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A AVALIAÇÃO DAS APRENDIZAGENS E A ESCOLA EM CICLOS: O QUE MUDA NA PRÁTICA DOCENTE? Maria Susley Pereira SEDF [email protected] Resumo Este texto é fruto de uma dissertação de mestrado realizada no ano de 2007 com o objetivo de compreender como se desenvolve o processo avaliativo realizado por uma professora do Bloco Inicial de Alfabetização em uma escola da rede pública de ensino do Distrito Federal. Recorreu-se à abordagem de pesquisa qualitativa a fim de atingir os seguintes objetivos: (a) analisar quais eram os fundamentos teórico-metodológicos do Bloco Inicial de Alfabetização e em quais deles uma professora se baseava para desenvolver suas práticas avaliativas; (b) analisar as práticas avaliativas adotadas por uma professora do Bloco Inicial de Alfabetização e (c) analisar a articulação do processo avaliativo realizado por uma professora do Bloco Inicial de Alfabetização com o trabalho pedagógico desenvolvido em sala de aula. Partiu-se do pressuposto de que a avaliação é o eixo central da organização do trabalho pedagógico e de que as práticas avaliativas dos professores na organização da escolaridade em ciclos, como é o caso do Bloco Inicial de Alfabetização, devem estruturar-se sob uma lógica diferenciada da avaliação na escola seriada. Este artigo focaliza especificamente percepções e práticas das principais interlocutoras da pesquisa quanto à avaliação desenvolvida no BIA a partir das falas concedidas nas entrevistas e da observação participante, o que explicitou que a lógica avaliativa ainda era a mesma do regime seriado, revelando que o trabalho pedagógico como um todo também assim era realizado. Os resultados ainda apontaram para a importância de estudos e de reflexão coletiva no espaço escolar sobre a avaliação das aprendizagens e sobre a educação em ciclo. Palavras-chave: Avaliação. Bloco Inicial de Alfabetização. Organização da escolaridade em ciclos. Organização do trabalho pedagógico. Iniciando nossa conversa Este texto é fruto de pesquisa desenvolvida (PEREIRA, 2007) com o objetivo de compreender o processo avaliativo realizado por uma professora do Bloco Inicial de Alfabetização BIA - em uma escola da rede pública de ensino do Distrito Federal. Partiu-se do pressuposto de que a avaliação é o eixo central da organização do trabalho pedagógico e de que as práticas avaliativas dos professores na organização da escolaridade em ciclos, como é o caso do BIA, devem estruturar-se sob uma lógica diferenciada da avaliação na escola seriada. As informações foram coletadas por meio de análise de documentos oficiais, de entrevistas semi-estruturadas e pela observação participante nos diversos espaços da escola: em uma sala de aula de uma professora da etapa III do BIA, na sala dos professores, na qual ocorriam as reuniões, as coordenações pedagógicas e os Conselhos XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.001610

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A AVALIAÇÃO DAS APRENDIZAGENS E A ESCOLA EM CICLOS:

O QUE MUDA NA PRÁTICA DOCENTE?

Maria Susley Pereira – SEDF [email protected]

Resumo

Este texto é fruto de uma dissertação de mestrado realizada no ano de 2007 com o

objetivo de compreender como se desenvolve o processo avaliativo realizado por uma

professora do Bloco Inicial de Alfabetização em uma escola da rede pública de ensino

do Distrito Federal. Recorreu-se à abordagem de pesquisa qualitativa a fim de atingir os

seguintes objetivos: (a) analisar quais eram os fundamentos teórico-metodológicos do

Bloco Inicial de Alfabetização e em quais deles uma professora se baseava para

desenvolver suas práticas avaliativas; (b) analisar as práticas avaliativas adotadas por

uma professora do Bloco Inicial de Alfabetização e (c) analisar a articulação do

processo avaliativo realizado por uma professora do Bloco Inicial de Alfabetização com

o trabalho pedagógico desenvolvido em sala de aula. Partiu-se do pressuposto de que a

avaliação é o eixo central da organização do trabalho pedagógico e de que as práticas

avaliativas dos professores na organização da escolaridade em ciclos, como é o caso do

Bloco Inicial de Alfabetização, devem estruturar-se sob uma lógica diferenciada da

avaliação na escola seriada. Este artigo focaliza especificamente percepções e práticas

das principais interlocutoras da pesquisa quanto à avaliação desenvolvida no BIA a

partir das falas concedidas nas entrevistas e da observação participante, o que explicitou

que a lógica avaliativa ainda era a mesma do regime seriado, revelando que o trabalho

pedagógico como um todo também assim era realizado. Os resultados ainda apontaram

para a importância de estudos e de reflexão coletiva no espaço escolar sobre a avaliação

das aprendizagens e sobre a educação em ciclo.

Palavras-chave: Avaliação. Bloco Inicial de Alfabetização. Organização da

escolaridade em ciclos. Organização do trabalho pedagógico.

Iniciando nossa conversa

Este texto é fruto de pesquisa desenvolvida (PEREIRA, 2007) com o objetivo de

compreender o processo avaliativo realizado por uma professora do Bloco Inicial de

Alfabetização – BIA - em uma escola da rede pública de ensino do Distrito Federal.

Partiu-se do pressuposto de que a avaliação é o eixo central da organização do trabalho

pedagógico e de que as práticas avaliativas dos professores na organização da

escolaridade em ciclos, como é o caso do BIA, devem estruturar-se sob uma lógica

diferenciada da avaliação na escola seriada.

As informações foram coletadas por meio de análise de documentos oficiais, de

entrevistas semi-estruturadas e pela observação participante nos diversos espaços da

escola: em uma sala de aula de uma professora da etapa III do BIA, na sala dos

professores, na qual ocorriam as reuniões, as coordenações pedagógicas e os Conselhos

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de Classe, bem como nos eventos pedagógicos e nos intervalos, considerando que esses

diferentes espaços possibilitaram o confronto entre discursos, atitudes, ações e posturas

na organização do trabalho pedagógico e em relação aos alunos, quanto às práticas

avaliativas desenvolvidas formal ou informalmente.

Uma passagem breve pela avaliação e pelos ciclos

As discussões relativas à avaliação praticada na escola têm ganhado destaque

significativo no Brasil nos últimos anos. No entanto, muito ainda há que se considerar,

já que a avaliação não é um processo meramente técnico, não se reduz à elaboração de

instrumentos com a intenção de julgar o desempenho do aluno. Pelo contrário, é um

processo que pode viabilizar as aprendizagens, não devendo ser uma via de mão única,

na qual somente o aluno é visto. Por isso, são crescentes os estudos sobre o fracasso

escolar e sobre como este tem permanecido, de alguma maneira, encoberto (PATTO,

2000; JODELET, 1999; ABRAMOWICZ & MOLL, 1997; ARROYO, 1997;

FERNANDES, 2007).

Embora, há até bem pouco tempo a escola afunilasse muito mais, ou seja, por

meio do reduzido número de vagas ou dos processos de reprovação muito acentuados

selecionasse um número considerável de alunos, hoje uma parcela significativa

permanece na escola e muitos até conseguem ―passar de ano‖, mas infelizmente

aprendem pouco ou quase nada. Segundo os resultados mais recentes da Prova Brasil,

em torno de 69% dos alunos do 5º ano do ensino fundamental não conseguiram atingir

um nível esperado em língua portuguesa, pois demonstraram não saber, por exemplo,

localizar a informação principal em um texto. Além disso, os resultados da Prova

indicam que nove em cada dez alunos do 9º ano das escolas públicas não sabem fazer

contas com centavos (TARGINO, 2011). Esses índices, principalmente em relação aos

alunos da escola pública, têm afastado as possibilidades desse grupo interagir no

contexto social e têm afastado a escola de um de seus objetivos: inserir o sujeito de

forma ativa, consciente e competente na sociedade do século XXI .

Nesse caminho, a escola tem formado analfabetos funcionais, encobrindo,

velando o fracasso escolar e comprovando veementemente o processo de eliminação

(FREITAS, 1991), contribuindo para desvalorizar saberes, fortalecer hierarquias,

silenciar e expulsar muitos do seu interior.

Na tentativa de refletir sobre um dos elementos presentes nessa escola e que se

reveste de uma roupagem contrária aos seus pressupostos, colaborando, sobremaneira,

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para a exclusão, é que trazemos a avaliação que ocorre no seu interior. Pensamos,

então, que avaliar é inerente ao ser humano. Avaliamos o tempo todo e em todas as

circunstâncias, ―seja em reflexões informais, que orientam as frequentes opções do dia-

a-dia, seja formalmente, nas reflexões organizadas e sistemáticas nos momentos de

tomadas de decisões‖ (DALBEN, 2002, p. 17). A avaliação ocorre naturalmente em

nosso cotidiano e, sendo assim, ela pode adquirir no contexto escolar uma perspectiva

apropriada aos princípios educativos, o que significa dizer que avaliar na escola precisa

ser uma prática condizente com a própria função da escola, a qual certamente não é a de

expulsar muitos de seu interior e, muito menos de manter dentro dela esses muitos sem

perspectiva de avanços.

A avaliação na escola vem sendo questionada não somente quanto aos

instrumentos utilizados, mas também no que diz respeito à sua elaboração, aplicação e,

principalmente, acerca do que é realizado com os seus resultados. Muitas vezes, a

preocupação com os resultados das avaliações se restringe apenas ao valor numérico

alcançado pelo aluno; quando o aluno não apresenta uma nota ou uma menção dentro da

média estabelecida como satisfatória, nem sempre há uma reorganização do trabalho

pedagógico, com vistas a atender às suas necessidades de aprendizagens.

Além dessa dimensão da avaliação, que pode ser encarada como absolutamente

burocrática, o ato de avaliar ainda é visto como instrumento que mede o fracasso ou o

sucesso do aluno que, sendo assim, é colocado à margem do processo educativo. Por

isso, as contribuições hoje dispostas a todos aqueles que se interessam pelo tema

discutem a necessidade de se repensarem as práticas avaliativas ainda vigentes e

apontam para a importância de se enxergar a avaliação e as aprendizagens como

integrantes do mesmo processo (FREITAS, 2003, 2007; FERNANDES, 2003, 2009;

VILLAS BOAS, 2002, 2006, 2008).

Então, discutir avaliação requer ir além da dimensão aprovar/reprovar, porque

tentar acabar simplesmente com a reprovação não significa dar fim ao fracasso escolar.

A proposta de organização da escolaridade em ciclos pode constituir uma alternativa

para a superação da escola tradicional hegemônica que carrega o ranço de uma escola

que exclui em seu interior, com vistas à construção de uma escola mais emancipadora.

Os ciclos têm marcado presença nos debates entre educadores, pesquisadores e

secretarias de educação que implantaram essa forma de organização do trabalho escolar

nos últimos anos, evidenciando a preocupação com os altos índices de evasão e de

repetência e, especialmente, com as não-aprendizagens. É com base nessa preocupação

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que autores como Arroyo (1997, 1999), Freitas (2003, 2004, 2007) e Barreto e Mitrulis

(2001, 2004), Mainardes (2007, 2009), Fernandes (2003, 2009) destacam a organização

da escola em ciclo sob o olhar de que a escola tradicional tem perpetuado a exclusão e a

eliminação, não dando conta de manter na escola uma grande parcela da população, o

que significa negar a esta o exercício pleno de sua cidadania.

Os ciclos são uma forma de organização escolar já bem debatida, prevista no

Artigo 23 da LDB nº 9.394/96, pela qual se indica que a enturmação dos alunos ocorra

com referência à idade, a fim de contribuir efetivamente com o desenvolvimento

integral do aluno, e já é uma realidade que abrange 20,9% das matrículas do ensino

fundamental do país. Do total de 35,1 milhões de alunos, 7,3 milhões estão em escolas

que organizaram seu currículo dessa forma (BRASIL, 2011). Não se sabe se essa

crescente reorganização se deve ao fato de a LDB regulamentar os ciclos ou se é uma

tendência que se aplica pela concepção pedagógica transformadora sugerida por esta

forma de organização escolar.

Para Mainardes (2009, p.13) a escola em ciclos sugere uma ―ruptura‖ com a

reprovação e com o fracasso escolar tão presentes no modelo seriado de escolaridade,

que geralmente seleciona e exclui, com vistas a uma ―transformação em sistema

educacional não-excludente e não seletivo.‖ O que nos leva a pensar, então, que os

ciclos compõem uma concepção diferente da concepção tradicional de escola e

enxergam as aprendizagens como um direito da pessoa.

Em outras palavras, os ciclos buscam assegurar a permanência dos alunos na

escola, enxergando as heterogeneidades decorrentes das diferentes necessidades de

aprendizagens e visam garantir o avanço esperado dos alunos naquele determinado

período. Sua estrutura deve se configurar em alternativas mais dinâmicas e mais

flexíveis para organização dos tempos e dos espaços escolares no que diz respeito à

formação das turmas, ao processo de avaliação, ao currículo, enfim, no que diz respeito,

especialmente, à concepção de educação escolar para todos. Tais fatores merecem

significativa importância na compreensão da proposta de organização da escolaridade

em ciclos, pois são esses fatores que garantem a diferenciação da escola convencional: a

seriada. Se estas questões não forem foco de atenção, a mudança fica apenas no plano

da nomenclatura; muda-se o nome, mas não se muda a concepção, a práxis docente e a

organização do trabalho pedagógico de fato.

Assim sendo, na perspectiva de romper com as formas que privilegiam

processos seletivos, os ciclos propõem alternativas de organização do trabalho

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pedagógico adequadas ao desenvolvimento e às aprendizagens dos alunos sem oferecer

uma ―quebra‖ do processo a cada ano letivo, favorecendo a democratização do

conhecimento, o que pressupõe uma mediação pedagógica por parte dos responsáveis

pelo processo educativo como interlocutores privilegiados, instigando, provocando e

compartilhando conhecimentos, o que envolve a participação ativa e dialógica do aluno.

No Brasil, a organização da escolaridade em ciclos surgiu na década de 1960

com o objetivo de diminuir os elevados índices de reprovação e de retenção,

especialmente nos anos iniciais do ensino fundamental. O Distrito Federal apresentou

uma das experiências pioneiras na adoção de ciclos - Fases e Etapas, de 1963 até o final

dos anos 60.

Em 2005, o DF, depois de outras experiências com o ciclo, lançou-se mais uma

vez no desafio com a implantação do Bloco Inicial de Alfabetização – BIA, na busca da

―tão sonhada qualidade de ensino para todos – em que mais do que todos na escola,

pretende-se todos aprendendo na escola‖ (SEEDF, 2005, p. 4).

Assim, o BIA foi implantado pela Secretaria de Estado de Educação do Distrito

Federal com o ―objetivo de reestruturar o Ensino Fundamental para 9 anos, organizando

o período de alfabetização em ciclo e garantindo à criança, a partir dos 6 anos de idade,

a aquisição da alfabetização/letramento/ludicidade e seu desenvolvimento global.‖

(SEEDF, 2005, p. 7).

Para o BIA a avaliação é o eixo norteador do trabalho pedagógico, em uma

perspectiva coletiva, ―em que todos os profissionais envolvidos planejem, executem e

avaliem o processo de ensino e aprendizagem de forma cooperativa, integrada e

coletiva‖ (SEEDF, 2005, p. 25). A partir desse posicionamento, apresentamos, em

seguida, as informações reveladas pela pesquisa.

A avaliação no Bloco Inicial de Alfabetização

A pesquisa foi realizada durante o período escolar de 2007, acompanhando o

cotidiano de uma turma da Etapa III - 3º ano do Ensino Fundamental de uma escola da

rede pública de ensino do Distrito Federal, a qual era, à época, um Centro de Referência

em Alfabetização, local considerado polo para as discussões e formação dos professores

acerca do trabalho a ser desenvolvido no BIA, mas sem a pretensão de ser escola

modelo.

Em todas as visitas à sala de aula, que ocorriam durante todo o horário de aula da

turma, focalizou-se a atenção na relação da professora com os alunos, sua forma de

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abordar os conteúdos, na metodologia e estratégias utilizadas, na participação dos

alunos nas aulas durante as tarefas propostas e, principalmente, na forma de a professora

conduzir a avaliação.

O trabalho pedagógico naquela sala de aula era cotidianamente desenvolvido a

partir do livro didático com algumas variações, quando eram utilizados exercícios

mimeografados. Em um dos dias de observação, na primeira parte da aula, a turma

desenvolveu atividades do livro didático de matemática e, em seguida, realizou uma

atividade mimeografada sobre ortografia. Após o recreio, os alunos produziram um

texto a partir da colagem e montagem de um coelhinho – comemorando a Páscoa.

Durante esta atividade, as reflexões da pesquisadora se prenderam ao modo como

determinados alunos estavam fazendo uso da linguagem escrita. Alguns ainda

necessitavam de intervenções produtivas para que pudessem avançar mais rapidamente

e, principalmente, pudessem avançar por meio de uma aprendizagem sólida acerca dos

usos da língua escrita. No entanto, tais intervenções não ocorriam; os alunos

participavam de atividades direcionadas a todo o grupo sem que fossem consideradas as

necessidades de cada um, o que não contribuía, muitas vezes, para a sistematização do

código linguístico, tão importante no período de alfabetização. Ficaram as perguntas:

qual o motivo ou o objetivo do Teste Diagnóstico? O que foi feito a partir dele?

Essa troca descontextualizada nas atividades apresentadas aos alunos evidencia a

ausência de um planejamento organizado com vistas ao par avaliação/objetivos. Freitas

(2005, p. 144) diz que o binômio avaliação/objetivos oportuniza ―compreender e

transformar‖ a escola, pois é ele que regula o par conteúdo/método, com vistas ao

desenvolvimento de um currículo que vá além de uma simples sequência de conteúdos

disciplinares, que, muitas vezes, pode ser fragmentado, hierarquizado e linear.

Quando interrogada acerca do que entendia por avaliação, uma das professoras

entrevistadas mostrou a necessidade de uma formação continuada na qual a avaliação

fosse o tema central, pois demonstrou não compreender o papel da avaliação na

organização de seu trabalho pedagógico: “Avaliação do quê?” (Professora Bete).

Em seguida, depois de um esclarecimento acerca da pergunta, embora já

estivéssemos conversando sobre o desenvolvimento do seu trabalho, ela disse: “Eu

entendo, assim: verificar o desenvolvimento acadêmico da criança. Então, assim,

avaliação num todo, não só aquela prova, aquela coisa. Mas, o que o menino está

aprendendo, se o que ele está aprendendo tem significado, se vai servir para a vida

dele, que importância tem aprender determinadas coisas. Então, eu acho que

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avaliação é coisa que tem que ser muito estudada e bem criteriosa, porque muitas

vezes você avalia de um lado e... para que avaliar?” (Professora Bete).

A professora Bete acreditava que avaliação “é uma coisa contínua”, porque

“Todo dia você está avaliando a criança, porque todo dia a criança tem um

crescimento. Então, todo dia você está avaliando a criança. Tem que avaliar e

reavaliar”. Todavia, não ficou clara qual é a relação da avaliação com o trabalho

pedagógico que se desenvolvia no espaço escolar, levando-nos a entender que a

avaliação restringia-se a medir o conhecimento do aluno: ―Tem uns que já estão, como

eu falei, lendo, então eu tenho que partir para outro tipo de avaliação, só que eu

trabalho com eles... todo dia eu trabalho uma avaliação... toda semana eu trabalho com

eles na avaliação, todos aqueles que já estão lendo... A mesma coisa que eu dou eu

avalio de uma maneira e os outros que ainda não estão lendo, eu tenho outra visão.‖

(Professora Bete).

Percebe-se que a avaliação ainda era vista apenas como instrumento de medição

de saberes e não se relacionava com o próprio trabalho docente, restringindo-se ao

aluno. No que se refere ao tipo de avaliação desenvolvida, concordou que realizava

apenas um tipo de avaliação, embora tenha dito, em seguida, que a avaliação é ―De

acordo com cada criança. Fazer várias avaliações, várias coisas diferentes, não. Eu

faço a mesma, porque senão, eles ficam preocupados. Eu dou uma mesma coisa só que

na hora de cobrar eu cobro diferente. Tenho outra visão, outro olhar‖. (Professora

Bete)

O que se pode notar é que a ausência de um espaço de reflexão e estudo na

escola, no qual o tema avaliação também esteja presente, reforça uma prática

pedagógica vazia, sem objetivos claros e direcionadores do trabalho. O estudo na escola

favorece a ampliação dos conhecimentos, colabora efetivamente para a retomada de

ações e concepções e, certamente, proporciona ao grupo a necessidade de um

planejamento organizado coletivamente.

De modo geral, as professoras entrevistadas para a pesquisa demonstravam haver

um distanciamento entre a compreensão do trabalho no ciclo e a prática pedagógica

desenvolvida, bem como não enxergavam a importância do papel da avaliação das

aprendizagens nesse tipo de organização da escolaridade, apesar de a Professora Ana

argumentar que a avaliação serve para que ela possa “(...) trabalhar com eles (alunos).‖

(Professora Ana). Mas, não explicitou de fato o que compreendia por avaliação, pois se

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referiu a ela limitando-se a um tipo específico de avaliação formal: “Porque eu dou, eu

sempre dou um auto-ditado para eles.‖ (Professora Ana).

Para a Professora Carla da sala de aula investigada, a avaliação no BIA deve

desenvolver-se de modo diferenciado das experiências avaliativas da escola seriada,

mas, contraditoriamente, acreditava que a avaliação serve apenas para ―diagnosticar o

nível de conhecimento do aluno. Avalio o grau de conhecimento. Até que nível esse meu

aluno progrediu ou não... e a partir daí vou criar estratégias para melhorar ou para

que esse aluno venha a melhorar.‖ (Professora Carla).

Observa-se que existe uma lacuna entre a avaliação e a organização do trabalho

pedagógico na escola em ciclos; ainda não está claro para o professor o porquê da

avaliação no contexto escolar, o que pode ser percebido no depoimento da Professora

Bete sobre o que ela fazia com os resultados da avaliação: ―Bom... na verdade... faz o

quê? Faz nada! Não tem nada pra fazer! O que você quer saber?! Não... não sei...

Não. Não sei o que fazer com o resultado. Porque pela lógica seria um gráfico, tabular,

divulgar ..., seria assim, mas, na verdade, não se faz nada disso.” (Professora Bete).

Fernandes (2003, p 252) diz que a avaliação ainda não é compreendida e que ―de

um modo geral, as etapas do processo de avaliação restringem-se à aplicação de um

instrumento de avaliação‖, revelando que a prática docente não apresenta uma decisão

clara e explícita do que se está fazendo e, especialmente, para onde se pretende que os

resultados das ações sejam encaminhados.

No que se refere às práticas avaliativas, o uso de provas ou testes praticamente

inexistia no BIA. A professora avaliava por meio da observação, tecendo comentários

sobre o desenvolvimento das atividades e, principalmente, sobre os comportamentos. A

avaliação informal, portanto, era a mais frequente. Havia a prática constante de se

avaliar a pessoa do aluno muito mais que suas aprendizagens. A avaliação realizada

informalmente não se restringia à sala de aula. Eram comuns os comentários sobre os

alunos e até sobre suas famílias, na sala dos professores e no Conselho de Classe.

A professora da turma observada pouco circulava pela sala de aula, o que não lhe

permitia acompanhar mais de perto cada aluno individualmente. Costumava comentar

publicamente o comportamento de determinados alunos, os quais acabaram sendo

rotulados como indisciplinados e conhecidos pela escola inteira, afetando a relação entre

a professora e os alunos, o que certamente pode ter contribuído para um processo de

exclusão branda, que se assemelha ao de eliminação adiada explicado por Freitas como

uma das situações que geram o processo de exclusão das camadas populares do interior

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da escola, isto é, os alunos nela permanecem por algum tempo até serem dela excluídos

(FREITAS, 2007, p. 7). Os ciclos ou o Bloco Inicial de Alfabetização do DF podem

situar-se dentre as novas formas de exclusão apontadas pelo autor, as quais levam a uma

[...] redução da ênfase na avaliação formal e pontual do aluno em sala de aula

(introduzem novas formas de organização escolar: progressão continuada,

progressão automática, ciclos etc., e novas formas de avaliação informais),

liberando o fluxo de alunos no interior da escola e conduzindo ao

fortalecimento do monitoramento por avaliação externa, avaliação de sistema

centralizada (Prova Brasil, SAEB, SARESP, SIMAVE etc.). (FREITAS,

2007, p. 8).

No caso do DF, o BIA teve o propósito de reduzir os índices de reprovação nos

anos iniciais do ensino fundamental. Contudo, reduzir ou eliminar a reprovação

significa substituí-la pelas aprendizagens dos alunos e dos professores. A avaliação

cumpre papel importante nesse processo. Mas, o que se observou é que ela ainda

continua sendo conduzida no BIA da mesma velha forma: classificatória e excludente,

com o agravante de a professora da turma investigada pouco ter investido na avaliação

formal. A intenção de adoção da avaliação formativa tem afastado o uso da prova, como

se ela fosse a principal responsável pelos problemas da avaliação. Ledo engano. Os

alunos da turma investigada passavam por muitas situações de avaliação informal, o que

confirma a afirmação de Freitas.

A avaliação presente no BIA ainda carece de estudo e de reflexão no interior da

escola por todos que interagem com as crianças para que possa atingir sua verdadeira

dimensão na organização do trabalho pedagógico. O desenvolvimento do trabalho

pedagógico fragmentado, assim como a ausência de reflexão coletiva sobre a avaliação

escolar podem ter contribuído para uma prática avaliativa burocrática, servindo apenas

para preencher o Relatório Bimestral de desempenho.

Ademais, a prática pedagógica das professoras que atuam no BIA, assim como a

de qualquer professor, possui um conjunto de idéias que as orientam, porém, querendo

inovar ou não, as professoras não procuraram compreender suficientemente as questões

que dão sustentação à proposta da organização da escolaridade em ciclo e, por isso,

acabavam mesclando práticas pedagógicas, acreditando que o que faziam há muito

tempo era suficiente pela larga experiência que tinham com a alfabetização. Nesse

contexto, a avaliação não entra como categoria fundamental do trabalho pedagógico e

não se mostra, especialmente na avaliação informal que ocorre nos diferentes espaços

da escola, como elemento de inclusão.

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Finalizando nossa conversa

A investigação explicitou que, a despeito da implementação do Bloco Inicial de

Alfabetização no Distrito Federal, a lógica avaliativa na sala de aula pesquisada ainda

era a mesma do regime seriado, revelando que o trabalho pedagógico como um todo

também assim era realizado. Os resultados ainda apontaram para a ausência de reflexão

coletiva sobre a escola em ciclo, no caso o BIA, e sobre a avaliação que ocorre no

interior da escola.

A avaliação é central no trabalho com ciclos. Assim, muitas são as questões que a

avaliação coloca para o sucesso no BIA ou em qualquer outro segmento: a)Encarar a

avaliação sob outra ótica, diferente da velha ótica classificatória e excludente que existe

na escola apenas para saber o que os alunos não sabem. b) Atribuir à avaliação seu real

valor dentro da organização de todo o trabalho pedagógico. c) Utilizar a avaliação

informal e a formal de forma criteriosa e estritamente com função inclusiva, ―devendo

ser empregadas no momento certo e de maneira adequada. A avaliação formal é

insuficiente para abranger todos os estilos de aprendizagem. A informal pode

complementá-la.‖ (VILLAS BOAS, 2004, p. 28). d) Compreender que a organização da

escolaridade em ciclos pressupõe o uso dinâmico dos tempos e dos espaços escolares,

com vistas ao atendimento das necessidades que vão surgindo no contexto e que

dependem de cada realidade, variam de escola para escola, de etapa para etapa etc. c)

Preocupar-se com os avanços de todos os alunos.

Os depoimentos das professoras apontaram para a importância de um processo de

formação continuada desses professores, visto que, ao que nos parece, todos que atuam

no BIA tiveram mais experiência com uma prática avaliativa classificatória, que não

estava à disposição das aprendizagens, do que com uma avaliação formativa. Ainda há

um longo caminho a ser percorrido nesse sentido. Segundo Perrenoud (1999), a

avaliação das aprendizagens apareceu no contexto da escola organizada em séries, em

meados do século XIX, por isso realizar mudanças na prática avaliativa requer uma

mudança na cultura de todos os envolvidos. Mas, mudar uma cultura é difícil. É difícil,

não impossível. A mudança vem lentamente, porque ―nada se transforma de um dia para

o outro no mundo escolar [...], a inércia é por demais forte nas estruturas, nos textos e

sobretudo nas mentes, para que uma nova idéia possa se impor rapidamente.‖

(PERRENOUD, 1999, p.10).

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A partir das reflexões aqui tecidas, este texto espera contribuir para que a escola

organizada em ciclos possa ser vista e vivida de fato diferentemente da escola

organizada em séries, encarando a avaliação que ocorre no interior da sala de aula como

eixo condutor de todo o trabalho pedagógico.

Referências

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Campinas, Papirus, 1997.

ARROYO, M. Fracasso-Sucesso: o peso da cultura escolar e do ordenamento da

educação básica. In: ABRAMOWICZ, A. e MOLL, J. Para Além do Fracasso

Escolar. Campinas, SP: Papirus, 1997.

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BARRETO, E. S. de S.; MITRULIS, E. Trajetórias e desafios dos ciclos escolares no

Brasil. In: PERRENOUD. P. Os ciclos de aprendizagem: um caminho para

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