a arte do terror - volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento,...

159

Upload: others

Post on 23-Jul-2020

6 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam
Page 2: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

ELEMENTALEDITORAÇÃOApresenta:

AArtedoTerror

Volume5

EdiçãoDigitalElementalEditoração©2018

Page 3: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

AArtedoTerror

Volume5

VáriosAutores

Organizadores:CarlosH.F.GomesFernandoLima

1ºEdiçãoISBN:9780463081037

ElementalEditoração©2018

Page 4: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

FICHADOLIVRO

VÁRIOSAUTORES,AARTEDOTERROR—VOLUME5COPYRIGHTDOSCONTOS©2018ISBN:9780463081037CAPA:FernandoLimaIMAGEMDACAPA:BmewettDIAGRAMAÇÃOEEDIÇÃO:ElementalEditoraçãoCRIAÇÃOEFINALIZAÇÃO:ElementalEditoraçãoREVISÃO:CarlosH.F.GomeseHenriqueSantosORGANIZADORES:CarlosH.F.GomeseFernandoLima

1.Coletânea2.Contos3.Português4.Volume51.Título2.LivroDigital3.Coleção

TodososdireitossobreestaobrasãodeexclusividadedoseloindependenteElementalEditoração,paraqualquertipodeinformaçõesoureproduçõessobreamesma,énecessárioaautorizaçãoantecipadapelo

seloassimcomopelosautoresparticipantesdesteprojeto.

Page 5: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

SUMÁRIO

FICHADOLIVROAPRESENTAÇÃOAMÁQUINAFANTASMAAREDENTORADENAGIRÉVDIÁRIODEUMSOLDADODESCONHECIDOFARDADOSEDECAÍDOSDRACULVADOMNIDINNOUSEMRETORNOOABRIGOARCANJOCAVALEIROVERMELHOOUTROANJOEMNAGYRÉVDULCEETDECORUMESTPROPATRIAMORIEFEITOCOLATERALAGUERRADEFORTUNATOSOBASORDENSDOMONGELOUCODOCEALIMENTOSENHARARÁCZOFANTASMAQUEVEMDASTRINCHEIRASNASTRINCHEIRASONAVIODENINOOFLAUTISTAOPORÃOOÚLTIMOPEDAÇOPÓS-GUERRAREGISTRODEGUERRAPIEDADETERRADENINGUÉMROSADESANGUEPOULINETERRORRUSSOPUBLICIDADE

Page 6: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam
Page 7: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

APRESENTAÇÃO

Nãoestávamosaquiem1.918enemsabemosquemesteve.Não,espera...

sabemossim:algumascentenasdemilharesdepessoas?

Centenas... e hoje falamos do centenário do fim da Primeira Guerra

Mundial. Devemos comemorar o fim?O fim de incontáveis humanos e não

humanos?

Quantas estórias poderíamos contar sobre a história, pomposamente

intituladadePrimeiraGuerraMundial?

Centenasdeestóriaspoderiamsercontadas.Poderiam,senãofossemos

inúmerosregistros,hojeliberadosaopúblico,quecomcertamelancoliaetotal

horror,nosdemonstraoquãohorrendopodeserobichohomem.

Mas,eahomenagem?Afinal,cemanosdesteacontecimentomundialnão

podepassardesapercebido.

Realmente,comoonomedonossoprojetosugere“AArtedoTerror”,o

queemalgunspaísesestáligadoao“terrorismo”enãoàartecomoestamos

acostumados.Bem,nossoprojetodoTerrornãoiriaficardeforadesseHorror.

Ouseriaaocontrário?Contrárionada!

Quando você está em uma trincheira vendo seus amigos sendo

massacrados,nãodáparaescolherentreTerrorouHorror;Medotalvezsejaa

melhorpalavra.Sejaenfrentandoummonstromecânicoouenlouquecendoou

derretendo por causa de um gás infernal ou tendo uma puta louca como

parteiracuidandodevossasesposas.

Eisquesurge“AArtedoTerror—Volume5”.

Page 8: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Nossa homenagemneste volume não é para os soldados quemorreram

defendendoodesconhecidoouparaospaísesquesedizemvitoriososoupara

asfamíliasqueperderamseusentesqueridos.Estahomenagemétãosomente

para a maldita comemoração dos 100 anos do fim da Primeira de tantas

outrasGuerrasMundiais.

Nossosautores,tãoartisticamenteselecionados,deixamsuasvisõessobre

a história de 100 anos atrás, baseando-se em fatos para comporem seus

contos. Cada participante descreveu em suas palavras o que de fato deu

origemaosnomeseeventosaquicitados.

Queremosquevocêsapreciemoscontoscomrespeitoaosacontecimentos,

masqueentendasemprequeissoéaverdadeiraArtedoTerror.

FernandoLimaCriadoreOrganizador

Page 9: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

AMÁQUINAFANTASMA

KEVINS.GOMES

Ofimdetardeveioacompanhadodeumafontefria,edeumanévoaque

cobriu todo o horizonte. Na trincheira, soldados feridos por toda parte,

resmungosdedorentopemosouvidosdoscombatentesaindaemposiçãopara

defendê-la.Borislavsente-seagoniadoporpassartantotempodepé,cheiode

lama—inclusiveemsuasbotas.Osoldadosegurasuaarma,umabrowning

1910queganharadeseuamigoagorafalecido—olhandoparaele!

Borislav encara seuamigomorto, jazidona lamaedevoradopor ratos.

Amizadedeguerraéassim:umdiavocêsfumamumcigarrojuntos,enquanto

esperamochamadododever,nooutrodia,talvezrepitamisso.Borislavtem

medodeperderosdedosdospésporcontadadoençadatrincheira,oupéde

trincheira,ouqueosratosdevorassemseusdedos.Eleolhaumladoevêseus

colegas de trabalho com os pés fodidos, mas ironicamente outros soldados

entregaram,maiscedo,cartazesdeavisosobreessadoença.

CARTAZ

“Issoéopédetrincheira.Previna-se!Mantenhaseuspéslimposesecos”.

Sério? Não temos nem aonde cagar, como vamos limpar nossos pés?

PensaBorislav.Decide caminhar um pouco pelo corredor, tem que andar e

desviardoscorposedaratazana;ofedoréimenso,acadarespiradaécomose

osbrônquiosquisessemserarrancadosparanãosentirmaisaquilo.Borislav

ouvedoissoldadoscochichandosobreumalendaqueestácirculandoemtodas

Page 10: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

astrincheiras:otanquedeguerrafantasma!

MarkI,primeiromodelodetanquedeguerra,robusto,maisaltoqueum

homem, e seu canhão fica na lateral. A lenda conta que esse tanque foi

avistado por dezenas de patrulhas nas florestas e bosques da Áustria, os

soldados que o seguiram, ou tentaram interagir de alguma forma— para

interceptá-lo—,achando serumtanquedoexército inimigo,acabarampor

nãoretornarmaisparaabase.

—Ei,pessoal,sobreoqueestãofalando?—PerguntaBorislav.

—O general vai mandar outro grupo para a floresta hoje à noite, na

tentativa de eliminar os infantes que estão nos observando nas matas. Os

Chucrutes estão apoiados por um tanque, porém sempre que este é visto,

desaparece! — Explica o soldado com o rosto sujo de terra. Suas mãos

tremulamaofalar,apontodequasesoltarorifle.

—Comoassim?Quetiposdesoldadossãoessesqueescondemumtanque

deguerraentreasárvores?

— Eles não o fazem, o tanque é um fantasma! — seus olhos se

esbugalham — Hoje a noite mais um grupo vai caminhar para a morte.

Daquidatrincheiraninguémnuncaoviu,porqueéprecisoiratéasárvores.

—dizooutrosoldado.

Borislavpermanececonversandocomosdoisnovoscompanheiros,estes

dizemestarcommedo,apavoradoscomahipótesedeserconvocadosparairà

floresta. O soldado em questão não acreditou na palavra dos colegas, até

debochou,dissequeerasomenteumalendatalcomotodasasoutrasestórias

queossoldadoscontam,noentantoodiálogonãoaparentavaqueiriadurar

tanto,jáquedeumapassagemsurgeumaformahumanaeáspera.

Tãorápidoquantoumaratazanadevoraumcadáver,umoficialríspido

aparece mediante a neblina que consome a trincheira e o medo dos

Page 11: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

combatentes,eestediz:

—Umnovogrupodebatedoresvaiserformadoeminstantes,vistoqueo

últimogruponãoretornouatéagora,enemosoutrosqueforamemseguida.

Amissão será amesma: encontrar esconderijo dos Chucrutes, retornar sem

quesejamnotados,ecomunicarorelatadoaosoficiais.Aguardemporordens,

eminstantes.

—Queromecandidatar,senhor!—Borislavfalaemvozalta,olhapara

osseusparceirosesorrijovialmente,depoisvoltaaolharparaooficial;seus

parceiros o encaram com muito espanto, chegando a tremer a cabeça,

renuentesetrêmulos.

— É muita coragem, soldado. Eu lhe conheço, li seus relatórios, suas

ultimas missões foram bem executadas, vai ser de grande ajuda neste

empreendimento.—ooficialdáascostasevoltaparadentrodapassagemda

qualelehaviapassadoanteriormente.

Poucosminutos sepassaram,aordemhaviasidodada,emaisumavez

umgruposepreparaparairàfloresta.Anévoacedeuumpouco,algotornou

possível enxergar setenta por cento do ambiente, e o brilho da lua se fez

presente para ajudar na caminhada. Por sua bravura, Borislav foi

congratuladoserosolhoseouvidosdosargentoMilosevic,este fazpartedo

atualgrupodebatedores.

—Todosatentos!Estamosentrandonoterritórioinimigo.Mantenhamos

pésleveseandemagachados.—ordenaoSargento.

Ao se embrenharnamata, o grupo foi ficando cadavezmais inseguro.

Deveriamelesestarpreparadosparaqualquersituação,vistoquesãosoldados

emumagrandeguerra?Nãosabemos,entretanto,continuamacaminhar.Um

forteodoradentrounasnarinasdossoldados,causando,noinicio,umpouco

detontura,logoapóstodosjáestavammaiscorajosos.Asplantasarbustivas,

Page 12: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

pontualmente, são remexidas como se houvesse alguém passando por entre

suasfolhas.

—Inimigosavistados.—avisaMilosevic.

—Aquehoras,senhor?—alguémpergunta.

—Todas.

Umtiropassaraspandoobraçodeumdoshomens; todos seafastame

procuramesconderijoemmeioaomatagal.

—Alguémferido?—perguntaMilosevic.

—Não, senhor.—respondeo soldado.Umarajadadetiros foiouvida,

eraBorislav.

—Opeguei.—disse soldado—Jáestavatodoacabado, só termineio

queoutrohaviainiciado.

—Queoutro?—questionaosargento,curioso,pensouquepoderiamter

sidoossoldadosdogrupoanterior.

—Nãosei,senhor.

O grupo prossegue com a caminhada, ao passo que se embrenham na

mata, mais densa ela parece ficar. Tomados por uma coragem anormal,

principalmente, o soldado Borislav, que largara o rifle para ficar com sua

browning1910namão.

—Estãoouvindo?—indagouumsoldado.

Osommecânicoveiodealémdasarbóreas,eseaproximandomaisacada

segundo. Rosnando feito um cão furioso— um cão engrenado! A silhueta

passaaficarmaisvisívelàmedidaqueosomseaproxima.

— Meu Deus! — disse outro. Imediatamente, puxou o crucifixo que

carregaraconsigodedentrodafarda.

Page 13: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Derrubandoárvores,eisqueogrotescoeimponenteaparece,comouma

máquina vista poucas vezes pelo homem, antes. OMark I destrói todos os

obstáculospelafrente,nadapodeimpedir,enadapodePará-lo!

Todosossoldadosabremfogo,masé inútilcontraumblindado,écomo

dar socos em um elefante. Rápido demais para o seu tamanho e aparente

peso,otanquedeguerraavançasobreoshomens,eemmovimento,dispara

um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos

continuamdisparandobalacontraamáquina.

—É o fantasma!É o demônio comomáquina!—disse um soldado, e

depoisfoimortoesmagadopornãoconseguirsemoverdetantomedo.

Como se não bastasse à imponência do Mark I, ele mostrou-se mais

poderoso ainda: abrisse na parte da frente, mostrando todas as suas

engrenagens, uma bocarra, a porta para a morte tortuosa. Aquilo sem

dúvidaseraincompreensívelparaaqueleshomensquerestaramvivos,poisa

tecnologiaqueconheciamnãochegaraatalpatamar.

—Quaissãoasordens,sargento?—Borislavpergunta,seusanguefica

maisquentequealarvadovulcãomaisquente.

— Temos uma missão e vamos cumpri-la, soldado. Ou morreremos

tentando. — responde com entusiasmo. Borislav ficara entusiasmado

também,prontoparalutar,independentedoresultado.

Os últimos dois homens, soldados, correm atirando na direção do

monstrodemetal,suasvidasdependemdisso,enada—nada!—podepará-

los.

FIM

Page 14: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam
Page 15: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

AREDENTORADENAGIRÉV

NATÁLIALOPES

—Asenhoraprecisatomaressasopinha,lhefarábem.Estáquentinhae

essacriançaquecarregaemseuventreprecisaficarforte.Vamos,sim…tome

todinha. Isso, sómaisumpouco,muitobem.Agoradescanse, logoasdores

passarão,jajánãosentirásmaisnada.

***

— O que aconteceu com minha esposa? Porque ela não se move? A

senhoraviualgumacoisa?Ela…elaestá…?

—Morta! Sintomuito…Noemí estava comdores, eu a alimentei e ela

resolveu dormir um pouco para descansar. Quando retornei, a encontrei

inconsciente.

Omaridomuito chorou,deitou-se sobreabarrigada esposa edesfez-se

em lágrimas pensando na filha que não pôde salvar. Carl deDume havia

conseguido liberação da equipe defensiva da guerra que se dava no império

Austro-Húngaro,paravisitarsuaesposagrávidaqueestavapróximaadara

luz aumamenininhaque seria aprincesada família.Lutavaparaproteger

suaesposa,aoscidadãosdaHungriaeasi,paraaofinaldaguerraretornar

sãoe salvoparacasaemNagiréveproporcionarumambientedepaza sua

tãoesperadafilha.Aochegar,deparou-secomNoemíjásemvida.

Sua liberação só lhe dava direito a três horas com sua família e em

seguidadeveriaretornaraequipe.Entãotevededeixarostrâmitesdoenterro

desuaesposanasmãosdeMargarétaDorina,aparteiraqueestavacuidando

Page 16: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

delanessesdiaspré-parto.Estafoiindicadapeloprefeitodacidade,tambémseuprimo.HádiasqueNoemínãosentia-sebem,suagravidezeraderiscoe

comoCarlfoiconvocadoaintegrarossoldadosnaguerra,aceitouaindicação

feitapeloprefeitoeamigodafamíliaquerelatoutodasasqualidadesdesua

parente já experiente em cuidar de gestantes e em realizar partos. Estava

desolado, não podia acreditar que dentre tantas mortes dolorosas que

acompanhou, teria de aceitar perder também sua amada senhora. Mas

precisavaserforte,guardaradornobolsoevoltarparaaguerra,impedirque

maisalmas inocentesperdessemavida.Entãopartiudeixando sua falecida

esposanasmãosdagentilparteira.

Com ele já fora da casa, Dorina preparou o corpo, vestiu-o

adequadamentedebrancoeocarregouparaseuantigocarro.Dentrodovelho

cemitério havia uma vala, nela entrou com dificuldade devido ao peso da

falecida.Colocou seu corpo sobre símbolos demoníacospintadosno chãode

terra e cuidadosa e lentamente foimastigandoabarrigadeNoemí, abrindo

espaço para a retirada do feto.MargarétaDorina, devota de uma legião de

demônios,matavagestantesprestesadarema luz,paraofertaros fetosaos

espíritosdemoníacos.Dessaveznãofoidiferente,apósabrirespaçosuficiente,

agoracomabocajácheiadesanguedavítima,amarrouostornozelosdobebê

jásemvidaecomumfacãocortou-lheospésealimentou-sedeles,alternando

mordidas com orações em ritual. Quando terminou pegou o corpinho da

criança,abriuumburaconaterraeenterrou-o.Emseguidafezumpequeno

corte em seupulso edeixoupingar sobreo localdeoferta trêsgotasde seu

sangue, cobrindo-o com erva seca de maconha acendeu fogo sobre ele,

entregandoaosdemôniosmaisumacriança;jáocorpodamãelargousobrea

pilhadecorposdeixadosàsratazanas.

Essavalaficavanofinaldocemitério,debaixodeumaplantaçãoderosas

feita pelo coveiro há muitos anos. Rosas das quais a parteira muito

gentilmente ofereceu-se para cuidar. Quando tomou de conta do local, em

Page 17: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

umamadrugadacavouacompanhadade seresmalignos,umavalaprofunda

pararealizarsuasofertasaeles.

Nelaefetuoutodasassuasobrassemserdescoberta.Seuprimoeprefeito

dacidadedeNagirévsempresoubedetudoeacobertousuasações.Comsua

proteção,habitante algumchegouadesconfiardahumilde e gentil parteira

assassina.

Nessacidadehaviamuitasdonasdecasasolitáriasqueacabaramporse

envolver com os soldados do império e desprotegidas facilmente

engravidavam. Após a terrível morte de Noemí, Margaréta Dorina recebeu

mais um chamado de ajuda. Rebeka, uma das cidadãs que tiveram affairs

comoscombatentesaliados,estavaemdoresdeparto,suavizinhacorreuem

buscadeDorina,dizendo-lhequeagestantenãopossuíaquemaajuda-se e

pediu-lhepeloamordeDeusparaqueelamostrassealuzdomundoaobebê

que Rebeka esperava. Vendo mais uma oportunidade de presentear os

espíritosquearegiam,partiuparaacasadapróximavítima.

ChegandoaolocaldeutodoorespaldonecessárioaRebeka,masdisse-lhe

queasdoreseramalarmefalso,quefaziampartedoprocessodepreparodo

corpoparaumparto saudável equedeveriamaguardaromomento correto

paranãoprejudicaremobebê.Todaaconversadistraiuamãeeavizinhapor

ela considerada uma pobre ingênua, e as dores de Rebeka foram aliviando

naturalmente. Como que por um presente dos céus, Rebeka queixou-se de

fomeeDorinaagarrouaoportunidade.Disse-lhequeelaprecisavaalimentar-

sedealgoforteesaudável,entãoofereceu-separafazer-lheumasopaepediu

que a vizinha fizesse companhia a Rebeka enquanto se ausentava dos

aposentosparacozinhar.

Já na cozinha, tirou de sua pequena bolsa que sempre carregava a

tiracolo,uma folhadecacaudobradaondecolocaraumaaltadosedepóde

arsênicoparaacrescentaraoalimentocomo ingredienteespecial e letal.Sua

Page 18: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

intençãoeramatarnãosóagestante,mastambémavizinhaquerequisitouseusserviços,poiscasoficassevivapoderiadesconfiareentregá-la.

Momentosdepois voltou aoquarto comduaspequenas tigelas de sopa,

pediuqueRebekasentasseparareceberoalimentoegentilmenteofereceu-o

tambémavizinha,alegandoqueelaestavaatratardosassuntosdagrávida

desde cedo e lhe faria bem comer um pouco. Prontamente amoça aceitou!

Dorinasaiudoquartoprometendologoretornar.Quinzeminutosmaistarde

nãoouviumaisnemumbarulhovindodaparteinternadacasaefoiverificar

se seu plano havia ocorrido como esperado. Quando entrou no quarto, viu

apenas Rebeka desacordada em cima da cama, com o braço desfalecido

próximo ao chão. Já estavamorta! Mas a vizinha havia desaparecido. Por

onde ela saiu? Por mim não passou, será que…— Pensou. Mas antes de

concluirseupensamento,amulherantesconsideradaleigae ingênua,surgiu

portrásprendendoaparteirapelopescoçoecomumatesouraquepegouna

mesa de leitura deRebeka, atacouDorina. Sem dó, nem piedade, enfiou a

tesouranagargantadanãotãohumildesenhoraeenquantogiravaoobjeto

diversasvezesemsuajugular,falou:—Pensouquemematariacomofezcom

Rebeka?Aúnicacoisaquelamentofoinãoterpercebidoseuplanoatempo

desalvá-la.

Aparteiraaindaconseguiubalbuciar:

—Mascomo…?

—Meperguntoquantasmulheresgrávidasvocêdeveterassassinado,sua

velhadesgraçada.Qualoteuintuitocomestasmortes?

NessemomentoMargarétaDorinajánãotinhaforçasparasedebatere

lentamenteseucorpofoiperdendoofôlegodevida.

—Rebekapediuqueeulhedesseasopanaboca,poisestavafracadevido

asdores,entãodeixeiaminhadeladoparaalimentá-la.Nãofoiprecisonem

Page 19: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

queelaterminasseoprato,poiscomalgumascolheradasjácomeçouapassar

mal e suamorte foi silenciosa e imediata, nãopude impedir, velhamaldita.

Nãosabendooquefazer,fuilheprocurarparapedirajudaeaomeaproximar

lheouvirezandoasabe-seláquem,dizendocommuitaféqueembreveteria

duasmulheresmortaseumpresenteparaoferecer.

Quando a moça terminou de falar, Dorina em seus braços já havia

falecido.

No dia seguinte, a notícia da parteira assassina já estava em todos os

jornaisdapequenaeisoladacidadedeNagirév.Osmaridosetambémoscasos

das mulheres que foram assassinadas por Margaréta Dorina, mesmo sendo

homensfortesesoldadosdeguerra,secolocaramachorareseculparpornão

terem percebido o mal que aquela senhora aparentemente inocente, tinha

causadoasfamíliasdacidade.

E a vizinha deRebeka, alegando termatado por legítima defesa, saiu

ilesa da situação, carregando consigo o título de “Sára, a redentora de

Nagirév”.

FIM

Page 20: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

DIÁRIODEUMSOLDADO

DESCONHECIDO

AGOSTINOGONZAGA

Nãopossosentiradornosmeuspodrespés,deveriameimportar?

Aschamascercamatrincheira,maseunãosintoocalordofogo.

Depois de tanto tempo, neste oco imundo e úmido cheio de ratos, de

esquecimentoedesangue,nãoconsigopensarclaramente.

Nacidadedassombrasedoódio,elesaindadizemqueparatudoexiste

umarazão…Eudeveriaacreditarnessaspalavras?

Olhoocéunubladoepossoverasbalaseasgranadasquevoamatravés

doar,masnãoconsigoouvirnenhumbarulho.

Olhandoocéueulembrotudooquefoi…Eoquenuncafoi…

Aguerrametemtiradolongedaminhafamíliaemetemafundadonesta

trincheirahorrível.Eusouapenasumnúmeroperdidoemumpapel.

Odiavemcomatrasos,masanoitecaiapressadamenteecomela,todos

osmeusdemônios.

As sombras querem me caçar para devorar minha última luz de

esperança,quetalveznemmaisexista.

Às vezes me pergunto por que ainda continuo fugindo do abraço da

morte.

Page 21: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Meucorpoaindasangra,noentantonãohádor…

Talvez eu já estejamorto. Talvez eu sempre tenha estadomorto nesta

cidadedesombras,deguerra,desolidão…

FIM

Page 22: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

FARDADOSEDECAIDOS

ALEXANDRES.NASCIMENTO

Os alemães avançavam sobre o território inglês, ninguém era capaz de

deteraquelesensandecidospatriotas.Oanoera1.913eosoldadoThompson

sentia na pele os horrores de uma guerra. Em menos de uma semana de

conflito,jáhaviaperdidometadedesuafamíliaequatroamigosdeinfância.

Eleeraumhomemlealaoseupaísedefendiaabandeirainglesacomtodasas

suas forças. Após levar dois tiros no braço, levaram-no ao hospital de

campanha.Mesmodepoisdeterperdidomuitosangue,eleselevantaesolicita

autorizaçãoaoComandanteJosephpararetornaraocampodebatalha.

—Eu admiro sua coragem, soldado,mas nesse estadovocê seria inútil

nastrincheiras.Aindanãoestárecuperadoparaocombate.

—Senhor,maseufuitreinadoparaisso...Éomeudever...

—Éumaordem,soldado!

Thompson não teve outra escolha a não ser aguardar até ser chamado

novamente para o combate. Naquela noite, deitado em seu leito

desconfortávelnohospitalimprovisado,eleouviaostirosaolongeegemidos

de dor dos seus colegas feridos ao seu lado, por isso não conseguia dormir.

Perturbadocomaquelessonssinistrosemsuamente,eleviuumaLeeEnfeld

esquecidaporalgumcompanheirodistraído,ouferido,largadanochão,perto

dele e, sempensar duas vezes, levantou-se semque ninguémvisse, pegou a

armaesaiuemdireçãoaocampodebatalha.

—Nãovoupermitirque essesmalditosalemãesvençamaguerra,nem

Page 23: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

queeumorra!—disseparasi,orecrutacomobraçoesquerdoenfaixado.

Aoentrarnaescuraefétidatrincheira,Thompsonseposicionoueatirou

contraoinimigo.Aquelabelezadearmadeviaserdealgumoficialdepatente

maiselevada;tinhacapacidadededeztirossemrecarregareelenemprestava

atençãonasbalasquepassavamassobiando rente a sua cabeça.Destemido,

lutavabravamenteemnomedaCoroaBritânica,noentantooqueeleviuali,

mudariasuavidaparasempre.

Era um suposto soldado, armado com um revólver, mas com o rosto

desfigurado, o olho esquerdo vazado, o queixo torto e parecia rosnar,

mostrandodentespontudoseescuros.AquelavisãofezThompsonperderos

sentidos.Maistardesoubequeforaresgatadoporseuscompanheiroselevado

devoltaaohospitaldecampanha.

Quandovoltoua si,percebeuqueestavaamarradoemumacadeiraeo

ComandanteJosepholhavaparaele,visivelmentecontrariado.

—Eutedeiumaordem,soldado!

—Senhor,peçoperdão,masfoipornossanação!

—Você é inútil ferido!Não precisamos da insubordinação de soldados

teimosos!

—Senhor, euvialgodemuitoerrado!Algoquepodeestarmudandoo

rumodaguerra!

—Doquevocêestáfalando,garoto?

—Senhor,euviumdemônio!Tenhocertezadequenãosetratasomente

deumaguerraentrehumanos,masalgomuitomaior:umabatalhaespiritual!

—Vocêficoulouco,soldado!

—Acrediteemmim,Comandante.Euseioquevienãoéatoaqueos

alemãesestãoganhando.

Page 24: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Osoutrosdois soldadosque tambémestavam lá caíramna risada,mas

calaram-seapósreceberemumolharseverodoComandanteque,visivelmente

nervoso,ordenouqueosoldadoThompsonfossesubmetidoaumtratamento

dechoque.Elefoiconduzidoaumapartedofrontedeguerraquedesconhecia

elá,bemamarradonumamacadeferro,recebeuinjeçõesechoqueselétricos

pelocorpo,principalmentenacabeça.Quandoasessãopareciateracabado,

maisumavezsentiuadescargaelétricanacabeça,fazendocomquetivessea

sensação de ter o cérebro pegando fogo. Coma visão turva, ele avistou um

enormevultomovendo-separaooutroladodasalae,debilitadocomoestava,

perdeuossentidos.

Enquantoisso,algomaisassustadordoqueaguerraacontecianocampo

debatalha.Osalemãescontinuavamvivosmesmoapós seremalvejadospor

muitostirosematavamcomfacilidadeosingleses.Comosenãobastasseisso,

mordiamcomfúriaos soldadosvivos,arrancandograndespedaçosdecarne

ensanguentadaemornaebanhavam-seàvontadecomosangueinglês.

—Continuemlutando!Matemessesmonstrosdesgraçados!—gritavao

Comandante Joseph, correndo de um lado para o outro, até retirar-se da

trincheiraecorrerparaoacampamento;elenãoadmitia,masestavaconfuso

emorrendo demedo, queria estar omais longe possível daquelesmonstros

infernais.

OComandanteJosephentrourápidoemsuabarraca,eletremiaeestava

prestesachorar,quandonotououtrapresençaali.Sacousuaarmaeapontou

nadireçãoondeestavaumvultoenorme,curvadoaofundodabarraca.

—Saiadaíoueuatiro!—suaspernastremiam.

Ovultomexeu-se, indonasuadireção;eragigantescoequasebrilhava,

emanando uma fraca luminosidade amarelada em torno do seu corpo. Tão

diferentedosmonstrosqueacabaradeverno campodebatalha, aquele ser

tinhaumaaparênciaqueremetiaaodivino.

Page 25: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

—Que-quemouoqueé-évocê?

—Vimparaajudaravencerestaguerra!—soouavozforteeimpositiva

doserquaseluminoso.

—Comosabereisevocênãoéoinimigotambém?Euexijoquevocê...—

antes que o trêmulo Comandante Joseph pudesse terminar a ordem, o

misteriosohomemapertouoseupescoçoeergueu-oatéquesentisseopanoda

barracaencostar-seaoaltodesuacabeça,olhouemseusolhosefalou:

—Nãotenhotempopara isso!Presteatenção,você jamais iráderrotar

essessoldadoscomarmashumanas!—oComandantetentoufalaralgo,mas

comopescoçoapertadoporaquelamãodepedra,nãofoipossível.Aqueleser

jogou-odevoltaaochãoecontinuou—Euvimdemuitolonge,deumlugar

onde poucas almas tem acesso!O que você vê lá fora não sãomais os seus

inimigos,osalemães;aqueleshomensestãomortoshámuitotempoe foram

possuídospelosinimigosdoBem.Elesnãopassamdedemônios!

—O-oquedisse?

—Anjos decaídos, para facilitar a sua compreensão!Meus irmãos e eu

expulsamos muitos seguidores de Lúcifer e eles resolveram declarar guerra

contraahumanidade,possuindoumexércitoforte:osalemães.Entãoeufui

encarregadodeacabarcomessesdemôniosdesprezíveis!

—Vo-vocêé-éumanjo?

—ArcanjoMigueléomeunome!—suavozsoougraveeorgulhosa—O

soldadoThompsonnãoestálouco;eledisseaverdadeeagoraestouaquipara

acabarcomaguerra!—oComandantesentiaummistodemedoeesperança

— Reúna os seus melhores homens e o soldado Thompson, eu tenho um

plano!— vendo que o oficial não tomava uma iniciativa, ele irritou-se—

Andalogoseuimbecil!Eunãotenhotempoaperderaquicomvocês!

O soldado Thompson sentia-se debilitado devido ao tratamento de

Page 26: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

choque,masaoouvirocomunicadodoComandante,sentiu-semaisdesperto:

— Eu não posso desfazer os meus erros, garoto, mas posso tentar

compensarasuador!

—Dequeforma,senhor?

—Deixando você lutar novamente,mas desta vez não estará sozinho.

Acredite,soldado,vocêteráumanjodaguardaaoseulado!

—Eufareitudopelomeupaís,senhor!—oComandanteJosephsorriu,

poisalgolhediziaqueaquelejovemsoldadonãoeraqualquerpessoa,elevia

muitoalémdoqueamaioria.

Apósexplicaroqueestavaparaaconteceraossoldadosselecionadospelo

Comandante,ArcanjoMiguel,queseidentificoucomoComandantedeoutra

tropa,entregouaelesmuniçãodeprata,dizendoqueerambalasdeDeus.Já

no campodebatalha, aqueles soldadosmetiambalanos alemãespossuídos,

derrubando-os como moscas. Somente o Arcanjo Miguel e o soldado

Thompson conseguiam ver os demônios chamas evanescentes saindo dos

cadáveres,desaparecendoparasempredafacedaterra.

Aqueleserquaseluminosoegigantenemprecisoulutar,apenasobservou

delongeabravuradaquelessoldadosesentiuumafetoespecialpelosoldado

Thompson, quequasemorreunas trincheiras.Opoderoso ser aproximou-se

dojovem,colocouamãoemseuombroedisse:

—Omalaindanãoacabou,rapaz,massuamissãoaquisim!

—Oqueeufaçoagorasenhor?

—Váviverempaz,porquevocêmerece!Nãoimportaoqueacontecerá

deagoraemdiante,poisoseudestinojáestátraçadoesuaalmapertencea

Deus.

Page 27: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

FIM

Page 28: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

DRACULVADOMNIDINNOU

ALISONSILVEIRAMORAIS

NovaGorica,Eslovênia.01.01.2018

AtillaeIstváneramosmelhoresamigosdesdeainfância,oqueserefletiu

em suas escolhas quanto ao que queriam ser quando crescessem.Entraram

juntosparaaUniversidadedeNovaGoricaeconcluíramocursodeHistória.

Tinhamvinteeoitoanosdeidadeemuitaenergiaparaseaprofundaremno

assunto que mais lhes interessava: a Primeira Guerra Mundial. Estavam

partindo para o Mestrado no Programa de Estudos Histórico-Culturais

Eslovenos.

OinteresseemsaberopapeldaEslovêniaedoImpérioAustro-Húngaro

naPrimeiraGuerraMundialfezcomquesaíssemacampoparaobteremalgo

inéditoquepudessemudarorumodasdescobertashistóricas.Programaram

uma viagem curta paraKobarid, uma cidade eslovena que fora cenário do

conflito entre auniãodos exércitos austro-húngaro e alemão emoposição a

Itália.AchamadabatalhadeCaporettoteveinícionodia24outubrode1917,

durandovinteecincodias,atéterminarcomaderrotadositalianos.

Kobarid.13.01.2018

IstváneAtillaagendaramentrevistascomalgunsdoshabitantesdaquela

cidade.Começaram coma esposa de um ex-combatente e conseguiram com

ela uma foto original, de cento e três anos atrás. Depois seguiram para os

netos, bisnetos, amigos, conhecidos e, por fim, um bom papo com alguns

historiadoreseprofessoresdeKobarid.

Page 29: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Após dez dias, trinta e seis pessoas foram entrevistadas, conseguiram

muitos documentos, anotações originais, poesias, poemas, fotos legítimas e

gravações.Tinhamuitomaterialaseranalisadoeestavamempolgados.Para

concluir,queriamiraoMonteGrappaevercomosprópriosolhosondetudo

aconteceu.

MonteGrappa.24.01.2018

Foi uma longa trilha, a vegetação seca e quebradiça dificultava a

observaçãodolocal,masencontraramumaparedeemruínasaalgunsmetros

longedeles,ondehaviaalgunsresquíciosremanescentesdaGuerra,equeriam

uma foto do lugar. Porém, havia uma ravina, como que uma rachadura no

chãoquecortavaocampo,impedindooacessoaolocal.

Elesseajudaramparaconseguiremultrapassaroobstáculo,masquando

chegaram ao fundo, Atilla torceu o tornozelo e caiu. István ajudou-o a se

levantar e tentando se firmardamelhor forma,apoiou-se emumtijoloque

pareciaoco.Ficaramintrigadoscomaquiloeaobaterdeleve,elesequebrou,

revelando um pequeno caderno bastante deteriorado pela ação do tempo.

Haviapoucaspáginasenacapaestavaescrito:“P.BORIS”.

Voltaram para a cidade animados com a descoberta. Poucas eram as

palavras naquele caderno, mas tinham esperança de que enorme seria o

impactodelasemsuasvidas.

NovaGorica.27.01.2018

Atillamelhorou bemda torção no tornozelo e foi à casa de seu amigo,

encontrando-oatônito,pálidoedeolhosarregalados.Subiramaescadaatéo

quarto de István, no andar superior, e o amigo mostrou-lhe o que havia

conseguidotraduzirdodiárioatéaquelemomento;seisdiasdefragmentosde

anotaçõesquepareciamserdeumcombatentedaBatalhadeCaporetto.

Elesentou-seecomeçoualer:

Page 30: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Karfreid,11.11.1917

“(trechoilegível)...nãoimagineiencontrarumirmãonomeiodoinferno.

HoffmanéumalemãoqueviveunaRomênia;quelugarlindo!Éumbom

homem,latoeiroaposentado,donodeterras,foiabandonadoporsuaesposae

parece um homem reto na fé e muito simpático. Estamos lado a lado nas

trincheirashátrêsdias...

Hoje, Zimmerman morreu com um tiro no pescoço... somos o Grupo

Boroević,eSvetozardizqueasgranadaschegamembreve.

Sintofaltadasminhasmeninas,PaneCătălina.”

P.BORIS1917

Karfreid.19.11.1917

“Keller, Baltazar, Brückner, Klein, Aurich, Zergenthal, e Loiu estão

mortos, pisamos sobre seus corpos o dia inteiro nas trincheiras (trecho

ilegível) agora deve ser madrugada. Estou ainda ao lado deHoffman, esse

infernooestátransformando,nãooreconheçomais(trechoilegível)achoque

estálouco,medisseestesdiasqueconheciamagianegra,estáperturbado!

Cadadiaquepassaficamaisdifícilacompanhá-lo.

Estou com pústulas horríveis emminhas costas que sangram todos os

dias,meucabeloestácaindo,queburacoinfernaléesse,meuDeus?

Otimista seria dizer quemorrerei hoje enquantodurmo, logodepois de

fecharestediárioemeusolhos.”

P.BORIS1917

Karfreid.21.11.1917

“Hanenmann tomou um tiro no abdômen ontem, hoje ele morreu em

meusbraços.Estavatãomagroquepareciafeitodealgodão(trechoilegível)

Page 31: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

acho que estou perdendo minha cabeça e tendo alucinações! Estou tãocansado, meu Deus! Preciso escrever o que eu vi, porque talvez assim eu

percebaoquãofantasiosoéepossarestituiropoucodoquesobroudaminha

sanidade.

Em uma das linhas de ataque, Hoffman ficou para trás. E eu o vi

arregaçandoasmangasdouniforme,pegandoafacaecortandoseubraçoaté

opunho,vimuito sangue escorrendo.Então ele enterrou obraçonobarro,

seus olhos viraram e uma fumaça negra começou a sair de sua boca. Foi

quandovimosumaenorme explosãodooutro lado emaisdedez corposde

nossosinimigosforamarremessadosnoarempedaços(trechoilegível).

Eupareidefalarcomele.”

P.BORIS1917

Karfreid.27.11.1917

“O nosso Comandante nos trouxe granadas de gás tóxico e lançadores

paraelas.

Vejohá temposqueHoffmannão come, nemdorme, não reclama, não

parecesentirfrio,nãoseincomodacomnadaemantémacalma.

Quetipodemonstroéele?OpróprioDiabo?”

P.BORIS1917

Karfreid.1917

“DRACULVADOMNIDINNOU”,foioqueHoffmandiziaenquanto

atiravabombasdegásnosnossosinimigos.Umtiroacertouasuacabeçaeele

perdeu a máscara de gás, mas continuou atirando como se nada tivesse

acontecido! Seus olhos injetados de ódio e seus dentes trincados (trecho

ilegível).

O que ele dizia enquanto atirava é: “O INFERNO REINARÁ

Page 32: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

NOVAMENTE”emromeno.”

Karfreid

“Ositalianosestãorecuando.

Svetozarpartiunovamenteontem,masvoltouhoje.Elenãodeveriater

voltado,Deusmeperdoe,maspreferiaquetodostivessemmorridoantes,para

não vermos o que vimos (trecho ilegível) quando ele chegou, ordenou que

encontrassemHoffman omais rápido possível. Chamou-o de “Béla” e disse

queeleestavasendopresopeloassassinatodevinteesetepessoas.

O comandante ordenou que Küpper e eu imobilizássemos ele e

colocássemosalgemas,masfoitudorápidodemais,eoInfernoabriu-sediante

denós...

Quando olhamos para Hoffman, seus olhos eram de um vermelho

brilhante, veias grossas pulsavam em todo seu rosto e braços e com um só

movimento,quebrouopescoçodeKüpper.Saícorrendoesentiminhasroupas

emchamas,estousentadoatrásdessaparededetijolos,comacertezadeque

vou morrer (trecho ilegível) minha pele arde e o corpo dói muito (trecho

ilegível)amomuitovocês,Cătălina,Pan,meuspais,colegasdetrincheiraquemorreram aqui e amigos da minha vida, é uma pena terminar isso tudo

assim.”

P.BORIS

NovaGorica.27.01.2018

Atilla devolveu a tradução para István. Ele também estava atônito.

KarfreideracomoosalemãeschamavamKobarideBelaKiss,umassassino

húngaro que ficou conhecido como o “vampiro húngaro”. Além de matar

vinteesetemulheresestranguladas,eleguardavaseuscorposembarriscom

álcool.Nuncafoipego,fugiujustamenteduranteaPrimeiraGuerraeapósser

descoberto,abandonouocampodebatalhaedesapareceu.Eraperturbador.

Page 33: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Osdoisamigoshistoriadoresdiscutiramoquefariamcomadescobertae

decidiramdoarodiárioparaomuseudeKobariderevelartodaahistóriano

diaseguinte.

28.01.2018

—Alô,Atilla?AquiéMona,mãedoIstván.

—Oi,Mona,háquantotempo.Oquehouve?

—Atilla, estou ligando porque aconteceu algo terrível! István está no

Hospital!

—Hospital!Oquehouve?

Comavozfraca,eladisse:

—Ele está emestadograve.Sofreuqueimadurasde segundoe terceiro

graupelocorpo.Houveumincêndioduranteamadrugadaeseuquartopegou

fogo...e...

—Pegoufogo?

— Todo o quarto veio a baixo, queimou tudo: seus livros, seu

computador,suasroupas...Atilla,euestoudesesperada!

—Mona,eusintomuito!EstouindoparaoHospitalagoramesmo.

—Eleestavanuesejogoupelajaneladoquarto.Elefraturouacoluna,

Atilla!Nãoentendoporqueelenãosaiupelaportaquenãoestavatrancada.

Osparamédicosdisseramqueelegritavaemdesesperoeseguravacomforça

umpedaçodepapel.

—Papel?Vocêviusehaviaalgoescrito?

— Sim, era... espera um pouco, deixe eu me lembrar... Acho que era:

“Draculvadomnidinnou”.

Page 34: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

FIM

Page 35: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

SEMRETORNO

ANAROSENROT

FragmentodoDiárioPessoaldoSoldadoPierreChevalier

Oqueescrevonestecadernoamarelado,meudiário improvisado,nunca

tivecoragemdecontaraninguém.

Fui soldado na Grande Guerra… A guerra para acabar com todas as

guerras.Issoeraincessantementerepetidoemtodososlugaresnaquelaépoca

enós,tolosestudantes,acreditávamosqueeraanossamissãolutarevencer

aquelaguerradefinitiva,quetrariaapaz“eterna”paraomundo.

Saí de Louhans, na Borgonha, onde nasci, aos 17 anos, direto para a

frente de batalha, carregando umamochila com roupas e livros que nunca

folheei... Nossa partida foi festejada com fogos e muita alegria por nossos

familiareseamigos...Seelessoubessemquedos153soldadosqueembarcaram

notremnaquelediadeverãoem1914,somente23voltariamvivosnofinalda

guerra,tenhocertezadequenãoteriamperdidotempocomemorando.

Avidanastrincheiraserabemdiferentedashistóriasromânticasqueos

jornaispublicavamparaacalmarasfamíliasegarantiroalistamentodenovos

recrutas, tudo era penoso, confuso, desorganizado emortal. Nas cidades, a

populaçãoenfrentavacaladaaescassezdealimentoseremédios,acreditando

quesesacrificavamparagarantiroabastecimentodastropas,poisossoldados

quelutavampelanaçãoprecisavamestarbemalimentadosesaudáveis.

Coitados,sesoubessemoqueenfrentávamos...Presosnastrincheirasna

Page 36: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

companhiadosratosedosmortosapodrecendo...Passávamosfomeesede,era

muito difícil conseguir que nos trouxessem alimento sob o fogo cerrado do

inimigo...Ficávamosfelizesquandoconseguiamnosjogarumpãomofadoou

umalinguiçamordiscadaporratosesujadeterra.Seriaimpossívelreconhecer

naqueles jovens cobertos de lama, magros e com diarreia, os estudantes

educadosesonhadoresquehavíamossido...

Sobrevivi,nãoseicomo,porquaseumanovendomeusamigosmorrerem

de ferimentos e doenças, avançando e recuando com nossas baionetas, de

cidadeemcidade,detrincheiraemtrincheira.Emmeioàmórbidamonotonia

edesnutridos,nâopensávamoscomclareza,afomeeamortejáfaziamparte

danossarotinadiáriaepareciaquenadapoderiamudaraquelecenário...Até

aquelediainesquecível:22deabrilde1915...

Meu batalhão estava entrincheirado na planície de Ypres, na fronteira

entre a Bélgica e a França. Eram quase cinco horas da tarde quando

percebemos uma estranhamovimentação na frente de batalha alemã: uma

tropaespecialtomavaadianteira,umpequenobatalhãocomnomáximouns

40homens,trajandouniformemilitareestranhasmáscaras.Notamosqueeles

não portavam nenhuma arma e estavam lá parados, apenas observando,

enquanto outros soldados arrastavam dezenas de enormes cilindros,

colocando-osemfileiras.

Comonãorecebemosnenhumaordemparaatacar,simplesmenteficamos

ali,semsequerimaginarohorrorqueestávamosprestesatestemunhar.

Derepente,oventocomeçouamudardedireção,soprandoparaonosso

lado,e foientãoqueo infernocomeçou:osalemãesabriramasválvulasdos

cilindroseumanuvemamareladavoouparaasnossastrincheiras...Conforme

afumaçaamareladanosenvolvia,opânicoeohorrorseinstalaram...Alguns

correram, apavorados e tombaram atingidos pela artilharia inimiga, outros

ficaramparados,semsaberoquefazer,enquantoogásvenenoso(GásCloro)

Page 37: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

osqueimavapordentroeporfora,matando-osdaformamaiscruel.

Na confusão, eu me arrastava desorientado e via meus companheiros

gritando que estavam cegos e alguns apertavam a garganta com as mãos,

enquantosufocavamatéamorte...Elessangravampelonariz,bocaeolhos...

Sem saber o que fazer, continueime arrastando...Minha cabeça doía tanto

que parecia que ia explodir, eu mal conseguia enxergar e meus pulmões

ardiam... Mas continuei seguindo, escorregando nos ratos que também

tentavam fugir. Fui agarrado várias vezes por meus companheiros em

desespero,quaseafundadosnalama,etivequemedesvencilharcomchutes,

eu só queria sair daquele inferno... Até que finalmente cheguei à borda da

trincheiraecommuitoesforço, lanceimeucorpopara fora...Aúltimacoisa

daqualmelembroantesdeperderossentidosédepediraDeusqueumtiro

meacertasseepusessefimàquelaagonia!

Três dias depois, acordei no hospital da Cruz Vermelha em Trois

Quartiers, na França;meus olhos estavam cobertos com ataduras e eu não

conseguiamemexer...Sópodiaouvirtosses,gritosegemidos.Temendoestar

cegooumutilado, gritei omais altoquepude, apesardadornagarganta e

pouco depois, pude ouvir a voz suave de uma enfermeirame dizendo para

ficarcalmoeexplicandoqueeuestavabem,apesardosváriosferimentospelo

corpo, que meus olhos haviam sido preservados e que minha cegueira era

temporária...

“Vocêsesalvoupormilagre!”,disseela,afagandomeuscabelos.

Os meses que passei no hospital foram muito difíceis; haviam tantos

feridos e moribundos... Os coitados gritavam por suas mães a noite toda,

enquanto vomitavam os pulmões e morriam afogados no próprio sangue.

Garotosdaminhaidadeouatémaisjovens,andavamemfilas,demãosdadas,

conduzidoscomocrianças,vítimasdacegueira,osolhosvidradosebrancos,

eternamente condenados a escuridão. Atrás do prédio do hospital, os

Page 38: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

cadáveresseacumulavam...Euqueriadesesperadamentesairdaquelelugardetristezaemorte,masaideiadevoltaraofrontmeaterrorizava...Admitoque

penseiemmematarquandorecebiadocumentaçãodealtaeasordenspara

me juntarnovamenteaobatalhão,masparapreservara“honra”daminha

família,crieicoragememeapresentei.

Luteiemincontáveisbatalhas,ataques,ofensivasecontraofensivas,eos

gritosde“Gás!Gás!Gás!”,setornaramnossobordão.Apesardasmáscarase

dosnovosmedicamentoscriadosparatornaraquelesataquesmenosofensivos

paranós,milharesdosdoisladosmorreramporseusefeitosnocivos.

Atéhoje,décadasdepois,aindaouçoaquelesgritosemmeuspesadelos...

Testemunheicoisas terríveisatéo finaldaguerra; fui feridováriasvezes,vi

tantas pessoas morrerem e também tive que matar sem piedade para

continuarvivo,masachoquenadapode sercomparadoaosacontecimentos

daquelediatrágicodeabril...Fuisaber,anosmaistarde,quecercadecinco

mil soldados morreram na batalha de Ypres, alvejados por balas ou

envenenadospeloGásCloroeoutrostrêsmilficaramferidos,amaioriacom

sequelas permanentes, dando início a uma guerra química que devastaria a

Europaaté1918.

Sempre me disseram que tive sorte por ser um dos únicos garotos da

cidadearetornar“ileso”daguerra...Fuirecebidocomfesta,erachamadode

herói,ganheitapinhasnascostasemuitacervejadegraça;sóquealgodentro

de mim se perdeu... a inocência, a fé na humanidade, sei lá... Percebi, no

momento em que tirei para sempre o uniforme de soldado, que não existia

mais nada em minha alma e que o garoto jovem e sonhador que partiu

naquele trem, estava morto. O homem que o substituiu nunca soube que

rumotomar...

Éimpossívelvoltaravivernormalmentedepoisdetudooquevie

passei...Oinfernonãodevolveseuscondenados...Pensandobem,achoque

Page 39: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

nemdeveriaterescritoissoporqueprovavelmenteocadernoserájogadonolixoquandoeumorreremeudesabafonãoserálidoporninguém...

Aguerraéumcaminhosemretorno...Eeusempreestareilá...

FIM

Page 40: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

OABRIGO

ANTONIOSTEGUESBATISTA

França-1916

Movidos por um entusiasmo exagerado, aliado a um patriotismo

excessivo,cavamosastrincheirasnoscamposdeVerdun.Sequerimaginamos

morrer ainda jovens. Quando nos alistamos, não nos preocupamos com a

morte e sim, em servir à pátria, cumprir com o nosso dever.Nossamissão:

impedirqueosalemãeschegassemàcidade.

Astrincheirasforamcavadasemziguezague,comumacozinhanaparte

maislargaeburacosnumaencosta,ondepodíamosdormir,sematrapalhara

passagem.

Nosprimeirosdiasnadaaconteceu.Ficamosvigiandoobosqueporonde

viriao inimigo.Jean-Paul,umcolega,amigo,estendidoaomeu lado,como

rifle pousado sobre o saco de areia, contava como foi a sua infância numa

fazenda em Saint-Dizier, quando foi interrompido pelos bombardeios que

começaram. As explosões eram como trovões na distância, anunciando a

aberturadosportõesdoinferno.

Aquilo durou horas. As bombas caiam cada vez mais perto. Ficamos

embaixo,no fundodo fosso rezandoparaquenão fossemos atingidos.Uma

granada explodiu bem perto e em seguida, algo caiu ao nosso lado. Era o

corpo de um soldado, o que restava dele, apenas o tronco chamuscado.

Cortadopelomeio, o sangue esguichavadas artérias, enquanto ele tremia e

Page 41: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

olhava para os lados, como que procurando as pernas. Depois, tombou acabeçaparatrásefinalmentemorreu.Jean-Paulficouhorrorizado,começoua

gritardeolhosesbugalhados.Pareciaterenlouquecido.Ergueu-seecomeçou

asubirobarranco.Tivequesegurá-lopelospés.Ocozinheirosurgiucomuma

panela na mão e deu-lhe uma pancada na cabeça. O rapaz desmaiou. O

homemolhou-ocomdesprezoeseafastou.

Quandoasexplosõesfinalmentecessaram,osargentosurgiugritando:

—Subamesepreparem!Elesvãoviragora.Nãodesperdicembalas.

Pegueimeurifleemedebruceiatrásdossacosdeareia.Comoosoutros,

fiquei olhando para frente com o dedo no gatilho, tentando ver o inimigo.

Estava tudo calmo. O sol brilhava sobre a planície esburacada. O bosque

haviasumido,sórestavamalgunstroncosqueimados.Depoisdasbombas,o

silênciopareciamachucarosouvidos.Nadaaconteceuorestodatarde.

***

Pelamanhã,encontreiJean-Paulsentadonochão,alheioatudo.Estava

catatônico.Subiparaomeuposto.Malmedebrucei,sentialgopassarrente

aomeuouvido.Acheiqueeraozumbidodealguminsetoesódepoispercebi

que foiumabala.Osomdodisparosooudistante.Emseguidatodomundo

começoua atirar.Alguém subiuobarranco eposicionouumametralhadora

Lewis-Enfieldaomeulado.Ohomemsorriuparamime logoviqueeraum

veterano.Estendeuamãoeseapresentou.

—PierreArnaud.

Aperteiamãodele,respondendo:

—MichelVernon.

—Vamosmeterbalasneles,garoto!—gritoueleecomeçouametralhar

asposiçõesinimigas.Duranteanoite,osalemãeshaviamavançadoecavado

Page 42: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

trincheiras a uns seiscentosmetros de onde estávamos.Meus companheiros

lançavamgritosde incentivo.Muitos forammortos,mas tambémabatemos

grandenúmerodealemãesnaqueledia.Duranteanoite,unsficavamdevigia,

enquantooutrosdormiam.Naescuridão,poucoseenxergavadastrincheiras

doinimigo.

***

Mal o dia nascia, começava o tiroteio.O cheiro dos cadáveres, jogados

próximos, empestavam o ar. Não dava para enterra-los, pois se alguém se

aventurasseasairdatrincheira,poderiaserabatido.Mesmoànoite,qualquer

movimentoeramotivodetiroteio.Ninguémqueriasersurpreendidoporum

ataquecorpoacorpo.

Pierregritavamuito,xingandoosalemães.Nãoseiseeleeracorajoso,ou

simplesmente um tolo estouvado, despreocupado com a própria vida. Certa

horaergueuopunho,gritando:

—Nãotemosmedodevocês,seusfilhosdeumavaca!

Maleleacaboudefalar,umabalaatravessouseucrânio,bemnomeiodos

olhos. Pierre tombou escorregando para o fundo do fosso. Fiquei chocado,

olhandoocorpodele,caídodemaujeitoláembaixo.

— Tome o lugar dele, soldado! Não desperdice balas! — gritou o

sargento.

Troqueioriflepelametralhadoraecontinueiaatirar.

O sargentomantinha os soldados em seus postos, andando de um lado

para outro, incentivando, dando ordens. De vez em quando ele subia o

barranco e numa dessas subidas, foi alvejado por um sniper. Ferido, ele foi

atendidopelomédico.

***

Page 43: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Odiaamanheceunubladoeumachuvatorrencialcomeçouacair.Como

mautempo,o inimigodeuumatrégua.Vidoissoldadosjogandoocorpodo

sargento para fora da trincheira. Ele não tinha resistido aos ferimentos. A

chuva continuou a cair e só parou na manhã seguinte. A trincheira se

transformounumlodaçal.

Osdiaspassarameosmantimentosacabaram.Começamosacaçarratos

paramatarafome.Ocozinheiroosassavanofogão.

Euestavaroendooossodapernadeumrato,quandoalguémgritoudo

altodatrincheira:

—Gás!Osalemãessoltaramgásvenenoso!

O aviso veio tarde demais. Alguns soldados ainda dormiam. Muitos

procuraram fugir,mas a nuvem parda avançou rapidamente. Fiz o queme

haviamrecomendadonostreinamentoscasoficassesemmáscara,passeilama

pelos braços e pescoço, molhei um pano, coloquei no rosto e me enfiei no

buracodedormir.Alifiquei,àesperadequeovenenosedissipasse,respirando

o mínimo possível. Metido no buraco entre a lama, eu ouvia os gritos de

desesperodoscolegas.ViJean-Paulcorrendodesorientado.Elecaiusentado

bemnaminhafrente.Começouaesfregarasmãossujasdelamanorostoea

pelesedesprendeu,sanguesaiupelosolhos,ouvidoseboca.Tentouergueu-se,

cambaleou,pareciaquesorria,maslogopercebiqueeramos lábiosdeleque

haviamsedesprendido.Fiqueihorrorizadocomacenaemeencolhimaisno

fundodoabrigo.

Osalemãesnãotiverammuitasortecomaquelaação;oventomudoude

repente e empurrou o gás para o lado deles. Lá também houve gritos de

agoniaemorte.

Não sei quantas horas fiquei naquele buraco. Perdi a noção de tempo.

Escureceu, os lamentos foram diminuindo e lá pela madrugada imperou o

Page 44: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

silêncio. Achei que não havia mais perigo e tirei o pano do rosto. Fora do

buracohaviaumaclaridadeleitosa,queimagineiseraluzdalua.Emborao

silênciosugerissetranquilidadeesegurança,nãotivecoragemdesairdomeu

abrigo.

Somentepelamanhã,afomeeasedemeobrigaramasair.Percebiqueo

gásmortalhaviasedissipadoeemseulugarumnevoeiroúmidocobriatudo.

Não encontrei comida, apenas água turva num tonel. Saciei a sede e segui

andando pela trincheira. Só encontrei soldadosmortos, alguns desfigurados

pelo gás. O restante havia abandonado o lugar. Subi o barranco e olhei ao

redor.Nãoconseguivermuitacoisaporcausadacerração.

Comecei a caminhar com a intenção de me reunir aos colegas na

retaguarda. Percebi que estava caminhando no meio de cadáveres. Parei

desorientado diante de um cavalo morto e inchado no momento em que

descobriqueosmortoseramalemães.Eutinhaseguidonadireçãoerrada!

De repente surgiram vultos no meio do nevoeiro. Imaginei que era o

inimigo.Fiquei empânico, olhei ao redor a procura de umburacoparame

esconder.Aoladodocadáverdeumalemão,estavaoseuriflecombaioneta.

Pegueialâminaeabriabarrigadocavalomorto.Astripasrolaramparafora,

misturadas ao sanguepodre.Nãome importei como fedor.Tirei tudopara

fora emeescondinas entranhasdo cavalo.Minhavistanublou.Do ladode

forasoaramvozes.Pareciaqueeuestavavendomonstrosatravésdeumvéu

vermelho. Alguma coisa me agarrou e puxou para fora. Gritei de pavor,

caindonumabismonegro.

Acordeinumhospitaldecampanha.Foramcolegasderegimentoqueme

resgataramelevaramparalá.Fiqueisurpresoaomeveramarradoàcama.

—Porqueestouamarrado?

Omédicomeolhou,preocupado.

Page 45: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

—Não se lembra? Você matou uma enfermeira, abriu a barriga dela,

tirouosórgãosparaforaemeteuacabeça ládentro.Oquepretendiafazer,

soldado?

FIM

Page 46: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

ARCANJO

HENRIQUEDEMICCO

Estávamosemsetembrodoanodemilnovecentosequatorze.Nãoposso

me lembrardodia,mesmosequisesse.Tinhamsepassadoquasedoismeses

desdeoiníciodaGrandeGuerra,eastropasalemãscolocavamempráticaum

planode rápida invasãoànossaamadaFrança, tendocomoobjetivoatacar

Pariscomtodasasforças.

Costumamdizerporaíqueelesnãoobtiveramêxitodevidoaresistência

Belga, que estava no caminho deles antes que pudessem nos alcançar... ou

aindaqueforamosInglesesquenosajudaram.

O fato é que a força alemã eramuitomaior do que isso. Esses fatores

nunca fariamumatropadaqueletamanho,comotodoaquelepoderbélicoe

químico,bateremretirada.Eramobstinados,osdesgraçados,enãolargavam

o osso nem a pau. O que aconteceu naquele dia não ficou registrado, e os

poucos sobreviventes que tentaram levar o ocorrido à público, acabaram

trancafiadosemmanicômios.

Eles botaram a arma secreta em campo quando a batalha alcançou os

entornosdorioMarne.Oenxamedehomenstomadosporfúriaquaseabafava

o som dos disparos dos rifles; alguns soldados ingleses, portando baionetas,

corriam na direção dos inimigos sem qualquer munição, na tentativa de

apunhalar emandar alguém pro inferno antes damorte certa.Morteiros e

granadas explodiam homens e incendiavam árvores. Era comum

escorregarmos, acreditando ter pisado em lama, e seguir caminho com

entranhasgrudadasnas solasdasbotas.Era comumconversarmos comum

Page 47: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

amigo sobrenossas famíliasdeixadas emcasa, ehorasdepois encontrar sua

cabeça separada do corpo, chutada pra lá e pra cá por combatentes

apressados.

Primeiroveioachuva.

Não a chuva que cai do céu. Aviões alemães passaram sobre nós

derramandoumlíquidotransparenteedeumcheirofortequeeununcatinha

sentido na vida. Nessemomento,meu berthier carregado pulava nasmãos

trêmulaseeupodiaouvirmeucoraçãobater.Aprimeiracoisaquepassoupela

cabeça de todo mundo, foi a possibilidade de aquilo ser inflamável, e de a

próximamovimentaçãoinimigaseroenviodosincendiários.Foioquepassou

pelaminhatambéme,Deus,comoeuqueriaestarcerto.

Saídodamatadensa,umhomemdequasetrêsmetrosegrossascorrentes

prendendo os braços ao tronco cambaleava arrastado por uma dúzia de

soldadosalemães.Todososcombatentesinimigospuxaramcantisdoscintose

osesvaziaramgoelaabaixo.

—Soltemoarcanjo!

Opoucoqueeuentendiadalínguadelesmepermitiuentenderoberrode

um dos homens. Eles soltaram as correntes, e a criatura pareceu farejá-los

antesdesevoltarcontranós.

Seu corpo era humanoide, com fibras musculares à mostra e braços

longos; os olhos haviam sido arrancados e costurados, e uma engenhoca de

cobrepresaànucalevavatubosconectadosportodaacabeça.Foitudooque

eupudeveratéomomentodoataque.Umsaltoeacoisaestavanomeioda

nossadefesa,golpeandoematandosoldadosemumaúnicabraçada.Ostiros

sequer atordoavamomonstro; as balas pareciam ser engolidas por sua pele

cinzenta,easgranadasnadamaiscausavamdoquedesconforto.

Jean,umaliadoeamigo,mepuxavapelobraçoimplorandoparaqueeu

Page 48: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

batesse em retirada com ele. O terror estampado em seus olhos é uma dascoisasdasquaiseununcameesquecerei.

“Vamos,Darlan,vamosembora!Osmalditosinvocaramosatã!”

Maseunãopudememover.Orifledespencoudamão,aspernasfalharam

eeucaídejoelhos.Jeandeveterfugido,oumorrido,nãoconsigomelembrar;

maseufiqueiali,bemali,sóassistindoaquelacenaterrívelamagnífica.Pude

observarquedascostasdacriatura,oquepareciamserdoispedaçosdeossos

lascadosecarbonizadosemergiam.

“Soltemoarcanjo!”

Gritaramosfilhosdaputa,eseráqueninguémmaisouviu?

A princípio, acreditei ser um mero apelido de combate para aquilo...

acrediteiserumsupersoldadomodificadobiologicamente,ouqualqueroutra

coisanessesentido.Qualqueroutracoisapossível,aindaqueimprovável.Eo

monstro continuavadesmembrandohomens comasmãosnuas, imparável e

indestrutível. O cerco alemão começou a se formar e, àquela altura, não

restavaoutracoisaanãoseraceitaraderrota.

E,quemsabe,mataraminhasedeantesdemorrer.

Peguei o cantil de um alemãomorto e bebi de seu conteúdo com uma

satisfaçãoexagerada;aáguatinhaumgostoestranho,deremédio,maseunão

me importei muito com aquilo. O monstro vinha na minha direção. Como

poderiamepreocuparcomqualqueroutracoisa?

Fecheiosolhose,semmedarconta,memijeidemedo.Atemperaturada

urina escorrendo entre as pernas me confortou, de certa forma. Os passos

daquelacoisa,quedeveriapesarumascentenasdequilos,retumbavamcada

vezmaispróximos.TudooqueeupudefazerfoimeprostrarepediraDeus

quefossejustoemmeujulgamento.

Page 49: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Acoisamefarejou.

Umtremorviolentosacudiumeucorpo.

Acoisarecuou.

O céu, que estava escuro, se abriu lentamente.A luz do sol tocoumeu

rosto,eeuabriosolhos.

O arcanjo também estava de joelhos, fitando o céu e agonizando,

implorandoporalgumacoisa.Lánoalto,entreasnuvens,eutenhocertezade

queDeusolhavaparanósdois.Ouvianossassúplicas.

A estranheza da situação fez com que todos os soldados, aliados e

inimigos, parassem ao nosso redor. Eles observavam, de armas em riste,

coraçõessobressaltadosepernasbambas;elesapenasobservavam,commedo

deolharparaocéu.

Doaltoederepente,umfeixedeluzdesceueacertouoarcanjonopeito.

Seu grito ecoou para todos os lados, fazendo árvores vibrarem a animais

fugiremparalonge.Deviaserumgritomuitoalto,tãoaltoquantoaexplosão

deumabombaatômica,poistodososcombatentesaoredorcaíramsangrando

por todosos orifícios imagináveis.Sufocaramatéamorte.Sangraramatéa

morte.

Eeusequerouviogrito.

Oarcanjo se levantou, agora livre da engenhoca e de asas abertas. Sue

pelereluzia,oscabelosbalançavamaoventoeasvestesbrancasemitiamluz

própria. Seus olhos eram penetrantes e demonstravam compaixão; eu sei

disso, pois eleme encarou por um brevemomento antes de levantar voo e

desaparecernadireçãodaluz.

Euachoqueeleestavavoltandoparaacasa.

Já eu, fiquei ali, chorando, pormuito tempo. Chorei tanto que, depois

Page 50: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

daqueledia,eununcamaisderrameiumalágrimasequerduranteessesmaisdesessentaanos.

Hoje,euestouvelhoeasmemóriastãofracasquantoomeucorpo,mas

essediaficougravadoemminhamentecomoumamarcadeferroembrasa.O

dia em que as tropas alemãs foram paradas por um milagre em forma de

castigo divino.O dia emque foramderrotados por sua própria emaculada

armadecombate.

***

Sofia tirou a fita velha do aparelho e colocou de volta na mala

empoeiradadepertencesdoavô.Asinceridadenavozeariquezadedetalhes

dorelatofizeramcomqueelaviajasseatéofatídicodiavividoporDarlan.

“Porqueopapainuncamedissenadasobreisso...?”

A menina olhou pela janela do sótão e observou o céu iluminado.

Lembrou-sedochoroquesempreouviaemseuspesadelos,edospesadelosque

tiravamseupaidacamaemalgumasnoites.

Amarcadeferroembrasacontinuavaviva.

Ardendo.

Elapodiasentir.

FIM

Page 51: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

CAVALEIROVERMELHO

MARCUSVINÍCIUS

EmmemóriadosoldadoaustralianoCecilJohnHazlitt(1897-1993).

Qualquerhomemquesealistarparaumaguerrasabedoriscoquecorre.

Afastar-sedequemama.Conhecercompanheirosdecombate,masquepodem

morrerdiantedosseusolhos.Aqualquermomento.Perderaprópriavida.

Alémdisso,temaquestãodassequelas.Seoutrosalémdemimsobreviveram,

écertoqueostraumassãoosdemôniosqueosperseguem.Talvezparaoresto

desuasvidas.

Me chamo Cecil. Ok, eu sei que é nome de mulher e por isso me

chamavamdeJack.Decidiregistrarumacontecimentoumtanto...incomume

ao mesmo tempo comum. Comum porque o que acontece na guerra?

Violência,matançaederramamentodesanguecontínuo.Incomumpelofato

doqueeuvi.Logomaisvocêentenderá.Meuniàsforçasaustralianasem27

defevereirode1915,naqualentreiparao28°Batalhão,umdeinfantariado

exércitoaustraliano.ElefoicriadopelaPrimeiraForçaImperialAustraliana,

naPrimeiraGuerra, fazendoparte da 2°Brigada, que estava anexada à 2°

Divisão. Quem estava no comando naquela época era o tenente-coronel

Herbert Collett. Após o treinamento, o Batalhão embarcou no transporte

Ascanius,em9dejunhode1915,navegandodoportoaustralianoFremantle

paraoEgito,atravésdoMarVermelho.Paraque issonãopareçamaiscom

umrelatóriodeguerra,partireiparaaação.Emmeadosdemarçode1916,o

BatalhãofoitransferidoparaaFrança,oprimeirodastropasaustralianosque

ia combater em território europeu. Nomês seguinte, entramos na linha de

Page 52: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

frenteemtornodeArmentiéres,umacomunaaonortedaFrança,auxiliandoa“mãodireita”da7°Brigada.Duranteospróximosdoisanosemeio, lutei

com muitos outros nas trincheiras da Frente Ocidental na Bélgica e na

França.Sómaisumacoisa:Eueraum“corredor”.Issomesmo.Umcorredor,

oquenãomedescaracterizoudemodoalgumcomosoldado.Responsávelpor

enviar mensagens aos soldados, fortalecendo as táticas de guerra nas

trincheiras.Osalemãespareciam implacáveis: empregarambombardeirosde

artilhariamaciça,de infantariaearame farpadoparanosdestruir.Estaéa

partequeeuqueriachegar.Aquiestáorelatodoincomum.

Eu corria frequentemente. Às vezes, alguns dos meus companheiros de

combatemefaziamsinal,afimdequeeuentrasseemalgumatrincheira,quando

viam tanquesalemãesprestesaatirar.Mesmonaquelemeio turbulento,não era

raroeuescutar elogiosdeoutros soldadospelasminhashabilidadesem trazeras

cartas do comandantesobreopróximopassoaserdado.Emalgunsmomentos,

duranteumvaievem,algumbombardeiochegavaameatirarparalonge,mas

nadaquetentatiradominhavida,casocontrárioesterelatonãoexistiria.Foi

duranteumatardeturbulentaquemeucomandantemedeuumacarta,maspediu

queeualesseantesdecorrerparaentregarnastrincheiras.Arregaleimeusolhos

paraoquelieoserguiparameucomandante.“Senhor,temcertezadeque...”

“Apenascumpraaordem,soldado!”Interrompeu-meocomandante.Comomorrer

naquelemomentonãoeraminhaintenção,acateiaordemecorriemdireçãoàs

trincheiras.Maisbombardeioseoutranovidade:gásvenenoso.Chegueiaver

algunshomenstossindodesesperadamente,enquantotentavamrespirar.Outros

nãotinhamtantaresistênciaesufocavamrapidamente.Mesmoassim,consegui

entregaramensagemaosoutros.UmapelidadodeBukchegouaolharparamim

umtantoquedesconfiadodepoisdeler.“Nãoestánostraindo,está?”Indagou

paramimemvozalta.“Demodoalgum,Buk!”Protesteiemvozalta,”ordensdo

comandante!”Completei.Elechegouaestreitarosolhosparamim,masporfim

consentiueavisououtrossoldadosqueerahoradelutardeverdade.Aospoucos,

Page 53: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

foramsaindo.Quantoamim,tratavadeavisarsoldados,comexpressãoincrédula

sobreosquesaíam,queeramordensdocomandante.Nãodemorouparaqueos

alemãesaceitassemodesafio.Muitoscomeçaramasairdostanquesecombates

sangrentosseiniciaram.Algunssoldados,osquaismeaproximeiduranteo

treinamento,pediramparaeumeescondessenumatrincheira.Euiaprotestar,

masjátinhamidoparaocombate.Meusolhoscorriampelocampodebatalha

vendomuitosmorrendo.Nãodavaparasaberquemeraaustralianoequemera

alemão.Ocasionalmente,euouviaosomdeaeronavesbombardeandoaterraeme

abaixava.Atéqueouviosomdeum...cavalo?Erguiacabeçadatrincheira.

Olhoufreneticamenteparaoslados.Minhaimaginaçãotalvez?Depoisdealguns

segundos,sonsdeumcavalotrotando.Estreiteimaisosolhos,masfoiporpouco

tempo,porcausadavisãoaterradora:umcavalovermelho,comumhomemde

armaduraprateadaeelmoprateadoportandoumaespadalonga.Elecorriaentre

ossoldados.Ocavalorelinchavaemalgunsmomentoseempinavanoar.Eu

fiqueiboquiabertocomaquilo.Estavaficandolouco?Deondesurgiuaquilo?

Numdeterminadoespaçodetempo,elecomeçouafazergolpescomaespada,

aindaemcimadocavalo.Muitossoldadoscaiamnamesmahora.Tivedeagir.

Saídatrincheiraegritei:“Saiamdaí!”Gritavabalançandoasmãos.”Elevai

matá-los!Ocavaleirovaimatá-los!”Nãodemorouparaqueumsoldadoviessena

minhadireção.Arregaleiosolhospensandoquefossemorrer,maseleergueuas

mãosanunciandoqueeradobatalhão.“Jack,oqueestáfazendo?”Indagou-me

umsoldadocomvozfamiliar.SechamavaDominic.“Dom!Precisaavisaros

soldadosdocavaleiro!Elevaimatartodomundo!Eutenhoqueavisaro

comandante!”Dominicmeencarousementender.Olhouparatrásedepoisde

voltaparamim.“Oquehácomvocê?Nãohánenhumcavaleiroali!”Rebateu

Dominicparamimemvozalta.“Fiquedentrodatrincheira,Jack!Eute

chamareiembreve!”Nãotivechancedeprotestar.Elejátinhavoltadoparao

combate.Eutinhaquefazeralgumacoisa.Escuteinovamenteorelincho.O

cavalocorrianovamenteporentreossoldados,comaquelesoldadosobreelee

empunhandoaespadalongaacimadacabeça.Euesfregavaosolhos.Nãoera

Page 54: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

minhaimaginação.Eunãousavadrogas.Nãoestavasobefeitodebebida

alguma.Haviaumcavaleiroali.Quandoelejogoumaissoldadospeloar,ao

mesmotempoemqueocorreramnovosbombardeiosnolocal,eunãomecontive.

Saícorrendo,matandosoldadoscomoumlouco,masavisandosobreocavaleiro,

atéquemeuprópriocomandantemesurpreendeu.“Oqueestáfazendo,soldado?”

Gritouotenenteemvozalta.“Queloucuraéessadecavaleiro?”“Eleestá

matandomuitos,senhor”Griteiemresposta.“Temosque...”Geleicomacena

seguinte.Eunãoescutavamaisavozdomeusuperior.Enemmesmodoque

aconteciaemvolta.Ocavaleirovinhanaminhadireção.Ocavalorelinchando.Os

olhoseram...fogo.Nãoconseguiaverorostodocavaleirosobreoanimal.Sósabia

quetinhadefazeroquemelhorsabia:correr.Chegueiaescutarmeucomandante

gritandomeunome,masodesesperomedominou.Corriaentrecorposesoldados

quesematavam,enquantoocavaleirovinhanomeuencalço.Devezemquando,

euolhavaparatrás.Eleaindaestavaali.ChegueiaouvirDominicmechamar,

masnãoparei.Nãopodia.Atéquetropecei.Sentiadoragonizantenotornozelo.

Masissonãoeraopior.Fizaburricedevirar-meajoelhado.Alivinhao

cavaleiro.Aespadalonganamão.Chegouadecapitaralgunssoldadospelo

caminho.PorDeus!Seráqueninguémovia?Penseiqueminhahorahavia

chegado.Maispertodemim,chegueiasentirocalordofogopelosolhosdo

cavalo.Ocavaleiroestava...falandoalgumacoisa.Masoquê?Eunãoentendia

nadadaquilo.Umdialetodesconhecido?Quandoergueuaespadaparamim

desmaiei.

Nãoparticipeidorestantedaguerra.Sóme lembrodeacordarnumacama

emalahospitalarnaAustrália.Sevocêestálendoesterelatoéporquecomcerteza

já estoumorto,mas o cavaleiro deve estar por aí, anunciando o horror de uma

novaguerra.

FIM

Page 55: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam
Page 56: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

OUTROANJOEMNAGYRÉV

DAVIDLEITE

BaseadonoepisódiorealAngelMakersof Nagyrév

Do alto da colina coberta esparsamente por uma relva fresca, o cabo

Adórjanrevêovilarejoquedeixouhá4anos,quandoconvocadoparaaquela

cruelguerra.

Nagyrévcontinuavaamesma.Umabucólicaaldeiaquetransmitiauma

pazaAdórjanqueelehámuitonãosentia.Aquelacomunidadedechoupanas

rústicas estava alheia aos horrores do exterior, do sangue e da pólvora que

preenchiaoshorizontesedasvisõesmacabrasqueeleprecisouencararcomo

combatentedoEstado-maior.

Masaquiloficouparatrás.Coxeandodevidoaoferimentoquemotivoua

dispensa,desceacolinaemdireçãoasuacasa.Esperavaencontrarsuadoce

Adelaidaemnervosaespera.Haviatemposquenãorecebiaumacartasua,e

tambémnãotinhacertezaseaquelasqueenviouaalcançaram.Muitose

perdianocaminhoentreofronteolar.Cartasevidas.

As casas continuavamasmesmas,praticamente.Masovilarejoparecia

maisvazio.Ninguémveiofesteja-lo.Ninguémesperavapeloseuretorno.Mas

aindaassim,avilatransmitiaumsilêncioqueénovidade.Antesdaguerra,os

poucosresidenteseramrumorososeanimados.Agora,umcalarfúnebre.

Recorda-se,então,daspoucasnotíciasquetevenoexteriorarespeitode

suaaldeia.AsminguadasmissivasdeAdelaidanoiníciodesuamissãoeas

rarasnotíciasdejornaiscitavamarespeitodocrescentenúmerodemortesem

Page 57: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

suaaldeia.Rumoresdeabortoscriminosos,obituáriosdemortesincomuns.Issoopreocupoupormuitotempodeinício,atécessaremasnotíciasecartas.

Segue diretamente para sua casa, então. Alguns olhares pelas janelas.

Umasenhoraquenãoreconhece,retirandoáguadopoçocomumnocentroda

vila,olhaparaelecomcertodesprezoemoveruniformizado.Sabiaquenão

eraumheróideguerra.Sabiamaisdoqueavelhasenhora,poisconheciaseus

pecados, coisa que ela só poderia supor. No entanto aquele olhar fuzilante

aindaoatingiu.

Reconhece sua cabana de longe. Mesmo com a dor lancinante em sua

perna, ainda assim tenta correr até lá.Emmeiominuto chega a soleira, e,

ansiosamentebatenaporta.

—Adelaida!—Ofegante,clamapelaesposa—Adelaida!Soueu,amor,

estoudevolta!

Depoisdealgunsgolpesnaportadecadentedemadeira eo somdeum

movimentardentrodaarruinadacabana,aportaseabre.

— Adórjan... — a voz de Adelaida era angustiada e débil. Como sua

figura.

OânimodoretornoemAdórjancessaaovê-la.Reparaquesuamulher,

antesumajovemalentadaealegre,agorapareciaterenvelhecidodezenasde

anos.Ocastigodessesanosparecetersidomaisseveroparaelaqueparasi.

Acabanaqueconstruíramnãoestava,também,emmelhorescondições.

Antes,umamodestacasa,noentanto,arranjadaearejada,agoraestavaem

condiçõesruinosas.Aportademadeiracaindo,buracosnastelhas,oslenhos

apodrecidos.

—Oquê...aconteceu,Adelaida?—Atônito, questiona.Semperceber a

ironia de um ex-combatente parecermenosmortificado que aquela que foi

deixadanasegurançadolar.

Page 58: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

—N-nada,meuamor.—Adelaidaesboçaumsorriso,comsofreguidão

—Vamosentrar...Euvoufazeralgoparanós.Devefazertempoquenão

comeumgoulashdeverdade.Vamos?

Adórjan a segue para dentro, ainda espantado. O interior da casa

demonstravaomesmodesleixodoexterior.

Adelaida abraça Adórjan e o beija no rosto enquanto se dirige para o

fogão a lenha, onde algo cozia. Adórjan, silencioso, observa sua residência.

Tudo era envolto em poeira, ferrugem e pátina. Olha novamente para

Adelaida,decostasparaele,nafrentedofogão.Suasvestespuídas...

—Adelaida...comovocêestá?—Quasesuspirando,Adórjanainterpela

—Estou bem,meu amor.Eu não esperava que você voltasse hoje.Eu

não esperava que você voltasse... — A voz de Adelaida sumia enquanto

falava.

Adórjancontinua,assombrado,seuexameaoredor.Seuolhar,então,se

detémemumcanto.Atrásdeumadasestantesdemadeiraquemobiliavaa

casa,umaestruturadesmontada.Arrebentada,narealidade.Umestrado,

gradesdemadeira,umacabeceira...Umberçotinhasidodestruídoejogado

ali.OsanguenocoraçãodeAdórjanacelera.

— Querida... Você não me enviou mais nenhuma carta por tempos

enquantoestivenaguerra.—Adórjanreforçaotomdavozaopronunciara

últimapalavra,comoquisessedemonstrarparaaesposaquenãoaabandonou

trivialmente.

—Não,querido.Nãoencontreitempo...—nomesmotomapagadouma

desculpaqualquersaidabocadeAdelaida.

— Não teria nada de importante a me contar, teria? — Questiona

novamente,umtantoagressivo,agora.

Page 59: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

—Não,meuamor.Ogoulashestáquasepronto.—ContinuaAdelaida.

Aquilo se torna mais e mais insuportável a cada instante. A patente

destruiçãoemqueseencontravasuamorada,asrespostasvagasedistantesde

suaesposa, suaextenuação...oberço.Ambosparecemtermuitoadizerum

paraooutrosobreoqueaconteceuemsuasvidasnessesanos.

Adelaidaseaproximadamesacomapaneladocozido,servindoomarido

primeiro.Adórjanlevaalgumascolheradasnaboca,aindaconsternado,mas

emsilêncio.Elanãopoderiaevitaraquelaconversaparasempre.Adelaidase

sentade frenteaeleeseservedocaldeirão.Longosminutossepassamcom

elaolhando,muda,paraasopaemseuprato,semalimentar-se.

—Adelaida.O berço...—Adórjan, inquisitivo, rompe com omutismo

dosdois.

—Nãoénada...—Apenasresponde,timidamente.

—Comonão é nada?—Avoz deAdórjan se altera, ficando cadavez

maisirritado.

Adelaidanãoresponde.

—Olhaparatudoisso.Quandoeudeixeiessacasaeusonhavaemvoltar

para um lugar de conforto, e não encontrar tudo caindo como está... —

Adórjancontinua.

Adelaida começa a mexer em círculos a sopa em seu prato. Sem

responder.

—OLHAPARAVOCÊ!-Adórjanserevolta,segurandoobraçoda

mulher.—OQUESIGNIFICAESSEBERÇO?

—NÃOERASEU!!!—Adelaida,porfim,gritadevolta.

OgritodeAdelaidaexplodeemseusouvidoscomoumabombafamiliar.

Repentinamente,diantedeseusolhostudocomeçaasemultiplicar,enquanto

Page 60: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

umzumbidoindefinidocresciadepoisdoretumbar.Adórjanabruptamentese

levanta, derrubando a cadeira e tremendo convulsivamente. Suas pernas se

enterravamemumalamarecém-surgidaevultosdesesperadospassavampor

elecarregandofuzis.Osomdeumaportaseabrindocomumrangido...

— Senhora Fazekas... — O som da voz de Adelaida era ouvido à

distância.—Eufizcomopediu...Novamente...

Diante dos olhos de Adórjan surgia novamente a terra de ninguém.

Ecoavambombas,zuniamdisparoseohorizonteeratingidodevermelhopor

um crepúsculo maldito. Os vultos carregando armas gritavam coisas

ininteligíveis contra vultos de olhos vermelhos que avançavam

ameaçadoramentecontraele.

—Elenuncaentenderia,minhaquerida.Ofilhodatraição,ouoquefez

comacriança.—Umavozenvelhecidasoavaaofundo—Eleteabandonaria.

Vocêfezocerto...

O corpo deAdórjan tremia. Continuava o ribombar dos explosivos e o

avançodas sombras. Suas pernas presas ao espesso chão.Estremecendo em

terror,olhaparaaspernasquenãoconseguiamover.Ummarencarnadode

purosanguerevolviadebaixodesi.Adórjantentasemover,apenasparacair

de joelhosno sangueque jorravaemcorrenteza.Umanovabatalhapara se

levantareAdórjancaiaindamaisdiantedopesodoespessomar.

—E lembre-se,minhaquerida, como eu tedissedaúltimavez,não se

sinta culpada. Você sabe o que estamos fazendo aqui, não sabe?— A voz

trêmulaecaquéticasoanovamentenohorizonte.

Adórjan afoga-se cada vezmais. Os vultos assombrosos se aproximam

deleenquantorastejadesesperado.Repentinamente,umaluzbrancasurgeno

horizonte.Numestertorasfixiado,Adórjanestendeobraçoemsuadireção.

— Estamos criando anjos... — A velha voz uma última vez soa no

Page 61: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

horizonte.Etudoescurece.

FIM

Page 62: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

DULCEETDECORUMESTPROPATRIA

MORI

HUMBERTOLIMA

TerçaFeira,25deAbrilde1916.18h,Langemarck-Bélgica.

Entre as trincheiras alemãs e francesas uma criatura esquálida e de

grandealtura,quasepeleeossoandarapidamentedeumladoparaooutrodo

campo de batalha, tocando levemente a nuca dos homens que gritam e

praguejam nas duas línguas. Imediatamente eles caem atingidos por tiros

inimigosoupelasbombasemorteiros,aosquaiselaéaparentementeimune.

A criatura de aparência humana, lembra umamulhermuito alta e ela

estáclaramenteemjúbilo.Seusolhosamarelosbrilhamdefelicidade.

—Faz tanto tempo...Tanto tempoquenão tínhamosbatalhasassim...

Eu lembro... Sou a última das Valkyrja! Farei meu trabalho até que a

poderosaIðunnmepeçaparaparar!

Dentrodastrincheirasfranco-argelinas,umsoldadoestámuitodoentee

andando sem ser percebida entre homens que berram ordens em francês, a

criatura nórdica se aproxima.Ela abre um enorme sorriso com seus dentes

tortosetocasuavementeanucadohomem.

Osolhosdosoldadofrancêsficamnubladoseelemorrebalbuciandoalgo

sobreabelezadamulherqueestáasuafrente.Aferidadotirodefuzilqueele

levounobraçogangrenouháalgunsdiaseelemorredelirando.

Page 63: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Os outros soldados fazem um sinal da cruz e continuam atirando

ferozmente contra os alemães que gritam do outro lado da trincheira sem

perceber a mulher que tem pelo menos dois metros de altura e deve pesar

cinquentaquilos,comosossosdascostelassesobressaindonapelefina,passa

rodopiandoentreeles.

Ostocasuavementeeummorteirocaientreoshomens,explodindo-osem

pedaçosconfusosdesangueedor.

Continuasuadançasinuosaeemmilésimosdesegundosestáaoladodos

alemãesondeencontraumespécimerealmentevalorosopelacordesuaaura.

Oacompanha,sentindoseucheirocobertodeumsuorfrio.Eleusatodasua

muniçãoefinalmente,cercadoemunidoapenascomasuabaioneta,começaa

matartodososfrancesesqueseaproximamdele.AWalkyrjamordeoslábios

rachadossedeleitandocomomomento,umaumos francesescaemmortos

comosgolpesdebaionetadofuriosoalemão.

Osolhosdacriaturabrilhamamareloseelavêqueofioquecomandaa

vidadosoldadogermânicoestáprestesaseromper,eladeveleva-loantesque

se perca completamente. Vindo por trás, toca a nuca do homem, que é

subitamentefuziladoporseisfranceses.

Entre eles está Jacques Le Roux, um jovem soldado francês que se

assombracomavisãoqueaparentemente,sóeleenxerga.

—MasoqueDiaboséisso?

Descarrega seu fuzil ante o olhar perplexo dos companheiros. Eles se

entreolham preocupados, sabem que a loucura rouba a mente de vários

soldadosnofront.

Subitamente a criatura percebe que foi vista pelo rapaz e se aproxima

comorostodistorcidopeloódio.

—EusouumaValkyrjaesóofatodetumeveresjámeédesonroso!Quando

Page 64: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

eu vier te levar, o buscarei de frente para que guardes meu rosto em tuas

lembrançasmais sombrias dentro do infinito na casa das névoas emHel!Não

combaterásnuncaporOdinnoValhala!

Jacquessedesespera.Adesnutriçãoextremapeloquepassamnofrontde

batalhadeveestarfazendocomquetenhaessaassustadoravisão.

Eleatiramaisalgumasvezes,masacriaturaapenasseafastaparaolado

dosalemãesagora.

Ashoraspassamenquantoosgritos,tiroseexplosõesseintensificam.

Por instinto aWalkyrja sabequemdeve ounão ser colhido e com seus

olhos amarelados procura Jacques insistentemente nas trincheiras, entre

corpos putrefatos e soldados com sorrisos alucinados nos rostos, com seus

fuzisebaionetasnasmãos.

A criatura pálida com os poucos fios de cabelo dourado que tem na

cabeça,coladosaoredordocrâniodisformesorridemaneirasinistra.

—Rapaz?Ondeestá?Chegousuahora!

Acriaturaomarcoudemaneirainvisívelcomsuamagiaancestralevêa

aurado jovem francês enquanto toca com suavidade a nucade um soldado

alemãonastrincheiraseimediatamenteosoldadomarcadoparamorrerleva

umtirodefuzilcaindoaosolocomacabeçavazada.

A criatura mitológica anda calmamente em direção a sua vítima.

Diferente dos outros valorosos soldados, elamesmavaimatá-lo demaneira

que ele não alcance nunca o paraíso deOdin,mas sim a desolação doHel,

onde ele andará a esmo por toda uma eternidade até se esquecer

completamentedequeméedavisãoquetevedaWalkyrja.

Pertodaliosalemãesabremumtipodecilindrocomoventoafavordas

trincheiras inimigas e uma espessa fumaça toma conta do lugar, junto a

Page 65: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

fumaça, como um anjo da morte, vem a criatura abjeta que se diz uma

Valkiria.Eleatiracomofuzilatingindoossoldadosalemãesquecorrempor

trásdelaedessavezacriaturanãosemoverapidamente,massimcaminha

placidamentecomosorrisoseabrindoemdentestortoseamarelos.Osolhos

delaseestreitamquandoJacquesatiracomofuzildiversasvezescontraseu

troncoerosto.Ummorteiroatravessaoaremsuadireção,mascomumgesto

dacriaturaoprojétilvoaparaoladomatandooutrosfranceses.

NessemomentoJacquespercebequeelaéaencarnaçãodaprópriamorte

eoquerparasi.

Por trás da criatura horrível, Jacques vê a fumaça se aproximando

trazida pelo vento. Os franceses não imaginam que ela carrega a morte,

pensam que é um estratagema dos alemães sujos para ganharem a batalha

obscurecidoscomaneblina.

Os olhos amarelos da Walkyrja se aproximam vorazes, mas o vento

impulsionaafumaçatóxicaverdeacinzentadamaisrapidamente.

Seus olhos e garganta começaram a arder imediatamente e quando a

criaturamísticasurgeasuafrente,suavisãoficaenevoada,aúltimacoisaque

vêsãoosolhos,sinistroseamareloseasgarrasdamonstranasuagarganta.

Aqueles soldados nunca se esquecerão do grito que se elevou acima de

todos os outros.Até os alemães em seu ladoda trincheira se assustam,não

sabemexatamenteoquegritou,massabemqueaquilonãopodeserhumano.

Os soldados franceses começaram a debandar das trincheiras e correm

pelos campos de Ypres, os que não morrem, terminam jogados ao chão,

espumando pela boca e arranhando olhos e gargantas extremamente

inflamados. Dentro das trincheiras convulsionando, ficaram os que não

conseguiram escapar das mãos daWalkyrja, que se movem freneticamente

elevando-os ao Valhala. Frustrada por não poder matar Jacques com as

Page 66: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

própriasmãos,poisdeacordocomsuasprópriasregraseleteriaqueencará-la

paramorrereagoraestacego.

Os sobreviventes saem do campo de batalha em fila indiana, sendo

orientadosporumsoldadoquenãofoiatingidopelogásclorídrico,entreeles,

JacquesLeRouxquebalbuciaechoranamarchadosgaseados.

—Foiela!Issoéobradodemônio!

Mesesdepois,noHôpitaldeVaugirarddeParis,reencontramosofrágile

alquebradosoldadoJacquesseguropordoisenfermeirosenquantorecebeuma

visita.

—Não!Porfavor!Essavoz!Éodemônio...porfavor...

Ele delira e chora e o doutor pede que lhe apliquem um poderoso

sedativo.

—Oqueposso lhedizermademoiselle...ogásusadopelosabomináveis

alemãeslhedeixoumuitotranstornado!

A linda francesinha de cabelos dourados como o trigo em campos de

primaverasorriparaomédicodemaneiradoceetriste.Seurostoémagroe

seunarizépequenoebemfeitoentreosolhosdeumazulintenso.

—Elevaivoltareenxergar,doutor?

Omédicoaencaraporummomento,pesandobemaspalavras.

—Mademoiselle!Elepodevoltaraenxergar,maslevarãoanosparaissoe

talvez sua mente nunca mais seja a mesma! Veja que mesmo sedado com

morfinaelecontinuaalucinando!

Vendoorostoconsternado,fazumalevemesuraeseafastadapequena

mulherqueolhaatentamenteosoldadocomorostocobertodequeimaduras

degásmostarda.Elaseaproximaeseurostohumanocomeçaatremular,mal

contendooqueháporbaixo.

Page 67: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

—Anos? O que são os anos para mim? Tenho todo o tempo para te

esperar,Jacques...

Osolhosdajovembrilhamamareladosporalgunsinstanteseosoldado,

mesmosedado,treme.

*Quãodoceehonradoémorrerpelapátria!

FIM

Page 68: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

EFEITOCOLATERAL

ANDRÉLUIZDEMELO

O Soldado perambulava sozinho pelas ruínas de algum vilarejo belga,

cujonomenãofaziaideia.Oanoera1915,eomundoestavamergulhadoem

Guerra.Nodia22deabril,osalemãeslançaramoprimeiroataquecomgases

tóxicosentreLangemarckeYpres.OSoldadoestavaemumadastrincheiras

atingidas.

Ao contrário de alguns companheiros, o gás não lhe causou nenhum

efeitoimediato,eosuperioroconsiderouaptoacontinuarcomastropas.O

Soldadopassouavestirumsobretudopesado,luvasdecouro,coturnoeuma

máscara de gás. Uma sinistra máscara de gás... Alguns dias depois, no

entanto, começoua sentiro corpoqueimarpordentro. Issoo fez ficarpara

tráse,logo,desmaiarnabeiradaestrada.Ocultadopelarelva,foiesquecido

peloscompanheiros,queseguirammarchandoparaapróximabatalha.

Ao acordar, o homemestavaperdido.Precisava encontrar suaunidade,

mas antes partira em busca de suprimentos no povoado abandonado. Pelo

aspecto,olugarfoibombardeadoporalgumdirigívelalemão.Construçõesem

ruínas, marcas de tiros e sangue seco por toda parte. Nem sinal de algum

habitantelocal.

A roupa de proteção era pesada, desconfortável e quente.Lá dentro, o

Soldado estava completamente encharcado de suor, o que embaçava

parcialmenteaslentesdamáscara.Otrajelimitavaseucampodevisãoesua

audição,demodoqueelenãopercebeuqueestavasendoobservado...

OSoldadosentiasuasjuntasdoerempelopesodaroupadeproteção,ou

Page 69: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

talvezpelo efeito colateral do gás amareladoque esguicharam em seu rosto

diasantes.Precisavaarranjarcomida,massódepoisdeumdescanso.Então

sentou em um bloco de concreto, proveniente de um prédio que desabou.

Olhouparacima,vendoatravésdaslentessujasumcéudetomsépia,estéril,

doentioemoribundo.

Imerso nesses pensamentos, o Soldado não percebeu que o inimigo

preparava o bote. O homem germânico era enorme, um verdadeiro

brutamontes de cabelo loiro e rosto quadrado, com uma feita cicatriz no

queijo.Empunhavaafacaafiada,aindasujadesangue.Comumaagilidadee

forçasurpreendentes,oadversárioatacou.Mesmocomaroupadeproteção,a

lâminafezumcortefeionobraçodoSoldado.Elerolouparaolado,sacando

sua própria faca, quando o alemão fez outra investida, gritando qualquer

coisa em sua língua natal. Felizmente não era o primeiro inimigo que o

SoldadoenfrentaracorpoacorponessesanosdeGuerra.Comummovimento

rápido—maisrápidodoquesepoderiasupor,tendoemvistaaroupagrossa

—eledesvioudainvestidaetorceuobraçodoalemão,quedeixoucairaarma

branca.

Talvezfosseumreflexodalentedamáscara,masoSoldadoteveanítida

impressão de que os olhos daquele homem eram vermelhos, com a pupila

amarela.Efeitocolateraldealgumdosgasesmortaisqueseuexércitolançara

contraosinimigos?

Enquanto pensava, o alemão deu uma cotovelada em suas costelas,

soltandoobraçopreso.OSoldadoarqueou,semfôlego.Haviaalgodemuito

erradocomobrutamontesdeveiasdestacadasnopescoçoetesta.

O alemão aproveitou a deixa para chutar o rosto do inimigo. Depois

socouopeito,usandoopunhoenorme,quemaispareciaumamarreta,forteo

bastanteparaesmagarumcrâniodecriançasemdificuldade.

OSoldadocambaleou,maspermaneceudepé.Oalemãosorriadeforma

Page 70: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

insana, gritando uma ou outra palavra incompreensível. Então partiu para

cima, como uma locomotiva descontrolada. O Soldado ainda segurava a

própriafacaquandofoierguidodochãopeloadversário.Comtodaaforçaque

pôdereunirnaquelacircunstância,cravoualâminanascostasdobrutamonte.

O alemão urrou de dor, então arremessou o Soldado no chão, como se

fosseumsacodebatatas.Depois,oergueupelagoladosobretudoe,comum

ganchodedireita,nocauteounovamente.Aindacomopunhalnas costas, o

germânicofoiparacima,prendendo-onochão.

Caído, golfando sangue, com um dos braços feridos, estava amercê do

inimigo,quetentavaapertarsuamáscaracomasmãos.OSoldadotateouna

terra, lutandopara semanter consciente.Noúltimo segundo, vendo aquele

sorrisohediondo,ohomemsentiuocabodaoutrafaca.Comummovimento

rápido, usou a lâmina afiada para cortar a garganta parruda do alemão.

Sangueportodaparte,oinimigocambaleouatécair,logoadiante.

OSoldadotentouficardepé,massentiusuacabeçarodar,aqueimação

pordentro.Pelasegundaveznaqueledia,desmaiou.

***

Algumtempodepois(elenãosaberiaprecisarquanto,masestavaquase

anoitecendo),oSoldadorecobrouossentidos.Comocorpodolorido,ficoude

pé,observandoocadáverdooutro logoadiante,numapoçadesangue,com

moscasaoredor.

Ohomemdemáscaradeudeombroseseguiuemfrente,paraasruínas

dovilarejo.Umventogélidoeconstantesoprava.Eleprecisavaencontraralgo

para tratar aquele ferimento do braço, e um abrigo seguro. Vasculhou dois

antigos prédios, sem encontrar muita coisa de útil, então partiu para o

terceiro, uma escola. Claro que o Soldado não tinha como saber disso,

simplesmente foi entrando e buscando algo que pudesse ajudá-lo. Depois

Page 71: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

procurariacomida,poisaindaestavafaminto.

Amaioriadassalasestavavazia,ourepletadeentulho.Antigasmesase

cadeiras caídas, e muitas marcas de bala. Parecia que o concreto estava

prestesaceder.Definitivamenteaquelelugarviraobastantedoshorroresde

guerra.

O Soldado encontrou um antigo banheiro. Boxes caídos, um dos vasos

sanitários rachados. A pia ainda estava inteira, assim como o espelho —

emboraeleestivessemeioembaçadopelotempo.

Abrindoatorneira,quaseficousurpresoquandosaiuumaáguabarreta.

Elemolhouumtrapoqualquer,eousouparalimparalentesujadamáscara.

Depoiscuidariadobraço,agoraprecisavachecaro lugar,talvezfosseseguro

passaranoitenoprédio.

Mas antes deixou-se apoiar na pia. Não estava se sentindo nada bem.

Talvez fosse resultado dos ferimentos da luta, mas parecia vir de dentro.

Sentiuumar frio em sua coluna (estranho, jáqueo traje eramuito,muito

quente). Teria sido impressão, ou alguém passou pela visão periférica da

máscara?O Soldado virou rápido,mas não encontrou ninguém, apenas seu

próprio reflexono espelho.Erguendo amanga, limpouo corte profundodo

braço.Precisariade algunspontos ali.Por ora, apenas enrolouumpanono

ferimento.

Entãoouviualgo,umsomqueduroumenosdeumsegundo.Totalmente

alerta,virou-serapidamente,ficandodefrenteparaohomemgigantesco,com

umcortefeionopescoço,veiassaltadas,rostovermelhopeloódio.Oalemão

espumavapelaboca,aotentarumanovainvestida.OSoldadofoimaisrápido,

desviou do golpe e empurrou com força o rosto do outro contra o espelho.

Depois,virouoalemão,ficandofrenteafrentecomoinimigo,apertandoseu

pescoçoferido.

Page 72: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

A surpresa pelo feito foi maior que a dor para aquele pobre homem.

Entãobalbuciouqualquercoisanalínguagermânica.

Aindasegurandofirme,oSoldadolevouaoutramãoànuca,soltandoa

travadamáscaradegás.Oalemãoparoudelutarcontraoapertosufocante.

Estavaassustado,seéqueissoerapossível.

Lentamente,oSoldadoretirouamáscara,revelandoalgomuitobizarro.

Ele estava completamente careca, com pele escamosa e uma boca que

literalmenteiadeorelhaaorelha,escancaradaemumsorrisohediondo,cheio

de dentes afiados. A língua pendia, babosa, da bocarra faminta. Lembrava

umtubarãocarniceiro.

— Comerrr — grunhiu o Soldado, com uma voz animalesca, sem a

máscaraparaabafá-la.Oalemãonãotinhachances.Nomomentoseguinteo

predadoratacou,abandonandocompletamenteoquerestaradesuanatureza

humana.SómaisumefeitocolateraldaGuerra.

FIM

Page 73: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

AGUERRADEFORTUNATO

ALBERTOARECCHI

Sabialereescrever,Fortunato.Seunome,emitaliano,querdizer“quem

tem sorte”. Tinha obtido a licença de escola primária com boas notas e

ajudavaseutio,nalojadetecidos,pertodapraçadaaldeia.Tinha19anosem

junho.Recebeuumcartãopostal.Nuncatinharecebidocorreioemsuavida.

Dando-lheopapelãocolorido,ocarteirodissequetinhadeinformaraPolícia.

"Porquê?Não fiznadadeerrado".Nodia seguinteFortunatocolocouuma

jaqueta, tomouocartãoe foiparaapolícia.Disseram-lhequetinhadesair

paraoserviçomilitar,porumpardeanosoumais.Apartidaestavamarcada

logoapósasfériasdeNatal.Nãodeviatrazerquasenadacomele,poispara

vesti-loealimentá-lopensariaorei.

Naquele dia, Fortunato se lavou com cuidado, fez um corte de cabelo,

penteou-se bem, colocou uma camisa limpa e um par de calças novas e foi

para a estação, juntamente com outros jovens. Tomaram um trem para o

norte.

Viajavam como farfalhar das rodas nos trilhos, que os fizeram cair no

sono. Demorou quinze horas para chegar. Saíram do trem e foram

acompanhados até um quartel. Deram-lhes um pacote com roupas: duas

camisas, duas jaquetas, dois pares de calças, dois pares de sapatos, a roupa

interior que coçava a pele e tiras de se ligar em torno dos bezerros, e um

bonete. Os trajes civis ficaram arrumados na mala. Fortunato tinha-se

tornado,defato,umsoldado.

Então veio a semana de "treinamento": explicaram-lhe como devia

Page 74: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

saudar os oficiais, como devia correr e marchar, como levar nos ombros a

espingarda.

Após o período de formação, Fortunato e seus companheiros foram

carregadosemumacaravanadecaminhõese transportadospara"a frente".

Lá,foraminformadosdequeestavamlutandoparaconsolidaroterritóriodo

país.Fortunatoimaginavagrandesassaltos,bandeirasesvoaçandonoventoe

cargasdecavalaria,comooprofessorhaviaditonaescola.

Chegaram tarde à noite até um quartel frio e úmido.No dia seguinte,

alinhados, andaram marchando com mochilas pesadas e mosquetes nos

ombros,escoltadosporalgumasmulascarregadasmaisqueeleseporpoliciais

armados de ambos lados. Pareciam prisioneiros indo para os trabalhos

forçados,maisdoquesoldados.Ocaminhosubianasmontanhascobertasde

neve.Caminharamforadaflorestanofrio,enquantoosolnasciaatrásdeum

cumecintilante.Continuaramemdireçãoaumpenhasco,naneve,atéaum

cumequepareciadominaromundointeiro.

Finalmente,chegaramaoseudestino,nofimdosegundodia.Fortunato

conheceu sua estação de guerra: uma trincheira úmida, escavada na rocha

pelos soldados do corpo de engenheiros com dinamite e TNT. A trincheira

terminavaemumacavernaescura,compoucasaberturasqueolhavamparao

vale distante. Essa seria sua "casa", quem sabe por quanto tempo. Não

podiamsaberquandoaguerraterminaria,nemseumdiavoltariamàssuas

famílias,àcasaondeosparentesestavamesperando.

Osdias passavamna chata,monótona celebraçãodeum ritual que era

sempreomesmo.Oalarme,exercíciosfísicos,ocafédamanhãcomáguade

neve derretida. Turnos de vigia sempre iguais, com o capacete de ferro na

cabeça,observandodasfendasdalongatrincheiraobrilhoofuscantedosolna

nevegelada.Delá,umdia,poderiachegaroataquedoinimigo.

Osolhosestavamcansados,examinandoapaisagembrancaquemudava

Page 75: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

matizesetonalidades.Aluziamudandodamanhãàtarde,criandosombras

de colinas e depressões que antes não tinha notado. As nuvens voavam

rápidas.Àsvezes,oartornava-sederepentefrioeoshomensiamsecobrir.

Tambémaslongasnoiteserammarcadosporturnosdevigia.Ossoldados

enrolaram-secomomelhorpodiamemgrandescapasdepano,agachavam-se

pertodafendaeficavamcomgrandecuidadoparanãocairnosonoduranteo

serviço,poissabiamqueseissoacontecesse,eumsuperiordescobri-los,seria

pior do que receber um golpe no peito de um atirador inimigo. Rações de

cachaçaosajudavamasuportarofrio.

De vez em quando, na escuridão da noite, podia-se ouvir um tiro,

ecoando perto ou de longe, pelas geleiras de neve. Um tiro seguido de um

milhar de ecos. Parecia então que todas as rochas se queixassem de ser

perturbadas na profundidade no sono. Era a hora dos atiradores que

perscrutavam linhas inimigas, tentando acertar cada luz, no caso que a

sentinelaadversáriadecidisseacenderumcigarroetinhasidotãoimprudente

quantoparamanteracesoofósforo.

Raramente-masissopodiaacontecer-asnoitestornavam-seum

tormentoparatodos.Tudocomeçavacomocrepitardefoguetestraçadores,

quepareciaosfogosdeartifíciodoAnoNovo,eemseguidaobarulhoda

artilharia.Comoumconcerto,tambémassalvasdeartilhariaiammorrendo

nomeiodanoite.Quemsabia-perguntavam-se os homens - se tivessem

atingidoumalvo...

Um dia, a sentinela percebeu ummovimento. Era como um pouco de

neve deslizando. Ele acenou para os outros homens em posição. Nada se

movia sobre a extensão congelada.Outro brilho. Chamaram o tenente, que

tinha binóculos com lentes poderosas. Ele observou na direção indicada.

Finalmente percebeu um pequeno esquadrão de homens, vestidos com

macacões brancos, provenientes de linhas inimigas, deslizando

Page 76: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

silenciosamente nos campos de neve. O oficial ordenou o estado de alertamáximo,fezprepararosmorteirosdisponíveiseestimouadistânciadotiro.

Quando as sombras evanescentes estavam chegando a meio quilômetro de

distância, ele ordenou o fogo com armas de longo alcance. Dois assobios

surdoseosprojéteisforamatingirsuasmetas.Borrifosdeneve,mastambém

de sangue e corpos rasgados. De repente, o inimigo acabou: não conseguia

mais esconder-se, mesmo disfarçado em branco, nem podia disparar com

armas de pequeno porte em uma distância ainda notável. O plantel de

esquiadores saiu rápido, para tentar chegar a um lugar seguro. O ataque

estava frustradopor agora,mas durante todo o dia o nervosismo sacudiu a

trincheira.

O departamento de Fortunato era composto por gente do mar e da

planície.Elesvieramdelugaresdiferentes,falavamcomdiferentessotaquese

gírias.Avidacomumtinha-osfeitocomoirmãos,talvezmaisdoqueirmãos

desangue.

Umdia,ocomandodecidiulançarumataquemaciçoparaotopocoberto

deneve,nofundodoglaciar,afortalezadastropasinimigas.Foiummassacre.

Oscombatentesdosdoisladoslutarammetroametronasplaníciescobertas

de neve, até o último tiro e, em seguida, apunhalando-se combaionetas.O

inimigo,noentanto, conseguiumantero fogodeduasmetralhadorasque,a

partirdecima,tiraramaosatacantesqualquerchancedesucesso.

Finalmente,odiadavitóriachegou.Duranteanos,atropanãotinha-se

mudadoapartirdessas rochas.A frente tinhadadoumpassoparaadiante,

umpassoparatrás,masaguarniçãotinhapermanecidofirme,imóvel.Agora,

a mensagem chegou do Comando, dizendo: ganhamos, vamos voltar para

casa.Ossoldadosaplaudiram,bebendoaúltimacachaça.

Fortunato saiu das trincheiras, no sol do outono.Não parecia real que

estavatudoacabado.Findocomaguerradofrio,apósalongaesperaqueos

Page 77: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

tinharelegadoláduranteanos,longedorestodomundo.Eleesticouosbraçosparaosol,comoaquerercoletartodaaluz,todaaenergia,todoocalorque

elepodiaabraçar.

Nãoouviunada.Ogolpefoiatiradopelastrincheirasinimigaseatingiu-o

apenas na frente. A guerra tinha acabado,mas o atirador ainda não sabia

ainda.Umadúziadetirosforamdisparadosali,naborda,noqueatéerapara

ser um dia de paz. O primeiro atingiu Fortunato, mas - como sempre - o

estrondoatingiuatrincheiraquandoomeninojátinhacaído.Enquantoseu

corpopairavanoarporcentenasdemetros,comoquerendovoarparachegar

àaldeianativa,seuscompanheirosresponderamaofogo.

Foiassimqueterminoua longaesperaparaFortunato,quetinhavinte

anosdeidade,tinhaestudadoesabialereescrever.

FIM

Page 78: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

SOBASORDENSDOMONGELOUCO

HEDJANC.S.

De pé atrás da cadeira do capitão, Yuri Andropov tremia e não era porcausadofrionogabinetedomédico.Elenãotemiaamorte,nemaguerra;temiaa loucura. E, no local onde estava, um sanatório, sentia as entranhas setransformarememgelatina.

O médico, atrás de sua mesa, olhava os papéis que o capitão Renkotrouxera.

— Todo esse aparato não seria melhor usado na frente de batalhaprotegendonossopovo,capitãoRenko?

O capitão emitiu um som que pareceu um rosnado curto. Andropovcomeçavaaadmiraromédico.Eletinhacoragem.

—Cincohomens,doiscavaloseumcaminhãonãofariamdiferença.Alémdisso,osenhornãosabecomquemestálidando.

—Refere-seaopacienteouaosenhor?Andropovouviuas juntasdosdedosdocapitãoestalarem.Seestivessem

no campo de batalha, provavelmente teria levado um soco. Ou um golpe desabre.Asbalaseramescassasnoexércitoeaspuniçõescomarmasbrancas,maiscomuns.

— Eu tenho minhas ordens, doutor. — o epíteto saiu com desdém—PrecisolevaressehomemdevoltaaSãoPetersburgo.

O médico foi até a janela. Andropov calculou que ele provavelmenteobservavaocaminhãoRusso-Baltqueostrouxera,comagrandecruzvermelhapintadanaslaterais.Voltou-se.Aexpressãofriatinhasumido.

—Esse homem não pode ser julgado, nem executado pelo que fez. Eu

Page 79: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

gostariamuitodepoder...—Estudá-lo?Comose fosseumbicho?Umanimal?—dessavez foio

capitãoquemdesferiuogolpe.Orostodomédicoficouvermelho.—Alémdomais,execuçãonãoestánanossaordemdodia.

—PorqueoCzarseimportariacomessehomem?—Doutor—Renko faloucomoseexplicasseumacoisa simples auma

criançaburra—Nossasordensforamdadasporoutro.Opomodeadãodomédicosubiuedesceu.Quandofalou, foiquaseum

lamurio:—Rasputin?Mesmosendoodiretordosanatórioumhomemdaciência,Andropov

conseguiasentiromedosupersticiosoqueonomedoMongeLoucocausava.—Nósnãosabemostudo,doutor.Osenhortemaciência,euashistórias

que ouvi sobre seu paciente no campo de batalha. E existem aqueles comoRasputin,graçasaDeuspoucos,queenxergamalém.—ocapitãomudouparaum tom conspiratório— As coisas que contaram sobre esse seu paciente nabatalhadeTannenberg...Rasputinestámuitointeressadoemsabermaissobreosferimentos que ele sofreu, a maneira como se recuperou... Os cadáveres queele...

—Bobagenssupersticiosas.Umhomemécapazdetudoparasobreviver.Canibalismoéumadelasedeserçãoéoutra.

Andropov ouviu uma risadinha vir do Capitão. Renko se levantou,encerrandoa reunião.Odoutor entendeuamensagem.Comasmãos cruzadasatrásdascostas,caminhouatéumarmárioepegouumgrandearodemetaldeondependiamdiversaschaves.

—Venhamcomigo.Nocorredordoisguardasarmadoscomriflesesperavam.Seguiramparaa

enfermaria, o doutor na frente,Andropov e o capitão atrás e os dois soldadosfechandoogrupo.

Odoutoraproximou-sedeumenfermeirograndecomoumursoecareca

Page 80: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

comoumaboladebilharedeuinstruções.Oenfermeiroescutou,balançandoacabeçalentamente,porfim,pegouoarocomaschaves.

— Dimitri vai acompanhá-los. — disse o doutor afastando-se sem sedespedir.

Caminharamporumcorredorestreito.Andropovestremeciaacadagritodado por um paciente. Alguns circulavam pelos corredores, outros estavamsentadosnochãocontemplandoonada.Quandopassaramporumaportaaberta,Andropov atreveu-se a olhar para o interior da cela. Lá dentro um homemencaravaumaparedetotalmentecobertaporumdesenhoquepareciafeitocomcarvão.Eraorostodeumhomemdebarba.Umobservadordesavisadopoderiaconfundi-locomorostodeCristo,masosolhosdeloboeramosdeRasputin.

Andropovpersignou-se.Procuroumanterosolhosfixosnanucaraspadaanavalhadoenfermeiro.

Chegaramaumavelhaportanosfundosdohospital.—Tivemosdemantê-loláembaixo.Algunspacientesficavamempânico

sódeolharparaele.Ealgunsenfermeirostambém.Desceram um lance de escadas e pararam de frente a uma porta de

carvalhoreforçada.Alémdafechadurahaviaduastrancasdeferrolhotãogrossasquepareciamaalavancadeumfuzilmauser.Oenfermeirocomeçoua abrir aporta. No mesmo instante, o capitão fez um gesto e os dois soldados secolocaramaoladodoenfermeiro,osfuzisapostos.

Aporta aberta revelouumpequenoquartode chãode terrabatida.Umaúnicalâmpadapendiadotetoporumfio.Haviaumhomemdeitadonochãoemposiçãofetalsobreumcolchãofino.

— Boris Kozak, — disse o capitão em tom solene e sem entrar noaposento—viemosemnomedoCzar.

O enfermeiro não entrou na cela. Colocou-se de lado, liberando apassagem:

—Está sedado, não pode escutar.Demos o suficiente para derrubar umcavalo.

Page 81: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Ossoldadosentraramnafrente,mantendoohomemsobamiradasarmas.Ocapitãoosseguiu,abaixou-seeobservouopacienteporalgunssegundos.Porfim,ordenouaoshomensqueo levassem.Pegando-oporbaixodosbraços,ossoldados o arrastaram em direção à porta. O capitão foi atrás, enquantoAndropoventrourapidamentenasela.Mexeucomapontadabotanos lençóisonde o homem estivera deitado. Sentia um prazer mórbido em estar ali,perguntando-secomoseriaficaralheioaqualquercoisa,presonoprópriomundodeloucura.

—DisseramqueeleéumVlokoslak1.—avozeraadoenfermeiroassuascostas, que esperava que ele saísse para fechar a porta.—Foi baleado e nãomorreu.Ebebeuosangueecomeupedaçosdosoutrossoldados.

Andropovsaiudaliapressadosemolharparaoenfermeiro.Encontrouocapitãonopátiointernodohospital.Renkoconversavacomo

motoristadoRusso-Balt,provavelmentedandoinstruçõessobreocaminho.Nãoviuopaciente,entãodeduziuquedeviaestarnacarroceriacoberta.Preparava-separamontarseucavalo,quandoocapitãoochamou:

—CaboAndropov,vocêiránocaminhão.Tomaránotasdoqueobservarno trajeto. Rasputin vai querer saber tudo que acontecer. A viagem até SãoPetersburgoélonga,talvezsócheguemosànoite.Nossoprisioneiroprecisaestarbematélá.Eleguardasegredosquepodemserúteis,segredosdevidaemorte.

Andropov escutou o som de passos as suas costas. Girou um pouco acabeçaeviuomotorista seaproximando. Juntocomele,umhomemde idadepuxavaumaovelhaporumacordagrossa.Aproximaram-sedapartedetrásdocaminhão e, com a ajuda dos soldados e de uma rampa feita com tábuas,colocaramoanimalparadentro.Omotoristaentregouumsacoparaoidoso,queseafastoucomumsorrisoondefaltavamváriosdentes.

—Anotetudooqueacontecer—repetiuocapitãoRenko—Oefeitodosedativovaipassareelevaiacordarcomfome.

Enquantoocapitãoseaboletavaao ladodomotoristaeumdossoldados

Page 82: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

montava seu cavalo,Andropov sentia as pernas tremerem ao caminhar para ocaminhão.Subiucomaajudadooutrosoldadoesentou-se.Opacienteacordara.Osolhosbrilhavamcomoosdeumgato,contemplandoprimeiroele,depoisaovelha.Osoldadofezosinaldacruz.

Andropov estava com seu bloco emmãos. A ambulância começou a semover e ele pode ver a janela do doutor. Olhou de novo para o homem, queaindadeitado,observavaaovelhacomoumacobraolhandoumpassarinho.Oanimalemitiasonsdelamento.

Tevecertezadequeoqueveriaalioenlouqueceriaparasempre2.

FIM

Page 83: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

DOCEALIMENTO

KELLYAMORIM

Osoldemeio-diaardiaemseusolhosquandoumamoscapousouemsua

bochecha.Elafaziacócegasaoandar.Ohomemqueriaafastá-ladali,masnão

podia.

Umlíquidoescorreulentamentedesuatezparaapálpebra,dapálpebra

para a maçã do rosto, até chegar em seus lábios. A língua estava seca e

ressecada,masohomemconseguiusentirosabor.Desdecriançaelejágostava

deleitecommel,suamãeoferecia-lhequandoestavaruimdagarganta—ou

àsvezesfingiaestar,sóparatomar.

Mas mesmo sendo o melhor dos meles daquele continente, produzido

pelasmelhoresabelhasdopaísvizinho,aqueleemparticulartinhaumgosto

metálico,ferroso.Umgostodemisericórdiasarcásticaecrueldade.

Amoscatambémgostavadoleitecommelenãoseimportavaemandar

pelorostodohumanodemãosatadasàscostas,dentrodaquelatinad’água;

muito menos se importava com o cheiro dos excrementos que boiavam ao

redor.Apenasqueria saborearoalimento.Naverdade, elagostavado sabor

queomeldavaaosemisturaràsferidasabertasnocorpodohomem.

Para a mosca, não havia importância alguma a procedência daquele

alimento,desdequeservisseaela.Quemtinhasidoaquelehomem,setinha

umafamília,seelesentiador,setinhacometidoalgumcrimeouseforapegoe

colocado naquela situação apenas por ser um jovemArmênio em território

Otomano.Pouco importava seomundoestava emguerra.Ela tinhaque se

alimentar.

Page 84: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Logo em seguidamais uma colega chegou, atraindomais uma e outra

dúzia de moscas. Uma a uma pousando na testa, olhos, nuca, colo. Suas

patinhasencontravamocaminhoparaentrarnoouvido,narizenaboca.

Zunindoemharmonia,poucoapoucoasvarejeirassorviamolíquidoque

semisturavaaosuor,aopusesangue.

Leiteemel.

FIM

Page 85: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

SENHORARÁCZ

LILIANS.BASTIDAS

(baseadoemumahistóriareal)

É inútil, mas toda vez tento proteger o Hector. Guardadas as devidas

proporções, ele é indefeso, chama-me de mãe e faço por merecer. Para

descontrair umpouco, chamo aquilo tudode “Carrossel deNagyrév”, onde

minhas manhãs estão aprisionadas há cerca de dois anos e eu nem sei o

motivo.Claroqueaanalogialevouemcontaossentimentosdomenino,caso

contrário,asituaçãosópoderiasercomparadaaumpesadelosemsaída.

Éque aSenhoraRácznãodesiste nunca.Todos os dias ela apareceno

mesmohoráriocomsuasaiacinzaeseussapatoscheiosdeneve.Nãoimporta

o clima: a neve está lá e não derrete jamais. Suas feições, cuja carranca eu

encaro apósmeses de aproximações sucessivas, sustentamduas luas ocultas

pela névoa da maldade, duas retinas claustrofóbicas que capturam almas.

Aquelesolhos,então,vasculhamacasaàprocuradoalvoeeisqueHectoré

sempre encontrado, esteja ele ao lado, dentro ou atrás de qualquer abrigo.

Satisfeita, a Senhora Rácz deposita sobre a mesa uma frasqueira de alças

esgarçadasesoltaum“olá”metálico.

Emmomentosassim,opânicotomacontadomeucoração.Maisumavez

ela foi capaz de descobrir Hector debilmente encolhido atrás de mim,

agarrando-me as saias, chorando baixinho. “Fique quietinho, Hector! Não

falenada!”

Page 86: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Quando a intrusa vai embora, pego folhas e começo a escrever. Émeu

jeitodedesabafar.

Início:

Nãopossodizerquetudocomeçounesteounaqueleano.Osfatostiveram

origememperíodosdiversos,comosearodadotempogirasseparatodosos

lados simultaneamente. Não só o passado recente e o passado longínquo

determinaram minha história, como também o futuro parece compor a

estranhasinfoniaquesouobrigadaaouviragora.

1986:

Casei-me como homemdaminhavida e tive filhos.Empouco tempo,

conseguimosnosestabilizaremeumaiordesejosetransformouemrealidade:

compramosumacasamaravilhosaenosmudamosparaosul,ondeoinverno

acrescentava charme à paisagem, aconchego aos casais emuita utilidade às

lareiras! Cercado por vales e bosques, nosso novo lar parecia um sonho que

jamaischegariaaofim.

2005:

Nãosei se foianevascadaqueleanoouoesvaziamentodonossoninho

que deixou meu marido deprimido. De repente, as crianças cresceram e

partiram para a Universidade, abandonando-nos naquele lugar cheio de

quartosdesocupados.Parafugirdatristeza,Mauroresolveuaprofundarseus

conhecimentosemHistóriaGeral,dandoênfaseàépocadaPrimeiraGuerra

Mundial.Logo,eleficouentusiasmado.Bastouqueanevederretesseparaque

ocarteironosentregasseuma infinidadede itensbélicos,cujaautenticidade

eracomprovadaporcertificadosdeorigemincontestável.Botasusadaspelos

combatentes, medalhas brilhantes, fotos raras e até peças de uma

metralhadora Lewis passaram a invadir nossa sala. No início, meu marido

parecia contente com seus brinquedinhos, porém, com o avanço dos anos,

Page 87: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

aquilocomeçouameincomodar...

2013:

Vidente.Sensitiva.Médium.

Podemechamarcomoquiser,eunãoligo.Ofatoéquenemmeassustei

quandopassei a ver ummenininhoperambulandopela casa.A julgar pelas

suas roupase cortede cabelo, entendiquea coisa toda tinhaacontecidohá

muitotempo.Compaciência,fiqueiesperandoqueeletomasseainiciativae,

numdeterminadodia,omeninoresolveuseaproximar:

—Querserminhamãe?

Lógicoqueeuqueria!Àquelaalturameusfilhosmoravamnoexterioreo

Mauro, o tal homem da minha vida, andava muito estranho. Desde nossa

últimabrigapor causada suacoleçãoagourenta, situaçãoque culminouna

mudançadetodooacervoparaoporão,eleresolveutrancarseubomhumor

juntocomaquelastralhasesetornouumapessoapesada.

2016:

Eusabiaqueaspresençasdomeninoedeoutrosespíritosnacasatinham

algumelocomasmaniasdomeumarido,masnãoentendiporqueascoisas

pioraram depois que os artigos de guerra foram guardados no porão. De

algumaforma,Maurodavaumjeitodeburlarasregraseacabeiencontrando

debaixodanossacamaumcapaceteperfuradoporbalas.Fiqueicompadecida

dosoldadoquehaviafalecidoporcausadaquelestirosechegueiamearrepiar

comapotênciacármicadaqueleobjeto.Coincidênciaounão,naquelamesma

manhã,aSenhoraRáczdescobriuqueHectorestavacomigo.

2027:

SonheiqueestávamoscomemorandooNataldaqueleano.Acasaestava

cheia de gente (tínhamos netos!) eMauro parecia feliz. Depois da troca de

Page 88: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

presentes, fui até a varanda e encontrei a SenhoraRácz comuma rosa nas

mãos.Seusolhosnãoestavammaisassustadoreseacordeisobressaltada.

1918:

O que vou escrever agora foi o Hector quem me contou. Como as

revelações foram sussurradas em meus ouvidos em condições praticamente

oníricas, tive que checar os dados com oMauro e descobri que a história a

seguir realmente aconteceu. Existem fotos, registros e muitos documentos

históricos que confirmam os fatos estarrecedores que ocorreram no vilarejo

húngaro de Nagyrév na época da Primeira Guerra Mundial, local em que

Hectormorouduranteseusbrevesseteanosdevida.

O vilarejo era pobre e ficava às margens do rio Tisza. Depois que os

homensforamlutarnaguerra,asfamíliascomeçaramapassarfome.Como

sofrimentoeascondiçõesterríveisdesobrevivência,umaespéciedefeitiçoou

de loucura coletiva passou a corromper o espírito das esposas de Nagyrév.

ComaajudadaSenhoraRácz,umaparteiraquetambémpraticavaabortos,

asmulherescomeçaramaselivrardaspessoasconsideradas“inconvenientes”.

Idosos,enfermos,filhosindesejadoseatémesmoosmaridosrecém-chegados

dos campos de batalha foram mortos com arsênico. A Senhora Rácz, que

tinhaaltograudeliderançaentreasmoradoras,forneciaovenenonecessário

paraqueosassassinatosfossemcometidos.Quandoasautoridadesdascidades

vizinhas decidiram investigar aquelas mortes, a parteira e suas cúmplices

fugiram para a floresta, mas não forammuito longe por causa do inverno

rigoroso. Hector, que era órfão e vivia perambulando por ali, acabou

encontrando o esconderijo das assassinas e contou tudo aos policiais. As

mulherescapturadas foramcondenadasàprisãoperpétuaeaSenhoraRácz

foiexecutadanumamanhãdeneve.

2018:

Nuncaquissaberoqueaconteceucomopequenoórfão.Fome?Doença?

Page 89: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Acidente?Sou incapazde conversar comele sobre estesassuntos.A sedede

vingança da Senhora Rácz já é um problema grande demais para o pobre

Hector.

Atéosdiasdehoje,sigoemfrentenestaestranhabatalhadobemcontra

omal.NãopensemqueconsideroaparteiradeNagyrévcomoaúnicaparte

mádestahistória.Não,claroquenão!EumesmatenhofalhaseoMauroque

odiga!EporfalaremMauro,decidimereaproximaroquantoantes,afinal,

tenho que parar de cuidar dosmortos e darmais atenção aos vivos.Quem

sabeaquelesonhofuturistasobreterumafamíliagrandeecheiadenetosse

transformeemrealidade?

Equandoestouassimdojeitoqueestouagora,ouseja,confianteesem

medo, tenhoa certezadequequalificar aspossíveis condiçõesde existência

em polos como “vida” ou “morte” é apenas um exercício limitado e

puramenteintelectual.

Oqueimportaéoamor.Eseháumaforçamalignanistotudo,nãoéa

SenhoraRácz.Éaguerra.

FIM

Page 90: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

OFANTASMAQUEVEMDAS

TRINCHEIRAS

MARCIAMEDEIROS

NaquelanoiteajovemMarieacordouassustada,maisdoquedecostume,

devido às batidas que ouviu na janela do seu quarto. Somente uma pessoa

batiadaquelejeito,masestavaa137kmdali,lutandoparamanteraguerra

longedela.EleeraJean-PierreLeloup,seunoivo,tenentedo15ºRegimento

dos Dragões de Bourdeaux. Um dos primeiros homens a se apresentar ao

serviço.

ElasabiaquenãopodiaserJean-Pierre.Naquelemomentoeleestavaem

Perigueux, enfrentando as tropas alemãs que haviam invadido a França e

estavam assolando a região, trazendo morte e desespero no rastro de seus

blindados.

Asbatidassetornarammais firmese insistentes...Toc,toc,toctoc,toc.

Sim! Sim! Só podia ser ele. Em muitas outras noites passadas, inclusive

naquela antes de sua partida para frente de batalha, Jean-Pierre havia se

apresentadoasuajanela,batendodaquelejeito.Eelaoconvidaraaentrare,

depoisdoamor,dormiraemseusbraços.Sim,sópodiaserele!

Apressada,elaajeitouoscabelosecorreuparaajanelaabrindo-adepar

a par, mas não havia nada nem ninguém ali. Apenas a rua tranquila e

silenciosa, a noite fria e estrelada e uma lua sinistramente vermelha que

pareciaolharparaela,eamaldiçoá-la.

Page 91: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Umaluadesangue,comodiriasuaavócigana.Umaluademorte...

OventofrioinvadiuoquartoeMariefechouajanela,sementenderoque

acontecia. Voltou lentamente para a cama, mas antes que se deitasse,

novamenteouviuaquelesomdistintodaspancadasnajanela.

—Jean-Pierre,-murmurouela,andandoapassoslargosatéajanela-é

você?

Avozquelhefaloueradeseuamado,porémaoinvésdaalegriaquelhe

abarcava a alma quando o ouvia, apenas uma lâmina gélida de tristeza

atravessouseucoração,quandoescutouaspalavrasquelhechegavamdolado

defora:

—Simminhaquerida,soueu!Émeianoiteevimatéaquiantesqueo

solselevanteenuncamaiseupossaentreosvivoscaminhar.Émeianoite,e

vimatéaquiantesqueocaixãodedefuntomeenvolvaparasempreeaterra

consumaminhacarne.Vimatéaquiparamedespedir.Voeiatévocê,minha

amada, e no caminho passei por árvores cujos galhos mortos tentaram

prendermeuespíritoparaimpedir-medechegaratévocê,passeiporregatos

cujaságuasfrescasmeuspésnuncamaissentirão.

Vim depressa, querida, omais depressa que pude! Você temmedo dos

mortos,Marie?Temmedodequeelesvenhamatévocêdeclararoseuamor?

Vejoagoraquetenhomuitopoucotempo.Elesjávêmemmeuencalço.São

tantos,Marie,sãotantos.Todososhomensquemateinestaguerraeemtodas

asoutrasquelutei.Elesestãovindoedançandoadançamacabradamorte.

Vejoseusuniformesemfrangalhos,vejoseustorsosapodrecidosecobertosde

vermes,suascarcaçasdescarnadas.

Nãotemosmuitotempo,meuamor.Abraajanelaesedespeçademim,

Marie,antesqueosolnasçaeeunãopossamaiscaminharentreosvivos.

Um arrepio percorreu a nuca da jovem, sacudindo seus ombros. Suas

Page 92: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

mãos seguraram o trinco de ferro da veneziana e começaram a girá-lolentamente.Quandoelaabriua janela,diantedesinãoviunada.Apenaso

mesmocenáriodesempre:aruatranquilaesilenciosa,anoitefriaeestrelada

eumaluasinistramentevermelhaquepareciaolharparaela,eamaldiçoá-la.

Aquela lua vermelha fez com que Marie se persignasse. Suspirando e

pensando em Jean-Pierre, voltou para a cama e as batidas iniciaram logo

depoisqueelasedeitou.

—Marie,-elaouviuavozdizendo-abraajanela!Rápido,porfavor!

Ouçoatrásdemimocantoagourentodeumbandodemortoseelesvêmmais

velozesdoquemeuspassosmetrouxeramatéaqui.Ouçoseuspéscadavéricos

quebrandoasfolhassecasquecobremochãodaflorestaondeestáomeu

cadáver!

Marie,Marie...Porfavor,abraajanela,minhaquerida.Eusóquerome

despedirantesqueessasmãosmeagarrememelevemparasempre.Antesque

elesmeafastemdevocêeternamente!Vocêtemmedodosmortos,Marie?Tem

medodequeelesvenhamatévocêdeclararoseuamor?

Umsuorfriocorreupelatestadajovemeelaestremeceu.Eratudoculpa

daquelamalditaguerra.AtensãoquepairavasobreoardeBourdeauxpelo

fato de se saber tão perto da frente de batalha; aquela lua vermelha e

agourentaquepairavanocéu...Tudoaquiloestavaacabandocomosnervos

deMarie.

Elalevantou-seresolutaefoiatéajanela,agarrouotrincofirmementee

resolveuabri-la.Tinhacertezadequeveriaoquejáhaviavistoduasvezes:a

ruatranquilaesilenciosa,anoite friaeestreladaeaquela luasinistramente

vermelha.

Masquandoavenezianaabriu-se,umnovocenáriodescortinou-sediante

dela.SeuamadoJean-Pierrelhesorria,masosorrisoqueelelhedavanãoera

Page 93: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

ternoeacolhedortalqualelaestavaacostumada.Oladoesquerdodeseubelo

rostohaviasidodestruído:oolhosangrentoestavapendendopelafaceeera

possívelverosdentesquerestavamnabocapeloburacoabertoondeumdia

houverasuabochecha.

Ocourocabeludohaviasidoarrancado,revelandoseuescalpoedeixando

entreveraquiealioossobrancodocrânio.Obraçodireitopendiadistendido,

deslocadodoombroeouniformeestavasujodeterra,folhasesangue.Aquele

ser grotesco, que um dia fora seu noivo, tentou erguer-se desengonçado,

desconjuntado.

Eleestendeuoquerestavadobraçoesquerdonadireçãodela.

Marieolhouparaseunoivo,horrorizadasemsaberoquefazer.Afastou-se

cambaleando, enquanto aquele ser que um dia fora Jean-Pierre escalava a

janela,comotantasvezeshaviafeito,entravaejánochãosearrastavapelo

quartoemdireçãoaela.

—Minhaamada, -disseele -não tema!Vimapenasmedespedirantes

queosolnasçaeeunãopossamaiscaminharentreosvivos!AhMarie,Marie!

Eu tinha tantos planos para nós, mas agora... Ah! Eles estão vindo e são

tantos!

Marie fechou os olhos e gritou. Toda a casa alvoroçou-se e a porta do

quartofoiabertaporsuamãe,queaviudepépertodacama,comospunhos

fechados,tremendoeemestadodechoque.Elacorreuparafecharajanelae

depoisabraçouafilha,quetentoudesvencilhar-se.

—Calma,Marie,-disseamãe-soueu!Quehouve,filha?Quefoi?

—N-a-a-ada,mãe.—gaguejouela—Foiumpesadelo.

Comoexplicaroqueviraeamensagemquerecebera?

—Volteadormirfilha.Essaguerraestádeixandoatodoscomosnervos

Page 94: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

àflordapele.Masvaificartudobem...

Marieolhouparasuamãeeseusolhosseencheramdelágrimas.Elaquis

dizerquenão.Quenãoia.QuisdizerqueJean-Pierreestavamorto,masnão

conseguiu,apenasosilênciosefezpresenteentreasduaseelafoiconduzida

pelamãeparaacama.

Exausta,dormiuagitadaorestantedaquelanoite.

Passaram-se sete dias daquela terrível noite onde a lua vermelha

agourava no céu.EmBourdeaux não se tinhamuitas notícias da frente de

batalha,anãoserquedefatooexércitofrancêshaviaconseguidorechaçaro

inimigodePerigeux.Todosrespiraramaliviadosecomemoraramavitória.

Na tarde do oitavo dia após estas alvissareiras novas, um homem

uniformizadobateuàportadacasadafamília,tranzendonamãoumacarta

docomandantedo15ºRegimentodosDragõesdeBourdeaux.QuandoMarie

abriuaporta,eleapenasentregouamissiva,bateucontinênciaeretirou-seem

silêncio.

Umsoluçosubiupelagargantadajovemeexplodiuemumgritoquando

ela leu amensagem, revelando que Jean-Pierremorrera em combate havia

oito dias, na cidade de Perigueux, vítima de uma granada lançada por um

soldadoalemão.

Em meio aos soluços, ela ouvia em sua mente a voz de seu amado

perguntuntando-lhe:“Você temmedodosmortos,Marie?Temmedodeque

elesvenhamatévocêdeclararoseuamor?”

FIM

Page 95: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

NASTRINCHEIRAS

C.B.KAIHATSU

Verdun,junhode1916

Perdoai,Pai...porqueeupequei.

Ohorror!Éohorror!Aguerraédeumabestialidadesemtamanho.Meu

tempo está acabando e ninguém vai conhecer minha história. Tampouco o

meu crime.Nãopeço amisericórdiadoshomens, apenas adeDeusquando

chegar a hora. Deste cenário dantesco, a única lembrança sobre mim será

minhaplacadeidentificação,estaseráentregueaminhaesposa.Meufilhome

conheceráapenasporfotos,porDeus!Eunemovinascer!

Euvejoopadre,maselenãopodemeouvir.SeiqueoSenhorpode.O

sacerdoteveiomedaraextrema-unção.EuseiqueoSenhortudosabeetudo

vê,contudo,precisoconfessaromeucrime,elemetirouasanidade,empatiae

bondade.MeunomeéJean-PaulLeclerc,nasci emGrenoble, eraprimavera,

dia20demaiode1893.Perdoai,Pai...porqueeupequei.

Casei-me com Juliette, em 18 de junho de 1915, dois meses depois ela

estava grávida.Apesar da guerra que começara em 1914 e nosso país estar

inteiramenteenvolvido,pensamosquepassaríamosincólumesporela.

Amortedeumhomemfoioestopim.Quenomebonito,não?Estopim.

Na verdade, foi a desculpa para o que viria a seguir. O assassinato do

arquiduqueFranciscoFernandodaÁustria-Hungriametrouxeatéaqui.

Eu não sei dizer como tudo começou, mas sei que o Império Alemão

atacouoexércitodomeupaíscomgásclorídrico.Ouviashistóriaquandofui

Page 96: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

convocado,emoutubrode1915.Algunsmesesantes,osalemãescomeçarama

usararmasquímicas,nósnosembrenhávamosemtrincheiras,protegidaspor

aramefarpado,tínhamosarmasdefogo,baionetaseminas-terrestres,masos

bastardostinhamessemalditogás.Umamortelentaedolorosaeleprovoca.

Cega,asfixia,dánáuseaeceifaavida.

Só fui entendermelhor o que os oficiais que serviamamais tempome

relataram, a primeira vez que vi homensmatando emorrendo sem saber o

porquê.Sabíamosque eramos inimigos,masninguém sabiaao certooque

exatamente estava defendendo. No início, achei nobre dizer que era pela

França.Agoraseiqueéporsenhoresquenemestãoaquinosvendomorrer.

Euvejoosolhosdelemefitandoeescutoseugritoensurdecedortodosos

dias.Amorte, talvez seja umabenção paramim.Perdoai,Pai... porque eu

pequei.

Sentifome,frio,osolqueimavaminhapele,meucorpoerafustigadopela

chuva,eutinhatantasaudadedecasa.Nãousoissoemminhadefesa,seique

meu crime é indefensável, só peço queme julgue com parcimônia.Eu nem

semprefuiummonstro,oSenhorsabe.

Eumateiumhomemqueprovavelmentetinhaumaesposa,pais, talvez

filhos.Eusódispareiaminhaarmaeelemorreu.Eleaparentavatermaisou

menosaminhaidade,eraumadasminhasprimeirassemanasnastrincheiras

e eu omatei.Poucomais de duas décadas que se foram emminutos.Foi o

primeirodemuitosqueeumatei.Tambémvimortes.Nomesmodia,vium

homemseratingidoaomeulado.EraumsujeitobonachãodeToulose,estava

sempre de bom-humor, Pierre Dubois. Naquele dia, conversamos enquanto

almoçávamos,eagoraeleestavamorto.Nossossuperioresotinhamcomoum

pária, ele só era um homem bom. Acho que o mais decente entre nós. Eu

aindanãoeraomonstroquemetornei.Perdoai,Pai...porqueeupequei!

Nas trincheiras, era seguro ao seumodo,mas entre as trincheiras, nas

Page 97: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

“terrasdeninguém”, eraondeviaamaioriademeus companheirosmorrer.

Os nossos e os inimigosminavamo território entre trincheiras, vi inúmeros

corposdestroçadospelaexplosão.

“Mutter!”,essegritoaindaecoanaminhamente.

Ahoradapartidaseaproxima,vouconfessaromeumaiorcrime.Eunão

tinha uma visão plena, só atirei. Ele gritou “Mutter!”, eu não sabia o que

aquela palavra significava, depois me disseram que significava “mãe” em

alemão.Elemorreuchamandopelamãe.Quandochegueipertoviquenãoera

umhomem,massimumacriança.Eumateiumacriançainocente!

Issomemudouprofundamente,maculou aminhaalma.Eu fechava os

olhos e via os olhos daquele garoto, a partir daquele dia, nunca mais tive

sonhos,sópesadeloseemtodosouviaavozdele,umgritoquenemparecia

humano, sofrido. Uma única palavra: “Mutter”. Perdoai, pai... porque eu

pequei.

Emtodohomemque eumatava euviao rostodaquelemenino.Minha

sanidade era consumida dia após dia. Tornei-me um homem vil, o soldado

mais impiedoso da minha tropa. Em pouco tempo, recebi a alcunha de

CavaleirodoApocalipse.Matavamaisquetodos, sentiaprazeremmatar.A

cada dia ficava mais violento e repulsivo, notava o olhar de desprezo de

soldadosmaisnobresqueeu,seéquehánobrezanaguerra,contudo,euerao

que mais trazia desonra ao meu batalhão. Eu não me importava. E de

qualquer modo, eu era necessário, então todos me toleravam. Para cada

soldadodooutroladoqueeumatava,eraumachanceamaisdesobreviver.

A famademinha sanhaassassiname trouxeatéVerdun.Fuimandado

paracádepoisqueumaofensivaalemãprovocoumuitasbaixasfrancesas.Em

brevesereimaisumadessasbaixas.

Mireiosolhosdosoldadoquemeatingiu.Pareciamiguaisaosdacriança

Page 98: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

que assassinei. Trouxeram-me aqui para receber cuidadosmédicos. Sei que

voumorrer,elestambémsabem,porissoopadre.

Peçoperdãopelosmeuspecados.Perdoai,Pai...porqueeupequei.

Avidaestáseesvaindodomeuser.Mutter!

***

Umavozguturalecoapeloambiente,omedomeparalisa:

“Jean-Paul Leclerc, seja bem-vindo! Há muito esperava sua alma no

inferno!”.

FIM

Page 99: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

ONAVIODENINO

ALBERTOARECCHI

NinotinhanascidoemumacidadelitorâneadaCalábria.Nãoforauma

sorte, a de nascer emdezembrode 1895, sendo o filhoprimogênito.Poucos

mesesantesdeelecompletarvinteanos,aItáliadeclarouguerraaosimpérios

europeus.Um dia,Nino recebeu um cartão postal colorido com a inscrição

“Precetto”eencontrou-sealistadonaMarinha.Umdestinonormal,óbvio,já

quecresceradesdeainfânciaemcontatoíntimocomoelementodaágua.

Elenuncahaviarecebidocorrespondênciaantesemsuavida.Aoentregar

o cartão colorido, o carteiro lhe disse que ele tinha que se apresentar aos

Carabinieri.“Porquê?Eunãofiznadadeerrado”.Dequalquerforma,nodia

seguinte,Ninovestiuumajaqueta,pegouocartãopostalefoiatéaestação

dosgendarmes.Disseram-lhequetinhaquesairparaoserviçomilitar.Opaís

estavaemguerraeprecisavadele.Nãodevia levarquasenadacomele,pois

paravesti-loealimentá-loteriapensadoorei.

Nodiadapartidalavou-secuidadosamente,cortouocabelo,penteou-se

bem,vestiuumacamisalimpaeumpardecalçasnovasefoiatéàdelegacia,

juntocomoutrosjovenscomoele.ForamenviadosaTáranto,paraocentro

de treinamento. Viajaram de trem, com o ruído rítmico das rodas e

articulaçõesentreostrilhosqueosfaziaadormecer.Demorouquasedezhoras

para chegar ao seudestino. Saíramdo trem e foramacompanhados atéum

quartel.Deram-lhesumpacotecomsuasroupas:duascamisas,duasjaquetas,

duascalças,doisparesdesapatos,acalcinhaquerasgavaapeleeoboné,que

sempre tinhamque usar na cabeça, quando estavam ao ar livre.As roupas

Page 100: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

civis ficaramguardadasnamala.Nino tornou-se, para todos os efeitos, umsoldado,ummarinheirodoReino.

Depoisvieramassemanasquesechamavam“treinamento”:explicaram-

lhe como saudar o superior, ensinaram a correr, a marchar, a carregar no

ombroaarma,queerachamadademosquete.

Comapenasvinteanos,ojovemmarinheiroseviuabordodeumnavio

de passageiros dos caminhos-de-ferro, renomeado pomposamente como

“cruzador leve” e usado para transportar refugiados e tropas de ambos os

ladosdoCanaldeÓtranto.Comoemumjogodeganso,asprincipaisfiguras

daSérvia(famíliareal,ministroseoutraspessoasimportantes)foramlevadas

dooutro ladodomar, enquantoos soldadosbritânicos foramabordados em

Bríndisi para ir lutar na frente de uma guerra de outros. Os marinheiros

italianostransferiamfuzileirosbritânicosparaAlbânia,entãoparalutarpara

aSérvia, contra os croatas e húngaros, emnomede um rei que já havia-se

refugiado na Itália... Tudo, em suma, combatendo uma guerra para a qual

elesnãotinhamsentimentonenhum.Mistériosemilagresdaguerramoderna!

Namanhã do sábado, 8 de janeiro, sob um vento forte, o navio devia

embarcaremumbatalhãodesoldadosbritânicos,destinadosadesembarcar

em Vlora e seguir para a frente. A travessia levava de sete a oito horas,

dependendo do vento e dos desvios necessários para evitar os campos

minados. Um mês antes, um submarino austríaco havia reforçado os

obstáculos,disseminandonovosartefatosexplosivosnaquelapartedomar.

Naquelamanhã,pareciaaNinoqueaquelesqueconheciadedicassem-lhe

uma atenção especial: um sorriso, um olhar, um gesto, um pequeno cavalo

relinchandoanexadoaocarrinho,naesquinadarua...Omundopareciaabrir-

se,naluzdamanhãfrescaeventosa.

AequipedeNino tinhaa tarefadecolocarabordoumacompanhiade

soldados britânicos, escoltá-los sob a ponte e organizá-los, de modo que a

Page 101: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

cargafossedistribuídadentrodonaviodemaneiraequilibrada.Animadopor

sua grande curiosidade, o jovem empreendeu uma longa conversa com um

graduadododepartamentoaliado.Nenhumdelesentendianemumapalavra

dalínguadooutro.Osdoisconseguiram,noentanto,superaralinguagemeas

diferençasexpressivasecomeçarama“falar”dissoedaquilo:acomposiçãode

suasfamílias,umadescriçãosumáriadoslugaresdeorigemedosmundos,tão

diferentes,deondevieram.Aconversaajudouapassarotempo,jáquetodoo

diatinhaquepassarnanavegação.

Poucodepoisdasoitohorasdamanhã,onaviodeixouoportodeBríndisi

e enfrentou as vagas transversais longas, que o vento do norte empurrava

contra seu ladoesquerdo.Vagasameaçadoras,que traziamo riscodeminas

perdidas.

A mina, que parecia um grande tambor de combustível, foi vista

dançando na crista de uma vaga longa, quando já era tarde demais para

evitá-la. Houve poucos minutos de pânico, para o pessoal que estava no

convés do lado da porta. Em seguida, a bomba tocou o lado do navio e

rebentou,comumestrondoviolento.Aexplosãocausouarápida inundação

doscompartimentosbaixosdaembarcação,quenãoeramblindados,porque

nãonasceracomonaviodecombate.

Espanto,estuporfatal,arrepiante,paratodosos540homensquehaviam

embarcadononavio.EspantonosolhosdeNinoeseusnovosamigosingleses,

dosquaisnemsabemosonome.Ouviramobaque,umamudançaviolenta,a

crisedefolhasdemetalemtornodeles,ederepenteomundointeiroestava

virado,rolandounscontraosoutrostodososhomensqueestavamnoconvés

inferior.

A água entrava rapidamente nos compartimentos, gorgolejando e

arrastando os objetos que encontrava. Só quando os quartos foram

completamente inundados, os corpos começarama flutuar, nummovimento

Page 102: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

irreal, como se tivessem ficado sempeso, enquanto os destroços se fundiamparabaixo,até irdeitar-senofundodomar,descansandonoladoperfurado

pelamina. O caixão de aço afundou no líquido gelado domar de inverno,

levando com ele uma empresa de fuzileiros britânicos e o grupo de

marinheirositalianosqueestavamcomeles.

NacasadomarinheiroNinonenhumamedalhachegou,nenhumacarta

escrita nem assinada com letras douradas, como só pode acontecer nas

palavrasdascanções.

Permaneceuumnomevagonasgenealogiasdafamília,emqueoprimeiro

dossobrinhosmasculinostomavaregularmenteonomedeseuavôpaterno.O

nomedoprimogênito,entãopassouparaofilhodeumirmãomaisnovo.

***

NB—Estahistóriaéreal.Ninoeraoirmãomaiordemeupai,quenascera

em1900.Onavio,nomeado“Palermo”,aindahojedescansaemqualquerlugar,

nofundodoCanaldeÓtranto.

Meu pai também falhou partir para a guerra no mês de julho de 1918,

quando acabou seus 18 anos, mas não houve o tempo para empenhá-lho nos

combatesantesdofimdaguerra.

FIM

Page 103: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

OFLAUTISTA

ALISONSILVEIRAMORAIS

Meuavôéalemão,viveunaAlemanhadurantegrandepartedavida,em

Hamelin. Eu sabia que ele havia participado da Primeira GuerraMundial,

masnuncativecoragemdeperguntarnadasobreoassunto,afinaldecontas,

imagino que se ele nunca tocou no assunto, é porque não devia ter boas

lembrançasdaqueletempo.Afinal,quemteria?

Eleeraumhomemdurão,cheiodecicatrizesdaGuerraeex-comandante

doExércitoAlemãoemváriasbatalhas.

Um dia ele sofreu um ataque cardíaco, ele já usava um marca-passo,

entãofoiumasituaçãotensaparatodaafamília,fuivisitá-lonoHospital,evi

que estavamuito fraco. E foi naquele dia, que eleme revelou seu segredo,

perguntouseeuqueriaconversar...eeudissequesim.

EleperguntouseeuconheciaalendadoflautistadeHamelin.Deiumas

boasrisadas,porqueelemesmojáhaviamecontadoessafábulamuitasvezes,

eraumahistóriaquesurgiunaIdadeMédia,batidademais...Sóquea

expressãoemseurostoficoucontraídaefriaeseuolhardistante,foiaíqueele

dissequeconheceuoflautistapessoalmente...naGuerra.

Final de 1916, a Alemanha já estava sentindo na pele os prejuízos da

Guerra,perdendomilharesdecivis,racionandocomida,matandoogadopara

poderem comer os grãos, enfrentando um caos econômico e social. Todos

sabiamqueaAlemanhanãotinhacondiçõesdesemanteremumaGuerrapor

maisdoquealgunsmeses,masláestavamossoldados,morrendoumporum,

emnomedeumafalsaliberdadeejustiça.

Page 104: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Meu avô disse que conheceu um homem chamado Ernest quando era

comandante. Ernest von Klauss, filho de holandeses, era um garoto

magricelo, com olhos muito profundos e sem força ou energia para nada.

Nuncahaviamatadoninguémemalconseguiasegurarumaarma.Elechegou

nomeiodeumabatalhaemFlanderscontraosfranceses.Osalemãesestavam

emdesvantagem,os testes comasbombasdegás tóxiconosdiasanteriores

mostraram-sepositivosemYpres, entãomeuavôresolveucomeçaros testes

tambémcomosFlammenwerfer35e41nosdiasseguintes,ostemidoslança-

chamasalimentadocomgasolinaealcatrão.

Ernesteraextremamentetímidoeintrovertido,masjánasegundanoite

sedirigiuaomeuavôedissequepoderiaajudá-losnasbatalhasdodia

seguinte.Elegarantiuquefariaosfrancesesrecuaremseocomandante

prometesseliberá-lodaGuerra.Meuavôficoucomovidocomseuatode

bravuraquepareciamaisumacartadesuicídio,preferiusimplesmentenão

questionarsobreosdetalhes,afinal,aquilopareciainsanidade.Então,aceitou

oacordoaindatotalmentecéticosobreoqueacontecerianodiaseguinte.

Pelamanhã,todosviramErnestsedirigindoàstrincheirassemsuaarma

esemseucapacete,estavacomumlaçocoloridoatarraxadonopeitodeseu

uniformeeumaflautaemsuasmãos.Antesmesmodealguémfalaralguma

coisa, ou zombarem dele, o garoto concentrado começou a tocar sua flauta

docemente, uma melodia harmoniosa e cheia de voltas, ritmada e quase

alegórica. Não era o hino, nem uma música inspiradora para os grandes

heróis,nemamarchamilitar,eraumamúsicalépida,quaseinfantil.

Emquestão de algunsminutos, um ruído crescente e incomumdemais

para ser associado a qualquer coisa surgiu distante, todos começaram a

procurardeondevinhaaquilo,menosErnest,que continuava tocando.Um

rato apareceu correndo passando pelas pernas dos soldados em direção a

Ernest, parou em seu pé e sentou, depois o segundo, terceiro, quarto, e

Page 105: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

dezenas,ecentenasderatosinvadiramastrincheiras.

Os soldados estavam assombrados, muitos fizeram o sinal da cruz, e

outros ainda rezaram, meu avô fez sinal positivo para que Ernest

prosseguisse, então ele parou de tocar por um instante e disse para que

abaixassemasarmaseobservassem.Oritmodamelodiaficoumaisrápidae

os ratos começaram a se agitar, se amontoando aos poucos, então com um

últimosoproforteemsuaflauta,osratoscorreramparaforadastrincheiras

pelocampoabertoemdireçãoaosinimigos.Ernestolhouparatodosedisse:

“Agoraouçamamelodiadosratos”.

Um tiro foi ouvido, 2, 4, 25, muitos tiros e pessoas berrando em

desespero,umverdadeiropandemôniotomoucontadastrincheirasfrancesas,

ratosferozesefamintospareciambrotardochãoarrancandopedaçosdapele

dos soldados, entrando em suas roupas, mordendo suas orelhas e atacando

seus olhos e boca, centenas de milhares de ratos carregando a sujeira e a

doençaparaomeiodaqueleshomens.Eassimfoi...aFrançarecuounaquele

diaantesmesmodeelecomeçar...

Aquela data ficaria marcada para os alemães, puderam passar grande

parte do dia fazendo manutenções e parte descansando, graças à Ernest.

Então o comandante fez o que ninguém poderia imaginar, mandou

capturaremErnest,algemá-loeprendê-lo.Seupoderdeencantamentoeasua

ajudaeraprimordialparavenceremaGuerra.

Ernest argumentou que era um acordo, que um homem de verdade

cumpre com sua palavra, ainda mais se tratando de um comandante do

Exército,masmeuavôfoiimplacável,dissequeelenãopassavadeumjovem

estúpido,equenuncaterianenhumaglóriaquenãofosseadecontribuircom

aGuerra,tentouconvencê-lodeformaduraqueeleseriagrande,setornaria

umherói e que conquistaria tudo que queria. E entãoErnest, sem se quer

olhar nos olhos do meu avô, guardando um grande ódio em seu peito,

Page 106: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

concordouemajudarnapróximabatalha.

Odiaseguintefoioestopim.Ernestfoiliberadodesuasalgemas,pegou

suaflauta,prendeuseulaçocoloridonopeitoeseguiuparaastrincheiras,os

homens cumprimentavam-no e alguns batiam palmas e o reverenciavam

enquantoandava.Ernestnãoretribuiunemoolhar,nemumsinaldecabeça,

nemumagradecimento.Parounofinaldatrincheiraepôs-seatocar.Porém,

dessa vez amelodia se propagavamuito diferente da anterior.Ernest disse:

“Ouçamcomatenção,aobaléfúnebre”,umsomcaóticosaltitavapelosares,

uma mistura melancólica de marcha fúnebre com mudanças de tempo

confusas que como mágica se tornavam uma alegre e dançante melodia

bizarra.

Nenhumratoapareceu,emaisdoquealgunsminutosforamnecessários

paraqueasprópriaspessoasnatrincheiracomeçassemadançar.Seuscorpos

nãoobedeciammais, todos ficaramapavorados,pois estavamperfeitamente

consciente daquilo, mas seus corpos simplesmente não paravam de dançar

conformeamúsica.Inclusivemeuavô.

Ele direcionou todos os soldados para fora das trincheiras e quando

puderamperceber,os soldados inimigos tambémestavamemcampoaberto,

todosdançando,semseuscapacetesearmas.Prelúdiodadançadamorte.

Quandotodosseencontraramemumgrandecírculo,oflautistasorrindo

continuousuamelodiadançandotambémentreossoldados.Direcionouosom

desuaflautaparameuavô,ofeziratéabase,epegarolançachamasqueele

tantoqueriatestar.

Ernest saiu do círculo devagar. Com os olhos bem arregalados, os

soldadospuderamver as labaredas se formando comprecisão, ateando fogo

neles enquanto dançavam, o lança chamas cuspia fogo e gasolina, e uma

grandefogueiradesoldadosemagoniafoioqueaquilosetornou,dançaram

atéperderaconsciência,todoscarbonizadosvivos...

Page 107: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Ernestficoucaraacaracommeuavô,observavacuriosoaslágrimasque

escorriamdeseusolhos,entãomudouamúsicanovamente,eosratosvieram.

Enquantoelesatacavammeuavô,oflautistapartiudali.

Meuavôfoioúnicosobrevivente,foiatacadopormaisdeduzentosratos,

tem cicatrizes profundas em todo o seu corpo, e eu sempre achei que eram

queimaduras ou uma doença de pele, mas foram os ratos, ratos que ele

precisoumatarumaum, esmagando-lhes a cabeça edecepando-osnomeio

comosprópriosdentesatéqueseextinguissem...

Quandomeuavô terminou suahistória, ele segurouminhamão, estava

chorando de soluçar, e com uma sequência de tosses acabou morrendo em

meusbraços,umpoucodepoisdemeentregarumpedaçodetecidovelho,um

laçocolorido.

FIM

Page 108: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

OPORÃO

RANGELELESBÃO

Todos estavam mortos. Mesmo os sobreviventes da Grande Guerra,

morreramdealgumaforma.Algunsmortosnosbombardeios,torturadosou

mutilados.Algunsforammortospeladordeperderumfamiliar.Unssofriam

com a fome e o desespero, de não saber, se haveria um novo amanhã para

sobreviver.Pierrepadeciadetodasessasformasdemorrer.

Ninguémpassavaindiferenteporaqueleshorrores,elepensava,enquanto

caminhava entre os escombros e trincheiras cheirando a pólvora, sangue e

corposdecompostos.

Pierrequefoi ferreiro,agoraeraapenasumandarilhoquevagavapelos

camposdebatalha,saqueandoosmortosenegociandoosseuspertencescom

asoutraspessoas.

OshorroresdaGuerraeramperturbadoresejánãohaviamesperançasde

dias melhores, naquele reinado de terror. Ele não acreditava emmonstros,

mas os encontrava todos os diasno seu caminho.Monstroshumanos.O ser

humano era o pior dos monstros que poderia existir. Capaz de atrocidades

inomináveis,quedizimavammilitaresecivisporidealismo;oucrueldade,nua

ecrua.

Puxando sua carroça comdificuldades por entre os corpos nas ruas de

uma Alemanha, também morta, viu quando um soldado se aproximava,

fazendosinalparaqueparasse.

Osoldadoolhoucomasco,enojadodassuasbandagensnacabeça.Como

Page 109: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

canodaarma,fezsinalparatirá-las.

Comocoraçãodisparado,tremiaenquantotiravaasataduras,grudadas

na pele, junto com o sangue coagulado. Sentiu uma fisgada de dor, e um

poucodesangueescorreudosdoisorifíciosauditivos.Ondeanteshaviamsuas

orelhas, agora apenas dois buracos, tinham asmarcas de pele e cartilagem

decepadas.

—Podepassar!—disseosoldado—Játeveoquemerecia!

Pierrenãoouviuoquefoidito,masentendeuqueestavalivre.Seguiuseu

caminho, as lágrimas rolando, ao lembrar quando o alemão decepou suas

orelhascomumcacodevidro,easpendurounumcordão,comoumcolar.

Oventogeladojogavaflocosdenevenoseurosto,masconseguiuveralgo

à sua frenteentreos sacosde lixo.Comapáquecarregavana suacarroça,

revirouaformacaídananeve.Fezumesforçoparasegurarapá,poisofrio

cortantelheadormeciamosdedos,edesvirouacabeçadosoldadocaído.

Pierreassustou-se.Acabeçaestavasemorosto.Apenasumburacovazio

nomeiodocrânio.Explodida,talvezporumtirodeumaarmapotente.

Revirou os bolsos do soldado. Procurava algo valioso. Encontrou

escondido emum coldre apenas uma pistolaLugerP08.Ele reconheceu, já

haviaencontradooutrasantes,evaliammuito.

Osdiaspassavamrápido,easpilhasdecorposaumentavam.

A cidade estava em ruínas, o frio castigava e a escassez de alimentos

matavatantoquantoaGuerra.Caberiaaeleesuaesposa

Sophie,mantervivosseusfilhosAaron,LiseRené.

Enquantovagavamentrecorposedestruição,mergulhadosnummarde

angústiaedesespero,deixavamascriançastrancadasnoporão,paraescapar

dosataques.

Page 110: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Quandovoltoujádenoite,viuaolongeomovimentodepessoascorrendo

nasuacasa.Puxousuacarroçacomforça,atéchegarlá.

René eLis estavam sentadosna sala, choravamabraçados ao corpodo

pequeno Aaron. Os alemães o encontraram na sala, quando saiu do

esconderijo por um instante, pensando ter ouvido o barulho de seus pais

chegando.

Eleshaviamarrancadosualíngua,enfiadopregosnasuacabeçaesobas

unhasdasmãos.

Pierrecaiudejoelhos,gritando,diantedetantohorror.Algunsvizinhos

entraram e o seguraram, outros, seguraram as crianças, enquanto outros

arrancaramAarondosseusbraçoscomviolência,levando-oparaforadacasa.

—Larguemele!—gritouapequenaLis,comosseusbraçospresospor

umavelhadeolhovazado.

Aaronfoilevado.

Pierreaindaperturbadopelosacontecimentos,estavatrancadonoporão

comosseusfilhossobreviventes.

Oporãoficavaembaixodacozinha.Umalçapãosobamesa,davaacesso

a um pequeno túnel, que descia até onde eles ficavam escondidos. Lá

passavam dias e noites esperando pelo fim da Guerra, por um fio de

esperança,determinarcomtodasuamiséria.

Lá escondiam o resto demantimentos e raízes que conseguiam juntar,

poisseosvizinhosmaispróximossentissemocheirodacomida,osroubariam.

Dentrodeumpote fechado, ele retirouumpunhadodevíscerasdeum

cachorro,morto à beira da estrada, que encontrouno dia anterior. Colocou

tudonapanelaparatentarengrossararalasopadegramaedisfarçaralgum

gostodecarne.

Page 111: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Tevesorteemencontrá-lo.Jáfaziaquaseummês,quenãotinhamnada

desólidoparacomer,alémdesopas.Sopacomnevederretida,grama,restos

de tudoquepoderiamcomerparamanterem-sevivos, até restosdeanimais

mortos.Equandonão encontravanada, cozinhavaumapasta depapéis de

jornaiserevistasparaenganarafome.

Enquanto a neve derretida cozinhava a sopa, um odor adocicado e

enjoativo,exalavaepreenchiaoporãoúmido,clareadopelaluzdasvelas.

RenéeLischoravamdefome,maspararamemsilêncio,quandoouviram

osecosdosbombardeiosnasuperfície.

Pierre mexia a sopa, e nem percebia suas lágrimas caindo dentro da

panela.Opeitodoíaao lembrardacenadoseufilhoretiradoàforçadesua

casa. Angustiado, também esperava Sophie voltar viva e com algo que

pudessegarantirsuasubsistênciapormaisalgumassemanas.

Namanhãseguinte,pegouafacaqueoutrorausavaparafatiarcarnee

colocounasuacintura.Deuumbeijodedespedidanascriançasetrancouo

porão,asuafortaleza,paraqueficassemseguros.

Oporãoeraoseuabrigo,umabolhaescondidadaquelemundodehorror

lá fora. Lá dentro ainda era possível sonhar com ummundo melhor, e ter

esperançasdequeaspessoaspudessemviverempaz.

Pierre caminhavanas ruasdestruídas eviapessoasbrigandopor restos

de comida, água, por animais mortos. Não havia encontrado nada que

pudessefazerasuasopa,eospapéisestavamacabando.

AfomeeratãomortalcomoaGuerra.

Quandoreviravaosescombrosdeumacasaatingidaporumabombana

noiteanterior,deuumgrito,quasederrubandoumapedrasobreosseuspés.

Caiude joelhos.Chorando e gritando.Gritos quenem elemesmo conseguia

ouvir,depoisdeterasorelhasarrancadas,eseustímpanosfuradoscomarame

Page 112: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

farpado.

Sophieestavamortadebaixodaspedras,nua,ao ladodedois soldados.

Pregosforamcravadosnosmamiloseemumadassuasmãos,algumasunhas

arrancadas.Obombardeiodeviaterinterrompidoasessãodetortura.

Acariciou os cabelos ensanguentados da esposa, e a beijou na face, em

cimadasuamarcadenascença.Eraprecisotirá-ladali.

OporãofoiabertoporPierretardedanoite.Chegoucansado,suascostas

doíam do peso da carroça.Desceu os sacos de carne e grama pelo alçapão,

depoisentrou.Ocultavaorostocomacamisa.Haviamrumoresdequeoar

estava contaminado com gases venenosos, e os ventos os espalhavam para

outrascidades.

Lisbrincavacomsuaboneca,jáindiferenteaosbombardeioseadesgraça

doladodefora.

Renédesenhavaepintavasuafamíliafeliz.Seuspais,eleeLis.

Pierreserviuasopacomgrandespedaçosdecarneeentregouastigelas

paraseusfilhos.Chorouaoverelescomendo.LembroudeAaron,deSophie…

—Não lembrava mais o gosto de carne!— disse René lambuzado de

sopa.

—Papaitrouxeumbichão!—falouLis—Achoqueéumleão!

—Boba,nãotemleãopertodecasa!

—Entãoéumcachorrobemgrande!Voucomertudodevagarinho,para

lembrardogostinhoquandoeupassarfome…

Renéolhoucomatençãoparaopedaçodecarnenasuacolher,antesde

comer. Lembrou da surdez do seu pai, pegou a folha que havia desenhado,

escreveuumafrasenoversoeentregouaele.

Page 113: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Pierreleuoqueestavaescritoeajogoudentrodapanela.

Láforaosomdasbombasestavamaisalto.Bombardeavammaisperto.

Umestrondoemcimadeles.Acasaforainvadida.

—Comam,filhos!—falou—Logovamosencontrarsuamãe…

Pierre olhou uma última vez para a panela. O papel escrito por René

derretia,engrossandoasopa:

“Obichoqueagentecomeutemumapintinhaigualdamamãenocantinho

donariz.”

FIM

Page 114: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

OÚLTIMOPEDAÇO

HUMBERTOLIMA

QuintaFeira,22deabrilde1915.14h,Ypres-Bélgica.

—Lembrademim?

Otenentebelganãoparecemuitodispostoaconversar.

O homem levanta o tapa-olho, mostrando a órbita vazia e o tenente

apenas franze a testa.Após alguns segundos seus olhos se iluminam com a

lembrança e ele abre um largo e indecente sorriso na boca, mostrando os

dentesensanguentadosentreobigodeloirofarto.

— Como eu me esqueceria? Você e sua esposa foram uma diversão e

tanto!Maiselanaverdade!Vocêeumalcomeceia...

Um murro violento lhe arranca mais um dente e o tenente geme,

voltandoasorrirlogoemseguida.

—Penseiqueestivessemorto!DepoisqueoReideuanistiaanossopovo,

euoprocureiparaterminarminhadiversão,masvocêhaviasumido!

Ohomemgrandedecabelosnegrosoleososvaiparaatrásdacadeiraonde

o homem preso está amarrado e começa a remexer uma valise pesada. O

TenenteAarjenapenasesperaansiosamente.

—EufugidasterraslivresdoCongoemeescondinaFrança.Pretendia

caçá-lo e matá-lo, mas soube de sua promoção pelos serviços prestados na

ÁfricaAmaldiçoadaepreferitentaresqueceroquefezcomigoeAafke...

Avozdohomemficaembargadaaopronunciaronomedaesposa.

Page 115: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Otenente,percebendoafraquezadoseuexsubordinadonoCongoBelga,

provoca.

— Lindo nome o da sua esposa! Assim como aqueles seios! Deliciosos

mamilosnaminhaboca!Quentescomomanteigae...

A pancada em sua cabeça é tão violenta que o tenente desmaia

imediatamente.

OescravagistaAarjenSonhacom1908,quandoa“liberdade”foidadaao

Congo, seu subordinado Saël, um homem grande e sério tentou lhe trair.

Todos os belgas cortaram mãos e pés, todos roubaram de sua majestade

LeopoldoIIemesmoassim,ocachorroaindatentoulheentregaraorei.

MandouumacartaàBélgicaquefoiinterceptadaeentregueaAarjen,

queresolveupunirseumaispreciosocapanga.Naquelamesmamadrugada,

umgrupodeoitonegroslideradosporeleinvadiuacabanaeprendemocasal

quemalconseguiureagir.MandouseushomensamarraremamulherdeSaël

nacamaepermitiuquetodosseservissemdobeloejovemcorpofeminino

enquantoomaridodesesperadofoiobrigadoaassistir,presoporváriasmãos

fortes.

Aarjennãoatoca.

Nãosesentebemfazendosexo.Seuprazervemdeoutrasformas.

Horasdepoiselaestácomorostovermelhode tantochoraregemendo

altomesmocomamordaçaquelhefechaaboca.

Saël implora perdão pelo que fez, enquanto Aarjen sobe na mulher e

passa algo no seu corpo, algo rápido e prateado.Mesmo com amordaça o

gritodamulherencheacabanaeatéosnegros,acostumadosaviolênciado

seuempregadorarregalamosolhos,aterrorizados.

Horas ou minutos depois, O tenente Aarjen não sabe exatamente, é

Page 116: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

acordadoporumbaldedeaguafria.Observaemvoltaacasaemruínasonde

foiemboscadoporseuantigoempregadonasminasdediamantesdoEstado

LivredoCongo,aserviçodofalecidoLeopoldoII.

—Acordacachorro!Voufazercomvocê,tudooquefizestecomminha

mulher!

Otenentebelgaapenasri.

—Façaoseumelhor.

Enquanto pega seu material na pesada valise, Saël pensa na maneira

curiosa em que reencontrou o seu antigo torturador: após a morte de sua

esposanasmãosdessa criaturadesprezível, conseguiu escapar comumolho

vazadoeperseguiuseuantigochefe,masestefugiuparaoacampamentoede

lá para o porto, onde embarcou de volta aBélgica, sabendo quemesmo se

contasse sua história pessoalmente a Leopoldo II, dificilmente seria aceito,

poisAarjendetinhacertoprestígionacorte.

SaëlfugiuparaaFrança,ondetentouporanosesqueceroquesofreunas

mãosdessehomem.Coma tensão entre os países e a eclosãoda guerra, foi

convocadocompulsoriamenteelevadoaofrontdebatalha,ondeviuaolonge

seuantigochefe.

Tremeudemedoeódioeesboçouumplano:guardaalgumasferramentas

emumacasaabandonada,esperandopelaoportunidadedelevá-loparalá.

O ataque alemão com gás é a oportunidade perfeita, quando todos

começamadebandarlevaotenenteacasa.

Saël começa pelos pés, esmagando cada dedo do seu antigo chefe com

umamarretapesada.Ohomemgritaetrincaosdentescomforça,mordeos

lábiosatévertersangueenquantoreviraosolhosnasórbitas.

Quando os pés não passam de duas massas sangrentas no chão, entre

Page 117: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

arquejosohomemgraduadoimplora:

—Não!Vocêestá fazendo tudoerrado!Éumamador!Garantoque fiz

suamulhersofrermais!Muitomais!

Irritado, Saël coça a cabeça e vai até a valise, retirando uma serra de

mão.

—Vamosver!

Começaaserrarforaopédireitodotenentecujadorinsanafazcomque

desmaieeemseussonhosturvosrelembracomoacaboucomabelíssimaloira

deolhosverdesnocalorinfernaldoCongo.

Subiuemcimadelacomsuafacadecaçaedeslizouamesmapelotórax

suadopelosnegrosquea estupraramsucessivamente, elaarregalouosolhos

devidoadoreeleseexcitousentindoseumembroendurecerdentrodacalça

desarjaimpecável.

Comummovimentorápidolhearrancouosdoismamilos,inserindo-osna

bocaemastigando-oscrus.Sãoquenteseagordurainundadadesanguelhes

deuumsaborferruginosoaopaladar.

Umdosnegroscorreparaforadacabana,vomitandoemfrenesiantea

cenaabjeta.

Aarjensorrielimpaobigodenamangadacamisa,cortandoemseguida

onarizdamulherecomendoopedaçocrocantedevidoacartilagem.

Ela gritademaneiraprimal, enquanto ele abre seu tórax coma faca e

quebraoossocomasmãosfortes.

Omaridogritahorrivelmentevendosuamulhersermutilada.

—NÃO!Eunãoaguentoverisso!

O homem loiro levanta da cama e vai em sua direção calmamente, os

Page 118: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

negrossuamdemedo,poismesmoentreastriboscanibaisdaÁfricacentral,nuncaouviramfalardetamanhadesumanidade.

O loiro enfia os dedos no olho esquerdo de Saël que fica paralisado e

arrancaseugloboocular,enfiando-onabocacomonervoóticoe tudo.Isso

causa um efeito estranho no belga, ao ter por segundos aomesmo tempo a

visãodorostodeseutorturadoredointeriordesuabocasomadoadoraguda

noolho.

Apósmorderemastigarogloboocular,Aarjenvoltaparaamulherelhe

retiraocoraçãoquebaterápidoaindaligadoàsveiaseartérias.

Suabocaseabree...

Acordanovamentecomumjatodeaguafria,rindoaoverondeestá.

—Ésóisso?Garantoquesuamulhersofreumuito,muitomais!

Saël fica muito irritado e escuta as patrulhas alemãs percorrendo as

ruelasdacidadearrasadapelosmorteiros.Sabequetempoucotempo,retira

um facãodavalise e comgolpe rápido furaoolhodo tenenteque soltaum

gritocurto,seguidodeumsorriso,ohomemdecabelosnegrosabreopeitodo

homemeretira,soboúnicoolhointeirodoassombradotenente,seucoração

queaindabate.

—Estáassustadoagora?Seucachorrolouco?

O tenente começa a se debater na cadeira e o belga de cabelos oleosos

sorri,atéperceberamanchanafrentedacalçaengomadadomilitar.

—Semijou?

O tenente solta seu sorriso mais maldoso. Sabe que estará morto em

breve.

—Não.Eugozei!Ameitudooquefezpormim!Foiumatorturagloriosa

comosempresonheiemsofrer!

Page 119: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Saël arregala seu único olho azul e com uma fúria imensa arranca o

coração do seu ex chefe fora que começa a convulsionar imediatamente,

morrendoempoucossegundos.

Ohomemdecabelosnegrosoleosos,caiajoelhadonosolodacasapobre

enquantoescutaospassosdopelotãoalemãocorrendopelasruasestreitase

gritandoordensparaqueserevistemtodasascasas.Olhaparaocoraçãodo

homemaindapulsandoemsuamãoelembradodasuaesposa,batendoainda

etomadoporumafúriainsanaomorde,comootenentemortoagoracomum

sorrisonorosto,fezcomodasuamulheranosatrás.

Involuntariamente, ele sorri.Entende agora amotivação de seu antigo

chefe,otenenteAarjen.

—Delicioso!

Lambeos lábiosensanguentadosquandoatropainvadeacasaeparam

estáticos.AumaordemdoSargentonazista,elesofuzilam,horrorizadosante

acenadantesca,semnemquerersaberahistóriadeamoreódioenvolvida.

FIM

Page 120: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

PÓS-GUERRA

MARCUSVINÍCIUS

BaseadonosrelatosdosoldadoalemãoErichMariaRemarque.

A mente envolvida por escritos. Escritos atormentados. Aflitos.

Traumáticos.Éassimquedefinocomofiqueidepois...bem,depoisdaguerra.

Lutei e lutei para nada. Apenas para me refugiar nos EUA, perder minha

nacionalidadealemãetermeulivroqueimadonafogueira.Nãoseiondeestão

meusparceirosdeguerra.Nãoseiondeestáninguém.Nãodurmo.Quasenão

saio desse apartamento mofado. Mas não. Não é isso que realmente me

assombra.Nãoéoespaçofechado.Nãoéoescuro.Nãoéofuturo.Nãotenho

medo de dormir. Eu simplesmente...não consigo. Há outra coisa. Vou ao

banheiroparalavarmeurosto.Peloreflexo,épossívelverapoltronaqueme

sento.Mas ela não está desocupada.Há alguém sentado nela. Imóvel. Usa

farda militar, as mãos descansam nos braços do móvel. Parece olhar para

mim.Enrugoatesta.Estousuandofrio.Asmãoscomeçamatremer.Respiro

fundo algumas vezes para tentar afastar omedo.O vulto é familiar.Ele se

levanta.Arregalo os olhos.A garganta aperta.O coração bate rápido.Não

escutooutrarespiraçãoalémdaminha.Osomdebotasseaproximando.Abro

atorneira.Quemsabeosomdaáguacorrendomeacalma.Apertoosolhos.

Nãoqueroverquemé.Ficoassimporunsdoisminutos.Aluzseapaga.Não

fui eu que apaguei. Abro os olhos. Tem início o pesadelo. Uma mão força

minhacabeçaparabaixo.Asubmergenaáguadapia.Tateioasmãospara

tentarmeerguer.Aansiedadecresce.Medeixerespirar!Euquero...respirar!

Porummilagre,melevanto.Aluzestáacesanovamente.Nãoháninguémali.

Excetoeu.Olhoparameureflexo.Depoisolhoparabaixo.Façoumaconcha

Page 121: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

com as mãos e jogo água no rosto. Volto à sala, mas não quero sentar na

poltrona.Pegoacadeiradamesaaoladoemesento.Fixomeuolharnochão.

Iniciam-se os gemidos, os choros,muitas vozes. Uma explosão seguida

poroutra.Eporoutra.Eporoutra.Apertoosolhosemassageioatesta.Não

era para ser assim. Isso não devia acontecer. MalditoFührer! Graças a ele

estounesteinferno.Graçasaeleminhairmãestámorta.

Umsilêncio incomumdescesobremim.Eudeveriaestartranquilo,mas

nas atuais circunstâncias não. O silêncio pode ser pior que uma mente

inquieta. O quarto é invadido por fumaça. Uma que conheço muito bem.

Fumaça causada por explosivos. Estreito os olhos e contorno amesa. Está

vindopelasfrestasdaporta.Abro-a.Ochoquemeparalisa.Ondeestou?Que

lugaréeste?Háescombrosàminhavolta.Devastaçãodeguerra.Opânicose

inicia.Ficodecostaseabroaportanovamente.Ondeestáoquarto?Minha

boca treme. Fica seca.Muito seca. Estou no andarmais alto do prédio. A

escadaria está queimada. Escombros para todos os lados. Começo a nadar

descendo-a devagar. Outra surpresa que eu não gostaria de ver: cadáveres.

Muitos cadáveres. A maioria de recrutas. Preciso continuar. Preciso saber

ondefuiparar.Atravessei...umafendanotempo?Volteiparaaguerra?Oque

estáhavendoaqui?

Finalmentechegoaotérreo.Maisescombros.Saiodoprédio.Devastação

doladodefora.Enrugoatestaparaosilênciopredominante.Nãoháninguém

nasruas.Umapartedemimpedequeeuvolteparadentro,enquantoaoutra

ordenaqueeuprossiga.Optoemfazerisso.Desúbito,ouçosussurros.Estou

no meio da rua. Exposto. Vulnerável. Olho para todos os lados

freneticamente. Ao leste, está vindo alguém. Dou alguns passos para trás.

Parecevirdevagar.Muitodevagar.Assimqueestáapoucosmetrosdemim,

arregaloosolhos.Euoconheço.Éorecrutalouroqueajudeicertavez.For

atingido por uma bomba. Mas não deveria estar andando. Ele para. Meu

Page 122: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

coraçãoacelera.Vocêestábem?Pergunto.Silêncio.Covarde.Arregaloosolhos

porcausadaresposta.Ficoestarrecido.Oquedisse?Indago.

A coisamais...inesperadaacontece em seguida.O recruta louro erguea

cabeça, mas suas feições não são humanas. O maxilar desce quase até o

umbigo.Osolhos sãonegroscomoopiche.Ourroestridentee inumanome

faz ter a reação imediata de sair correndo para o lado contrário até voltar

para dentro do prédio. Fecho as portas e fico de costas para ela. Respiro

rápido e de olhos fechados. Permaneço assim por alguns minutos até me

acalmar.Assimqueissoocorre,euabromeusolhos.Osilêncionovamente.O

que foi aquilo?Masqueporrade lugar é este?A luz entrapelas janelasdo

andartérreodemodonormal.Muitonormal.Umsomdebotasmefazolhar

rapidamenteparaoladoesquerdo.Ergoacabeça.Opavormedomina.Não.

Issonãopodeestaracontecendo.Himmelstoss.O“carrascodoquartel”.Ocara

gordo, de baixa estatura e bigodede raposa.Me olha fixamente.Expressão

neutra. Começa a descer as escadas. Seu olhar não desvia domeu.Voume

afastando. Assim que chega ao térreo ele olha para o meu lado esquerdo.

Permanece assim por alguns segundos. Enrugo a testa. Arrisco olhar na

mesmadireçãoqueele.Estáescuro.Oqueeleestávendo?Voltoaolharpara

ele.Omalditoestásorrindoparamim.Qualéoproblema?Indago.Aospoucos,

a raiva vaime dominando.Está sorrindo por quê, porra?Grito em voz alta.

Quer outra surra? Como da última vez? Sou interrompido por gemidos.

Gemidos femininos. Estão vindo...da região escura que eu e Himmelstoss

estávamosolhando.Voltoaolharparalá.Emalgunssegundos,asilhuetavai

seformando.Denovoochoque.Elfriede?Indagocomavozfraca.MeuDeus!

Você está viva? Indago subindoum tom.Elanão responde.Seuvestido está

surrado. Os cabelos castanhos bagunçados. Parece desolada. Olho de lado

paraHimmelstoss.Estánovamentesorrindoparamim.Erich.Minhairmãdiz

meunome.Voltoaolharparaela.Vocêfugiu.Aspalavrasdelamedeixamsem

chão.Meusolhosficammarejados.Elacomeçaasoluçar.Colocaasmãosno

Page 123: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

rostoechora.Himmelstoss ribaixo.Olhoparaeleenfurecido.Estárindodoquê,desgraçado?Urro.Eleparaderir,masnãoreageagressivamente.Apenas

estreitaosolhoseinclinaacabeçaumpoucoparaolado.Avadiaestácerta.

Responde vagarosamente.Você fugiu, não foi, Erich? Ignoro o comentário.

Voltoa olharparaminha irmã.Elfriede, por favor.Medesculpe.Falo coma

voznovamentefraca.Elavoltaaolharparamim.Andamaisalgunspassosna

minha direção. Estou morta. Diz. Enrugo a testa para ela.Morta. Morta.

Morta.Avozdelavaifalhandoatéqueaconteceamesmacoisadoquecomo

soldadolouro.Elasetornaum...monstro.Himmelstosstambém.Amboscom

osolhosnegros.Oqueixoestendidoatéoumbigo.Ogritodeambos,agudoe

inumano, emuníssono.Caio ajoelhado comasmãosnos ouvidos.Começo a

chorar. O chão passa a tremer. Novamente, os sons de sussurros. Sons de

granadas. Ouso abrir um pouco os olhos.Me arrependo logo depois. Franz

Kemmerichestáestendidonaminhafrente.Osolhosamarelosearregalados

meencaram.Porquenãofeznada?Eledizderepente.Porque fugiu?Minha

únicareaçãoéapertarosolhose implorarparaqueaquiloacabe.Começoa

balançarpara trás epara frente.Vouacelerandoessesmovimentos.Começa

umzumbidonaminhacabeça.Queaumentagradativamente.Meperdoem,me

perdoem,meperdoem.

Abro os olhos. Estou na sala. Ergo-me vagarosamente e olho para os

lados.Silêncio.Olhopara frente.Obanheiroestácoma luzacesa.Atrásde

mim a poltrona.Domeu lado esquerdo, a cadeira.Olho novamente para o

banheiro.Umcurtomomentâneona lâmpada revelaHimmelstossde costas

paramim.Sorrindo.Vaiacontecer.Denovo.

FIM

Page 124: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam
Page 125: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

REGISTRODEGUERRA

ANDRÉLUIZDEMELO

Fazia uma agradável tarde de sol, no fim da primavera. Peter Evans

regavaasplantasdeseubelojardim,comtodaapaciênciaezeloquesóum

senhor octogenário conseguia ter. As costas doíam um pouco quando se

abaixava, e a vista estava cansada pela idade.Tirando isso, o velho vendia

saúde.

Aolonge,conseguiaouvirasrisadasdosnetos,quebrincavam,etambém

ocantardospássaros.Abrisatraziaumaromadepãorecém-saídodoforno.

Petersorriu,satisfeito.Arqueouascostas,secouosuordatestaeseguiupela

estradinhadepedranogramado,atéaportadacozinha,nosfundos.Estava

mesmocomsede;umcopodesucogeladoeumpãofresquinhocairiambem.

Ovelhotirouossapatos(sabiacomoLaurieeraranzinzacomalimpeza),

eentrou.Amesaestavaposta,masnãohavianinguémali.

— Alguém em casa?— Gritou, com bom humor, enquanto lavava as

mãos.

—Nasala,vovô.

Antes de se servir, o homem foi averiguar o que as crianças andavam

fazendo.Assimquepassoupelaportaeolhouasala,Petercambaleou.Todaa

cordeseurostosumiu,asmãosficaramgélidas,abocaseca,escancaradaem

umgritomudodepavor.Por62anostemeuencontraraquilo,maisdoquea

própriamorte...

***

Page 126: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

1916-TrincheiradaFrenteOcidental

Os olhos vermelhos da ratazana foram capturados pela câmera Vest

Pocket da Kodak. Com o equipamento, o jovem correspondente de guerra

passara os últimosmeses registando imagens do conflitomundial.Graças a

influênciadeseueditordojornal londrino,PeterEvans,entãocom19anos,

ganharapermissãoparaacompanharoveteranorepórterKarlBradburyem

suasviagenscomoenviadoespecial.Bemmelhordoqueserconvocado.

QuandoBradburyfoiatingidoporestilhaçosdeumaexplosãonacabeça,

seismesesantes,Evansrecebeuotelegramadoeditor.Agora,forapromovido

àcorrespondenteoficial,sendotransferidoparaacompanharocotidianonas

trincheiras.Eraisso,ouademissão.

Claroqueorapazaceitou.Nodiaseguinteàmensagem,jáestavacomo

comboio, trajando roupa militar e tudo mais, indo para algum lugar da

Bélgica. Oficialmente as fotografias do front estavam proibidas pelas

autoridadesbritânicas,excetoparaquemtivesseacredencialdaimprensa.

Evans passou os dias de viagem registrando o cotidiano dos

companheiros,homensdediferentesidades,quenuncaretornariamparacasa,

elesabia.

Entãoaunidadequeorapazacompanhavachegouàvalaescavada,com

maisde2metrosdeprofundidadeecercade1,80mdelargura,quechamava

“trincheiraderetaguarda”.Elanãofaziapartedalinhadefrente,oque

intensificavaoisolamentodaqueleshomens.Aprimeiraimpressão,registrada

napolaroide,foihorrível,enãomelhorariaemnadacomotempo.

Peter possuíaumapistola,masnão estava ali para atirar emninguém.

Todos os soldados aliados sabiam disso. Ele deveria apenas registrar os

horroresdoconflito,masnememseupiorpesadeloestavapreparadoparao

queviverianaqueleburaco.

Page 127: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

***

Evansdormiaenroladoemumacobertapuída,cheirandoàurina,soba

pranchademadeiraqueseparavaossoldadosda lamanatrincheira.Estava

tão habituado como cenário de conflito que não acordou comos primeiros

tiros.Maselesnãoforamosúnicos...

Desnorteado, o repórter recobrou a consciência já no meio do caos.

Estavamsendoatacados.Tudofoimuitorápido,ostiros,asbombas.Olhando

paracima,Peterviuumsoldadodesuaidadeperdendometadedorostocom

umaexplosão.

O rapaz tentou correr, mas o interior da trincheira era um empurra-

empurra de soldados desorientados, atirando a esmo, enquanto eram

alvejados por uma chuva de balas. Depois, homens com lança-chamas

chegaramnabeiradadoburaco,ecomeçaramaqueimarseuscompanheiros

vivos.

Evans via sangue e fuligem e lama; corpos despedaçados, em chamas;

pessoas desesperadas gritando. Tudo em um piscar de olhos. Então foi

atingido na perna por um tiro. Se abaixou, pela dor, quando o capitão

cambaleouecaiusobreele,gargantacortada,olhoesquerdoarrancado.

Com desespero, o jovem tentou se arrastar para longe daquele corpo.

Sentiuadoreomedo,maioresdoquetodoohorrorquejáexperimentaraaté

então.Outro soldadocaiuporcimadele,morto.Emaisoutro,afundando-o

na lama. Quase sem conseguir respirar, soterrado pelos cadáveres de seus

companheiros,ojovemrepórterdesmaiou.

***

QuandoPeterrecobrouossentidos,astropasinimigasjáhaviampartido.

Tudo estava silencioso no local. Com esforço, conseguiu se arrastar até sair

debaixodaquelapilhadecorpos.Entãopercebeuqueestavasozinho.Todosos

Page 128: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

homens da trincheira forammassacrados. Dezenas demortos, apodrecendonaquelasinistrasepultura.

Ojornalistamalconseguiasemover.Emmeioaoscorpos,encontrousua

câmera,aindaintacta.Sóoquelherestavafazererafotografar.Osolhos

vermelhosdaratazanaforamcapturados.Depois,animaiscarniceirosse

banqueteandodoscadáveres.Homenscommembrosamputados,pedaços

destruídos,carbonizados.

Entãoparoudetentarfugir.Estavafracoportodoosangueperdidono

ferimento da perna. Fraco pelas semanas de fome e doenças que contraíra.

Naquela trincheira, emalgum lugardaFrenteocidental,PeterEvans soube

queiriamorrer.

— Bom ângulo, meu rapaz — disse alguém, por perto. O jovem

moribundo mal conseguiu se virar para encarar o homem loiro, alto, que

trajavaumimpecávelternovermelho.

—Quem...quemévocê?

—Me conhecempormuitosnomes, emboranenhumseja overdadeiro.

Masoqueimportadeverdadeé:quemévocê?Oumelhor,quemserádaquia

pouco?

—Como...comoassim?

—Peter,Peter...Mesmosemavisitasurpresadeontem,vocêestavacom

osdiascontados.Eles iriamteenterrarbemali—oestranhoapontoupara

umapilhadecorpos.Estavasorrindo.—Éissoquelheaguarda,dequalquer

modo.

—Váparaoinferno!—DissePeter,deixandoacabeçacairnalama.No

alto,umcéucinzento.

—Ora,meuamigo.Vocêseachatãosuperiorpornegarminhaajuda...

Page 129: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Eupossosalvarsuavida.Nãoé issoquedeseja?Voltarparacasa,reversua

namoradinha.Comoémesmoonomedela?

—...

—Laurie—odemôniopronunciouapalavracarregadademalícia.

—Oquevocêquer?—ReplicouPeter,aindaencarandoocéu.Cadavez

maisdistante,àmedidaqueasombradamorteseaproximava.

—Agora estamos falandominha língua.O que pedir para alguémque

não possui nada... Já sei, e tenho certeza que achará uma oferta muito

generosa:suasfotos.

—Oquê?

—Eusalvosuavida,eemtrocavocênuncapoderámostrarasfotosque

tirouparaninguém.Oquemediz,umacordojusto,nãoémesmo?

—Sim—murmurouorapaz.

—Ótimo—disseoDiabo, sorrindo.—Sómaisumacoisa,Peter,meu

amigo.Sealguémviressasfotos,encontraráomesmodestinoquevocêteria,

senãofossepormim.Lembre-sedisso.Tevejoporaí.

Entãotudoficouescuro.

Peter acordou alguns dias depois. Fora resgatado da trincheira por um

pelotãoaliado, e encaminhadoparaumacampamentohospitalar.A câmera

estavaentreseuspertences,maseleadeclaroucomoperdida,quandovoltou

para Londres. A guerra acabou anos depois, e Peter seguiu com sua vida.

Casou, teve filhos, com o tempo quase esqueceu omaldito dia. Até aquela

manhã...

***

Ainda escorado na soleira da porta da cozinha, pálido e assustado, o

Page 130: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

velho viu seus dois netos folhando o álbum secreto que escondera por seisdécadas.

—São suas fotos, vovô?—Perguntou o pequenoTommy.Peter ainda

estavapetrificado,quandoonetovirouapáginaseguinte.

—Não!

Maseratarde.Assimqueviuaimagem,omaxilardacriançaquebrou

sozinho,emumângulomedonho.Jack,oirmãomaisvelho,começouagolfar

sangue,enquantooolhoesquerdocaia.Tommytentouandaremdireçãoao

avô,masseusmembrosforamdilaceradosporumaforçainvisível.Ambos

mortos,trucidados,fedendoàdecomposição.Umarisadafamiliarecooupela

casa.

Cedooutarde,ovelhoteriaqueconfrontaraquelasimagens,registradas

ereveladasnãoempapeldefoto,masemsuacondenadaalma.

FIM

Page 131: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

PIEDADE

RICARDOVENTURA

A natureza falhou com o homem. Tenho esse pensamento enquanto

agonizo entre seus cadáveres, uma suposiçãodecepcionante obastantepara

encontrar um caminho através da dor. As ferramentas com que salvei

soldadoscaídosestãoespalhadaspróximasamim,comasquaispoderiame

salvarcasoanaturezatambémhouvessemeamaldiçoadocomasferramentas

da evolução. Os dedos nas minhas patas são inúteis, eu jamais conseguiria

impedirsozinhoaminhapassagemparaoladoinimigodaguerra.Anatureza

sabe que errou, que seu descuido ou arrependimento entregou o domínio

exacerbado do planeta a uma espécie, e tenta reparar o erro inventando

maneirasparadiminuironúmerocrescentedehumanos.Opresentetraiçoeiro

daracionalidadeéumadelas,oprêmiodequetantoseorgulhaméasemente

da autodestruição. Constroem e desmantelam, amam e odeiam, beijam e

mordem,falamecalam,dançametropeçam.Instintopoucaparticipaçãotem

nessainstabilidade.

Treinaram-meparafarejaravidaemmeioàdesolação,paraencontraros

feridos no campo de batalha e fornecer a esperança que levava comigo, o

equipamento médico com que eles tratavam os próprios danos. Dava-me

prazerosorrisodeumhomememagonia,afelicidadequeminhapresençaea

cruzestampadanabolsaprovocavam,vanglóriaaoretornarcomafagosapós

um trabalho bem-sucedido. Perturbavam-me as expressões da guerra, as

formasqueelaencontravaparaseafirmaremcadaumdosnossossentidos,

mas eu sabia que desempenhava talvez o único papel nobre naquele teatro

melancólico,aindaquesomenteadiasseoinevitávelporumdiaoudois.Cabia

Page 132: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

aumcachorropeneirarocaos,separarosvivosdosmortos.

Amortealieraumaentidadeonipresente,àespreitaparaamenizarsua

fome eterna. Enxergava uma névoa densa e pestilenta ao redor, seu cheiro

intenso reprimia os outros. Cavalos e homens cobriam o gramado, deitados

sobre o tapete vermelho que teceram. Avançava em busca de soldados

machucados, todavia o vento cantava a mesma canção. A guerra era uma

história com vários finais e naquele momento eu não acreditava em

recomeços. Havia corpos em demasia, muitas colmeias para as abelhas de

ferro,eseriaquestãodetempoatéquemetornassesómaisumfionatrama.

Meudevererapaliativo,afinaltodosnósdecertomodoperecíamos,mesmoos

quevoltassemparacasavoltariamquebrados,alémdoauxíliodosprimeiros

socorros.

Ouvi então o suspirodoúnico sobrevivente, um soldadoquase afogado

sobseuscompanheiros.Aproximei-mecomcautela,porqueemanavadaquele

grupo fétidoum tipo diferente de lar, eu lia versos emum idioma estranho

escritos em seus poros. Sentia-me seguro apesar de tudo, uma vez que os

gestosdohomemconfirmavamanecessidadequetinhademim.Reconhecina

sua entonação outro indício de que nossas origens colocavam-nos em uma

situação embaraçosa: estávamos em lados distintos, éramos adversários na

guerra.

Deveriaelesucumbiralémdoescopodaminhamissãoemrazãodascores

de uma bandeira? Estaria eu descumprindo ordens ao cumpri-las? Éramos

animais desiguais, contudo, ambos confusos e perdidos, reduzidos a pó pelo

incêndioquenãocomeçamos.Porqueeuvirariaascostas?Aquelanãoerade

fatominha luta e elenão erameu inimigopessoal, eraapenasoutrobípede

tristequeconsideravaabsolutasassuasconvicções,emaspectoalgumdiferia

dosmeusprópriosamigos.Transmitia-lhemensagensdeconfiançapeloolhar

eeleprontamentesorriu.Secompreendemcomfacilidadeumcão,incapazde

Page 133: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

transformar pensamento em discurso, como pode até sua linguagem

formidável dividi-los? A virtude da fala se prova a imperfeição da escuta.

Qualquertipodedistânciajustificaumafronteiranoseumundo,ospolegares

denadaservemparamanusearainteligência.

Ohomemimploravacommurmúriosqueeudesconhecia,afraquezanão

permitiaquesedesvencilhassedosmortos sobre si.Seusbraçosmeseguiam

enquanto eu empurrava com o focinho aqueles que tentavam mantê-lo

debaixo da terra, os olhos fixos na minha bolsa. Ele enfim conseguiu se

erguer, jogando os restosmortais para dentro do buraco de onde veio.Não

exibiabandeiraalguma,asúnicascoresquecobriamocorponueassexuado

eramomarromdalamaeovermelhodosangue.Nascianoventredabatalha

uma criatura artificial cuja inexistência de odor impossibilitava a

identificaçãoeorastreio,umaparenteadultoque,aocontráriodeumrecém-

nascido saudável, não chorou ao ver a luz pela primeira vez; gargalhou ao

admiraraschamasnohorizonte.Elenãoeraummerosoldado,eraofrutoda

relaçãoperniciosaentreasforçasopostasdaguerra.Saudavaoleitoemque

fora concebido, cumprimentava os cadáveres pelo sacrifício e engolia

punhadosdecinzas.

A mão humana sabotava os mecanismos que deveríamos somente

obedecer, desarranjava os ponteiros do relógio, interrompia e antecipava

processos que tinham planos estabelecidos, causando uma devastação a tal

ponto desmedida que mesmo a atenta e infalível morte enfrentava

dificuldadespara acompanhá-la.A coisaquebrotouda terra estéril era seu

servo,oprivilégioadquiridoparaquecumprissecomsuasresponsabilidadesa

tempo, amatéria orgânica reunida do confronto a seu serviço, contrário ao

meu.

Apesardodeleiteporrevolver-senaimundíciedocampo,achuvarevelou

suapele incólume, sequerapresentavaumarranhãona forma forte, logo eu

Page 134: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

nadalhedeviaesuapresençamerepugnava.Voltousuaatençãoparaabolsa

assim que recuei e arrancou-a de mim com um movimento impetuoso,

lançando-meváriosmetrosadiante.Quebreiossosnaqueda,ouvioruídodo

vereditoantesdesentirasdoresdapena.Cravadoaochão,observeicomoa

destruição de todo o conteúdo da bolsa divertia omonstro, imagens que as

gotas de água distorciam ainda mais. Esvaziou e depois a rasgou com os

dentes, debochou e tratou dos mortos com os instrumentos que eram tão

importantes para os vivos. O ato que poderia interpretar como infantil ou

desvairadoeraumamensagemsimples: ele impediriaa salvaçãodos feridos,

queacruzmarchassepelaszonasdeconflitocomoumsímbolodeesperança.

Semelhanteaopróprioserhumano,aquelacriaçãodesrespeitavaasnormase

escapariado controle.Elequeria o fimdaminhamissão,masnão se deu o

trabalhodemeaniquilar,abandonou-meparaquesentisseoqueoshomens

caídossentiriamsemomeuauxílio,umamortelentarepletadepensamentos

envenenados. Ele seguiu rumo aos clarões, ávido pela próxima ceia, seus

aplausosecoavamnaquietudedanossasolidão.

Minhas pálpebras desceram, eu tinha ummotivo amenos comqueme

preocupar. Sentia-me calmo à medida que me enfraquecia, o conforto da

conformidadeeraumasensaçãoinesperada.Homemnenhumsurgiriaparame

resgatar, tampouco estariam dispostos a nos enterrar. Éramos detalhes na

paisagem, pinceladas em um quadro de paleta diminuta, formávamos o

cenário do pesadelo de um deus adormecido, um pesadelo que ele talvez

esquecesseaodespertar.Acortinainibiaapassagemdaluz,ajanelafechada

estavatambémemperrada,porémeupermaneciaconscienteenãodependia

davisãoparapercebersuaaproximação.Umcãonativo,residentedasruínas

eprovavelmenteórfãodeseusprotetoreseprotegidos,deitou-seaomeuladoe

fez-me companhia até omomentodaminhapartida, afugentando o frio do

ódioquesuposiçõesamargaspropagavamnosúltimosinstantes.Nãosabiase

compartilhávamosamesmafunçãoemnossosexércitosrivais,seerasoldado

Page 135: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

oucivil,masparamimelesemdúvidaportavaacruz.Suaamizadeacendeuumavelanaescuridãoecomelailuminoocaminhoqueagoradevotrilhar.

FIM

Page 136: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

TERRADENINGUÉM3

RODRIGOORTIZVINHOLO

Lama, pólvora, metal, sangue, fumaça, carne, rocha, madeira. Nas

trincheiras,adiferençaentrecadaumdoselementosdaguerrasetornamais

vago.Nadatemumalinhacondutora,umsentido.Jánãotemosidentidade,

linguagem,ideologia.Nessetempoqueestamosaqui,somosapenasumgrupo

de corpos que seguram armas, enfiados em um buraco na terra, encarando

outrogrupodecorposqueseguramarmas,emoutroburaconaterra.Somos

Ninguém.

Jánãoexistepensamento,nemlinguagem.Sealgoédito,sejaordemou

resposta,époruminstintoconstruídoportreinamentoemedo.Oquehavia

de ideologia, se é que algum dia houve algo assim, já não existe. Talvez

tenhamosperdidoemalgumdoscorposquesangramacimadaterraounestes

túneisqueconstruímos.

Fomosnósquefizemostudoisso.Queatiramoselevamostirosecavamos

e destruímos. Nós que causamos as explosões nos dois lados do campo de

batalha.Nãoseimaisdeque ladoestou.Nãotenhomaiscertezaquemsou,

fuioupoderiaser.Nãoseisesoueuqueestásangrandoencostadonaparede

ouseéoutro.Nãohádiferençaentrenósnesteburaconaterra.Seuslábios,

quetalvezsejamosmeus,semexemefalamalgumacoisa,maseunãooouço

sobosomdasexplosões,tirosegritos.

Oladodireitodeseurostofoidestruídoporumabalaeemseupeitoeu

vejofurosquesangram,maseleseguedesperto.Haviaummédicoaquienão

viquandoele seafastou.Ocondenadofalacomigoenãoconsigomemover.

Talvezrealmentesejaverdadequeelesoueu,poisnãoconsigoverdiferença

Page 137: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

entrenós.Talvezsejaeuquefalesó,imaginandoquemevejodelonge.Somos

iguais.Nãoéoutralama,nemoutrosanguequeestánele.

Outraexplosão,dessavezmaispróxima.Ochãotremeemeusolhos se

fechamcontraaminhavontade.Quandoseabrem,notoprimeiroaárvore,o

pedaço de madeira destruído bloqueando parte do céu acima de mim,

atravessado nas paredes do fosso da trincheira. Ela estava lá antes? Eu

realmente não sei dizer. Os gritos aumentaram, mas chegam a mim como

vibrações, apenas. Sinto que deveria sentir um cheiro particular, e talvez

sinta. Ele não vem como algo diferente,mas sim como o reforço do cheiro

predominante.

Baixomeusolhosparaohomemqueestavaàminhafrenteesuacabeça

pendenamorte.Oolhobomvoltadoparaaminhadireção,semmeencarar,

semqualquerbrilhoqueindiquevida.Nessemomentoeuoreconheço.Apenas

quandoétardedemais,apenasquandoelenãoémaisninguém,eumelembro

que ele é outra pessoa e que eu o conhecia. Lembro de seu nome apenas

quandoeledeixadeserNinguémjuntocomigo.

Aomeulado,alguémtentasubirparaasuperfície.Ouçotiros.Meucorpo

imóvelsegueencarandoocadáver,aúnicacoisacomnomeemtodoesselugar.

Outraexplosãoeosoldadoquetentaraatacarnasuperfícieélançadodevolta

paraomeulado,pousandonalama.Suaexpressãofaladedoredealgomais

quenãoentendo,aindaquesaibaqueéalgoqueeusentiriaseestivesseemseu

lugar.

Surge outro soldado.Ou seria, também, eu?Ele fala com o homemna

lama. Tenta tirá-lo de lá, mas esse se opõe veementemente. Parece quase

confortável,commetadedocorpoafundadona lama,overmelhodosangue

colorindoomarrom.Atéfechaosolhos.Sintoqueeupoderiadormirtambém.

Sintoqueissopoderiasermelhordoquevoltaraacordar.

Omédicochega.Elepareceumpoucomenos.Ninguémquequalquerum

Page 138: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

denós,talvezsejaotreinamentotransformadoeminstintodesobrevivência

quemedizisso.Talvezeutambémsejaomédico.Talvezeusejaoinimigoeo

soldadoquelançouomorteiro.

O soldado e o médico trabalham juntos para mover o corpo do

companheirocaído.Elessequerolhamparaocadáversempartedorosto.

Euvejoumrato.Comoaárvoreouocorposempartedorosto,nãosei

dizerseeleacaboudechegarousejáestavaali.Umanimalcinzaesujo,tão

cinza e sujo de sangue e lama quanto qualquer um de nós. Ele escala o

cadáveresóconsigopensarqueaquilonãoseriaumbomalimento.

Outraexplosãoenãomemovo,nemfechomeusolhos.Oratoarqueiaas

costas, flexionaaspatase, saltandoecorrendo,desaparecepelocorredorda

trincheira,abandonandoaquelecorpo.

Ratos. Essas pequenas pestes têm sempre a vantagem da passagem

garantida.Qualquerburacocomportaseuscorpos.Todaarmadilha,paraeles,

leva à possibilidade de fuga. Eu o imagino correndo pelos túneis e

encontrandopassagensquejamaisconseguiríamospenetrarousubindoparaa

superfície,ignoradopelostirosebombas.Astrincheirasnãosãoparaosratos

as armadilhas que são para nós. A Terra de Ninguém para eles representa

poucoperigoamaisdoquequalqueroutrolugar.Osratosnãoconseguemse

tornarNinguémenissoelessãosuperioresanós.Amim.

ComofoiquenostornamosNinguém?Comofoiqueabandonamosnome,

identidade, pensamentos, para chegar aqui nos escondendo em buracos na

terra? Há uma bandeira em algum lugar por aqui. Talvez ela tenha sido

destruídaoutalvezaindaexistaemalgunsuniformes,massintoqueeunãoa

reconheceria.Nãoconseguiriadaraelaumsignificado.Provavelmenteaquela

dooutroladoseriatãodesprovidadesignificadoquantoasdoladoquesinto

queestou.

Page 139: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Tentomovermeusbraços,depoisminhaspernas.Essessãomeusmesmo?

Sou eu mesmo que me desencosto da parede do túnel e me coloco em pé,

apenascomacurvaturanascostasdequemjáseacostumoucomachancede

umtironacabeçaaqualquermomento?Chamamaqueleespaçodasuperfície

de “Terra de Ninguém”. O campo completamente destruído, mas mais

importantequeos corposqueocobrem,delimitadopelas trincheirasdeum

ladoedeoutro.

Aquela é a terra sem dono. Onde nenhum soldado pode se salvar e a

morteéumacerteza.Ondearmastreinadasestarãoprontascomofoicespara

ceifarqualquersinaldevida,seguindootreinamentoquevirouinstinto.Eu

seidisso,masenquantosuboaescadaimprovisadaemdireçãoaesse“valeda

morte”,eunãoconsigodeixardeserNinguém.Eusoulamaesangue,pólvora

emetalecarne,semnome,nacionalidadeoumotivo.Embaixoeuvouacabar

eseháalgumsignificadonisso,nãoestáaqui.

Emcima,océunubladotornatudomaiscinzadoquejáé,edealgum

modo claro demais.Aqui, eu sinto algo.Não émedo, é terror.Não consigo

olhar,masver.Nãoconsigoescutar,masouvir.Inspirofumaçaemorteesinto

o gosto em minha boca. Sinto quem sou e por um instante não sou mais

Ninguém.Sou eu e tenhoumnome,umanacionalidade,ummotivo.Eu sei

disso porque o terror só vem para quem ainda é alguém que vive, pois, o

temorsóexisteassim.

Meus olhos, que absorvem tudo que o campo de batalha tem a me

oferecer,mostram-meoinimigonadistância.Todossãotão.Ninguémquanto

euhavia sidoummomentoantes e suasarmasapontamemminhadireção.

Talvezjáestivessemapontandomesmoantesqueeuchegasseàsuperfície.

ElessãoeternosporquesãoNinguém.Imortais.Enquantonãosãomais

indivíduos é fácilmorrerem,porque semprehaveráoutros.É fácilmatarem

também,porquenãolevamqualquerculpa.Nãohácrime.Osrostoseolhos

Page 140: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

vaziossabemdisso.

Quando as balas começam a me atingir e tombo para dentro da

trincheira,sintooutravezquevoltareiaserNinguém.Sintoquesereiaquele

soldado que não queria deixar a lama. Um rosto qualquer com um corpo

qualquerqueumdiateveumnomequalquer.Etalvez,aomorrer,mefaçam

deixardeserNinguémcomoeufizemminhamentecomaquelesoldadosem

umpedaçodorosto.

Afundandonasujeira,ouçooutraexplosão.

FIM

Page 141: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

ROSADESANGUE

DANILOMATTOS

A aranha caminhava hesitante. Mauser contemplou seus movimentos,

absorto pelas finas patas que avançavam em uma sincronia singela. Era

pequena,masaindaassimo ludibriava.Seusdedos sujosaesmagarameele

levouoquerestouáboca,mastigando,tentandosentiralgo.Ouviuocracdela

separtindoentreosdentes,masnãohouvemaisnadaalémdisso.Odiaestava

cinzentodenovo,odiaestavasemprecinzento.

—Hey,garoto.Hojeestámaisfrioquedecostume.Achoqueoinverno

está próximo.—Luger o observou com seu charuto apagado na boca.Era

verdade,atemperaturaestavacaindo.Elesentiuumapontadademedo,no

invernopassadoum soldadode seupelotão tirara abota e opé saíra junto

comela.Oamigo chamaraaquilode “péde trincheira”.—Você tem fogo?

Vamoslogo,aquelacoisaestápróxima.—

Já estavam sentados ali há algum tempo, naquele espaço escavado na

terra. Podia contemplar o céu além das paredes pedregosas, ver nuvens

grossas e plácidas movendo-se preguiçosamente e misturando-se a uma

fumaçaescura,indiferentes.Haviaprojéteisvoandoconstantementeevezou

outra,emintervaloscurtosdetempo,explosõeslevantavampoeiraeterraem

algum local próximo. Ele não tinha medo exatamente da explosão das

granadasdeartilharias,oquerealmentetemiaeramosfragmentos.Antesde

começarem a cavar aquelas cidadelas profundas, quando ainda estava

percorrendo o campo á pé, vira um bocado de soldados feitos em pedaços

pelosestilhaços.Depoisvieramastrincheiras.

Page 142: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Mauserhesitouporummomento,elesabiaqueapontapoderiasinalizar

suaposição,masLugerestavatãoferidoepálidoquesoavaquasecomoum

últimopedido.

—Jáviuoquãopróximosestamosgaroto?—Mauseraarmadeladoe

deixouosfósforosdescansandonobolsoescalandopelaparedeinclinadaatéa

beiradadasuperfície,faziatempoquenãoiaali.Oareramaislimpo,mesmo

que ainda impregnado, dispersava-se um pouco o cheiro insalubre. Elemal

conseguiudiscernirCambraiàdistânciaesuaatençãofoitotalmenteroubada

pela silhueta do HomemMorto acenando, a cabeça aberta como uma flor

acimadomaxilar.

— Garoto? — Mauser desceu escorregando com a terra e sentou-se

apoiandoascostasnaparededesolocujasraízesfinassaltavamparafora.Do

outro lado estavaa falange inimiga e entãomais oumenosdezquilômetros

depoishaveriaocampodeartilhariaálongadistância.Algumacoisarompera

a Linha Hindenburg e o que parecera uma ofensiva tornara-se um cerco,

quasecomoseestivessemsendoconfinadosalipropositalmente.

Levantou-sesemsepreocuparembaterasujeiraqueficaranaroupa.Seu

uniformeestavasórdido,acorsóbriaquasesemisturavaàquelecorredorque

foraportantotemposuacasa,talvezagoraestivesseunindo-seaele,comoos

outrostambémfizeramquandoforamabatidos.

—Algunsquilômetros.Seocaminhonãoestivermuitoruimpodemos

chegaraindahoje.—Mauservirou-se,seusemblantepossuíaumar

meditativo,orostoescurecidoporcamadasdeimundícieondeseabriam

rastrosdesuor.Noiníciotambémhouveralágrimas,agoranãosobrara

muitasdelas.

—Eofogo?—Elepuxouofosforodobolsoriscando-onacaixaedeixou

oamigofalarenquantotragavaafumaça.—Nãosepreocupe,láháninhosde

metralhadoraemorteir...—Acacofoniadevozesoemudeceu,eracomouma

Page 143: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

multidão se movimentando, mas para Mauser o barulho soava como um

enxamedemoscas.

—Vamos!Precisamosir!—Lugerergueuapistolaconformeozumbido

ficavamaisaltoepróximo,seupeitoarfavaeo ferimentoabaladequando

tentara escaparda trincheira empapavao abdômendeumvermelhoque se

alastravapelouniforme.

—Eunãovoualugarnenhum,masvocêpodeconseguirchegarláentão

sugiroquecontinuecorrendo.Émelhorumchegarvivoqueosdoismorrerem

aqui.

— Do que está falando? Apenas mova... — Mas Luger não só o

empurrara como usara seu charuto para queimá-lo afastando-o quase que

instintivamente.As sobrancelhas emarco sombreavamosolhosque tinham

umbrilhoescuroedecidido.

—Umconselho,garoto.Guardesempreaúltimabalaparavocêmesmo.

—Mauserpercebeuapaisagemborraraoseuredoreapertouospunhosaté

seus dedos ficarem brancos. Lançou um olhar para cima da trincheira

percebendo oHomemMorto de pé, bambo como se oscilasse com o vento,

suspensoporfios invisíveis.Mesmosemapartedecimadacabeçaelepodia

sentiropesodesuaatenção,olhosfantasmasperscrutando-odolugaremque

deveriamexistir,masdavamespaçoparaasnuvensembaçadaspassandopelo

céu.Foiessasensaçãodeestarsendoobservadoqueotiroudalieofezfugir,

aocontráriodoapelodoamigo.Nãodemorouaescutarosdisparos.

Mauser chegou ao ponto de abastecimento depois de quase um dia

inteiro,masnãoreconheciaostanquesquehaviamtomadoacidade.Opeito

aindaarfavaeocorpoestavacobertodesuor.Sentou-seprocurandorecobrar

o fôlego e inclinando-se ligeiramente.Tirou do bolso um relógio brilhante e

dourado.Orelógiodeseupai.Aguerrapareciaseralgoheroico,quaseuma

aventuraquandopartira.Sintaavida correndo em suasveias, garoto,você

Page 144: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

querveromundo?

Ele abriu a tampa e perscrutou os ponteiros estáticos em cima dos

números romanos. O vidro estava trincado, uma fina rachadura que se

estendia pela diagonal cortando completamente a pequena abóbada

transparente.ViualioreflexodoHomemMorto,bememcimadeleereparou

queeleapontavaparaatrincheira.

O cheiro de podre atingiu-omomentos depois. Seus olhos tentavam se

acostumaraobreu,osuorbrotava-lhedatesta,onervosismocrescendocoma

bilesubindoequeimandosuagarganta.Mauserpuxouaarmacomasmãos

tremendo, o diamorria ao longe em uma franja sangrenta.A terra tremeu

imitando o rugido de tambores, sugerindo que algo muito pesado se

aproximava.Podiaescutarasvozeszumbindo,nãopareciamestarlonge,mas

se propagavam ao redor dele como fantasmas sussurrando em seu ouvido,

comomoscasvoando apaticamentepróximas.Ede súbito todas cessaram e

eleconseguiudiscerniradeLuger.

—Garoto...hojeestámaisfrioquedecostume...—Porummomentoseu

coraçãopalpitoudeexpectativaatéqueviuacoisaaparecendodocorredor:

dezenascorposamontoando-seemumamassadisformequesemovimentava

como uma centopeia. Ele engoliu em seco sentindo algo romper em seu

interior. As sensações se foram e aquela imagem sobrepujou todos os

pensamentos.

Ocorpomassivoespremeu-se,estalandoconformetentavaadentrarno

sinuosocorredor.Braçosaimpeliam,agarrandoaterraepuxandoou

empurrando,surgindodaslateraisedebaixodacriatura.Apartesuperior

pulsavacomoumcoração,umasobreposiçãodetóraxhumanoseexpressões

distorcidasqueaindadiscursavamincessantemente.

—A...última...bala...—Mauserconseguiudistinguirorostomagrode

Lugerqueaindafalavaantesdeduasmãossaíramdesuabocaeagarraram-se

Page 145: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

aparederochosacomogarras.

Escutouumbarulhoorgânicoqueo lembroudezíperessendoabertose

percebeuosdiversosrasgosnacarnerosada,àsvezesunindo-seunsaosoutros

eformandoburacosserrilhadosesorridentes.Eraparaaliqueaquelesbraços

queriampuxá-loemumapetitevoraz.AquelemonstrocrescerapelaLinhade

Hinderburgdevorando tudoque estavanela e ansiavapormais.Quandoos

dedosossudosealongadosfinalmentetocaramsuabotaelerecuoucolando-se

aparede.

Gotas sangue pingaram e escorreram pelo rosto do alemão carregando

consigo parte da sujeira que o impregnava. Mauser olhou para cima

encontrandonovamenteoHomemMortonotopodatrincheira.

Obarulhodedentesbatendocomforçaficavacadavezmaispróximo.

Ele levou a armaàboca e se perguntou se ficaria daquele jeito, se sua

cabeçadesabrochariacomoumarosa.

FIM

Page 146: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

POULINE

SARATIMÓTEO

No Relatório Geral / Cruzada das Mulheres Portuguesas (1917-1918),

capítulo"ComissãoExecutivadaEnfermagemdeGuerra,página15,podeler-se

em"GarantiadasEnfermeirasdeGuerra":"Pelodecretoapublicarassenhoras

enfermeirasserãoremuneradasdeforaquebemlhescompensematerialmenteoseu

trabalho.Num país como o nosso em que não há profissões remuneradas para

senhoras,umlargoebomcaminhoseabreatodasaquelasquesecompenetrarem

bem,nãosódodevercívicoquelhespedetrabalhoesacrifício,comodoaltodever

moraldecadaumprocurartornar-seindependentepelopróprioesforçohonestoe

útil.Assub-comissõesda"CruzadasdasMulheresPortuguesas",deacordocom

os senhores médicos, organizando cursos de enfermagem em todo o país pelo

programaquea"ComissãoExecutiva"nãotemdúvidadefornecer;facilitarãoo

trabalhourgente de organizaçãodumCorpodeSaúdedeGuerra, porquemuitas

senhorasnãopodemdeslocar-segratuitamente,parafazeremoscursosemLisboa,

vindo depois de diplomadas, se forem aceites as suas garantias morais e

aprovadaspelaJuntaMédica,fazeroestágiojáremuneradas.Todaaurgênciaé

pouca num trabalho de tanta necessidade, esperando-se do patriotismo das

MulheresPortuguesasalargainscriçãoquesefazmister".Lisboa,15deAgosto

de 1917. (Imagem modificada digitalmente) - Relatório Geral / Cruzada das

Mulheres Portuguesas. Lisboa: CMP, 1918-1933. Biblioteca Nacional de

Portugal.

MariaherdaraonomedaMãedoSenhor.José,por suavez, obtiverao

Page 147: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

nomeapartirda figuradopai adoptivodoSenhor.O seuJosé, tãoamado,desvanecera-se por entre as brumas da guerra.Ela alistara-se nasCruzadas

dasMulheresPortuguesasporseraúnicaprofissãoremuneradadaépocaonde

poderia colocar a bomuso os conhecimentos de enfermagem adquiridos em

França.Labutaramuito na frente coma ajuda e orientação da tiaAmélia,

entretantofalecida.

AesposadeJoséeradotadadeumaestaturabaixaemuitoharmoniosa

deformas.Orostoeraeclipsadopelosolhosbordejadosporpestanaslongas.

Olhar extraordinário esse, que parecia nada ter retido de todos os horrores

que já vira.Maria encontrava-se na posse de ummedalhão de prata coma

imagem da VirgemMaria sobre o qual ela e a tia Amélia (pouco antes do

passamentodestaúltima)haviamrealizadoumsortilégiocomafinalidadede

garantiroregressodeJosédaguerra.

Contudo,Maria acordara sobressaltadanasúltimasnoites, após sonhar

com José sufocando com o próprio sangue. Devido a estes perniciosos

momentosdepesadelo,elaencontrava-secansada,desmotivada;inclusive,já

forarepreendidapelaenfermeira-chefe.

Sobejavam-lhe motivos para crer que se encontrava sob alçada dos

jagunços das informações secretas. Uma vizinha, há cerca de uma semana,

interrogara-a sobre omedalhão – e, desde aí, havia sempre dois homens de

gabardina(eraVerão!)noseuencalço.Nuncamaistrocaraqualquerpalavra

comessavizinha,masjáeratarde.Asnãoconformidadeserampuníveiscom

prisãoe,porvezes,comtortura.

TodosestesacontecimentosacabrunhavamMaria;elasentia-seassolada

pelo pânico e pela tristeza. Segurava no medalhão sub-repticiamente e

aqueciaaimagemdasantaentreaspalmasdasmãos,orandoparaqueoseu

JoséretornasseaPortugalsãoesalvo.

Terminou o turno desse dia. Os presságios funestos avolumavam-se

Page 148: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

dentro da mente de Maria e, no seu íntimo, o pesar dominava qualquer

sensação de alegria. Sentia-se desfalecer. Os homens não regressavam

verdadeiramente;eramapenascarapaçasdeumserdesaparecidoporentreos

recontros sangrentos. Sabia que omesmo sucederia com o seumarido;mas

queria-odevolta,mesmoassim.Sentia-seamedrontadapelapossibilidadede

eleficarmutiladooucomsequelasdeinfecçãopulmonarouvenérea.Gaseado,

estropiado,amputado,perturbado:estaseramaspioreshipótesesquehaveria

deencararquando,paraisso,selheapresentasseodevidomomento.

Enquantomatutavaemtudoisto,apercebeu-sedeumconjuntodepassos

que a seguiam. Plaf, plaf, ruge, ruge, pronunciavam as suas saias sobre a

calçada seca ao pé da Estrela. Pof pof, tum, tum, roçagavam os sapatos

negros reluzentes de graxa, procurando diminuir a distância entre

perseguidores e presa. Dois agentes ao serviço do Estado e uma mulher

sozinha:qualahipótesedela sobrepujara forçadedoishomensnoaugeda

vida?Queplaneariamparaafazerfalar?Esperavanãoterdedescobrir.

Chegou a casa, abriu a porta, entrou e trancou-a. Eles não bateram;

permaneceramsobreasoleiradaentrada,soboescrutíniodasvizinhas,para

quetodosnobairrosoubessemqueaMariaseencontravasobinvestigaçãopor

parte do regime. Conseguia ouvir a respiração deles, ávida, à qual se

contrapunha o batimento acelerado do sangue ao passar pelas veias do

pescoço. Pouco faltava para que estendessem os dedos transformados em

garras por debaixo da porta, começando a arranhar e a raspar, até que as

unhascadavezmaiscrescidasconseguissemagarrá-laeaprisioná-ladentrode

casa,ondeapodreceriaa semelhançadoscorposdoshomensquevira saídos

dastrincheiras.EsfregouomedalhãodaVirgemMariacomdenodoenquanto

se despojava das vestes brancas e quentes ornadas por uma cruz e pensou:

“Regressa,José!Precisodetiparaexpulsaresesteshomensdanossacasa!”

Maria,aPoulinedeJosé,debaldeprocurouconciliarosononessanoite.

Page 149: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Sentiaapresençadosdoishomens-coisa,cujosbraçospercorriamasdivisões

dacasaàprocuradela–asgarras cresciam-lhes cadavezmaisapartirdas

mãoseelasabiaque,sesaíssedacama, iriaencontrarmembrospulsantesa

barrar-lhe todos os caminhos, numa espécie de amarração corporizada.

Fechouosolhos eJosé surgiu,degengivasdescarnadas, transportandouma

miniatura da Virgem Maria na palma da mão esquerda enquanto lhe

mostravaumferimentogangrenadonapernadireita.

Tomp,tomp.Passoscoxosabeiraram-sedaportadecasa.Sobreacama

de casal, tolhida de medo, Maria rezava: “meu anjo da guarda, minha

companhia,guardaiaminhaalmadenoiteededia.”Toctoc.Alguémbateuà

porta,apenasduasvezes.Marianãofoiabrir.Prosseguiuasualitania.Plim

plimgorghgorgh.Baquebaque.Umalâmina,umestrépitologoabafadopela

quedade(dois?)corposàportadecasa.Assombrasquesentiraespalharem-se

pelasdivisõesesmoreceramemirraram.

OspassoscoxossoavammaispróximoseMariatapouosolhosquandoos

sapatosouospésqueproduziamtaissonscomeçaramasubirasescadasque

desembocavamnoquartodecasal.Tomptuc tomptuc.Umavozgrasnada,

rouca edemente começoua cantarolar: “Maria,meuamor…vem receber o

teuhomemquenuncatefalhou…Maria,meuamor…dáasboas-vindasao

teu homem que voltou…” As tábuas do soalho rangeram. O medalhão

ergueu-seelibertou-sedofioqueoaprisionava,ficandoretidopelaportapor

cujasfrinchasseentreviaumvultocurvadoadesbravarcarreirosdepesadelo.

Deolhosarregalados,aesposadoPoulinabriuaboca,procurandoformarum

gritodepavor.QuandoaportafinalmentecedeulugaraJosé,retornadodas

trincheiras deFrança onde uma baioneta o executara,Maria jazia exangue

sobreoleitonupcialdeondejamaisseergueriadenovo.

FIM

Page 150: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam
Page 151: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

TERRORRUSSO

MARIANALUPPI

LivrementeinspiradonaexecuçãodoczarNicolauRomanov

Nicolauagitou-senosono.

Estivera observando os pequenos Alexei e Anastácia correrem pelos

prados na residência de verão dosRomanov, perto de São Petersburgo, até

perceber uma presença incômoda. Olhou em volta e não viu nada, seguiu

sentindo um certo espectro rondando a calma tarde de sol. Suspirou e

retornou ao salão, onde o chá já estava servido com alguma variedade de

bolos e doces europeus. Alexandra, sentada, mexia a bebida com os olhos

perdidos.Muitosverõespassaramassim,ecomagraçadeDeusmuitosmais

passariam,naterra fértil ebela,aboaRússia.Oczar sorriueabocanhouo

bolomaispróximo.

Umgostoferrosoeamargoinvadiu-lheabocaeNicolausentiuorecheio

quente descer dos lábios e pela mão que ainda segurava uma porção. Era

vermelhoescuro.Olhouconsternadoparaaesposa,apenasparavê-la,ainda

comoolharperdido,bebericandoochávermelhovivoedeixando-oescorrer

inadvertidamentepeloscantosdaboca.

Oczarfechouosolhoscomforça.Quandoabriu,percebeu-senoKremlin.

Sentava-seemsuaconfortávelpoltronadealmofadasdeseda,aoladodeuma

lareira ampla. Suspirou acalmando-se do sonho perturbador e observou o

fogo.Quantasvezesnãoestiveraassim,aquecidoao ladoda lareiraquenão

Page 152: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

apagavanamaiorpartedoanoemMoscou?Focouosolhosnasbrasasenosgirosdascores.Entãoviualgoalinomeioquelhealarmou,umrostogritava

emdesespero.Nicolaunãoconseguiatirarosolhosdele.Foichegandoperto

da lareiracomoseorostoopuxassee,emsegundos,mesmofazendotodoo

esforçoqueseucorpoeracapaz,nãoconseguiaresistiràatraçãodocalor.Já

sentiaqueimarapele,jáouviaogritodeagoniaemseusouvidos.

—Senhor?

O encanto quebrou-se eNicolau caiu sentado.O funcionário, um russo

corpulento e afetado, assustou-se e demoroualguns segundospara ajudar o

czaraselevantar.Pousou-onagrandecadeiraatrásdaescrivaninha.

—Essespapéisprecisamserassinados.

Nicolau olhou do homem para os papéis, respirou fundo emolhou sua

penanotinteiro.Meiadúziadeordensdeexecuçãodecriminosos,atéquealgo

lhe chamou a atenção.Tinha certeza que já tinha assinado isso.Ergueu os

olhosenãoestavamaisempresençadoroliçofuncionário,masdeumafigura

alta e encapotada de preto, que estendia o dedo para o papel dando uma

gargalhadagrave.

Nicolau voltou os olhos para o papel.Era a declaração de guerra, e já

estava assinada, datada de 1914. Ele estava certo que tinha assinado em

preto,masagoraviaatintavermelhaescorrerpelopapelepelassuasmãos

enquanto a gargalhada damorte preenchia o cômodo tornando-o cada vez

maisfrio.

—Acordem!Acordem!Temosquesair—Dr.EugeneBotkin,médicoda

famíliareal,penetrouoquarto.Nicolaulevantou-sesuadoeolhouemvolta,a

memóriadosonhoseapagandofrenteàlembrançadarealidademórbidaedo

somdetirosaolonge.Sim,elenãoeramaisczar,eestavapresonaesquecida

Ecaterimburgoesperandooqueasortelhereservaria.

Page 153: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

***

Yakovagitou-senosono.

Estiveraencolhidoemumatrincheira,sobocheirodefumaçaeosomde

tiros. O que fazia ali? Não saíra de solo russo desde que voltara para a

revolução,aindaem1905.Masseguravaumfuzileobservavaorapazaoseu

lado.Naescuridãodamadrugadaquasenãooreconheceu,masagoraviaseu

irmão mais novo preparando-se para atirar, era uma criança de novo e

suspendeu-se sobre a trincheira. Antes do dedo tocar o gatilho, porém, foi

atingido e seu corpo caiu morto ao lado de Yakov. Aproximando-se, ele

tentavaacudirocaçuladosYurovsky,masabalaatingiraseurostoeosangue

corria. Yakov fixou seus olhos nele, apenas para o menino tornar-se um

homem,outrode seus irmãos, edepois seupai, edepois seuavô.Olhavaas

geraçõesdemortosasuafrenteelembravadesuainfância,dofrioedafome

quesóeramreduzidospelosdiasdeseupaifazendovidros,pelosdiasdesua

mãecosturando.

Obolchevique levantouosolhos cheiosde lágrimaspara céue,quando

abaixou a cabeça, estava em São Petersburgo, ladeado por pessoas que

caminhavamemmanifestaçãoatravessandoaneve.Aoseu lado,aamigade

infânciaAnieska,quesorriacomasfacesvermelhasdofrio.Lembroudesua

épocaderelojoeiro,decomoelalevavapedaçosdopãoquefaziaemcasapara

dividir com ele em sua pequena oficina sem calefação. Ouviu o canto da

multidãocrescer,eramcantosdelouvores,equandoviuoPaláciodeInverno

apertouasmãosdeAnieskasobreasluvas.Sabiaquetinhaquesairdali,mas

nãolembravaporquê.Osomdostiroscomeçoudelongeeamultidãopassou

a correr já tingindo de vermelho a neve. Yakov procurou uma saída,

esquivando-sedaturbadesesperada.SentiuAnieskasoltarsuamão.Quando

sevoltouparatrástrocouoúltimoolharcomela,quecaíaesticandoosdedos

eimplorandoajuda.

Page 154: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Caiu e quando despertou viu uma mãe chorando sozinha no meio da

neve,dealgumaformaYakovsabiaqueaquelamãetinhaperdidoseufilhona

guerra.Elesabiaquejáera1914eoterrorcomeçara.EstavaemMoscou,e

caminhousemrumopelasruasatéencontrarumpelotãoqueseencaminhava

paraaestaçãoferroviária.Algunssoldadosaindapareciamcriançasemãese

irmãs gritavam do outro lado da rua, bloqueada por oficiais em cavalos.

Yakov levantou os olhos para a sinagoga ao longe e a luz refletida na neve

começouacrescerecrescer.Atrásdaimponenteconstruçãoorevolucionário

viu,segundosantesdedesmaiar,umafiguraaladadescendocomumapesada

espadanopunhoesquerdo.

AcordoudenovoemSãoPetersburgoeumaondadealíviolheinvadiuo

peito.Milharesdemulheresestavamnasruas,eraarevoluçãocomeçando.Foi

chamadopelacamaradaNajeskaparaseguircomelas,ossoldadostinhamse

recusadoaatirar.

Um tiro ao longe o despertou. Era a Legião Tchecoslovaca, como

esperavamjáháunsdias.Erahora.OquedisseranaassembleiadoSoviete

RegionaldosUraisnãoforaàtoa,Yakovsabiaternascidoparaatarefaquea

revoluçãolhereservara.

***

Naalvoradadodia18dejulhode1918,Yakovcaminhoucomofuzila

tiracolo,acabeçaerguida,entreasconstruçõesdeEcaterimburgo.

Nicolau vestira-se e descia as escadas, orientado pelos guardas

bolcheviques,masnãosesentiabem.Desdeaqueestavasobcustódiacomia

consideravelmentemenosdoquenosbanquetesimperiais.Cambaleavaesua

visão turvava, invadida de sombras que falavam de morte. Toda vez que

piscavaosolhosviaovermelhovivodesangue.Começouaouvirmurmúrios

chorososenquantodesciaasescadasatéoporão,eolhavaemvoltatentando

encontrarsuaorigem.

Page 155: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Foiencaminhadoporumaportinholaparaocômodoescuro,ondehavia

umacadeiragrandedemadeiraentalhada.Atrásdelaviu,imponenteeséria,

afiguravestidadenegroquelhevisitaraemsonho.Resistiuopoucoqueseu

corpoenfraquecidopermitiu,masfoisentadonacadeirapelosguardas.

Yakovpenetrouoedifíciopisandofirmecomsuasbotaspesadas,sentia-

se carregadopor algomaiorque elemesmo.Desceuas escadas até oporão,

quaseflutuando,paraencontraroantigoczarsentadosériosobreacadeirade

madeira.

Nicolaulevantouacabeçaparaafiguradamorte,quelheolhoudevolta

eperguntoucomsuavozgrave:vocêsabeoquefez?

Yakovviunobrelevantaracabeçaesentiu-seenvolvidoporluz,sentiuo

anjojusticeiroenvolvê-lo,sentiuseusbraçoseseufuzilseremlevantados.

Nicolau piscou longamente e viu o horror da guerra, o sangue nas

trincheiras,asmães chorosas emMoscou, emSãoPetersburgo.Esboçouum

sorrisocínicoepensava:oquesãoessasmães?Eessessoldados?Nãovalemum

pelo do cachorro da czarina.Amorte baixou o rosto eNicolau, emvoz alta,

questionou-a:

—Oquê?Oquê?

O anjo atirou.Yakov atirou, sentindo-se invadido pelo anjo da justiça.

Suabala,carregadadaesperançademilhõesderussos,atravessouorostodo

monarcaefindou,deumavezparasempre,oterrordodespotismo.

FIM

Page 156: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

PUBLICIDADE

A Revista LiteraLivre é uma publicação brasileira independente de

periodicidade bimestral, com distribuição eletrônica em PDF e totalmente

gratuita. Nossa missão principal é dar espaço aos escritores de todos os

lugares,amadoresouprofissionais,publicadosounão,quedesejamdivulgar

seusescritosemostrarseutalentodeformaindependenteelivre,valorizando

agrandezadaLínguaPortuguesaeadiversidadedeestilos.Criadaem2016

pelaescritora,cineastaeativistaculturalAnaRosenrot,apublicaçãonasceu

paradarcontinuidadeaosanosliteráriosdarevistaSuíçaVaraldoBrasil,que

porseteanosdivulgouaLínguaPortuguesapelomundoedeuoportunidadea

centenasdeescritores.

Olançamentoda1ªediçãofoiemjaneirode2017econtoucommaisde

200 inscritos de todo o Brasil e de outras partes do mundo, com ótima

receptividadedosleitores;repetimososucessona2ªedição,ondepassamosa

aceitar também tirinhas, imagens, fotos autorais e desenhos, dando

oportunidadeparamaisartistas;estamoscaminhandoparaa3ªedição,que

serálançadanasegundaquinzenademaio.

Nossa equipe conta com somente três pessoas e muito carinho e é

composta por Ana Rosenrot, Alefy Santana e Julio Cesar Martins. Com o

lema:“LiteraturacomLiberdade”,pretendemoslevaratéopúblicoobrasde

todos os gêneros literários e também proporcionar aos autores visibilidade,

confiançae incentivo,utilizandoaenormecapacidadedealcancedasmídias

digitais, numa grande união literária e cultural, trazendo oportunidades e

entretenimentodequalidade.

Page 157: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

Cliquenaimagemparaacessarositedarevista

Notas

[←1]Vlokoslak—Tipodevampirosérvioousiberiano,tambémchamadomulo.Sãoativosde

diaedenoite.Alémdebeberemosangue,comemacarnedesuasvítimas.

Page 158: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

[←2]Na noite de 16 de dezembro de 1916, conspiradores armaram uma cilada para matar

Rasputin.OMongeLoucofoienvenenadocomcianeto,baleado,espancadoejogadoàságuasdorioNeva amarrado emum cobertor.Quando o corpo foi encontrado, descobriramque,mesmodepois disso tudo, o Monge Louco ainda estava vivo e tentara se soltar das cordas antes definalmente morrer afogado. Apesar das explicações para essa resistência sobre-humana, ascircunstânciasdesuamortecontinuamcausandoestranhamentoatéosdiasdehoje.

Page 159: A Arte do Terror - Volume 5 · peso, o tanque de guerra avança sobre os homens, e em movimento, dispara um míssil, este acerta dois homens. Pernas e sangue voam pelo ar; todos continuam

[←3]Nota do autor: “Terra de ninguém” e baseado em fragmentos de diários e relatos de veteranos daPrimeiraGuerra.Algunstrechoseexpressõesforamadaptadosdiretamente.Referência:LINK1LINK2