nao e induzir reparacoes (nemdemolir imagens) mas, simplesmente, esclarecer os rumos da His-toria em seu sentido menos particularista e mais global.

Oportuno indagar se vantagens existem em uma reconstitui-c.ao onde as fronteiras entre o ideologico, o afetivo e o cientificosao tenues, com limites, como mostramos, plasmadas em um es-forgo do pesquisador e da memoria dos individuos. Em outras pa-lavras, qual a validade eientifica de uma reflexao centrada em re-presentacoes e ideologias? Em passado nao muito distante, costu-mava-se identificar as manifestagoes ideologicas como expressaomais do que deformada, falsa, de uma realidade social e politica,quando nao, mero epifenomeno, superestrutura, cujas leis deviamser detectadas fora dela. Outros, mais modestos, limitavam-se auteis e despretenciosas historias das ideias, com o objetivo de iden-tificar e descrever correntes de pensamento sem a intencao de re-gistrar os mecanismos da realidade social que se operavam atravesdas mesmas. Nao ocorria que se pudesse utilizar mais sistematica-raeate suas "deformagoes*', seja considerando-as como relaciona-das entre si, seja como vias de acesso as regularidades sociais emseu conjunto.29

Nesse sentido, os problemas metodologicos suscitados pelaspraticas de entrevistas remetem, entre outras coisas, as questoesacima apontadas, sugerindo significativas aberturas. Tendo emvista que o discurso e, por natureza, globalizante (oposto, porexemplo, ao discurso de arquivos privados, onde a informacao efragmentada, e o circuito de ideias, rarefeito), e possivel, por issomesmo, captar na logica do discurso do ator, a logica do propriosistetna, com o qual guarda conexoes estreitas. Serao estas relagoesobjeto de interesse do pesquisador. ..Uma vez de posse de um con-junto fechado de ideias, e precise que seja tratado sistematicamen-te: dentro dele, os vazios, omissoes, dissonancias, sao tao sugesti-vos quanto as questoes que se esclarecem.

Em Historia Oral, e tambem imediata a possibilidade de cap-tar intengoes articuladas de atores, em torno de um fato ou um

29 Nao e casualidade que a contribui?ao dos estruturantes de diferentesfiliacoes esteja tao voltada para o estudo dos mitos, de categorias de pen-samento, representacoes, ideologias... Talvez, por esta razao, contribui-coes tao diversas como as de Claude Le"vi-Strauss, Michael Foucauit,Louis Althusser e Roland Barthes aparecam, um tanto forcadamente, comoprodutos de um mesmo metodo.

O ATOR, o PESQUISADOR E A HISTORIA 301

periodo histdrico, atraves de um aciimulo de impress5es e eviden-cias. E possivel detectar convinces profundas que compoem osvalores ultimos de uma cultura, de um grupo, e suas diferentes al-ternativas de acao, aquelas que estiveram efetivamente em pautaem um momento (ou epoca) determinado. E gracas a familiari-dade do depoente com o seu tempo, e com os atores que dele par-ticiparam, o historiador ganha, por seu intermedio, uma visao deconjunto, e um conhecimento das formas de expressao do periodo,que o livra dos riscos que correria confiando em fontes fragmenta-das ou em sua limitada capacidade de dedugao. Isso porque, sendoo estudioso parte integrante de seu documento de consulta, ternmeios e possibilidades de influenciar, com quest5es pertinentes, osrumos da informacao.

Quando os temas que alimentam as conversances no relate deuma experiencia ou de uma vida, se extinguem, ou giram em cir-culo vicioso, esta encerrado o processo de entrevista. E a entre-vista, nada mais e do que um entre outros tantos, possiveis, in-completos, documentos. . ,

f) Abordagem Interdisciplinar em Perspectiva

Em virtude das relacoes especificas que se desenvolvem emum programa de Historia Oral, entre Ideologia e Historia, entre-vistador e entrevistado, parece evidente que a abordagem sugerecontribuicoes metodologicas e substantivas de diferentes disciplines.

Significativamente, a utiliza§ao de fontes orais data do inicioda propria discipline historica. Herodoto, tido como o "pai da His-toria", ja as utilizava com fonte preciosa para perscrutar a vidados povos que se situavam fora das fronteiras do mundo helenico,com usos e costumes desconhecidos, e identificados, genericamente,como barbaros30. Com isso, confere informagoes, confronta dadosque ajudam a esclarecer tambem a origem de habitos incorpora-dos por sua propria cultura.

O antropologo, desde sempre, utiliza o metodo da observagaoparticipante, e a escolha estrategica de informantes, como meio deentender usos e_ costumes radicalmente diferentes dos seus, e parapenetrar em sociedades cujos padroes Ihe sao estranhos. Da mesmamaneira, a Antropologia Urbana, estudando nossa propria sociedade,adota, talvez por transposigao metodologica, o principio basico deque e necessario observar o comportamento dos grupos de dentrodos mesmos. Paradoxalmente, comportam-se como se os segmentos

Her6doto, Hist6ria..., Rio de Janeiro, Ed. de Ounp, s/d.

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302 A RncoNSTRugAo HISTORICA

de sua sociedade Ihe fossem estrangeiros e como se o pesquisadorso pudesse decifra-los em seu funcionamento pelo esforgo delibe-rado de entendimento e participagao. fi uma postura que, nao res-ta duvida, rendeu os melhores frutos31.

Da Ciencia Politica e da Sociologia, extraem-se concepcoes co-dificadas que permitem o melhor entendimento de valores, normase padroes de comportamento, instituigSes, grupos organizados, fun-goes que permeiam o sistema politico e de estratificagao. Delas de-rivam-se hipoteses parciais que incitam a reflexao. Da PsicologiaSocial, aproveitam-se reflexoes e resultados de pesquisas experi-mentais em torno de personalidades, reagoes e tipos humanos, so-cialmente definidos.

Da Psicanalise, por que nao? A transferencia afetiva, guetorna o ator, suporte, e o pesquisador, receptor e ativador de ex-periencias vividas, que pela introspecgao reconstituem a trajetoriado ator na Historia.

Com tao complexa superposigao de enfoques e procedimentos,ligados a disciplines ja codificadas, a Entrevista revela-se um ins-trumento polivalente e flexivel em maos do pesquisador. Como apropria Historia, que sob o impacto de uma diversificacao cres-cente das disciplinas sociais apura-se, refaz-se com tecnicas maisrigorosas, e mais inventiva, sem abandonar seu compromisso como temporal e o singular, de cujo eneadeamento se tecem as socie-dades humanas.

A G'uisa de Conclusao: '

Dinamismo Institutional e Receptividade Social

Na impossibilidade de tratar as numerosas questoes metodo-logicas .aventadas por uma reflexao ..sabre as praticas e condiciona-mentos implicitos da pesquisa, e de ordena-las em um ciclo de pro-dugao inteleetual, que, em nosso caso, e ainda incompleto, opta-mos por uma discussao mais detalbada dos processes de escolhaque acompanharam a montagem de uma instituicao — ( o CPDOC )e de um programa (o de H*storia Oral) e suas conseqiiencias pra-ticas e teoricas, tal como se nos apresentaram.

Procuramos unicamente dar enfase a importancia das opfoesinstitucionais que definem o eontexto da pesquisa, e as suas con-81 Uma reflexao metodologica sobre a Escola de Chicago, dos anos 20,ppde ser avaliada no excelente artigo de Howard Becker — "Historia devida en Sociologia", in Jorge Balan, Las Historias de vida en las cienciazsociales, Buenos Aires, Ed. Nueva Vision, 1974.

O ATOR, o PESQUISADOR E A HISTORIA 303

seqiiencias na formulagao de lemas prioritarios e linhas de inves^tigacao. Cabe, no entanto, uma palavra final sobre as condicoessociais que favoreceram a implantagao institucional, criando rapi-das e novas respostas aos resultados parciais obtidos.

Ao abrigo em uma instituigao privada, e alrmentado por doa-coes familiares, tambem de carater privado, o CPDOC cresceu amargem de um circuito enrigecido de instituigoes publicas poden-do, gragas a essa particularidade, trabalhar um acervo que, em-bora relevante, iniciava-se em dimensoes reduzidas, expandindo-sea medida em que a instituigao se expandia. Foi, por isso mesmo,possivel, estudar alternativas modernas para o tratamento da do-cumentacao, e dar um passo adiante, introduzindo propostas de in-tegragao da documentagao a pesquisa.

Movidos pelo interesse de, ao mesmo tempo, organizar e pro-cessar a informacao historica, numerosos foram os obstaculos pra-ticos surgidos: carencia de pessoal qualificado com a dupla for-magao exigida; ausencia de fontes de consulta necessarias a identi-ficagao dos documentos e das informacoes nele contidas, em su-ma, um generalizado alheamento face aos instrumentos necessa-rios ao estudo do periodo.

Ao mesmo tempo, de politicos e homens publicos, ou seusfamiliares, recebiamos desde o inicio o credito de confianga indis-pensavel, atraves da doagao de um precioso material de trabalhoque se iniciou com os arquivos Vargas e Aranha. Os vinculos queligavam a direcao do CPDOC, do Instituto de Direito Piiblico eda Fundagao Getiilio Vargas ao mundo politico foram o primeiropasso para a constituigao de um solido acervo.

Os meios de financiamento serao sempre, nao resta duvida,o cordao umbilical que liga a producao inteleetual a sociedade maisampla, que direta ou indiretamente a sustenta. No que se refereao CPDOC, o carater experimental da instituicao trouxe, de inicio,recursos minimos, alimentados pela propria instituigao. Durantealgum tempo esbarramos com a dificuldade de angaria-los, por ine-xistirem fundos, publicos ou privados, previstos para a recupera-gao de documentos e de patrimonio historico. Assim sendo, grandeparte dos esforgos iniciais da equipe consistiram em buscar nieiosde auto-reproduzir-se e legitimar-se.

As condigoes de crescimento gradativamente se ampliam coma sensibilizagao da opiniao publica e de entidades governamentaismodernizantes pelo problema da preservagao da Memoria Nacio-nal, Reagao que responde, em parte, a produgao abundante dosestudiosos norte-americanos e europeus — os "brasilianistas" •—,que com metodos rigorosos e sistematicos, de natureza academica,

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304 A REcoNSTsugAo HKTORICA

evidenciaram nosso descaso pelo estudo do passado, e pela conser-vagao das fontes primarias necessarias a reconstitui-Io.

O CPDOC foi criado em 1973. Com o prolongado refluxo davida politica, e o apagamento de seus principais centros de decisao,cresceu uma expectativa difusa em torno de sua Memoria. Meiode conhecimento, a Historia ressurge como um valor em si mes-mo: encadeamento de evidencias, fonte de ensinamentos, elo entreo passado ignorado e distante, deliberadamente rompido, e umpresents problematico, que nao se decifra. A racionalidade burocra-tica, de quern poucos duvidam, defronta-se com seus primeiros re-vezes. Cresce, pois, a interrogagao em torno de uma possivel e ne-cessaria racionalidade da politica.

Em uma conjuntura de exacerbado interesse pelos fatos pas-sados, a experiencia institucional, ainda incipiente, ganha corpo:as indagagoes do pesquisador e as necessidades de uma instituigaocoineidem, com outro vocabulario e outra sintaxe, outros meios eoutros fins, com a busca da comunidade dos cidadaos e da comu-nidade politica. A memoria historica sera um recurso que a Na-gao mobiliza em seu processo de fazer-se, inquirindo um passadoque so se revela em apagadas linhas.

Nesse contexto, a jormagao de especialistas, naturalmente len-ta, movida pelas circunstancias, improvisa-se. 0 espago institucio-nal, nao burocratizado e aberto, torna a participagao individual de-cisiva; a despeito de uma insercao instavel, a iniciativa acompanhaos novos estimulos, em fungao das respostas criativas que solici-tam. 0 extreme dinamismo da formagao de quadras reflete o ca-rater experimental da instituigao, ja frizado, que incorpora pessoasadaptaveis as novas e fluidas fungoes que se criam.

A sobrevivencia das instituigoes culturais, e de pesquisa, eem si mesma uma questao problematica. Sua descontinuidade pa-rece ter sido, em muitos paises como o nosso, uma fatalidade: bu-rocratizagao excessiva, poucas alternativas de financiamento, des-vinculagao com centros culturais de natureaa e fungao equivalente,ma politica de formagao e atualizagao de pesquisadores, indefini-gao na linha lie prioridades — estes seriam alguns dos muitosproblemas com que, fatalmente, terao que se defrontar as institui-goes recentemente implantadas: em geral ocorre que, para novas eprementes solicitagoes socials, as instituiyoes ja existentes reve-lem-se ineficazes, e que, por conseguinte, novas instituigoes secriem. E e dentro de tais niarcos — positives ou negativos, esta-veis ou instaveis — que se tecera a contribuigao individual do pes-quisador e sua pesquisa.

IV

A PERSPECTIVA EXTERNA AOPROCESSO DE PESQUISA

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12

Memorias de um Orientador de Tese

CI.AUDIO MOURA CASTRO

Introdugao

Este ensaio e uma tentativa de reflexao sobre minha expe-rieucia como orientador de teses. 0 que segue e uma colagem deexperiencias pessoais e pequenos incidentes, entremeados em umadiscussao de questoes substantives e metodologicas. Naquilo que serefere a esses problemas de conteiido e metodo, as observances ofe-recidas contem um grau apreciavel de generalidade. Todavia, noque se refere a estilos de atuacao como orientador, cabe eufatizaro carater idiossincratico da experiencia. Cada orientador tern seuestilo pessoal de trabalho. Seguramente, alguns serao melhores oupiores, o que inclusive pode depender do estudante, mas de formaalguma haveria modelos de atuacao pessoal que fossem unices ounecessariamente melhores. Dentre os orientadores, ocorre tal varie-dade de personalidades e estilos de trabalho que nao haveria qual-quer sentido em emular caracteristicas que sao puramente idiossin-craticas. Contudo, dado o espirito desse ensaio, nao houve qualquertentativa de eliminar comentarios sobre situagoes em que compo-nentes subjetivos podem prevalecer.

A fidelidade aos objetivos e ao torn proposto para esta coleta-nea levam-me a meneionar que o seu organizador, em uma pri-meira leitura, considerou excessivamente normativo o presente en-saio.1 Voltei a le-lo, e dei-me conta entao de que o torn norma-tivo corretamente percebido por ele meramente reflete o cotidianodo orientador de tese — ou pelo menos do meu estilo de trabalho.Grande parte do tempo de orientagao e consumido trataudo de

1 Ao mesmo tempo, notou que faltavam exemplos, critica que sou con-tumaz em fazer a meus orientandos.

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qualidade.Para tornar mais concreta a questao, bem como para recor-

rer a uma area que conhego melhor, centrarei a discussao nas te-ses em Educagao. Contudo, parece-me que em boa parte os resul-tados seriam aplicaveis a outras areas.

Nesta segao nao pergunto como se escolhe um tema de pes-quisa, mas simplesmente elaboro sobre o que nao e uma Tese.

Um exame superficial de titulos dc Teses sugere a seguinteclassificacao provisoria dos falsos caminhos observados: (1) Pro-postas, pianos ou reformas de, algum aspecto do Sistema Escolar;(2) Teses Didaticas, cujo objetivo e preparar um texto didaticosobre algum assunto; (3) Teses de Revisao Bibliografica, onde setenta reconstruir o deseuvolvimento empirico ou teorico de algumaarea; (4) Teses tipo "levantamento", onde se constatam ou se me-dem certos parametros da realidade; (5) Teses teoricas, onde setenta avancar a fronteira, ao nivel teorico-analitico. Em oposicao aesta lista, proponho uma alternativa que, esta sim, parece repre-sentar o formato mais apropriado e mais obvio para uma tese: (6)Teses Teorico-empiricas, onde se relaciona algum modelo teoricocom observagoes empiricas.

A julgar pelo fato de que em todas estas categorias tern havi-do teses aprovadas, ja ficou claro que meu pensamento colide comaquele das bancas examinadoras dos cursos de Educagao. Examine-mos cada um dos topicos:

Os cursos de Pos-graduagao em Ciencias Sociais recebem nosdias de hoje um grande numero de alunos capazes de satisfazera contento as exigencias academicas dos cursos. Contudo, se e de-cepcionante a proporgao destes graduados que conseguem terminarsua tese de mestrado, mais inquietante ainda e a qualidade destestrabalhos. Nao me deterei aqui na especulacao do porque do gran-de numero de desistentes; meu proposito e discutir problemas de

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professoral com que sao declamadas aos alunos.sando as atividades do cotidiano aqui descritas no mesmo tornde tese pode ser altamente enriquecedora, mais do que compen-se trate de um caminho de mao unica. A experiencia de orientagao

questSes onde a inexperiencia do aluno e as limitagSes de temposugerem uma tatica direta e obvia: "assim esta errado, por quenao tenta desta outra forma ..." Nao vai ai a implicagao de que

308 A PERSPECTIVA EXTERNA AO PROCESSO DE PESQUISA

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minhas criticas propostas para salvar os mais variados niveis e tl-pos de educacao. Lembro-me, por exemplo, de propostas para orga-nizar programas pre-escolares, incluindo, naturalmente, a minutada legislacao requerida.

2 — A Tese Diddtica nao e uma aventura de raciocinio e deexploragao, mas sim um mero exercicio de redagao. Escrever bonstextos didaticos e fungao de professores, nao de alunos, enquantonas universidades sao alunos que escrevem teses de mestrado. E sesao alunos, estao avangando o seu conhecimento, agugando a suacapacidade de analises; nao e esse o momento de ensinar, de con-gelar o conhecimento, mas sim de desafia-lo, de alarga-lo. O texto edidatico e o resultado de um policiamento sucessivo de um cursorepetidamente ministrado, uma estrategia madura de transmissaode conhecimento. O curso de pos-graduagao e uma volta ao desco-nhecido, e uma tomada de consciencia da nossa propria ignorancia.E um desafio aquilo que criamos ou que pensavamos saber. Hatanta destruigao quanto criagao num curso desta natureza e, por-

! tanto, nos parece pouco oportuno esse exercicio de burilar exausti-vamente a apresentacao de alguma area do conhecimento: isto e oque significa redigir um texto didatico.

Lembro-me de consultas feitas a mim sobre uma proposta deorganizar um roteiro de estudo de estatistica paia alunos de pos-graduagao. Nao live o menor sucesso em dissuadir o candidato aesse tema. Contudo, esse tipo de tese felizmente perdeu grandeparte de sua popularidade.

Pela minha freute ja desfilaram impavidas e invulneraveis asonde o processo e manipulavel.que e refratario a mudanca e sem a astiicia de descobrir os pontos

que seria ingenuo ou inocuo tentar manipular o processo educacio-nal. E necessario quebrar a tradigao de redigir documentos em jar-gao legal, onde se descreve aquilo que gostariamos que fosse a rea-lidade, sem qualquer respeito pelo que de fato e a realidade, pelo

dade e pre-condicao para o desenho de legislagao ou planejamentoeducacional com perspectivas de sucesso. Parto da premissa de quea formulacao de pianos torna-se muito mais facil, uma vez com-preendida a realidade, com suas areas de plasticidade e as areas em

dade, antes de tentar modifica-Ia. 0 desafio de desvendar a reali-

i> que acontece a nossa frente. Isso sugere o pouco oportuno que egastar alguns semestres do tempo de um aluno para repetir esseexercicio deseducacional de futilidade. £ preciso conhecer a reali-

do real, denunciada e negada pelas mais simples observagoes do

MEMORIAS DE UM ORIENTADOR DE TESE 309

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310

forgo de analise e sintese, isto e, entender o legado dp conhecimentoe, em seguida, elaborar sobre ele, trabalhar de maneira original einovadora sobre essa heranca. Escrever uma tese de revisao de bi-

bliografia e limitar o curso de pos-graduagao a primeira fase. £delxar aleijada ou mutilada a dfade analise-sintese. Contudo, longede mim estaria afirmar que nao ha dificuldades ou meritos nestarevisao, nesta tomada de posigao critica com relagao ao "estudo dasartes". Nada mais adequado e desafiador para um aluno, mas ape-nas como exerciclo no que estamos provisoriamente chamando defase analitica do curso. O resultado desses exercicios raramente po-dera passar de conhecimento requentado e mal digerido. Ha lugarpara a revisao da literature, aquilo que em lingua inglesa se cos-tuma chamar "survey". Mas nao e por acaso que esses artigos saonecessariamente escritos pelas pessoas de maior experiencia e auto-ridade no campo, nunca por principiantes. fi raro o campo nao ree-xaminado periodicamente por alguem que por muitos anos ja re-fletiu e contribuiu nesta area. Pode apenas ocorrer que o artigo naoesteja em portugues, mas devemos nos lembrar que o mestrado naoe um curso de "Tradutores e Interpretes".

4 — As teses do tipo "levantamento" merecem uma dis-cussao cuidadosa. Dado o irresistivel atrativo do tema para um gran-de numero de mestrandos, estas sao as cbamadas teses "descritivas".Todavia, evitamos aqui essa nomenclature de inapelavel ambi-giiidade. Uma pesquisa normalmente envolve um exame de dadose observagoes. Como nem sempre estas observances estao disponi-veis em um formato adequado para a investigagao contemplada, enecessario ir ao campo coleta-las.

Mas esta coleta nao passa, ou nao deve passar, de uma fase ini-eial da pesquisa, digamos, de um mal necessario. A experienciade colher dados e importante e enriquecedora, porem correspondea uma fragao bem modesta, na formagao pos-universitaria. IS o exa-me e a reflexao sobre o nexo que ha entre esses dados que correspon-dem ao nobre processo da pesqiiisa cientifica. Preparar questoes eaplicar questionarios, examinar a distribuicao dos parametros oudas variaveis, nao passa de um prefacio, uma preparagao que naopode e nao deve monopolizar a atengao do mestrando. Interessa oque vem depois da tabulagao das variaveis. Interessa o sentidoque faz o entrelagamento destas variaveis. Interessa-nos o como eo porque. Contentar-se com menos e contentar-se com praticamentenada.

Nesse ponto, minhas divergencies com outros orientadores emais forte. Uma tese que apenas "chega ao umbral da analise euma tese incompleta; nao esta no ponto de ser defendida.

MEMORIAS DE UM ORIENTADOR DE TESE 311

Se o aluno nao tern a disposigao, gosto ou as qualificagoes paraalguma coisa alem de coletar dados, julgamos entao que uao e ta-Ihado para a pos-graduagao, destinada a elite cientifica da socie-dade.

5 — Chegamos agora as teses teoricas. As teorias, os mode-los, os constructos, ou como quer que chamemos, sao o arcaboucologico que nos permite organizar e dar sentido as nossas observa-goes sobre o mundo real. Ocasionahnente ocorrem grandes saltostcoricos, as "revelagoes cientificas", mas o trabalho cotidiano docientista "teorico" consiste no aperfeigoamento, ou redirecionamen-to do arcabougo conceptual atraves de formulagoes mais simples,mais elegantes ou que melhor 'descrevam a realidade. Agugar asarmas analiticas, corresponde a uma tarefa eminentemente nobrena produgao cientifica. Fara um esplendido trabalho aquele queconsiga contribuir nesta area. Em principle, este e um topico emi-nentemente nobre para uma tese. Porem, em oposigao a topicos an-teriores, que pecaram pelo excesso de modestia, este imp5e umgrande desafio, e um desafio que o aluno devera realisticamenteavaliar. Minha experiencia pessoal com alunos de pos-graduagaosugere que apenas um numero extremamente reduzido deles deve-ria optar por este caminho. Em economia, alunos com um superla-tive conhecimento de matematica poderao trabalhar num refina-mento da expressao siinbolica de diversos aspectos do conhecimen-to economico. Mas, excetuando-se areas cuja expressao matematicaja atingiu um elevado nivel, seria muito raro que urn mestrandopudesse sair-se com sucesso em um experimento estritamente de-dutivo. Aquilo que com ingenuidade vem sendo chamado Tese Teo-rica nao passa de teoria de segunda mao. Se por tese teorica en-tendermos discussoes ou reflexoes filosoficas, doutrinarias ou ideo-logicas, saimos tanto do assunto deste ensaio quanto do conteudousual dos programas de Ciencias Sociais. Nao estamos negandoa procedencia de teses desta natureza, mas simplesmente afirman-do que nao se referem ao que estamos discutindo.

Algumas vezes tive sucesso em dissuadir candidatos que sepropunham a escrever o que pensavam ser uma tese teorica. Aatragao da analise de sistemas, nao obstante, se revelou em um parde vezes maior que meus poderes de persuasao. Traduzir duas outres versoes requentadas de analise de sistemas, desenhar quadri-nhos e setas com o nome do problema e das variaveis que se dese-jam entender parece algum tipo de magia negra. Deve ser algo asse-melhado a pomus de feitigaria ou umbanda, com efeito semelhan-te a escrever nomes em papeis e espetar alfinetes em bonecos querepresentam inimigos.

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312 A PERSPECTIVA EXTERNA AO PSOCESSO DE PESQUISA

6 — 0 ceticismo que revelo com relagao aos temas anteri-ormente mencionados, ja deve ter claramente sugerido ao leitorque minhas preferencias para assuntos de tese de mestrado recaemsobre os temas teoricos-empiricos ou indutivo-dedutivos. Nao setrata de capricho ou ativismo, mas sim do fato consagrado de queeste e o caminho mais trilhado na evolucao da ciencia e na expan-sao do conhecimento. For sua indole, alguns sao mais dedutivosdo que indutivos, partindo de alguma formulacao teorica e con-frontando-a com a realidade, isto e, com a observagao empirica. Ou-tros sao de temperamento mais indutivo, partindo do exame dasobservagoes, ou mesmo da sua coleta, e dai prosseguindo para suainterpretacao; seu raciocinio segue os meandros dos dados e da rea-lidade, eventualmente chegando ao corpus teorico da diseipH-na. Mas e importante que se entenda, nao ha lugar para desavi-sados ou desprevenidos. 0 indutivismo puro, tal como o dedutivis-mo puro, sao igualmente inviaveis e impossiveis. Aqueles quepartem dos dados, ja partem procurando alguma coisa e em abso-luto desconhecem o repertorio teorico; e aqueles que partem de teo-rias, nao as tiraram do vacuo, mas sim de previos confrontos com oreal. Ha um escasso numero de genios e iluminados que transfor-mam e revolucionam nossos paradigmas teoricos, no outro extre-mo ha o exercito dos proletaries da ciencia que nada mais fazemdo que produzir materia-prima, em urua primitiva indiistria estra-tivista. Nao nos interessa aqui qualquer destes dois grupos. Nossomodelo e o grande contingente de pesquisadores que em sua ativi-dade metodica e sistematica fazem avangar as fronteiras do conhe-cimento. Para os mais criativos, mais preparados e experientes, es-tao reservados avangos mais substanciosos. Mas nao e vao o trabalhodos principiantes. Nao e dificil nem impossivel localizar areas doconhecimento onde num exame da confluencia da teoria com. arealidade, do constructo com o protocolo, nao se possa anteciparcontribuig5es respeitaveis ainda que modestas. E que isto nao sejaentendido como um teste mecanico e mortigo de "modelos". Pelocontrario, trata-se da essencia do pensamento cientifico, e, nas cien-cias sociais, do seu maior desafio.

Propositadamente nao coloco as pesquisas historicas em umaclasse separada. Estarao enquadradas na ultima categoria, na me-dida em que perguntam o porque e o como de certos eventos im-portantes. Fatos desinteressantes nao adquirem interesse por ha-verem ocorrido no passado. Alguns eventos sao triviais tanto nopresente quanto no passado. O transcurso do tempo nos permiternais perspectiva e objetividade, ao mesmo tempo que aumenta aimprecisao e a deficiencia de informa95es; contudo, raramente adi-

MEM6RIAS DE UM ORIENTADOR DE TESE 313

cioua relevancia a um topico. Paralelamente, numeros, nomes edatas so adquirem importancia, no presente ou no passado, na me-dida em que se encaixam em uma estrutura logica coerente e teo-ricamente fertil. 0 levantamento de dados, de hoje ou de ontem,e apenas o principio.

E interessante ver por esta mesma posigao expressada pelogrande naturalista Von Martius, escrevendo em meados do seculopassado:

Sobre a forma que deve ter uma historia do Brasil, [...].As obras ate o presente publicadas [. . . ] abundam emfactos importantes, esclarecem ate com minuciosidademuitos acontecimentos; contudo nao satisfazem aindaas exigencies da verdadeira historiografia, porque seressentem demais de certo espirito de cronicas. Umgrande numero de factos e circunstancias insignifican-tes, que com monotonia se repetem, e a relagao minu-ciosa ate o excesso de acontecimentos que se desvane-ceram sem deixarem vestigios historicos, ludo isso, re-cebido em uma obra historica, ha de prejudicar o in-teresse da narragao e confundir o juizo claro do leitorsobre o essencial da relagao. 0 que avultara repelir-seo que cada governador fez ou deixou de fazer na suaprovincia, ou relacionar factos de nenhuma importan-cia historica que se referem a administragao de cida-des, mumcipios ou bispados, etc.; ou uma escrupulosaacumulagao de citagoes e autos que nada provam, e cujaautenticidade historica e por vezes duvidosa? — Tudoisso devera, segundo a minha opiniao, ficar excluido.2

Em suma, nao consideramos como temas adequados parateses de mestrados (em cursos que se possam enquadrar no campodas ciencias sociais) os trabalhos de polimento de textos didaticos,os exercicios escolares de revisao bibliografica, ou outras empreita-das, que deixem o curso pela metade. Tememos o excesso de ambi-gao daqueles que se metem em aventuras de formulagao teorica oumetodologica. E finalmente, julgamos que esta na confluencia dateoria com a realidade o foco mais fertil para os trabalhos de tesede mestrado.

^ "Como se deve escrever a histdria do Brasil", Carlos Frederico Pr. deMartius, Reviste do Institute Hist6rico, Janeiro de 1S45.

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314 A PERSPECTIVA EXTERNA AO PROCESSO DE PESQUISA

O Evento Traumdtico da Escolha do Tema

Sem djvida, a escolha do tema da tese e uma questao crucial.Uma escolha infeliz pode tornar a tese praticamente inviavel, in-salvavel ou esteril como contribuicao em uma area onde muitopouca exploragao sistematica tern sido feita, portanto, uma areaonde e facil contribute com trabalhos significativos. Uma boa ideianao basta, e as teses defendidas estao ai para melhor documentaresta assertiva. Mas, se nem isto temos para recompensar as dificul-dades de sua execucao, a situagao nos deixa poucas experangas.

As angustias e traumas observados nos estudantes, ao momen-to de escolherem seus temas, esta a altura da importancia da oca-siao. Mas nao vai ai dizer que as lamentagoes e a agressividade erra-tica entao geradas tenham qualquer funcionalidade na solucao des-te problema. Tampouco e cabivel imputar culpa aos alunos pelosdesacerfos e pela infelicidade de suas eseolhas. Tais erros podemem boa parte se imputar a orientacao academica e ao clima deopiniao que prevalece no ambiente universitario freqiientado.

Ha uma regrinha convencional que e perfeitamente apropriu-da como esquema mental para se discutir a escolha de urn temade tese — ou de qualquer pesquisa. Como todas as regras destaarea, sua validade se deriva do fato de que e escessivamente gene-rica e nada afirma sobre o conteiido substantivo. £ meramente umroteiro que sistematiza as discussoes em torno do assunto.

Uma tese deve ser original, importante e vidvel. Cada um des-ses criterios aponta em uma direcao. Nao ha qualquer dificulda-de em encontrar temas que satisfagam a um ou dois deles. A di-ficuldade esta em satisfazer aos tres. E se, em algum grau, os tresnao forem satisfeitos a tese sera um rematado fracasso. fi conheci-do nos meios ^icademicos universitarios o caso do professor cinicoque apos a eloqiiente e pretensiosa conferencia de um colega jo-vem afirmou: "Tivemos hoje a satisfacao de ouvir muitas coisasimportantes e muitas coisas novas. So lamento que as coisas novasnao sejam importantes e que as coisas importantes nao sejam no-vas".

Um projeto de tese que buscasse descobrir o elixir da juven-tude seria importante e original porem de viabilidade duvidosa.Uma tese que buscasse medir a desergao do ensino primario estariatratando de um tema importante e viavel nao trazendo contudoqualquer originalidade. Uma tese sobre a cor da roupa que osalunos trajam para ir fazer exame vestibular seria original e via-vel, porem destituida de importancia.

MEMORIAS DE UM ORIENTADOR DE TESE 315

Vale a pena tentar caracterizar melhor o sentido das palavras,"importancia", "viabilidade" e "originalidade". Cabe enfatizar inici-almente a impossibilidade de defini-las de forma rigorosa. Parado-xalmente, alguns dos conceitos mais essenciais a nortear o procedi-mento cientifico se revelam vergonhosamente vagos. As definigoesprecisas e operacionais freqiientemente nao sao possiveis naquelesconceitos que tern a ver com os procedimentos basicos da ciencia.As exigencias de validade objetiva e de definicSes operacionais seaplicam de forma rigida apenas as fases mais rasteiras do proces-so cientifico. Quando falamos de originalidade, por exemplo, nomaximo podemos aspirar o que e conhecido como validacao inter-subjetiva, isto e, embora o criterio seja objetivo, exige-se a coinci-dencia de pontos de vistas ou percepcoes da parte de diferentes ob-servadores. Original entao e o que todo mundo acha que e original.Mas quern e esse "todo mundo?w. Se todo mundo for realmenteum grupo casualmente reunido, alem da dificuldade de se obterconsenso, este pouco siguificara. A validacao inter subjetiva requerpois a fonnagao, pelo menos hipotetica, de um grupo cuja aprecia-gao do tema deva receber maior credibilidade. Sao em geralos chamados "peritos" ou os patriarcas da materia; espera-seque sejam pessoas cuja competencia pessoal e euja experiencia pro-fissional os tenha permitido conviver mais e refletir mais sobre oassunto, Abrandamos o subjetivismo, mas na verdade nao conse-gulmos superar o fato de que importante e o que as pessoas impor-tantes julgam que e importante.

0 Merito portanto dessas regras nao e oferecer receitas para oque se deve fazer ou deixar de fazer mas sim servir como roteiropara organizar nossa busca de uma solugao.

1 — Importancia — dizemos que um tema e importantequando esta de alguma forma ligado a uma questao crucial quepolariza ou afeta um segmento substaneial da sociedade. Um temapode tambem ser importante se esta ligado a uma questao teorica quemerece atengao contmuada na literatura especializada. A situagaomais delicada e dificil teria a ver com os temas novos que a nin-guem preocupa, seja teorica ou praticamente, mas que contem opotencial de virem a interessar ou afetar muita gente.

Foi realizada uma pesquisa que verificou que estudantes dosexo masculino tendem a carregar seus livros junto aos quadris,seguros por apenas uma das maos. Ja as mulheres levam-nos comambas as maos, cingidos junto ao peito. Original e viavel essapesquisa pode ser. Sua relevancia, contudo, esta por ser demonstrada.Nao nos parece um tema prioritario na pesquisa educacional bra-sileira.

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r316 A PERSPECTIVA EXTERNA AO PROCESSO DE PESQUISA

Em oposigao aos antropologos que buscam o exotico, estudan-tes de educagao se sentem irreraediaveLmente atraidos pelos estudossobre sua propria profissao — querem saber como anda o seu pro-prio mercado de trabalho, em que consistem suas funpoes etc. Aoexperimentarem um novo metodo pedagogico, por exemplo, queremsaber o que os professores pensam dele. Ora, isso poderia vir a seruma segunda ou terceira preocupagao, em termos de importancia.O que realmente cabe saber primeiro e se os alunos aprendem me-Ihor desta maneira.

2 — Originalidade — Um tema original e aquele cujosresultados tem o potencial para nos surpreender. O fato de naobaver sido feito nao confere necessariamente originalidade a umtema. Em muitos estados brasileiros e em muitas ocasioes foimedido o status socio-economico dos universitarios. A mensuragaodeste conceito em um estado que estivesse faltando nao ofereceriamuita originalidade: sabemos que os resultados nao nos vao sur-preender. Por outro lado, o status socio-economico dos alunos dosupletivo ou dos cursos por correspondent, por que jamais forammedidos emprestam originalidade a um esforgo inicial de pesquisanessa direcao. Espera-se que o supletivo seja um instrumento dembbilidade ascensional, os de baixo indo para cima. Estarao oscandidates realmente vindo de baixo? Quern faz um curso por cor-respondeencia? Sera esse um instrumento de formagao profissional?ou uma maneira conveniente para jovens de classe media adqui-rirem hobbies? Em geral, quanto mais testada uma teoria, menosos novos testes nos surpreenderao e menor a probabilidade de quenos digam alguma coisa de novo.

3 — Viabilidade — dentre os tres, este e seguramente oconceito mais tangivel. Dados os prazos, os recursos financeiros, acompetencia do futuro autor, a disponibilidade potencial de infor-maeoes, o estado da teorizagao a respeito, da para fazer a pesquisa?O prazo pode ser insuficiente, o mesmo se dando com os re-cursos. Ao pesquisador pode faltar o preparo especifico naquelecampo. Pode nao haver uma sistematizagao previa do conhecimen-to na area ou a teoria apresentar insolvencia metodologica. Final-mente, os dados necessarios podem inexistir, ou mesmo, a sua cole-ta ser impossfvel. 0 veredicto de inviabilidade e mais facil seratingido com confianga, em contraste com criterios de importanciae originalidade.

Em uma ocasiao recebi uma proposta de tese na area de nu-tricao, onde previa-se um estudo experimental com mensuragoes noinicio e no fim de um processo de intervengao no funcionamentode unidades fainiliares. Tratava-se de uma pesquisa com pre-esco-

MEMORIAS DE UM OEIENTADOR DE TESE 317

lares, visando a alterar habitos de alimentagao. Tal como estavadesenbado, o estudo requeriria pelo menos 4 ou 5 anos, se eslives-se em maos de pesquisadores experimentados e com todos os recur-sos disponiveis. Para torna-lo viavel houve que transforma-lo emum estudo transversal, sem componentes experimentais ou semi-experimentais ou, qualquer tipo de intervencao. 0 resultado final,embora muito mais modesto do que a proposta inicial, revelou-seuma tese de mestrado particularmente interessante.

A analise ocupacional tem se revelado particularmente falidano caso das ocupacoes mais complexes, que convencionalmente re-querem escolaridade superior. De fato, o fracasso do metodo dasprovisoes de mao-de-obra (manpower requeriments approach)em boa parte pode ser atribuido a insolvencia da analise ocupa-cional. E dentre as oeupagoes de nivel superior, nao ha mais refra-tarias a esta analise do que aquelas que envolvem uma forte dosede administracao. Mas, como amainar o fervor de um aluno quese propoe a analise ocupacional de um diretor de escola? Como con-vence-lo que taJ pesquisa so produzira banalidades?

Um problema traicoeiro tambem de viabilidade esta em teoriasque aparentemente sao simples e bem arrematadas mas que narealidade escondem enormes dificuldades. 0 Ministerio da Edu-cagao alegremente convida a todos para sondagens de mercado paraocupagoes profissionalizantes do 2.° grau. Caveat entptor, somen-te os mais sofisticados em economia da educacao poderao perceberque estas sondagens sao inacreditavelmente dificeis. Os problemasteoricos e raetodologicos para sua realizagao ainda nao foram resol-vidos.

Didrio de um Orientador

Nesta secao passamos em revista um conjunto de situag5esque freqiientemente se apresentam no processo cotidiano de orienta-cao de teses.

a) A Ambigao Excessiva: Os Tratados Definitivofi

Quase todos os autores de teses passam por uma fase onde seimputam a missao de produzir o tratado definitivo sobre o assunto.E como se a historia da ciencia fosse passar a ser dividida nos pe-riodos "antes da minha tese" e "depois da minha tese". 0 otinusmoe a ambigao sao saudaveis ate o inomento em que impedem umgrau de atengao suficiente a cada um dos pontos a serem cobertos.

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318 A PERSPECTIVA EXTERNA AO PROCESSO DE PESQUISA

A perspectiva de uma contribuicao significativa e contingente aconcentragao de esforcos em certos topicos, ate que seja ppssiveldeles tirar alguma coisa que nao havia sido encontrada antes.Achar que com pouca experiencia e com pouco esforgo serapbssivel descobrir coisa nova onde os outros nao descobriram eimpuril, pretensioso e subestima o esforgo daqueles que anteri-ormente examinaram o tema.

As pretensoes de um trabalho eientifico tern que ser dosadasde acordo com as possibilidades do autor nas circunstancias dadas.Isto nao quer dizer que o trabalho tenha que ser concebido ja dotamanho certo e justo. No planejamento de uma pesquisa ha umperiodo inicial de expansao, seguido por um outro de contengaoou corte; em termos da nomenclatura usada em estudos de criati-vidade, ha um periodo divergente, seguido por um outro conver-gente. Ha um periodo em que todas as ideias sao acolhidas, todasas ramificac.oes sao interessantes e benvindas e onde a auto-censurae limitagoes de tamanho sao peias impertinentes. Neste periodo, oenciclopedismo e benvindo.

Ha entretanto um momento — que nao pode tardar muito —onde a pesquisa tem que adquirir foco, livrar-se dos desvios e ra-mificagSes menos importantes, chegando finalmente ao seu tama-nho viavel. Sentimentalismo com relagao ao que e jogado forasignifica um duro sacrificio no tratamento daquilo que fica. Essae a hora de transformar um ex-futuro tratado definitivo em umacontribuigao modesta. Ao mesmo tempo, significa trocar um so-nho utopico por uma possibilidade tangivel. Pesquisa nao se fazcom sonhos e pretensoes mas pela adigao de contributes pequenasmas solidas e irreversiveis.

b) A Historia da Humanidade como Tema de Tese

0 excesso de ambicao na amplitude do objeto de estudo a sertratado encontra paralelo na dimensao historica que principiantestendem a dar aos seus temas. 0 que nao deveria passar de uma ten-tativa parcimoniosa de localizar o topico no espaco e no tempo,termina em uma empreitada de narrar a historia da humanidade.Qualquer que seja o assunto, podemos esperar citagoes de Aristo-teles ou Platao, referencias sobre sua ocorrencia na Idade Media,talvez em Sao Tomas de Aquino e o que disseram os iluministassobre o assunto, e por ai afora. Nos exemplos mais tristes, essahistoriografia da humanidade ocupa praticamente todo o prazo queestaria destinado a tese e preenche um numero de laudas nas quaisse pensaria que deveria estar o trabalho completo.

MEMORIAS DE UM ORIENTADOR DE TESE 319

Uma teae deve revelar o dominio dos conceitos utilizados e umcerto conhecimento da literatura tecnica. 0 assunto nao deve estarsolto no espaeo, mas colocado no seu contexto. Todavia, o dominiodos conceitos se revela no seu uso ao longo da analise e nao na in-findavel seqiiencia de definigoes de diferentes autores. Quanto aoconhecimento da literatura, espera-se competencia e nao erudigao.Sao aqui particularmente culpados os orientadores que tendem avalorizar nas teses o tecido adiposo de citagoes e a exumagao his-torica de autores que escreveram no passado sobre o assunto. Comoregra geral, devemos entender que todos esses prolegomenos temque se manter em uma posigao modesta, tanto no esforgo de elabo-ragao da tese quanto na voracidade de papel. Se pouco ha que di-zer de substantivo, se ha poucos resultados a comentar, nao e apre-sentando alentadas revisoes da literatura, "historias da humanida-de" ou capitulos metodologicos que se vai atenuar o problems.Uma tese grande e sem novidade e pior do que uma tese pequena esem novidades.

Uma historia da educagao no Brasil esta por ser escrita. Naose pense por isso que esse possa ser um tema de tese. Quatrocentosanos de historia do Brasil diluem a criatividade do autor, a pontode nSo sobrar nada substancial para a compreensao de qualquer lo-cal ou momento. Em contraste, uma tese sobre a educacao emMinas Gerais na decada de vinte seria um estudo bemvindo e via-vel.

0 que foi dito sobre a historia da humanidade e tambem va-lido para os tratados de geografia e as descrigoes minuciosas sobreo processo de amostragem. Nada mais tentador do que preencherespagos com mapas e as variadas estatisticas contidas em um anua-rio.

Igualmente, quando amostramos estamos interessados no uni-verso. Nao cabe, portanto, descrever minuciosamente as unidadesque compoem a amostra, a nao ser que isso possa definitivamentecontribuir para uma melhor compreensao de certos resultados,

c) Das Maneiras Naturais de se Dispor Mai do Tempo:Excesso de Dados e Escassez de Analise

A pratica da pesquisa indica que na maioria dos trabalhosexiste uma seqiiencia aceitavelmente previsivel de etapas. Da mes-ma forma, a duragao de cada uma dessas fases, embora possa va-riar de pesquisa a pesquisa, segue uma distribuigao que nada temde caotica. E hem verdade que qualquer tentativa de fazer comque um modelo de pesquisa ou uma serie padronizada de procedi-

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320 A PERSPECTIVA EXTERNA AO PROCESSO DE PESQUISA

mentos se imponha sobre as necessidades sentidas ao longo do tra-balho e indevida, injustificavel e correspondente a uma compreen-sao errada do papel ou das fracoes dessas regras. Contudo, ha al-gumas generalizacoes cabiveis.

Toda pesquisa tern uma fase inicial onde se definem seus ob-jetivos, se examina a literature pertinente e, enfim, se planeja otrabalho. Essa fase normalmente culmina com aquilo que chama-mos termos de referenda ou projeto de pesquisa, mas este documen-to deve ser entendido como um subproduto do processo de planeja-mento e da pesquisa e nao como objetivo em si. Segue-se entao umafase de coleta de dados, sejam eles de primeira ou de segunda mao.A proxima fase e o processamento dos dados, envolvendo ou naocomputagao eletronica, de acordo com o tipo de pesquisa. Vem en-tao a sua analise e interprets p. ao. Finalmente, vem a redagao dotrabalho, chamando-se a atengao para o fato de que parte dela podepreceder o final da analise. Finahnente, ha um periodo de revisaoque envolve a circulagao do trabalho entre leitores, orientadores,criticos, amigos, etc. As revisoes de estilo e diivida quanto a clare-za tern que ser atendidas e a apresentagao fisica do trabalho cuida-da.

Podemos pensar em uma seqiiencia correta de duracao decada uma das fases, tal como ilustrado abaixo.

Seqiiencia correta

defmicao coleta dedados

processamento analise redacgo revisao

Ha contudo uma outra seqiiencia que poderiamos chamar "na-tural" e que corresponde a manifestagao de duas grandes forgasnaturais: o alongamento das fases iniciais e o encurtamento dasfinals, este ultimo produzido pela inelasticidade dos prazos. Abaixoesta ilustrada a seqiiencia "natural".

Seqiiencia "natural"

definicao coleta dedados

processamento

A fase de planejamento encontra seus obstaculos naturais naproducao do malfadado "projeto de pesquisa" e na procrastinacaodo infcio da pesquisa, gerada pelos dramas existenciais. Nessa fase,a pesquisa ainda nao comegou; seu autor nao sabe como iniciar etern medo de faze-lo. Dai sua tendencia escapista. Continuar re-vendo a literatura e uma desculpa perfeita, havendo sempre um

MEMORIAS DE UM ORIENTADOR DE TESE 321

livro a mais para ser lido, mais um artigo que aparece de ultimahora, etc.3 A redagao do projeto e tambem traumatica. 0 alunoentende que ai se devera resolver uma serie de problemas qut narealidade constituem o objetivo da pesquisa e que nao poderiamser atendidos antes.

A coleta de dados e prejudicada por dois tipos de problemas.Freqiientemente, ha um erro no desenho amostral, no sentido deque e planejada uma amostra excessivamente grande. Esta amostrae grande tanto no que se refere a significancia dos parametros e asua representatividade quanto no tempo necessario para obte-la.Amostras ineficientes ou simplesmente grandes demais caracteri-zam a vasta maioria dos projetos de tese. Em segundo lugar, o autornao e eapaz de se antecipar a infinidade de pequenos problemas ad-ministrativos e logisticos que ocorrem no curso da coleta. Todo oti-mismo com relagao a autorizacoes para entrar em escolas, fabricas.,ou reparticoes e totalmente infundado. Facihtnente leva-se 6 mesespara tramitar uma permissao de entrevistar alunos de uma escolaou duas. No caso do uso de dados secundarios, aquilo que se pen^sava existir, muitas vezes nunca chegou a ser coletado. Entrevista-dores de campo exibem uma assustadora taxa de desergao e ternque ser substituidos ao meio do caminho. Frequentemente, o tem-po previsto para a eoleta de dados amplia-se enormemente. 0 pes-quisador termina entao tendo consumido uma fragao muito grandedo seu tempo para coletar muito mais dados do que na realidade ne-cessita.

0 processamento de dados, quando e feito em computadoroferece imensas perplexidades. 0 pesquisador nao conhece o quepode fazer o computador e tampouco sabe dialogar com o progra-mador. Assustado com um curso de "Fortran'*, iniciado ha muitotempo, ele ve no programador uma tabua de salvagao e a ele en-trega todo o seu programa, todo seu trabalho, na ilusao de que empoucos dias recebera os resultados. Desaparecem os programadores,nao funcionam os programas preparados e o tempo passa. Fracas-saram os pesquisadores por nao entenderem que o processamento ele-tronico nao e umjapendice estranho ao seu trabalho, mas sim umaparte integrante. Quern deve conhecer toda a estatistica envolvidae o pesquisador; o programador nao e professor de estatistica dis-

3 Devemos nos lembrar de que Darwin, ap6s ter todo o material de quenecessita para demonstrar suas ideias, decidiu corapletar mais ainda suaevidencia, atraves de uma pesquisa sobre moluscos que consumiu_cercade dez anos. Somente depois desse estudo redigiu o ensaio onde expSe suateoria evolucionista. Esse escapismo parece ter sido determinado por cau-sas emocionais e diividas religiosas.

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322 A PERSPECTIVA EXTERNA AO PROCESSO DE PESQUISA

forgado. Quern esta interessado em usar um package estatisticoe o pesquisador, que tern, pressa, e nao o programador, que esta in-teressado em fazer o seu proprio programa com o gasto de tempomuito maior.

Vem entao finalmente a £ase de analise, ja exprimida e sacri-ficada no cronograma, uma vez que os prazos finais se aproximam.Acossado pelas advertencias sobre prazos dos chefes de departa-mento, iludido pela pouca familiaridade com o que seja uma anali-se, o pesquisador se limita as interpretagSes mais imediatas das pri-meiras tabelas em que poe a mao. Ha dados demais e nao ha tempopara manipula-los. Ha muitas variaveis e o tempo mal da senaopara examinar as distribuicoes de frequencia de cada uma. 0 quepassa entao por analise nada mais e do que a limpeza analitica dosdados, sua depuracao e arrumacao em categorias basicas. A relagaoentre paginas de textos e paginas de tabelas nos da uma ideia dahabilidade do pesquisador para extrair coisas interessantes e im-portantes dos dados. O autor se esquece de que nao sao os nume-ros que dao sentido a interpretagao, mas sim a interpretacao queda sentido aos numeros.

Ainda mais premido pelos prazos, vem o momento de re-digir e concluir o trabalho. A revisao da literatura foi feita e re-feita ao inicio, ja estando a estas alturas imaculadamente polida,o mesmo se dando com a descricao da amostragem e a metodolo-gia. Mas a Canalise, coitadinha, atro£iou-se, perdeu a imaginacao;das expectativas grandiosas do comego nao resta quase nada.

A redagao nao deve ser entendida como um processo de con-gelamento grafico daquilo que parecia haver sido descoberto naanalise. £ muito mais. No processo de passar para o papel de formaarticulada e rigorosa, as ideias crescem, amadurecem, lancam raizes.

O que tinhamos na cabec.a antes de escrever e uma palida ima-gem, uma sombra mortic.a daquilo que finalmeute sai no papel.Mas isto nao e um processo que acontece instantaneamente. E so-bretudo, se nao ha ideias para se passar ao papel, nao ha o quecrescer.

0 processo de revisao oferece um, grande potencial de en-riquecimento. Assim, eomo massa de bolo, o trabalho tern que "des-cansar". Nesse periodo, ele deve visitar outros pesquisadores amigose, quern sabe, inimigos. 0 esforgo artesanal de preparagao e cer-tos mecanismos psicologicos nos tornam excessivamente aliados donosso trabalho. E precise um pouco de tempo para perder partedo amor por ele, para ve-lo com mais perspectiva e mais espiritocritico. E e quando adquirimos esta perspectiva que o trabalho podeser melhor articulado e melhor defendido.

MEM6RIAS DE UM ORIENTADOR DE TESE 323

0 que vemos entao nas formas espontaneas de se dispor dotempo e uma compressao progressiva de cada fase subsequente dapesquisa. Infelizmente, cada uma dessas partes corresponde a umaetapa mais e mais nobre, mais e mais criativa e, com um potencialcada vez maior de valorizar o trabalho. Com excegao da escolhado tema e do desenvolvimento de uma estrategia geral, as primeirasfases de um trabalho sao puramente mecanicas, nao contendo umgrande potencial de afetar a natureza da contribuigao que se preten-de do trabalho —• exceto no sentido de que algum erro grave come-tido a principio pode por a perder todo o esforco. Com grande ge-neneralizagao, diriamos que ha uma incontivel tendencia para queas teses tenham dados demais e analise de menos.

d) As Ofensas a Lingua Pdtria:Prova de Redagdo para o Mestrado?

A experiencia de fazer um mestrado talvez tenha como grandeganho pessoal um imenso aumento na capacidade para se fazer en-tender por escrito na lingua patria. Possivelmente, os ganhos deconhecimento na area substantiva da tese ou a contribuicao paraa humanidade daquele conhecunento nao se comparem as melho-rias na capacidade de expressao escrita. De um aluno que pratica-mente nada escreveu ate entao — quern sabe uma carta para amamae, um telegrama, ou um suado trabalhinho de estagio — pe-de-se que produza uma obra que tenha inclusive o potencial de pu-blicacao em forma de livro.

Se o grande ganhador nesse processo e o aluno, nao ha duvidaque o grande perdedor e o orientador de tese. Nao raro, cerca de50% do tempo de orientacao sao consumidos em questoes de estilo,clareza ou forma. As ideias nao sao transmitidas por intuigao, massim atraves da palavra escrita. Se nas orac5es falta o sujeito, pre-dicado ou outras partes, e necessario indagar do aluno quais sejam.0 conteudo vem atraves da forma — se esta e ininteligivel, obscura,ambigua ou desconchavada, deixa de ser apropriadamente transmi-tido o conteudo. Dizer que esta mal a forma raramente adianta,pois voltara igualmente insatisfatoria na proxima versao, obrigandoo orientador a ler duas vezes a mesma porcaria. A contragosto epraguejando, o orientador torna-se entao um reviser de estilo e degramatica, perdido em meio a questoes de forma: "se e isso quevoce queria dizer, por que nao o disse em vez de escrever o que aiesta?". As vexes nao sobra tempo nem paciencia para as questoesde conteudo.

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324 A PERSPECTIVA EXTERNA AO PROCESSO DE PESQUISA

Seguramente, o aspecto mais cansativo e desalentador de ori-entar uma tese resulta da incapacidade e inexperiencia do alunoem questoes de redacao. E surpreendente a diferenga na qualidadeda redagao entre o primeiro e o ultimo capitulo. Ultimamente,como solugao de desespero, adotel como criterio para aceitar orien-tandos: uma prova de redagao. Para tornar mais incruenta a con-frontacao, esta passa um pouco disfargada como pedido de uma dis-cussao inicial sobre o tema.

e) 'Do Discurso de Vereador ao Discurso Cientifico

Apesar de que sao capazes de colocar sujeitos e predicados eevitar frases de pe quebrado, alguns sofrem de incontiveis tenden-cias para a adjetivagao rica, o circunloquio, a hiberpole, e pratica-mente todos os recursos estilisticos. Quando finalmente se en-tende a figura de estilo, ja se esqueceu a ideia. Ha sempre umamaneira mais simples, mais direta de se dizer algunia coisa, e estae sempre evitada. Se ha uma palavra mais vaga, mais grandilo-qiiente e com maior variedade de significados, por que nao usa-la?

Alguns so conseguem escrever claro quando levados a exaus-tao, premidos por prazos improrrogaveis e totalmente desiludidosda sua capacidade de manipular a lingua. E entao que voltam apo-logeticamente com um trabalho que relutam em entregar e se en-vergonham de have-lo escrito. Ficam imensamente surpreendidosao saberem que pela primeira vez escreveram claro e hem. Trata-seai de um trabalho de catequese e doutrinagao para o orientador, quefinalmente descobre que o.aluno sabe escrever mas que se envergo-nha de qualquer maneira dire'ta de transmitir uma ideia.

O problema se complica muito quando o pesquisador, alem denao saber escrever, nao admite a possibilidade de faze-lo em formasimples. Se forcado a escrever rapidamente para evitar as meta-foras e outras figuras, ninguem sabe o que esta querendo dizer.Se Ihe damos tempo, a compreensao da ideia passa a ser agora obs-truida pela ornamentacao.

f) O Orientador como Guia Espiritual e Consultor Sentimental

Alem de professor de portugues, professor de estatistica e bi-bliotecario, o orientador tern outros tantos papeis no dominio afeti-vo. Preparar uma tese e uma experiencia emocionalmente tensapara a maioria dos alunos. Alem das crises normals geradas naconducao da pesquisa, a mobilizacao psicologica para a preparagao

MEMORIAS DE UM ORIENTADOR DE TESE 325

da tese pode desencadear crises maiores com origem em outrasareas. Ate desquites nao sao incomuns, De qualquer forma, o de-safio e as dificuldades da tese podem criar inseguranca e grandestemores.

Por motives que psicologos amadores facilmente identifica-cariam, as crises metodologicas e os dramas existenciais sao acom-panhados por ferozes invectivas contra a universidade e a chefiados departamentos a que pertencem os zangados alunos. Quandovacilam as teses ou claudica o ritmo de trabalho, isso se deve a algoprofundamente sinistro, sendo tramado, ou a desmandos caoticosda coordenagao do departamento.

Um pouco independentemente de suas qualificacoes na area,ve-se o orientador forcado a consolar, encorajar ou aplicar variosmodelos de sermao, improvisados de acordo com o momento. Algu-mas predicas para nao desanimar os que ja estao chegando ao fim;varias versoes para a necessidade de aprender a escrever; algunsserm5es pregando a fe em que algum dia alguma coisa vai sair docomputador; ha outros indicando que um "chi" quadrado, um "T"ou um "F" nao significativos nao indicam nem o fim do mundonem o fracasso da pesquisa. A primeira versao do capitulo de con-clusoes requer um sermao especial para acompanhar os comenta-rios do orientador, indicando que ali esta longe de haver qualquerconclusao e que nao passa da repetigao mecanica de meia diizia decoisas que ja se encontravam antes. Recentemente incendiou-se, fi-cando totalmente carbonizada, a unica versao final da tese de urnorientando meu. Devo confessar a minha incapacidade para pro-duzir a alocugao que a gravidade do momento sugeria.

g) Dos Direitos e Deveres do Orientador

O orientador e um ser humano, com uma dose dada de paci-encia e tern portanto o direito de esbravejar diretamente com oorientando, no estilo que mais Ibe agrada ou alivia. Nao cabe asua mulher, mas sim ao proprio orientando a ingrata funcao dereceber todas as tempestades ptovocadas pela sua inepcia.

O orientador deve permitir e estimular divergencias de opi-niao entre o orientando e ele proprio. Sua fungao nao e de catequi-zar ou doutrinar, mas sim de levar sua critica ao extreme logico da-quilo que pode ser demonstrado factualmente ou teoricamente. Oque pode ser demonstrado como errado esta, ipso facto, errado ecai fora. Se a logica fracassa, pela mesma razao entra na censura.Todavia, se ha uma divergencia de opiniao ou de juizo de valor, a

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atuacao do orientador sera apenas no sentido de levar o autor a fa-zer conspfcua a natureza subjetiva ou valorativa da questao.

Por persuasao ou por indole, orientadores variam em seus es-tilos de trabalho. Uns sao pacientes, outros afoitos; uns sao benevo-lentes, outros zangados. Alguus vetam sucessivamente ate que osalunos consigam chegar finahnente por conta propria a solugao cor-reta. Outros quase chegam a fazer o trabalho do aluno. Natural-mente, alguns tern mais tempo ou mais disposigao para gasta-lo comseus alunos. E importante que o aluno conhega antecipadamenteas regras do jogo e as idiossincrasias do seu orientador.

Nota sofore os Autores

(1) Edson de Oliveira Nunes — Formou-se em. Direito e Ci-encias Sociais pela Universidade Federal Fluminense, em 1971, eobteve o titulo de Mestre em Ciencia Politica pelo Instituto Uni-versitario de Pesquisas do Rio de Janeiro. Foi professor de Sociolo-gia da Universidade Gama Filho e e professor, atualmente licencia-do, das Faculdades Candido Mendes. Trabalhou em projetos depesquisa e exerceu atividades de consultoria tecnica para varies pro-gramas de intervengao social. Desde 1972 e pesquisador do Insti-tuto Universitario de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), ondeatualmente exerce o cargo de Coordenador Geral de Projetos e diri-ge estudos sobre recrutamento e socializagao de elites politicas esobre a violencia coletiva no Brasil.

(2) Gilfaerto Velbo — Bacharel em Ciencias Sociais peloIFCS da TJFRJ, em 1968, e mestre em Antropologia pelo MuseuNacional, tendo realizado curso de pos-graduagao em AntropologiaUrbana na Universidade do Texas e se doutorado pelo Departamen-to de Ciencias Sociais da USP em 1975. Publicou A Utopia Urba-na (Zahar Editores, 1973), e foi organizador da coletanea Desvio eDivergencia, Uma Critica a Patologia Social (Zahar Editores, 1973);tambem organizou o volume Sociologia da Arte, da colecao TextosBasicos em Ciencias Sociais, de Zahar Editores. Atualmente, GilbertoVelho e Professor do Programa de Pos-Graduagao em AntropologiaSocial do Museu Nacional da UFRJ e Diretor da Colecao de An-tropologia Social de Zahar Editores. Publicou varies artigos emlivros e revistas nacionais e estrangeiros. Foi Professor Visitanteno Departamento de Sociologia da Northwestern University, Evans-ton, Illinois, em 1976.

(3) Roberto Da Malta — £ bacharel e licenciado em Histo-ria pela Faculdade Fluminense de Filosofia da UFF, em 1959;Mestre de Ph. D em Antropologia Social pela Universidade Har-

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vard. Ex-coordenador do Programa de Pos-Graduacao em Antro-pologia Social do Museu Nacional, onde hoje e professor, RobertoDa Matta e autor de varies artigos de sua especialidade, publicadosno Brasil e no exterior e dos livros Indies e Castanheiras (A Empre-sa Extrativa e os fndios no Media Tocantins), em colaboracao comRoque Laraia, Difusao Europeia do Livro, 1967; Ensaios de An-tropologia Estrutural, Vozes, 1973; Urn Mundo Dividido: A estru-tura Social dos fndios Apinaye, Vozes, 1976.

(4) Tania Salem — Formou-se em Sociologia e Ciencia Po-litica pela PUC-Rio, em 1970, e obteve o Mestrado em Sociologiapelo IUPERJ. Foi Professora do Departamento de Sociologia daPUC-Rio, das Faculdades Candido Mendes e do Centro UnificadoProfissional. Atualmente e pesquisadora do Instituto Universitariode Pesquisas do Rio de Janeiro.

(5) Simon Schwartzman — Formou-se em Sociologia e Ci-encia Politica pela Universidade Federal de Minas Gerais, em 1961.Diplomado pela Faculdade Latino-Americana de Ciencias Socials em1963 (pos-graduacao em Sociologia) e pela Universidade da Cali-fornia, Berkeley, em 1973 (Ph. D, Ciencias Poltticas), e professoradjunto do Instituto Universitario de Pesquisas do Rio de Janeirodesde 1969. E professor e pesquisador da Fundacao Getulio Vargastambem desde 1969, tendo sido chefe de centro, chefe de departa-mento e coordenador de pos-graduaeao da Escola Brasileira de Ad-ministracao Publica. Publicou Sao Paulo e o Estado Nacional(DIFEL, 1975). Coordenou, entre outras, a pesquisa da UNITAR/ONU sobre brain drain no Brasil, e a pesquisa sobre a HistoriaSocial da Ciencia no Brasil (FINEP, 1976-8). Foi professor con-tratado de Metodos de Pesquisa da Universidade Nacional de LaPlata, Argentina, e pesquisador do International Peace ResearchInstitute, em Oslo. E autor de iniimeros artigos publicados no Brasile no exterior.

(6) Amaury de Souza —, Formou-se em Sociologia e Poli-tica pela Universidade Federal de Minas Gerais, em 1965, tendoobtido o grau de Doutor em Ciencia Politica pelo MassachusettsInstitute of Technology, fi professor e pesquisador do InstitutoUniversitario de Pesquisas do Rio de Janeiro desde 1970. Atual-mente nos Estados Unidos, Amaury de Souza e tambem pesquisadordo Institute for Social Research, da Universidade de Michigan. Pu-blicou variqs artigos em revistas nacionais e internacionais e foi oorganizador da coletanea Sociologia Politica, Textos Basicos deCiencias Socials, Zahar Editores, 1966.

(7) Neuma Aguiar — Fonnada em Historia pela PUC-Rio,em 1960, obteve o mestrado em Sociologia e Antropologia na Uni-

NOTA SOBRE os AUTORES 329

versidade de Boston e o Ph. D em Sociologia pela Washington Uni-versity, em St. Louis, com a tese sobre A Mobilizagao e Burocrati-zagdo da Classe Operdria no Brasil de 1930 a 1964. Lecionou emcursos de graduagao na Universidade Federal Fluminense e naPontificia Universidade Catolica do Rio de Janeiro. Lecionou tam-bem no Programa de Pos-Graduagao em Antropologia Social doMuseu Nacional-UFRJ. Foi coordenadora do Mestrado em Socio-logia do Instituto Universitario de Pesquisas do Rio de Janeiro, onde

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atualmente e professora-adjunta. E autora de varios artigos apare-cidos em revistas nacionais e estrangeiras, organizadora do volumeHierarquzas em Classes, da colecao de Textos Basicos em CienciasSocials de Zahar Editores (1974), e da coletanea The Structure of,Brazilian Development, Rutgers, Nova Jersey: Transaction Books,no prelo, a ser publicado em 1978.

(8) Edmundo Campos Coelho formou-se em Sociologia pelaFaculdade de Ciencias Economicas da UFMG, em 1962, tendofeito o Mestrado pela Universidade da California, Los Angeles.Atualmente prepara sua dissertacao de doutoramento pela UCLA.E professor adjunto do Instituto Universitario de Pesquisas do Riode Janeiro. Organizou uma coletanea de artigos sob o titulo deSociologia da Burocracia (Rio: Zahar Editores, 1976) e e autorde Em Busca de Identidade: O Exercito e a Politica na SociedadeBrasileira (Rio: Forense Universitaria, 1976),

(9) Alexandra de Souza Costa Barros — Formado pela Es-cola de Sociologia e Politica da PUC-Rio, em 1966, e Mestre eDoutor pela Universidade de Chicago, tendo defendido recente-mente sua tese de doutoramento: The Brazilian Military's Profes-sional Socialization, Political Performance and State Building. Foiprofessor adjunto da Escola Brasileira de Administragao Publicada FGV e professor conferencista do Instituto Universitario dePesquisas do Rio de Janeiro. E autor de artigos publicados tanto emrevistas especializadas nacionais e estrangeiras, quanto em jornaisbrasileiros; no presente, e colaborador do Jornal da Tarde e, desde1974, membro do Comite Editorial da Revista Armed Forces & So-ciety, de Chicago. Atualmente no exterior, Alexandre Barros e pes-quisador Associado do Departamento de Ciencia Politica de Chi-cago, onde conduz estudo sobre As Mudangas Recentes e a Proba-bilidade de Guerra na America do Sul.

(10) Fernando Uricoechea fez estudos de Sociologia na Ani-versidade Nacional da Colombia (Bogota), graduando-se em 1967.Estudou na London School of Economics and Political Science(Londres) e doutorou-se pela Universidade da California (Ber-keley). Foi professor de Sociologia na Universidade Nacional da

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Colombia e na Universidade da California (Berkeley) e e atualmenteProfessor Adjunto do Institute Universitario de Pesquisas do Riode Janeiro (IUPERJ). ]£ autor de Modernization y desarrollo enColombia (Bogota: 1968), Intelectuales y desarrollo en AmericaLatina (Buenos Aires: 1969) e 0 Minotauro Imperial: A Burocra-tizagao do Estado Patrimonial no Seculo XIX (Sao Paulo: no pre-lo), obra esta que apresentara em ingles com o titulo The Patrimo-nial Foundations of the Brazilian Bureaucratic State (Berkeley).

(11) Helgio Trindade — Bacharel em Ciencias Juridicas eSociais pela PUC-RS, em 1964, e diplomado pelo Institut d'EtudesPolitiques de Paris e Doutor em Ciencia Politica pela Universida-de de Paris I (Pantheon-Sorbonne). Atualmente e professor deCiencia Politica no Departamento de Ciencias Sociais da UFRGSe PUC-RS, Vice-Diretor do Institute de Estudos Sociais, Politicose Economicos da PUC-RS e Coordenador do Mestrado em Sociolo-gia e Cieneia Politica da UFRGS. £ autor do livro Integralismo:O Facismo Brasileiro da Decada de 30, Sao Paulo, Difel, 1974, dotrabalho Padroes e Tendencias do Comportamento Electoral no RioGrande Sul, publicado na coletanea Os Partidos e as Eleigoes noBrasil, organizada por Bolivar Lamounier e Fernando Henrique Car-doso, Editora Paz e Terra, 1975; co-autor do Perfil Socio-Eco-ndmico das populagoes de baixa renda no Rio Grande do Sul,. 2vols., Porto Alegre, IE3PE, 1975.

(12) Aspasia Alcantara de Camargo, Bacbarel e Licenciadapela Faculdade Nacional de Filosofia da UFRJ em 1964, obteve oDiplome d'Etudes Approfondies en Sciences Sociales (DEASS) daEcole Pratique des Hautes Etudes da Universidade de Paris e oDoctoral du Troisieme Cycle pela mesma Universidade, com a teseBresil Nord-Est: Mouvements Paysans et Crise Populiste. Foi pro-fessora do Departamento de Sociologia da PUC-Rio e Professor-Assistente no Institut d'Etudes pour le Developpement Economi-que et Social (IEDES) da Universidade de Paris, Professor-Confe-reucista no Mestrado de Antropologia Social do Museu Nacional-UFRk, sendo hoje Professor-Conferencista do programa de pos-gra-duagao do Instituto Universitario de Pesquisas do Rio de Janeiro.Atualmente, e tambem Diretora de Pesquisas do Centre de Pesqui-sa e Documentacao de Historia Contemporanea do Brasil, da Fun-dagao Getiilio Vargas, onde coordena o projeto de Historia Oral.

(13) Claudio Moura Castro — Graduou-se pela Faculdadede Ciencias Economicas da Universidade Federal de Minas Gerais,em 1962; fez pos-graduacao no Centro de Aperfeicoamento de Eco-nomistas, da Fundagao Getiilio Vargas. Obteve o Mestrado na Uni-versidade de Yale, frequentou curso de Pos-Graduacao na Univer-

NOTA SOBRE OS AUTORES 331

sidade da California em Barkeley e na Universidade Harvard, tendoobtido o grau de Ph. D pela Universidade Vanderbilt. £ professor dePos-Graduagao em Economia, EPGE, da Fundacao Getiilio Vargas, -e Economista Senior do IPEA/INPES (esta licenciado nessas insti-tuigoes). Foi professor visitante no Comparative Education Center daUniversidade de Chicago. Atualmente e professor do Curso de Mes-trado em Educagao da Fundagao Getiilio Vargas (IESAE) e Co-ordenador Tecnico do Projeto de Pesquisas em Educa§ao e Desen-volvimento Economico incorporado ao Programa ECIEL. E autorde varios artigos e monografias aparecidos em publicacoes especia-lizadas, alem dos seguintes relatorios e livros: Investment in Educa-tion in Brazil; a Study of T~wo Industrial Comunities — Tese dePh. D para o Departamento de Economia da Universidade Vanderbilt(1970), publicada em Portugues pelo IPEA (1974) sob o tituloInvestimento em Educagdo no Brasil: Vm Estudo Socio-Eco-nomico em duas Comunidades Industrials; Eficiencia e Custos dasEscolas de Nivel Media: Um Estudo Piloto na Guanabara, Relate-rio de Pesquisa n.° 3, IPEA/INPES, 1971; Ensino Tecnico: De-sempenho e Custos — em co-autoria com Milton Pereira de Assise Sandra Furtado de Oliveira, Relatorio n.° 10 (Guanabara: IPEA,1972); Desenvolvimento Economico, Educagao e Educabilidade, pu-blicado pela Universidade do Estado da Guanabara e EditoraTempo Brasileiro, 1973, republicado em 1977 em co-edigao Tem-po Brasileiro — FENAME; Estrutura e Apresentacao de Publica-coes Cientificas, Sao Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976; Mao-de-Obra Industrial no Brasil: Pfodutividade, Treinamento e Mobi-lidade — em co-autoria com Alberto MeJlo e Souza, Relatorion.° 25, Guanabara: IPEA; 1974; A Pdtria da Pesquisa, a ser pu-blicado pela McGraw-Hill do Brasil em 1977; Custos e Determi-nantes da Educagao na America Latina: Resultados preliminares— em co-autoria com Jorge Sanguinetty, Rio: Programa ECIEL,1977.

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