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A Arte da Guerra Chinesa Uma história da Estratégia na China, de Sunzi a Maozedong ANDRÉ 2011

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A Arte da Guerra Chinesa Uma história da Estratégia na China, de Sunzi a Maozedong

ANDRÉ

2011

Direitos registrados pela Creative Commons, 2011

BUENO, André

A Arte da Guerra Chinesa – uma história da estratégia na China de Sunzi a Maozedong. Rio de Janeiro, 2011

ISBN 978-85-912744-4-4

Sinologia; Estratégia; Pensamento Chinês

ÍNDICE Introdução, 7 1º Capítulo – A guerra na Antiguidade Chinesa, 15 2º Capítulo – Antes de Sunzi: Taigong e Sima Fa, 27 3º capítulo – A consagração da Lei da Guerra de Sunzi, 45 4º capítulo – Wuzi, 75 5º Capítulo – O intervalo macabro de Qin, 95 6º capítulo – As Três Estratégias, 111 7º Capítulo – A Redenção de Sunzi, 127 8º capítulo – As 36 estratégias e Liuji, 157 9º capítulo – O Século da derrota, 177 10º capítulo – Maozedong e a sagração de Sunzi, 189 Conclusão – A Arte da Guerra Chinesa nos dias de hoje, 209 Anexo: Qual a relação dos estrategistas com outras escolas filosóficas chinesas, 217 Referências bibliográficas, 225 Cronologia da História Chinesa, 230 A pronúncia de alguns nomes chineses, 231

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Introdução

Para entender a Arte da Guerra chinesa, precisamos voltar a 638 a.C., numa passagem famosa do livro Primaveras e Outonos de Confúcio. Nesta ancestral coletânea de crônicas históricas, o velho mestre nos conta sobre um episódio curioso ocorrido com o Duque Xiang de Song – um dos muitos reinos que compunham a China daquele período – e que serviu de ponto de partida para as discussões sobre estratégia entre os sábios da época. Embora seja repetida a exaustão, esta história é indispensável para se compreender as mudanças no pensamento chinês sobre a guerra.

O duque de Song foi enfrentar as tropas de outro reino, Chu, as margens do rio Hong. Chegando lá, pegou o exército de Chu atolando-se na travessia do rio. As forças de Song já estavam alinhadas e prontas para um ataque magnífico, mas o duque nem se mexeu. Seu ministro da guerra chegou-lhe e disse: “senhor, eles são muitos e nós somos poucos. Peço sua autorização para atacar eles antes que completem a travessia”. Para surpresa geral, o duque respondeu com um seco “não!”. Enquanto isso, os soldados de Chu terminaram

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de atravessar o rio, mas estavam absolutamente bagunçados, arrumando-se e correndo de um lado ao outro. O ministro da guerra de Song – que não devia estar acreditando no que via – pediu nova autorização para atacar o exército de Chu, e ouviu novamente um sonoro “não!” do duque Xiang. Somente quando as tropas de Chu estavam alinhadas, refeitas e organizadas, os embasbacados soldados de Song receberam ordem para atacar. O resultado foi que o exército de Song levou uma surra tremenda, o duque Xiang foi ferido, e seus oficiais foram exterminados.

Os pensadores da época tiveram uma grande dificuldade para compreender o que havia ocorrido. Se o duque de Song era um cavalheiro, que lutara de modo honrado, porque então perdera o combate? Afinal, pessoas de elevada moral não seriam intelectualmente superiores? Ou o duque Xiang apenas parecia ser superior, mas não o era de fato? E ainda, será que a guerra não tinha nenhuma relação com a moralidade, e por isso, a regras cavalheirescas não seriam – neste caso - inúteis?

Os oficiais e ministros restantes de Song foram cobrar do duque o seu fracasso, ao que ele respondeu: “um cavalheiro não ataca quem

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está ferido, nem quem é velho. Os antigos não atacavam quem estava no aperto. Eu, da minha parte, prefiro ver minha linhagem extinta do que atacar alguém que não esteja pronto”. No entanto, Ziyu, um dos maiores pensadores da escola confucionista - e que provavelmente entendia tudo de cavalheirismo - comentou o seguinte: “o duque não entende nada de guerras. Se o inimigo está num aperto, isso é uma dádiva do céu! Atacar ele bagunçado é melhor ainda, ou o duque estava com medo de fazer isso? Aliás, quem liga pra cor dos cabelos de quem está combatendo? E daí se são velhos ou novos? Não se combate com pudores, mas com vontade. Se não matarmos o inimigo de primeira, o que o impedirá de nos tentar matar depois? Quem não quer ferir ninguém numa guerra, é melhor nem entrar nela. Quem não quer machucar os mais velhos, é melhor se entregar logo. Num exército, precisamos de armas afiadas e tambores de metal pra excitar a luta. Armas afiadas são feitas pra serem usadas”.

Mais de dois mil anos depois, Maozedong, o grande líder da China comunista, inspirado nesta história, costumava repetir em seus discursos, ou mesmo nas conversas mais íntimas, a frase “não somos o duque de Song” – para

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reafirmar, sempre, que em defesa de suas causas, ele estava disposto a atacar primeiro.

O impacto que esta passagem causa no imaginário chinês, a ponto de perdurar por milênios, se baseia na seguinte questão: numa guerra, o que vale para alcançar a vitória? O pensamento chinês, em busca de um pragmatismo eficaz, não poderia deixar de pensar o problema. Afinal, os chineses acreditam, desde Confúcio (século -6 – 5 a.C.), que a educação era – e ainda é - o melhor meio de administrar todos os problemas sociais e formar uma sociedade sadia. No entanto, quando as guerras estouram, as regras de etiqueta desaparecem, a cortesia se torna um detalhe excêntrico, e a morte é uma constante.

Então, o que fazer para que as guerras sejam menos terríveis? Se for inevitável que elas transformem-se numa calamidade, como encerrá-las de modo mais efetivo e rápido possível? Foram estas considerações que levaram os chineses, provavelmente, a elaborar uma outra metodologia para conceber e praticar a guerra, que eles centraram no conceito Mou – estratégia. O emérito Confúcio já havia falado sobre isso nas suas Conversas (Lunyu): quando perguntado sobre quem ele deixaria no comando de um exército, o mestre respondeu que “seria alguém que se

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preocupasse em vencer pela estratégia e astúcia, e nunca pela ferocidade ou ira”. O que ele perceberia, assim como vários outros pensadores depois dele, é que a guerra, como atividade humana, era o último estágio de um processo mal sucedido de negociações e conflitos, e seu desenrolar era necessariamente catastrófico. A estratégia desenvolveu-se, pois, como um expediente para minimizar as perdas de um conflito, aumentar ao máximo os ganhos, mas – e principalmente – impor novamente uma ordem ao mundo e as coisas, sem o que a humanidade não poderia sobreviver.

Isso não implicava, contudo, que para que uma guerra fosse vencida, as estratégias não fossem terríveis. Nas mesmas Primaveras e Outonos, Confúcio conta a história assustadora ocorrida em 518 a.C., quando os reinos de Wu e Chu foram enfrentar-se numa batalha. O soberano de Wu, sabendo da superioridade de seu inimigo, concebeu um estratagema macabro, porém eficaz. Ele enviou 3000 condenados à morte na linha de frente, que se dirigiram calmamente para diante das tropas de Chu. Estes prisioneiros sabiam que não seriam recebidos pelos homens de Chu, pois eram bandidos; sabiam igualmente que não poderiam voltar para Wu, dadas as suas

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condenações. O que o Conde de Wu lhes havia oferecido era a oportunidade de uma morte honrosa, fosse atacando os homens de Chu, ou... praticando um suicídio coletivo diante deles! O desfecho desta história nos é conhecido por cronistas posteriores: os condenados se degolaram em frente aos homens de Chu, que ficaram horrorizados e, ao menor sinal do ataque real de Wu, debandaram completamente. Qualquer um que se pergunte sobre esta história deve concordar que este estratagema não parece nem um pouco humanístico, mas na matemática perversa das guerras, ele foi considerado um sucesso, vencendo uma batalha com pouquíssimas baixas. Tempos depois, autores como Sunzi considerariam este evento um exemplo de guerra bem conduzida, que só perderia em eficácia para as guerras ganhas sem batalhas.

O que nos propomos neste pequeno livro, portanto, é compreender o que é esta Arte da Guerra Chinesa. Para isso, faremos uma travessia de séculos, saindo da China antiga - quando surgem os primeiros estrategistas da História – passando por autores conhecidos como Sunzi, ou nem tão conhecidos como Sima ou Taigong, até chegarmos a história recente desta civilização,

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quando analisaremos o emprego destas estratégias chinesas na grandes guerras e na revolução comunista chinesa.

Buscaremos compreender as modificações que ocorreram no pensamento chinês, no que toca a questão da estratégia, fosse como um elemento eminentemente militar ou mesmo, um caminho de sabedoria filosófica. A estratégia, desde a antiguidade, passou a ser considerada como um elemento eficaz para a realização de qualquer plano; e se hoje damos isso como óbvio, por outro lado percebemos que a maior parte das pessoas comuns dirige-se, ainda, ao conflito de modo acidental, sem perceber as questões que o permeiam, que poderiam evitá-lo ou, que podem resolvê-lo de maneira mais eficaz.

Isso nos levou a realizar uma série de traduções de textos consagrados da estratégia chinesa, cujos autores praticamente se transformaram numa escola filosófica dentro da China. Alguns deles são desconhecidos ou inéditos em nossa língua, o que tornou a confecção deste texto algo bastante gratificante, e que com imenso prazer apresentamos a vocês.

Vejamos, pois, o que pode ser a Arte da Guerra Chinesa.

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1º Capítulo

A guerra na Antiguidade Chinesa

Para compreender o que quer que seja

sobre a história da China, devemos sempre retomar o seu passado. Esta civilização tem uma história muito diferente da nossa: ela continua a existir e se desenvolver desde a antiguidade, preserva uma língua milenar, e suas tradições culturais tem uma durabilidade quase sem comparação.

Para termos uma idéia disso, imaginemos um exemplo: o império chinês, mais duradouro do que qualquer outro no mundo, só foi derrubado em 1911. Se aceitarmos a história tradicional chinesa como referência, que situa o início da soberania chinesa em torno do século 20 a.C., com a dinastia Xia, então, a derrubada do poder imperial chinês seria equivalente, por exemplo, a que o último faraó do Egito tivesse abdicado somente no início do século 20 também! Sem termos esta antiguidade em mente, torna-se impossível entender os modos pelos quais opera a mente chinesa.

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Todavia, nossa história começa em torno do século 6 a.C. A China desta época era governada pela dinastia Zhou, que já estava no poder há quase seis séculos. No entanto, seu controle sobre o território era praticamente nominal, mas não efetivo; quando assumiram o poder, os Zhou haviam instaurado um regime político e econômico chamado Fengjian, muito similar ao que conhecemos como feudalismo, que dividiu o império em inúmeros reinos, condados, marquesados, ducados, etc. Os governantes destas províncias e reinos deveriam prestar obediência e vassalidade ao imperador Zhou, e em troca possuíam uma substancial autonomia administrativa. Ao longo dos séculos, porém, a dinastia Zhou foi perdendo o controle real do império, transformando-se em mero árbitro nas disputas internas, até que, gradualmente, o seu papel de interferir nos conflitos tornou-se praticamente nulo. As regiões adquiriram uma independência quase completa, e os senhores tomaram para si o poder de legislar e gerir seus próprios reinos.

Neste contexto, uma escalada de violência sem precedentes começou. A China de antes já havia visto guerras antes, mas nunca antes com esta intensidade. Todos os principais livros de história desta época – tais

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como o Tratado das Histórias e as Primaveras e Outonos – já falavam de batalhas, heróis guerreiros, mas em nenhum momento louvaram a guerra como um evento maravilhoso, e sim, como uma necessidade ou como decorrência de alguma grande crise. Em outro livro, o Tratado das Poesias, a guerra é lamentada em diversos poemas, e tida como uma calamidade social. O que muda, então, a partir do século 6 a.C.? É que, finalmente, os grandes senhores percebem que não há mais nenhum comando efetivo por parte dos Zhou. A China estava sem um imperador de fato, e o “mandato do céu” – a teoria política que afirmava que o imperador era responsável pela ordem cósmica da natureza e das coisas – estava igualmente vago.

Neste momento surgiram vários pensadores tentando buscar uma solução para este problema. O primeiro deles, Confúcio, foi um fervoroso defensor da educação como meio de remediar e prevenir as crises sociais. Este sábio foi também o primeiro historiador chinês, e grande parte das informações de que dispomos sobre esta época foi salva pelo seu extenso trabalho historiográfico. Outra corrente de destaque foi a de Laozi, defensor de um desprendimento das coisas materiais e

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da sociedade, em busca de uma natureza original e distante do mundo mundano. Seus seguidores se denominaram caminhantes (daoístas ou, seguidores do caminho, o Dao ou Tao, numa grafia mais conhecida). Tivemos ainda os moístas, discípulos de um mestre chamado Mozi, que pregava a paz universal, o amor ao próximo e a defesa dos mais fracos, por meio da abolição da cultura de elite. Outra doutrina importante foi a e dos legistas, difundidas por Shang Yang e Hanfeizi, cuja pregação voltava-se para uma remodelação do império, por meio de leis duras e centralizadoras, com a supressão dos privilégios feudais e um controle total sobre a sociedade.

Todas estas escolas advogavam um Dao – um caminho, ou método – para solucionar a crise que se avizinhava. Contudo, outro grupo de autores, conhecidos como estrategistas, dedicou-se a estudar a arte da guerra e preparar-se para a sua eventualidade. Seu entendimento é que a guerra, como algo evidente e prestes a acontecer, deveria ser estudada em seus pormenores, e seu vencedor ditaria as regras no futuro.

Foi assim que surgiram autores famosos, como Sunzi e Sunbin, e outros menos conhecidos – porém importantíssimos – como

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Sima, Wuzi e Wei Liao, que analisaram a guerra em detalhes, e propuseram métodos e estratégias que possibilitassem vencer e encerrar os conflitos da maneira mais rápida e adequada possível.

As premissas sobre as quais estes autores trabalhavam eram diferentes daquelas das outras escolas. Eles não estavam preocupados em consertar o mundo, mas em fornecer os meios para que isso fosse feito. Sua idéia central era dar o poder ao mais capacitado, e assim, este poderia promover novamente a ordem. Alguns historiadores chineses modernos consideram que eles chegaram a formar uma espécie de escola que englobava conceitos diversos do confucionismo, do daoísmo e principalmente do legismo. Isso, no entanto, é menos importante do que sua obra em si, que analisaremos nos capítulos a seguir.

A questão é que a mudança do perfil político da China, neste século 6 a.C., detonou uma grave crise, que descambou naturalmente para a guerra civil. Este conflito não seria, porém, como os outros.

As guerras de antes desta época eram bem diferentes. Os exércitos não eram muito grandes, e as batalhas estavam longe de serem mortíferas. Em geral, os exércitos ficavam dias

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acampados um em frente ao outro; os adivinhos consultavam os oráculos para saberem os dias mais propícios ao combate, e grande parte da tropa era composta por camponeses que tinham pouca idéia do que faziam ali. Estes soldados armavam-se com lanças e facas, e algumas vezes dispunham de escudo e uma couraça de couro. Seu papel era quase decorativo: eles serviam mais para proteger seus senhores de qualquer interferência durante um combate singular com outro cavalheiro do que propriamente lutar. Era comum que vencessem uma refrega apenas por meio de correria, gritos e algazarras. Afinal, estes camponeses não tinham nada a ganhar com aquelas batalhas, senão a vida. Seu interesse por guerras era praticamente nulo, e sua vontade de brigar dependia, em muito, da capacidade motivadora de seu comandante.

Estas batalhas antigas eram espaço, de fato, para os fidalgos. Desfilando em seus carros bem armados, com armaduras de couro de búfalo ou de tubarão, elmos decorados e armas cintilantes, suas disputas particulares transformavam-se em espetáculo. Combatiam com armas diversas, incluindo espadas e o arco e flecha, arma restrita a eles. Antes dos ataques principais, estes homens em busca de

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heroísmo digladiavam-se, em justas muito semelhantes as que encontramos nas narrativas da guerra de Tróia de Homero. Outro fragmento das Primaveras e Outonos nos dá uma idéia disso: em meio a um combate, dois nobres, de cima de suas bigas, trocavam flechas um contra o outro até que o carro de um deles atolou. O outro parou, e aguardou até que os serviçais desatolassem a biga, para dar continuidade à luta. Com efeito, acreditava-se que a guerra era uma extensão das capacidades morais e intelectuais dos nobres, e que os duelos apresentavam-se como reproduções – não por meio de palavras, mas pelas armas – destas virtudes. O vencedor era considerado, pois, o melhor dos homens.

O resultado destas batalhas, não raramente, consumava-se em um acordo qualquer que seria desrespeitado alguns anos depois. Os ganhos reais destas lutas eram raros, e enquanto a intercessão de Zhou funcionou, as guerras foram pouco efetivas em alcançar seus objetivos fundamentais.

Isso começou a mudar quando a guerra tornou-se uma profissão, e um meio eficaz de conquistar resultados políticos e territoriais. A partir de 481 a.C., a guerra civil se instaura de modo declarado, dando início ao período conhecido como Estados Combatentes; não

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havia mais espaço para cavalheirismos, e os combates tornaram-se especializados, truculentos e mortais. Só restaram sete reinos para disputar o trono vago de Zhou: Qi, Qin, Chu, Zhao, Han, Yen e Wei; todos os outros foram engolidos ou apagados como instituições políticas.

Isso implicou numa mudança direta das técnicas e estratégias militares. Os exércitos começaram a ser organizados de maneira rígida e profissional, e foi oferecido aos camponeses um meio de ascensão social servindo nas forças armadas. As recompensas e a promessa de ganhos materiais atraíram milhares de jovens para a carreira das armas, e deram um sentido novo para a guerra. Temas como a “defesa da terra natal” começaram a ser invocados, ajudando no estímulo da luta; os soldados tornaram-se personagens ativos e decisivos nas batalhas, esmagando o ideal nobre de antes.

Um dos elementos que torna isso evidente é a distribuição de arcos para batalhões inteiros. A arma, antes de uso exclusivo dos nobres, e ocasionalmente encontrado em versões menores na mão de caçadores, foi empregada como um meio de ataque maciço. Agora, despejavam-se milhares de flechas contra cavalheiros surpresos, que

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repudiavam inutilmente tais posturas. As bigas, elegantes, transformaram-se em plataformas de massacre generalizado, distribuindo golpes em todas as direções, e tripuladas por soldados loucos por recompensas. O Estado de Qin introduziu a cavalaria das estepes, em que cada soldado e sua montaria formavam um par mortal, rápido e eficaz contra as formações de infantaria.

O resultado aparece nas crônicas posteriores, seja as Crônicas dos Reinos Combatentes (Zhanguoce), ou as Recordações Históricas (Shiji) de Sima Qian (séculos 2 -1 a.C.): as batalhas começam a contar milhares de mortos, as cifras tornam-se assustadoras. O maquinário militar igualmente se aperfeiçoou: lemos sobre armas de cerco, sobre táticas de batalha, catapultas, ataques com fogo, etc. e seu uso em formações de batalha. O ferro substitui, em definitivo, o bronze: lanças são usadas para combate direto (numa versão menor) ou para formar barreiras contra os batalhões inimigos (noutra versão de quase 5 metros de cumprimento), e suas pontas são em formato de arpão (tanto para estocar quanto para cortar). É a besta, porém, que se destaca neste panorama: dona de uma precisão e força incomparáveis na época, ela se torna a arma que destrói a nobreza. Surgida de uma

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adaptação do arco, em torno do século 4 a.C., a besta era uma arma simples, que não exigia muito treino e possuía uma força estupenda. Seu uso irritava profundamente os cavalheiros, que haviam treinado anos com suas espadas e escudos para serem derrotados, a distância, por ex-peões ávidos em humilhá-los. Seu uso obrigou uma modificação nas armaduras, que passaram a ser feitas, obrigatoriamente, de tiras de metal, dada a ineficiência das armaduras anteriores frente às setas das bestas. Na verdade, um estudo atual sobre esta arma mostra que ela era capaz de furar qualquer escudo existente em sua época – não só os chineses, mas mesmo os escudos de metal ocidentais...

Para se manter exércitos gigantescos como os que estavam surgindo, era necessária uma disciplina férrea. Treinos constantes, punições duras e uma ordem de batalha concebida para maximizar a ação dos soldados exigiam uma ordem bem estabelecida, simples e clara. Wuzi, um dos estrategistas que estudaremos aqui, exemplifica esta condição numa de suas historietas: um guerreiro impetuoso e hábil, no afã de demonstrar suas habilidades, saiu correndo a cavalo contra as fileiras inimigas, matou alguns soldados e voltou. Wuzi mandou prendê-lo e executá-lo.

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Quando os oficiais intervieram a favor do jovem, Wuzi lhes respondeu: “ele é hábil, mas desobediente. Deu um péssimo exemplo”. E ordenou a decapitação.

O tempo dos Estados Combatentes foi um período de artimanhas, violência e inteligência. Os sábios andavam de reino em reino oferecendo seus conselhos, mas ao final, no século 3 a.C., foi o reino de Qin que reunificou a China, criando uma nova instituição sob a égide da dinastia Qin. Para conseguir este feito, os Qin empregaram os métodos de duas escolas, o legismo e os escritos dos estrategistas. Doravante, a guerra nunca mais seria feita de modo ingênuo ou cavalheiresco, e as narrativas de combates heróicos posteriores ocorreriam em meio a batalhas mortíferas envolvendo milhares de soldados, cujos objetivos eram práticos e realísticos.

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2º Capítulo

Antes de Sunzi: Taigong e Sima Fa

Pode parecer surpreendente, mas

estudos recentes mostram que, apesar de Sunzi ser o mais famoso dos estrategistas chineses, graças a sua Lei da Guerra (Sunzi Bingfa), ele pode ter tido seus antecessores. Estes autores – tão misteriosos quanto o próprio Sunzi – legaram obras menos conhecidas, porém não menos importantes, para a história da estratégia chinesa.

Voltemos, então, ao fatídico século 6 a.C., quando inicia-se a terrível crise chinesa. Os intelectuais começam a perambular pelos reinos, formando grupos de conselheiros nas cortes, apresentando suas visões sobre o mundo, e propondo possíveis soluções para a crise. Wei, um dos países mais bem preparados para enfrentar este período, havia se armado, formando um exército vasto e capacitado. Apesar de possuir fronteiras com vários Estados rivais, suas primeiras campanhas militares foram extremamente bem sucedidas, e Wei pareceu, durante algum tempo, estar na dianteira da empreitada de

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conquistar o restante da China. Ora, quem eram os estrategistas que auxiliavam o rei de Wei nesta empreitada? Apesar de não conhecermos seus nomes, existem evidências de que eles poderiam estar lendo duas obras de estratégia que seriam, supostamente, as mais antigas da China: Os seis ensinamentos secretos de Taigong e a Lei de Sima.

O primeiro, Os seis ensinamentos secretos de Taigong, teria sido escrito por um oficial chamado Taigong, que auxiliou a derrota da dinastia Shang pelos Zhou em torno dos séculos 12-11 a.C. Tai auxiliou, ainda, na formação do reino de Qi, propiciando-lhe meios para assegurar sua soberania por meio da força e de um governo modelar.

Ora, se esta informação fosse realmente verdadeira, Taigong obteria a primazia indiscutível da escola estratégica na China antiga, mas devemos ter um grande cuidado com isso. Não temos nenhuma outra informação sobre Taigong, senão aquela que o seu próprio texto nos dá e numa sucinta biografia no onipresente Registros Históricos de Sima Qian. Seus escritos são citados na dinastia Han (séculos 3 a.C. – 3 d.C.), mas nada de conclusivo é dito sobre sua figura. A autenticidade do livro foi posta em dúvida até 1972, quando a descoberta de uma tumba, na

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China, revelou algumas obras de estratégia preservadas desde a mesma época Han – e nelas se incluía não só os Os seis ensinamentos secretos de Taigong como também a Lei da Guerra de Sunbin, da qual falaremos mais adiante. O que os cronistas de Han nos dizem, pois, é que países como Wei liam o livro de Tai – mas nisso, não havia novidade alguma, posto que todos os outros estados deviam fazer o mesmo. A vantagem de Wei, neste caso, teria sido a de aplicar alguns desses ensinamentos, de maneira efetiva, na organização de seu exército e do governo. Mesmo Confúcio, quando andava de reino em reino, foi ter uma entrevista com o rei de Wei, e a primeira pergunta que este lhe fez foi: “você poderia treinar nossos exércitos?”, ao que o mestre respondeu: “entendo de ritos e letras, não de armas”. No dia seguinte, Confúcio foi embora. Não era isso que Wei procurava – provavelmente, eles não queriam repetir o “sábio erro” do duque de Song...

Mas é difícil afirmar que o livro de Tai seja realmente o primeiro, e nada confirma esta hipótese. É possível, na verdade, que o livro tenha sido escrito em torno do século 4 a.C., assim como o de Sunzi, mas seu autor o atribuiu à um personagem histórico antigo para dar-lhe autoridade e primazia.

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E o que diz o livro da Taigong? Ele delineia as regras gerais pelas quais se constrói a idéia da estratégia como um método para obter eficácia – seja em combate, seja mesmo no governo. Seu livro divide-se, basicamente, em duas partes fundamentais: os ensinamentos para o governo civil e os ensinamentos para alcançar a vitória em guerra. Na questão dos ensinamentos sobre o governo, Tai cita conceitos que aparecerão, igualmente, na obra de Sunzi – no entanto, o que em Sunzi é uma questão relativa ao governante, enquanto sua preocupação central é a vitória, em Taigong torna-se um longo discurso sobre os meios apropriados de se governar. Neste caso, a obra de Tai aproxima-se das propostas de outros pensadores da época dos Estados Combatentes, como Confúcio, Mêncio, Laozi, Mozi, Hanfeizi, etc., o que cria um anacronismo histórico importante para nossa análise: afinal, como Tai poderia estar discutindo coisas que ainda não existiam no século 11 a.C.?

Quando lemos os Seis ensinamentos, percebemos que a primeira parte do texto é toda dedicada a arte de governar, um tema central da pauta filosófica do século 6 a.C. Taigong discorre sobre como adquirir a confiança do povo, como conquistar um Dao

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adequado, as razões que levam um povo a subverter-se, etc. Estamos a ler, praticamente, um folhetim confucionista, com a exceção de que a importância da educação é substituída pelas questões da guerra na segunda parte. É difícil não conceber que este livro foi escrito, na verdade, ao mesmo tempo que obras como a de Sunzi, mas o pretenso autor do mesmo resolveu dar-lhe um enfoque diferente. Ele pretendia responder questões sobre as quais Sunzi teria se ausentado (e veremos porque no capítulo a seguir), e somos tentados a acreditar que, por meio de uma análise textual comparativa, há uma grande chance do texto de Taigong ser, inclusive, posterior ao de Sunzi. Como afirmamos antes, o autor dos Seis ensinamentos provavelmente quis associar o seu livro a um personagem histórico antigo para emprestar credibilidade e preeminência ao seu livro – algo comum na China daquele tempo.

Sima Qian nos fala pouco sobre a figura de Taigong, e o coloca como uma espécie de legislador e fundador do Estado de Qi. Isso é bastante conveniente, tendo em vista que a família Sun – de onde veio Sunzi e Sunbin – teriam vindo de lá, se deslocado para Wu, para Wei e depois, perambulado pela China como tantos outros... Fora isso, o próprio encontro

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de Taigong e o rei Wen é anunciado por augúrios, no 1º capítulo do livro, o que denota uma intenção propagandística do texto – algo diametralmente oposto a síntese estratégica e eficiente proposta por Sunzi.

Assim sendo, um estudioso de estratégia não deve dispensar a leitura dos Seis ensinamentos como algo fútil ou redundante, mas deve abster-se de dar-lhe uma primazia que talvez seja imerecida. Se o livro de Sunzi se firmou, isso se deve a razões particulares que explicaremos a seguir. A questão fundamental, aqui, é que a eficácia – objeto primeiro dos estrategistas – torna-se quase um elemento secundário na obra de Taigong, em que a longa dissertação sobre a análise das forças, do governo, das condições gerais, etc fortalece em si a preparação, mas quase desvia o foco da guerra como uma situação fundamental. Além disso, há informações e recomendações demais, tudo bastante distante do que se pretende ser um manual para militares e estrategistas. Embora a guerra envolva aspectos diversos, o livro de Taigong, na pretensão de explicar tudo, acaba perdendo-se em detalhes que cabem mais aos administradores do reino do que, propriamente, a um oficial militar. Como veremos, esta talvez seja uma das condições

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fundamentais que Sunzi percebeu ao redigir seu manual – dedicar-se, estritamente, ao que era de seu âmbito, e fornecer o instrumental necessário a uma situação específica.

Quanto ao Sima Fa (a Lei do Ministro da Guerra ou, em outra tradução possível, A Lei dos cavaleiros [guerreiros]), trata-se de outro obscuro tratado provavelmente feito no século 4 a.C., tal como o livro de Taigong. A suposta história do mestre Sima é de mais um destes especialistas que andou de Qi para Wei emprestando seus talentos aos governantes, e legando a posteridade sua sabedoria. O Sima Fa é um tratado sobre a preparação para a guerra, e um panfleto sobre a manutenção do código de conduta cavalheiresco no combate. Tal é o conteúdo do texto que os historiadores da dinastia Han o classificavam como um livro sobre cultura e ritos (Li), e não sobre estratégia! O discurso central do livro consiste em defender a idéia de que uma conduta moral superior na guerra inspira lealdade e determinação; por conseguinte, esta inspira vontade de vencer e leva a vitória; assim, o vitorioso é, no geral, o que é moralmente superior em estratégia e conduta.

Não é preciso dizer que o livro de Sima é uma tentativa saudosista de resgatar os velhos valores numa época em que eles estão em

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decadência. Por outro lado, lendo nas entrelinhas, podemos supor que a proposta de Sima era bem útil para justificar os expedientes utilizados pelos vencedores (posto que estes seriam, no fim, o vencedores morais).

O livro é considerado um bom texto sobre preparação, sobre conduta, mas acabou sendo muito pouco usado, efetivamente, como texto de estratégia. O próprio Sima Qian (o historiador Han) leu o livro do que seria seu suposto ancestral familiar e chegou a uma conclusão irônica: “não sei se este livro pode ganhar uma guerra, mas vendo que todo mundo hoje tem um exemplar, achei desnecessário discutir e fiz a biografia de Sima jang”.1 Fragmentos do livro de Taigong, Os seis

ensinamentos secretos A arte de governar O rei Wen disse a Taigong: Gostaria de aprender a arte de governar um Estado. Que

1 Traduzindo: o livro provavelmente não serve de verdade para a guerra, mas quem ganhar quer parecer “moralmente superior”.

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tenho de fazer para ser um governante venerável e manter o povo tranqüilo? Taigong: Apenas ame seu povo. Rei Wen: E como devo amar meu povo? Taigong: Beneficia-o, não lhe faças mal. Ajuda-o a ter sucesso, não o derrotes. Concede-lhe a vida, não lha retires através do assassínio. Dá, em vez de exigir. Proporciona-lhe prazer, não inflijas sofrimento, Faça-o feliz, não lhe dês motivos para se enfurecer contigo. Rei Wen: pode me explicar melhor o que acabou de dizer? Taigong: Quando o povo não perde as suas mais importantes ocupações, está sendo beneficiado. Quando os camponeses não perdem as colheitas, está ajudando-o. Quando se reduzem as punições e as multas, eles têm vida. Quando fixas impostos moderados, dás em vez de tirar. Quando não exageras no número de palácios, mansões, terraços e pavilhões, dás-lhes prazer. Quando os funcionários são puros e não irritantes ou desordeiros, eles estão felizes. Os seis tesouros e as três defesas O Rei Wen perguntou a Taigong: Como pode um chefe de Estado e líder de um povo perder a sua posição?

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Taigong retorquiu: Isso acontece quando ele não tem cuidado a escolher as pessoas a quem se associa. Um rei tem seis defesas e três tesouros. O rei Wen indagou: Quais são as seis defesas? Taigong: benevolência, retidão, lealdade, confiança, coragem e previdência. O rei Wen quis saber: E como podemos usar as seis defesas para selecionar pessoas? Taigong: Faça-os ricos e vê se eles cometem algum crime. Dá-lhes uma posição elevada e vê se eles se tornam arrogantes. Dá-lhes responsabilidades e vê se isso não os transforma em homens diferentes. Emprega-os e vê se não ocultam nada de ti. Faça-os correr perigo e vê se não sentem medo. Dá-lhes a gestão dos assuntos do Estado e vê se não ficam perplexos. Se os fizeres ricos e não cometerem nenhum crime, são benevolentes. Se lhes deres uma posição elevada e não se tornarem arrogantes, são retos. Se lhes deres responsabilidades e não mudarem, são leais. Se os empregares e não te ocultarem nada, são valorosos e de confiança. Se os colocares em perigo e não sentirem medo, são corajosos. Se lhes deres a gestão dos assuntos do Estado e não ficarem perplexos, são capazes de planear. O governante não deve emprestar os três tesouros a outros homens.

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Se os emprestar, perderá a sua capacidade de inspirar pavor. Rei Wen: E quais são esses três tesouros? Taigong: A grande agricultura, a grande indústria e o grande comércio são conhecidos como os 'três tesouros'. Quando os agricultores são agricultores, teremos os cinco cereais básicos. Quando os artesãos são artesão, temos todos os utensílios. Quando os mercadores são mercadores, as mercadorias são suficientes. Se os três tesouros estiverem no lugar certo, o povo não fará maquinações. Não permitas a confusão entre as áreas, não permitas confusão entre os clãs. Os ministros não podem ser mais ricos que o governante. Nenhuma cidade pode maior que a capital do Estado. Quando as seis defesas são aplicadas corretamente, o governante será venturoso. Quando os três tesouros estiverem completos, o Estado estará seguro. Topografia dos oito terrenos O rei Wu perguntou: Quais são as oito condições de terreno que conduzirão à vitória? Taigong respondeu: Quando as fileiras do inimigo - a frente e a retaguarda - não estiverem consolidadas, ataca-o. Quando as bandeiras e os pendões do inimigo

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estiverem num caos e os seus homens e cavalos vaguearem de um lado para o outro, ataca-o. Quando alguns dos seus oficiais avançarem, enquanto outros retiram, quando alguns vão para a esquerda e outros para a direita, ataca-o. Quando a sua ordem de batalha não for ainda consistente e os seus oficiais e soldados andarem, desnorteados, a olhar uns para os outros, ataca-o. Quando, ao avançar, parecerem cheios de dúvidas e, ao retirar, cheios de medo, ataca-os. Quando os Três Exércitos do inimigo se assustarem repentinamente e se instalar uma grande confusão, ataca-os. Quando estiveres a lutar em terreno fácil e o lusco-fusco chegar sem que ele se tenha conseguido libertar da batalha, ataca-o. Quando, depois de percorrer uma grande distância, ao anoitecer, o inimigo estiver acampado e os seus Três Exércitos aterrorizados, ataca-o. Estas são as oito condições em que os carros de combate sairão vitoriosos. Se o general dominar estas dez condições desfavoráveis e estas oito possibilidades de vitória, então, mesmo que o inimigo o cerque por todos os lados - atacando com mil carros e

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dez mil cavaleiros - poderá galopar para a frente e investir para os lados e, em dez mil batalhas, acabará sempre por sair vencedor. Excelente!, disse o rei Wu. Os dez ataques com cavalaria O rei Wu perguntou a Taigong: Como devemos utilizar a cavalaria na batalha? Taigong disse: Para a cavalaria, existem dez situações que podem conduzir à vitória e nove à derrota. O rei Wu perguntou: Quais são as dez situações que podem levar à vitória? Taigong retorquiu: Quando o inimigo chega em primeiro lugar e as suas linhas e disposição ainda não estão consolidadas, a frente e a retaguarda não estão ainda unidas, nessa altura, ataca a sua cavalaria da vanguarda e os flancos esquerdo e direito. O inimigo, com toda a certeza, irá fugir. Quando as linhas e a disposição do inimigo estão bem ordenadas e consolidadas e os seus oficiais e tropas querem lutar, a nossa cavalaria deve flanqueá-los, mas sem avançar muito. Uma parte deve cavalgar para o lado, outra parte para a frente. Devem ser tão velozes como o vento e tão fortes como o trovão, para que a luz do dia se torne tão

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sombria como o crepúsculo. Mude as nossas bandeiras e pendões várias vezes. Muda também os uniformes. Nessa altura, o exército inimigo pode ser derrotado. Quando as linhas inimigas e a sua disposição não estão ainda consolidadas e os seus oficiais e tropas não estão dispostos a lutar, pressiona-o quer pela frente quer pela retaguarda e investe repentinamente sobre as suas alas direita e esquerda. Se o flanqueares e o atacares, ele, com toda a certeza, vai se assustar. Quando, ao pôr-do-sol, o inimigo quiser voltar ao acampamento e os seus Três Exércitos estiverem aterrorizados, se o conseguirmos envolver por ambos os flancos, atacando sem demora a sua retaguarda e pressionando o acesso às suas fortificações com o intuito de não o deixar entrar, ele, com toda a certeza, será derrotado. Quando o inimigo, muito embora sem contar com a proteção de ravinas e desfiladeiros para reforço das suas defesas, tiver penetrado em território longínquo e tiver implementado lima ordem de batalha pouco eficaz, se cortarmos as suas linhas de abastecimento, padecerá de fome, com toda a certeza. Quando o terreno é plano e fácil e vemos a cavalaria inimiga aproximar-se por todos os

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lados, se os nossos carros de combate e a nossa cavalaria o atacarem, ele, com toda a certeza, desorganizar-se-á. Quando o inimigo corre em fuga, os seus oficiais e tropas se espalham e o caos se instala, se parte da nossa cavalaria o envolver pelos dois flancos, enquanto que a outra parte lhe corta o caminho à frente e na retaguarda, o seu general poderá ser capturado. Quando, ao anoitecer, o inimigo empreende o regresso com uma enorme quantidade de soldados, as suas linhas e disposição ficarão certamente mergulhadas no caos. Temos de organizar a nossa cavalaria em pelotões de dez e regimentos de cem, grupos de carros de combate de cinco e companhias de dez, e desfraldar o maior número de bandeiras e pendões misturados com besteiros fortes. Uma parte deve atacar os flancos e outros cortar a frente e a retaguarda. Então, o general inimigo será aprisionado. Estas são as dez situações nas quais a cavalaria pode sair vitoriosa. (adaptado de T‟ai Kung Os seis ensinamentos secretos. Lisboa: Silabo, 2003)

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Fragmentos do Sima Fa O código de honra dos combates

Na antiguidade, guerreiros não perseguiam soldados em fuga por mais de cem passos, e não perseguiam um exército em retirada por mais de três dias; assim, mostravam cavalheirismo.

Eles não taxavam os incapacitados e eram misericordiosos com os feridos e doentes; assim, mostravam a sua compaixão. Eles deixavam os batalhões se formarem antes de atacá-los; assim, mostravam a sua cortesia. Eles lutavam por princípios, e não por lucro; assim, mostravam a sua justiça. Eles concediam perdão àqueles que se rendiam; assim, mostravam a sua coragem. Eles sabiam como as coisas começavam e como elas chega-vam a termo; assim, mostravam a sua inteligência.

Essas seis virtudes eram ensinadas juntas, em épocas apropriadas, como um meio de unir as pessoas. Essa é a política de tempos imemoriais. O governo sábio

O governo dos reis da antiguidade

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seguia as leis da natureza, fundamentadas nas vantagens da terra, e nomeavam os virtuosos dentre o povo para as repartições; mantinham as coisas em ordem, na sua exata definição, instituíam estados e dividiam obrigações, pagando salários de acordo com a patente. Líderes locais recebiam solidariedade de bom grado, ao passo que potências estrangeiras pagavam tributo. Os castigos acabaram e a guerra cessou. Esse é o governo através da virtude esclarecida. A segunda coisa melhor, depois da virtude esclarecida, é o governo dos reis sábios, os quais instituíam ritual, música e lei, depois criavam punições e mobilizavam a soldadesca para atacar o injusto. Fazendo viagens para apuração de fatos, examinando métodos regionais, eles reuniam os líderes locais e ajustavam as suas diferenças. Se algum deles tivesse negligenciado o seu mandato, perturbado a normalidade, rejeitado a moralidade, resistido à natureza ou ameaçado um líder meritório, os reis sábios anunciavam tudo isso aos chefes locais, deixando bem claro a ocorrência de crime, declarando-o até mesmo a Deus no alto, ao Sol, à Lua, às estrelas e aos planetas. Orando para os espíritos da terra e dos mares, montanhas e santuários locais, eles apelavam aos seus ancestrais. Somente depois disso, os

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primeiros-ministros convocavam tropas dos chefes locais. Cuidados durante uma invasão

Quando você entrar no território de um agressor, não permita que haja profanação de santuários sagrados, caça nos campos, destruição de infra-estrutura, incêndios em áreas residenciais, desmatamento, confisco de animais domésticos, de grãos ou maquinaria. Quando você vir o velho e o jovem, escolte-os em segurança e não deixe que os machuquem; e, mesmo se vir homens sadios, não os ataque se eles não entrarem em confronto com você. Se você ferir adversários, dê-lhes tratamento médico e mande-os para casa. Após o agressor ter sido executado, as autoridades central e local reestruturavam o Estado, nomeavam gente capaz para instituir uma liderança esclarecida, restaurando a ordem social. (adaptado de Thomas Cleary, A sabedoria do guerreiro. São Paulo: Record, 2001)

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3º capítulo

A consagração da Lei da Guerra de

Sunzi e Sunbin

Sunwu, mais conhecido como Sunzi (ou Mestre Sun), é uma figura enigmática da história chinesa. Quase nada se sabe sobre sua figura: no entanto, sua obra eclipsou por completo quaisquer outros textos possivelmente anteriores a ele - e ainda, determinou as regras gerais do que seria o pensamento estratégico na China ao longo dos séculos posteriores.

É difícil para nós alcançar o sucesso que sua Lei da Guerra (Sunzi Bingfa) conseguiu não só na China, mas em todo o mundo. Basta dizer que seu livro é uma leitura praticamente obrigatória em todas as escolas de oficiais militares no mundo – e lembremos, ele foi escrito, no mínimo, no século 4 a.C. Como um texto sobre guerra tão antigo pode continuar sendo absolutamente atual? Para compreendermos um pouco mais sobre a história deste livro, precisamos mergulhar

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novamente no mundo obscuro da vida de Sunzi.

Os detalhes biográficos de Sunwu são ridículos, e não prestam a grandes esclarecimentos sobre sua vida ou origem. Como já vimos, quase todas as informações de que dispomos destes autores militares, de antes do século 2 a.C., provém dos Registros Históricos de Sima Qian – e neste caso, a biografia de Sunzi, presente em seu livro, nos informa quase nada.

O que Sima nos fala é que, numa data incerta, provavelmente lá pelo século 6 a.C. – novamente, o fatídico período de crise da China antiga – o sábio Sunwu apresentou-se na corte do rei Heliu, de Wu, oferecendo seu serviços. O rei, disposto a testar as capacidades de Sun, propôs-lhe um teste nada fácil: que ele preparasse suas concubinas nas artes militares, e as ensinasse a marchar. Sun não se fez de rogado: instruiu as belas damas, ensinou-lhes o que deveriam fazer e ordenou que marchassem. Obviamente, elas caíram na risada, e fizeram troça da cara de Sun. Inabalável, Sunwu mandou mais duas vezes que elas cumprissem a ordem, e quando constatou que elas não obedeceriam, mandou decapitar as líderes do pelotão. O rei Heliu ficou apavorado, e tentou interceder, mas foi

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em vão: Sunwu respondeu que “se ele realmente queria soldados determinados, suas ordens tinham que ser cumpridas até o fim”, e cortou-lhes as cabeças. Depois disso, ele mandou que elas marchassem novamente; e dessa vez, foi obedecido sem um pio, na mais completa perfeição.

Sun voltou-se para o rei e disse: “agora elas estão prontas para executar todas as ordens que o senhor determinar. Pode inspecioná-las a vontade”, ao que o rei respondeu: “não é necessário, o senhor está dispensado”. Mas Sunwu era uma daquelas pessoas tinhosas, e retorquiu gentilmente ao rei: “o senhor gosta de falar, mas não gosta de fazer”. Em qualquer outra parte do mundo, a cabeça de Sunwu seria separada do resto do corpo por esta insolência; mas na China daquele momento, de vez em quando grandes talentos eram reconhecidos, e Sunwu – agora chamado Mestre Sun, ou Sunzi, foi um deles.

Sima Qian cita ainda que ele defendeu Wu de outros estados e... pronto! Acabou-se a biografia de Sunzi! Desnecessário dizer que para os nossos padrões historiográficos atuais estas informações são mais do que insuficientes, mas lembremos: era o que Sima dispunha na época em que escreveu seu livro de história. Uma informação relevante é

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indicada nos Registros Históricos: Heliu afirma ter lido os 13 capítulos da obra de Sunzi, o que significa que, possivelmente, a obra foi composta num formato próximo ao que temos hoje em dia em mãos. Já se supôs que a obra original de Sunzi teria algo entre 50 ou 75 capítulos, mas estas informações são controversas e imprecisas. Na mesma tumba que se desenterrou o texto de Taigong e Sunbin, mais 5 capítulos de Sunzi foram achados, mas não podemos afirmar que eles não foram anexados ao original, depois, por um copista. Além disso, devemos ter em mente que o que consagrou sua obra foram, exatamente, os 13 capítulos básicos, extensamente comentados depois da época Han. Isso significa, portanto, que fosse qual fosse o formato original da obra, já no século 2 a.C. ela devia parecer bastante com a que temos hoje em mãos.

Contudo, isso não esclarece nada sobre a vida de Sunzi. Sabemos que sua obra era vastamente lida durante – e depois – do período dos Estados Combatentes, e mais nada. Nenhum autor que fosse seu contemporâneo cita-o. Nas Primaveras e Outonos ele está ausente: nas Crônicas dos Estados Combatentes também. Não é

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impossível, portanto, que Sunzi possa não ter existido.

No século 11 d.C., o historiador Yi Zhengzi tentou buscar maiores evidências sobre a vida de Sunzi, mas foi em vão. Yi chegou a afirmar a possibilidade dele nunca ter existido, no que foi secundado por outros autores. Até recentemente, contestou-se a existência de Sunzi como figura histórica.

Por outro lado, o fato de termos poucas informações sobre Sunzi não significa que ele foi simplesmente uma fantasia. Obviamente que a ausência de documentos dificulta nossa compreensão sobre a existência e as características deste personagem: no entanto, a herança histórica e intelectual da obra é inquestionável, e devemos nos ater a alguns detalhes importantes que permitem relativizar a postura da “inexistência” de Sunzi.

A primeira delas consiste na existência do clã Sun, que se tornou uma família especializada nas artes da guerra. Na mesma biografia de Sunzi, em que este quase não aparece, Sima Qian dedica algumas páginas a um descendente de Sunzi chamado Sunbin, que teria escrito, também, a sua Lei da Guerra de Sunbin, complementando o trabalho de seu nobre ancestral. Sunbin teria vivido entre os séculos 4 e 3 a.C., e ao contrário de Sunzi, ele

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foi notado por autores da mesma época. Mêncio, um seguidor da escola de Confúcio, reclamava de um tal “mestre Sun” que vinha ganhando atenção dos soberanos, e que nenhum deles queria mais ouvir do antigo caminho do estudo. Hanfeizi, um autor do século 3 a.C., escreveu pouco tempo depois de Mêncio que “todo mundo tem uma cópia de Sunzi ou Wuqi (Wuzi) [...] mas são poucos os que querem ir para a guerra”. Supõe-se, ainda, que Sunbin possa ter complementado seus estudos com um mestre caminhante chamado Gueiguzi, ou Mestre do Vale Fantasma, que teria sido um lendário eremita especialista em estratégia, e cujos pensamentos surgiriam num texto apócrifo do século 4 d.C..

A questão é que Sunbin corroborava a idéia de que Sunzi era uma mistificação; seu texto também estava perdido, ou nunca havia existido, e isso levava a crer que o clã Sun seria uma o fantasia histórica, até que a fabulosa descoberta de seu texto, em 1972, mudou inteiramente este panorama.

Em primeiro lugar, a biografia de Sunbin – presente em seu próprio livro – era idêntica a do Registros Históricos, o que nos leva a crer que Sima Qian havia consultado esta fonte para compor seu livro. Além disso, o formato do livro de Sunbin – uma vasta

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análise de casos de guerra – complementava naturalmente os estudos de Sunzi. Por fim, a própria existência de seus textos mostrava que, embora ele não fosse tão lido quanto o Sunzi original, era possível que ambos tivessem existido, embora se soubesse pouco a respeito deles como autores e personagens.

Isso não significa que algumas contradições presentes em ambas as obras devam ser ignoradas; Sunzi, por exemplo, é um livro associado ao século 6 a.C., mas que cita, diversas vezes, a besta – uma arma que só aparece no século 4 a.C. Além disso, abundam referências no texto que nos levam a associá-lo com as escolas legista, daoísta e confucionista. Aparentemente, pois, se Sunzi e Sunbin existiram, seus períodos de vida foram muito próximos, e provavelmente ocorreram em torno do século 4 a.C., tendo em vista as possíveis interpolações que podemos fazer entre os textos destes autores e de seus contemporâneos.

Resta ainda a possibilidade de Sunzi e Sunbin serem pseudônimos para estrategistas dispostos a permanecerem ocultos, e cujo interesse de transmitir sua experiência em combate era mais importante do que a fama propriamente dita. Isso faz algum sentido para a época, tendo em vista que figuras públicas e

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de sucesso eram visadas; por outro lado, tais escritos eram um meio de autopromoção pessoal entre os reinos, o que destruiria esta hipótese. Se a vida de Sunzi é misteriosa, a de Sunbin não parece tanto assim.

Sunbin teria nascido no reino de Wei – que como vimos, tornara-se uma das potências dominantes no tempo dos Estados Combatentes. Ele estudou as artes militares (e podemos supor, o livro de Sunzi, de Taigong e de Sima Fa), mas tinha como rival um tal Pang Chuan, que vendo nele um concorrente imbatível, tratou de armar-lhe uma intriga. Sunbin foi condenado por um crime qualquer que não cometeu, teve as pernas decepadas, na altura do joelho, e seu rosto marcado a ferro. Era uma humilhação total para alguém de uma família ilustre como os Sun, mas Sunbin não arrefeceu seu ânimo e continuou seus estudos de estratégia. Tempos depois, um embaixador de Qi visitou o reino de Wei, e Sunbin contatou-o secretamente, oferecendo seus préstimos. Tian Chi, um alto oficial de Qi, logo reconheceu suas habilidades e o tornou seu principal general. Em alguns anos, Qi conseguiu virar a supremacia de Wei, e em uma série de batalhas, Sunbin foi vencendo consecutivamente as tropas de Wei, até que finalmente as derrotou por completo e deu

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cabo de seu rival, Pang Chuan, numa emboscada célebre.

Conta sua biografia que Sunbin mandou colar um bilhete, numa árvore, em que havia escrito “aqui Pang Chuan morreu”, e mandou esconder milhares de arqueiros nas redondezas. Suas ordens eram de que eles atirassem quando se acendesse uma tocha. Se for verdade o episódio, Pang Chuan vinha vindo com suas tropas, durante a noite, quando foi avisado do estranho bilhete; foi até a árvore em que ele estava pendurado e quando acendeu uma tocha para ler o que estava escrito... A consagração da obra A Lei da Guerra de Sunzi e Sunbin

Todavia, a par dos detalhes biográficos destes mestres da estratégia, precisamos entender os motivos que levaram suas obras – principalmente a de Sunzi – a se tornarem clássicos do pensamento militar, de modo a ultrapassarem as barreiras do tempo. Se Taigong e Sima Jiang existiram ou não, tal como Sunzi, isso se torna absolutamente irrelevante diante do sucesso total e absoluto da obra de Sunzi. O que Sunzi propôs, portanto, que modificou tão radicalmente o

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panorama da estratégia chinesa, a ponto de dar origem a uma escola e fazer sua obra sobreviver durante séculos?

O primeiro ponto a ser destacado é a clareza e o poder de síntese de seu texto. Sunzi escreve conselhos militares raciocinados, experimentados, que vão direto ao assunto e não dão margem a floreios. O problema de muitas traduções ocidentais feitas sobre o original de Sunzi é que o transformam quase num romance, com uma linguagem empolada e uma terminologia complexa. Nada está mais distante do texto simples, fluído e direto do mestre Sun. A Lei da Guerra é um texto direto, conciso e feito para ser decorado. A própria palavra Fa (Lei, método) pressupõe isso, e muito se perde quando as traduções ocidentais a transformam em “Arte da Guerra”. É bonito, mas não é preciso. O texto de Sunzi é imperativo, franco, e chega a ser assustador em sua astúcia.

No entanto, somente os ingênuos se apavoram com o “maquiavelismo” de Sunzi: os expedientes que o autor sugere para serem empregados na guerra podem ser terríveis, mas o fim último delas é a menor destruição possível. Esta talvez seja a pedra de toque de Sunzi.

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Sunzi propõe princípios básicos que norteiam sua obra, que poderíamos resumir da seguinte maneira:

1) Não se deve entrar numa guerra sem ter certeza de ganhá-la, a não ser que ela seja defensiva.

2) Guerras devem ser resolvidas no menor tempo possível, e com o mínimo de perdas de ambos os lados.

3) Guerras são eventos terríveis, e por isso não devem acontecer; se acontecerem, deve-se estar disposto a levá-las até o fim, por todos os meios, de modo a alcançar a vitória.

Sunzi assumia algo parecido com o que Confúcio, Mozi e mesmo os caminhantes já afirmavam: nenhuma guerra é boa. Mas uma vez começada, erros como a famosa trapalhada do Duque de Song não podiam, de maneira alguma, se repetir. Por esta razão que, já no seu primeiro capítulo, Sunzi dizia que a guerra era “um assunto vital para o Estado, questão de vida e de morte, de sucesso e ruína”.

No entanto, a Lei da Guerra tem uma vantagem fundamental sobre os escritos de seus concorrentes intelectuais: ela não se propõe, em nenhum momento, a ser um Dao

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(um caminho) completo de governo, nem sugere fórmulas sociais. Sunzi oferece meios de ganhar uma guerra e assumir o poder. Depois disso, é com o governante o que ele vai fazer com o que conquistou. Sunzi estava longe de ser um chato que ficava pregando fórmulas moralistas, ou mesmo um desses acadêmicos herméticos e profundos cujas fórmulas complexas são incompreensíveis. Se Sunzi realmente existiu, deveria ser do tipo de pensador que respondia com um bocejo a questões profundas sobre “a vida e a morte”, sobre dilemas sociais ou sobre a “natureza do ser”. Seus objetivos eram bem claros: se havia um problema ou conflito, ele deveria ser resolvido. Como resolvê-los, este era o objetivo do seu tratado. Sunzi talvez representasse mesmo, e de certa forma, o ideal confucionista de um verdadeiro cavalheiro: “lento ao falar, mas pronto a agir”.

Por estas razões, um leitor desavisado poderia supor que o livro de Sunzi seria um resumo expandido das obras de Taigong ou do Sima Fa, mas este seria um erro terrível. A questão é que onde estes autores queriam legislar sobre a vida humana, Sunzi não estava nem aí. Sunzi havia percebido algo fundamental: os governantes escolhiam o modo como administrariam seus reinos, e isso

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poderia levar – ou não – ao conflito. Se não existisse guerra, tanto melhor – o próprio Sunzi dizia que a melhor guerra é a que não acontece. Contudo, se ela passa a existir, são os generais capacitados que devem cuidar do assunto, e não os amadores.

É por isso que Sunzi chega a propor, mesmo, que em algumas ocasiões um verdadeiro e fiel general deve ignorar certas ordens, se elas lhe parecem idiotices de um soberano inexperiente. Nada pior do que os brilhantes conselhos de gente que tem muito a dizer, sobre aquilo de que nada entende.

Enxuto, este texto de apenas 13 capítulos foi intensamente lido e comentado, transformando-se na grande referência em estratégia para os chineses. Sunzi fez mais: ele lançou a interpretação dos conceitos fundamentais da estratégia (Mou) para as obras seguintes.

O primeiro deles, talvez, seja a própria idéia de Dao – caminho, ou método – conceito presente em todas as escolas de pensamento da época. Para Sunzi, qualquer um dos caminhos das outras escolas é bom, contanto que seja empregado por um governante consciente e capaz. Nas mãos de um incompetente, qualquer governo, e qualquer método, por melhor que seja, vai dar com os

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burros n‟água. Neste ponto, Sunzi é um oficial absolutamente fiel e leal ao seu governante: seu método consiste em explorar, analisar e resolver as crises de imediato, em tempo de guerra: do contrário, em tempos de paz, há espaço bastante, e suficiente, para que as discussões acerca da realidade social sejam feitas. Um bom general não deve, e nem se mete, nestas coisas de política: exceto em casos de perigo para a nação, ele não intervém nas discussões da corte. Somente os legistas conceberam um governo militarizado, em que a ocupação dos exércitos e da guerra constituía uma forma de desviar as tensões sociais, e o resultado é conhecido: se eles conseguiram reunificar a China sobre a égide dos Qin, no século 3 a.C., por outro lado esta dinastia durou muito pouco tempo, por conta dos excessos totalitários que ela exerceu. Sunzi sabia que um Estado não pode, e nem deve, ficar muito tempo mobilizado para a guerra. Esta é uma das razões pela qual Sunzi abominava, inclusive, situações de cerco: atacar uma cidade é um processo longo, desgastante, custoso e geralmente pouco interessante. Uma guerra deveria ser vencida por manobras inteligentes e rápidas, que tornam a vitória fulminante um fator de

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autoconfiança íntima, e que dão credibilidade ao governo que a venceu.

Outro conceito importante é o de Shi, propensão, ou a tendência de como algo vai se desenrolar de acordo com as forças envolvidas. Sunzi defendia que uma observação panorâmica e completa da situação mostrava a probabilidade dos desfechos, de acordo com as forças envolvidas. Somente alguém muito tolo faria apostas numa guerra sem conhecer as forças ou a situação dos agentes envolvidos. Por estas razão é que governantes imbecis investem em situações de risco, sem imaginar seus desfechos. Depois de criados os problemas, eles pedem a seus assessores que encontrem soluções. Nesta hora, Sunzi defendia que o controle total das forças deveria ser dado ao bom general, para que ele resolvesse de modo mais adequado o conflito existente. Do contrário, tentar solucionar um problema de acordo com a vontade de um governante inapto seria pura perda de tempo. Foi o que Sunzi disse ao rei Heliu, categoricamente.

Por fim, para se compreender a propensão das coisas, deve se conhecer o conjunto das coisas que criam todo o contexto (Zhi). Na doutrina confucionista, zhi representava o conhecimento adquirido pela

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experiência de vida, e o próprio ideograma representa o exercício da arqueria – ou seja, é treinando que se acerta o alvo. Sunzi nos indica que este conhecimento consistiria em dominar o terreno e a geografia, ter controle sobre as tropas, saber quem são os comandantes das forças, suas capacidades e defeitos, e o verdadeiro potencial de um exército. Sem saber estas coisas, as chances de um líder militar são escassas, e qualquer promessa de vitória em combate será uma mera aventura cheia de riscos e possibilidades de fracasso. Neste quesito Sunzi inovou, propondo o uso de espiões para executar as tarefas de reconhecimento – algo escandaloso para os guerreiros cavalheiros, mas indispensavelmente eficaz numa guerra para valer.

O que Sunbin fez foi complementar esta análise profunda com uma série de ilustrações. Seu trabalho é uma relação de casos e comentários sobre questões relativas à guerra que se proporiam, a princípio, complementar a obra de Sunzi – mesmo que isso não esteja claramente afirmado. A leitura de Sunbin é relevante na medida em que ela mostra, com propriedade, as aplicações do raciocínio estratégico de Sunzi. Por outro lado, a extrema simplicidade e acessibilidade do texto de Sunzi

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é que lhe granjearam esta fama indefectível, ao contrário de Sunbin, que acabou sumindo durante um bom tempo. O livro de Sunbin não é de modo algum ruim, mas não poderia existir sem o trabalho brilhante e consistente de seu antecessor.

A obra de Sunzi recebeu inúmeros adendos, e a versão de que dispomos – até que o exemplar Han foi descoberto – datava do século 18, quando inúmeros comentários já haviam sido somados a obra. Hoje, quando lemos uma versão completa de Sunzi, quase dois terços dela não se constituem nos 13 capítulos originais, mas nos opiniões de autores diversos, principalmente do período pós-Han, e de comentários dos comentários... Uma leitura altamente instrutiva, mas que perde de foco a simplicidade que consagrou a obra de Sunzi como um clássico da estratégia, e o fundador de uma linhagem milenar de pensadores militares na China.

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Fragmentos da Lei da Guerra de Sunzi O que é o método da estratégia? Sunzi disse: A guerra é de vital importância para a Nação; é o domínio da vida ou da morte, o caminho para a sobrevivência ou a destruição. É necessário avaliá-lo corretamente. Existem cinco coisas que devemos conhecer para prever o desfecho de uma guerra: Primeiro, o Caminho (Dao); segundo, o Tempo, terceiro, o Terreno, quarto, a Liderança e quinto, As Regras. O caminho significa aquilo que faz com que o povo esteja em harmonia com seu governante, seguindo-o onde for, sem temer o perigo, a vida ou a morte. O Tempo significa o Yin e o Yang, a mudança das estações. O Terreno significa as distâncias, a facilidade do movimento, os espaços abertos ou fechados, e a possibilidade de sobreviver. A Liderança deve conter sabedoria, sinceridade, humanismo, coragem e disciplina. As Regras significam Organização, Hierarquia, e o Aprovisionamento regular.

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Estas cinco coisas devem ser conhecidas por cada general. Quem as sabe, vence; quem não sabe, perde. A planejar, devemos também pensar em sete fatores fundamentais, pesando-os com cuidado: - Qual governante segue o Caminho? - Qual o líder mais talentoso? - Que exército aproveita o Terreno? - Que Exército tem as melhores regras? - Quais as tropas mais fortes? - Qual exército é mais bem treinado? - Qual exército administra as recompensas e castigos de acordo com as regras? Estude estes sete fatores fundamentais; assim, se pode saber quem vai vencer e quem vai perder. O general que seguir meu conselho vencerá, e deve ser o líder. O general que não me ouvir será derrotado, e não deve liderar. O general sábio deve criar situações que lhe sejam favoráveis. Isso significa tirar partido do campo, do tempo e das vantagens que apareçam. A Lei da guerra se baseia no engano. Finja ser incapaz quando puder atacar; finja ser capaz quando não puder.

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Longe, pareça estar perto; perto, pareça estar longe. Use iscas para atrair o inimigo. Ataque o inimigo quando ele está em desordem; evite-o quando ele está forte; irrite-o fazendo confusão; estimule sua arrogância simulando fraqueza. Se as tropas inimigas estão em ordem, tente bagunçá-las; se estão unidas, semeie a discórdia; ataque-o quando não está preparado; apareça repentinamente; estes são os meios seguros para a vitória. Se as avaliações indicam a vitória, é porque foram feitas de modo apropriado, e mostram que suas forças são maiores que do inimigo; se as avaliações indicam a derrota, é porque são desfavoráveis e mostram que suas forças são inferiores a do inimigo. Com bons cálculos, se pode vencer; com poucos, não; quem não os fizer, não tem a mínima chance. Quem faz corretamente as avaliações verá o resultado surgir com clareza. Sobre Atacar Como regra geral, é melhor conservar a um inimigo intato que destruí-lo. Destruir um país o leva à ruína, e diminui seu valor.

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É melhor capturar todo um exército que destruí-lo; preservar um batalhão inteiro, do que arrasá-lo. A habilidade suprema não consiste em ganhar cem batalhas; a habilidade suprema consiste em vencer o inimigo sem combater. Numa guerra, portanto, é fundamental atacar a estratégia do inimigo. Depois, destrua suas alianças. Enfim, ataque suas tropas. Numa guerra, a pior estratégia é assediar uma cidade. [...] O verdadeiro Mestre da Guerra domina um exército sem lutar; conquistam uma cidade sem cercá-la; derrubam um Estado sem se demorar muito. A verdadeira Lei da Guerra consiste em conquistar tudo de modo intato, sem esgotar as forças. Esta é a Lei da Estratégia de Ataque. Por estas razões, a aplicação da Lei da Estratégia de Ataque é a seguinte: quando suas forças são dez vezes mais fortes, cerca o inimigo; quando são cinco, ataca-o; quando duas vezes mais fortes, divide-o; se iguais, arrisque; se são menores, se retire; se são bem inferiores, foge e evite-os; um bando obstinado é sempre presa de um exército maior.

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O general é o defensor do seu reino; um Estado forte lhe dá poder; um Estado fraco o põe na defensiva. Causas de derrota e vitória Por isso, existem três maneiras pelas quais um governante leva o exército ao desastre: - Quando ordena que ele avance no momento de se retirar; quando ordena que se retire no momento de avançar; isso se chama “amarrar o exército”. - Quando ignora assuntos militares, mas interfere neles, perturbando seu desenrolar. - Quando se intromete na cadeia de comando, ignorando seus problemas e instaurando a incerteza entre os oficiais. O exército ficará confuso e inseguro, os inimigos iniciarão suas intrigas; isso se chama “um exército confuso dá a vitória ao inimigo”. Há cinco modos de saber quem será o vencedor: - Saber quando lutar e quando não lutar. - Saber discernir quando utilizar muitas ou poucas tropas. - Saber quem tem tropas superiores e inferiores com igual motivação. - Saber que se deve estar preparado e atacar o inimigo desprevenido.

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- Ter generais capazes que não sejam limitados por burocratas. Estas são as cinco maneiras de conhecer o futuro vencedor. Sunzi disse: Conheça a si mesmo e ao inimigo, e em cem batalhas, você nunca correrá perigo. Conheça a si mesmo, mas desconheça seu inimigo, e suas chances de ganhar e perder são iguais. Desconheça a si mesmo e ao inimigo, e você sempre correrá perigo. (adaptado de André Bueno. A Arte da Guerra. São Paulo: Jardim dos Livros, 2010) Fragmentos da Lei da Guerra de Sunbin Sobre o uso das forças armadas O rei Wei de Qi queria saber sobre o emprego das forças militares, e disse a Sunbin: Se dois exércitos se encontram frente a frente, e se os dois generais se olham diretamente, e ambos são sólidos e seguros, de modo que nenhum dos lados ousa se mover primeiro, o que deve ser feito? Sunbin respondeu: teste-os com tropas

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ligeiras, comandadas por um oficial valente, mas comedido. Concentra-te em escapar, não te empenhes em alcançar a vitória. Ao dispô-las, oculta teus exércitos para assaltarem abruptamente os flancos do inimigo. Isso é de-nominado a 'Grande Realização'. O Rei Wei perguntou: Há um método para empregar muitos e poucos? Sunbin disse: Há. O Rei Wei disse: Se somos fortes ao passo que o inimigo é fraco, se somos numerosos ao passo que o inimigo é diminuto, como os devemos empregar? Sunbin fez duas reverências e disse: Esta pergunta é própria de um Rei esclarecido! Ser numeroso e além disso forte, e não obstante ainda inquirir sobre seu emprego é o Dao para tornar um estado seguro. O método é chamado 'Induzindo o Exército'. Desordena tuas companhias e desorganiza teus postos, para concordar, na aparência, com os desejos do inimigo. Assim, o inimigo certamente ence-tará a batalha contigo. O Rei Wei perguntou: Se o inimigo é numeroso enquanto nós somos poucos, se o inimigo é forte enquanto nós somos fracos, como os devemos agir? Sunbin disse: A estratégia é denominada 'Sucumbindo ao Pavor'. Cumpre que ocultes a

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retaguarda do exército para assegurar-te de que ele poderá retirar-se. As armas longas devem posicionar-se na frente, as curtas atrás. Estabelece unidades móveis de besteiros para fornecerem apoio em emergências. Seu exército principal não deve se mover, mas esperar que o inimigo manifeste suas capacidades. O Rei Wei disse: Supõe que tanto nós quanto o inimigo avançamos um em direção ao outro. Ainda não sabemos se são muitos ou poucos. Como devemos empregar o exército? Sunbin disse: O método é chamado 'Conclusão Perigosa'. Se o inimigo está bem organizado, dispõe três formações. Uma deve enfrentar o inimigo, duas podem prover auxílio mútuo. Quando puderem descansar, devem des-cansar. Quando puderem mover-se, devem mover-se. Não busques uma vitória rápida. O Rei Wei perguntou: Como atacamos invasores exaustos? Sunbin disse: Podes fazer planos enquanto eles buscam um meio de se salvar. O Rei Wei perguntou: Como atacamos alguém com a mesma força? Sunbin disse: Confunde-os para que dispersem seus exércitos, e então unifica nossas tropas e ataca-os; não deixes o inimigo saber disso. Mas, se não se dispersarem,

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assegura tua posição e descansa. Não ataques em nenhuma situação que pareça suspeita. O Rei Wei disse: Há um Dao para um atacar dez? Sunbin disse: Há. Ataca onde eles não estão preparados, avança por onde eles não esperam. '' O Rei Wei disse: Se o solo é plano e as tropas bem ordenadas, mas depois de travar batalha elas recuam, o que isso significa? Sunbin disse: Significa que a arrumação das tropas não está correta. O Rei Wei disse: Como podemos fazer com que o povo sempre escute as ordens? Sunbin disse: Seja sempre sincero. O Rei Wei disse: Ótimo. Ao discutir o poder estratégico do exército és inesgotável. Diálogos sobre estratégia Tianzhi perguntou a Sunbin: O que causa problemas para o exército? O que causa dificuldades para o inimigo? Como é que as muralhas e os entrincheiramentos não são tomados? Como se perdem as vantagens do Céu? Como se perdem as vantagens da Terra? Como se perde o povo? Gostaria de perguntar se há um Dao para estes seis problemas. Sunbin disse: Há. O que causa problemas para

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o exército é o terreno. O que causa dificuldades para o inimigo são as ravinas. Diz-se, pois, que três quilômetros de pantanais causarão problemas para o exército; atravessar esses pantanais implicará deixar a principal força para trás. Assim, diz-se, 'o que causa problemas para o exército é o terreno, o que causa problemas para o inimigo são as ravinas'. Se as muralhas e os entrincheiramentos não são tomados é por causa das valas e desfiladeiros defensivos. Tianzhi perguntou: Se nos deparamos com uma força fortemente instalada, que fazer? Sunbin disse: Toque o sinal de avançar, pressiona-os e emprega dez meios para expulsá-los. Tianzhi disse: Quando sua disposição já foi determinada, como podemos fazer com que os soldados invariavelmente obedeçam? Sunbin disse: Seja severo e mostre possíveis recompensas Tianzhi disse: Não são as recompensas e as punições as questões mais prementes para a arte militar? Sunbin disse: Não. Entretanto as recompensas são os meios de proporcionar felicidade às massas e fazer os soldados esquecerem a morte. As punições são os meios de coibir a bagunça e fazer o povo temer seus superiores.

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Podem ser empregadas para facilitar a vitória, mas não são questões prementes. Tianzhi disse: A autoridade, o poder estratégico, os planos e o ardil são questões fundamentais para a arte militar? Sunbin disse: Não. Entretanto, autoridade é o meio de reunir as massas. Poder estratégico é o meio de fazer com que os soldados invariavelmente lutarem. Planos são os meios de fazer com que o inimigo esteja despreparado. Ardil é o meio de colocar o inimigo em dificuldade. Podem ser empregados para facilitar a vitória, mas não são assuntos prementes. Tianzhi se exasperou: Estes seis meios são em-pregados por aqueles que entendem tudo de assuntos militares, e não obstante o senhor diz que não são fundamentais. Quais questões são, então? Sunbin disse: Avaliar o inimigo, estimar as dificuldades de terreno, investigando invariavelmente tanto o próximo quanto o distante é o Dao do general. Atacar invariavelmente onde eles não defendem, essa é a premência do exército. Recompensas e punições são os ossos. Tianzhi perguntou a Sunbin: Há um Dao para dispor o exército mas não travar batalha? Sunbin disse: Concentre tuas tropas em

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ravinas e eleva a altura de tuas fortificações, mantendo-te silenciosamente alerta sem mover-te. Não seja ganancioso, não seja raivoso. Tianzhi disse: Se o inimigo é numeroso e marcial, mas remos que lutar, há um Dao? Sunbin disse: Há. Expande tuas fortificações e aumenta a determinação de teus soldados. Ordena severamente e unifica as massas. Evita o inimigo e torna-o arrogante. Ilude-o e cansa-o. 'Ataca onde ele não estiver preparado, avança onde ele não esperar.' Cumpre que estejas preparado para prosseguir com essas ações por longo tempo. Tianzhi perguntou a Sunbin: E quanto à Formação Sovela? E quanto à Formação Gansos Selvagens? Como se selecionam as tropas e os oficiais fortes? E quanto aos besteiros fortes que correm e atiram? E quanto à Formação Vento Feroz? E quanto às massas de tropas? Sunbin disse: A Formação Sovela é o meio para penetrar em formações sólidas e destruir unidades de elite. A Formação Gansos Selvagens é o meio para assaltar abruptamente os flancos do inimigo e reagir a mudanças. A seleção das tropas e dos oficiais fortes é o meio de invadir as formações do inimigo e capturar seu general. Besteiros fortes que correm e

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atiram são o meio para obter prazer com a batalha e a sustentar. A Formação Vento Feroz é o meio para retornar de enfrentamentos ferozes. As massas de tropas são usadas para dividir os esforços e alcançar a vitória. No entanto, governantes esclarecidos e generais instruídos não confiam nas massas de tropas para buscar êxito. Sunbin saiu e seus discípulos indagaram: Como foram as perguntas do Rei Wei e de Tianzhi, ministro e governante? Sunbin disse: O Rei Wei fez nove perguntas, Tianzhi fez sete. Estão muito próximos de conhecer tudo sobre assuntos militares, mas ainda não penetraram o Dao. Ouvi que aqueles que são sempre sinceros florescem, aqueles que demonstram retidão empregam a força militar; aqueles que não têm preparação adequada sofrem ofensas; e aqueles que esgotam suas tropas perecem. Em três gerações, Qi terá problemas. (adaptado de Ralph Sawyer A Arte da Guerra - Sun Tzu e Sun Pin. São Paulo: Martins Fontes, 2002)

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4º capítulo

Wuzi

Dentre os estrategistas, talvez o candidato mais qualificado ao título de perverso e crápula foi Wuqi – mais conhecido como Wuzi, ou Mestre Wu – que se destacou não apenas por sua obra, mas também, pelo que fez para promovê-la.

Wuzi foi um verdadeiro concorrente de Sunzi, e sobre ele temos inclusive datas para sua vida aparentemente reais e verificáveis – ele teria nascido em Wei, em 430 a.C., e foi executado em 381 a.C. Mas Wuzi não é lembrado por ter sido somente um excelente estrategista, e sim, pela coisas abomináveis que fez para conseguir cargos de confiança.

Até onde se sabe, Wu, quando jovem, foi aluno de um tal mestre Zeng, que tanto se irritou com o rapaz que acabou expulsando-o de sua escola. Wu se mudou então para Lu, a terra natal de Confúcio, buscando lá uma oportunidade. Como o confucionismo era praticamente a doutrina dominante em Lu, Wu resolveu investir em outro campo, e começou a estudar estratégias e técnicas militares. Conseguiu algum destaque, mas continuava sendo uma pessoa detestável e

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intransigente. Quando começou uma guerra entre Lu e o Estado de Qi, Wuzi pediu para ser nomeado ao comando das forças de Lu, mas o soberano tinha um pé atrás com ele – afinal, além de ser malquisto, a esposa de Wu havia nascido em Qi, e haviam dúvidas sobre a sua lealdade. Nesse momento Wuzi revelou seu verdadeiro caráter, mandando uma mensagem mais do que dúbia para a posteridade: matou sua esposa para mostrar sua fidelidade ao soberano de Lu. Causando um misto de admiração e pavor com esta atitude, Wu conseguiu o cargo de general, e resolveu a campanha de Lu contra Qi de modo eficaz.

Passado algum tempo, Wuzi simplesmente fez as malas e se mudou para Wei – seu país natal e terra das oportunidades para os estrategistas da época. Há que ser perguntar onde estava toda aquela fidelidade dedicada ao soberano de Lu, mas mudar de país, naquele momento, era algo comum para todos os intelectuais que precisavam de emprego. Para sua sorte, ele caiu nas graças do Marquês Wen, figura central do governo de Wei naquele momento, e desfrutou de regalias e poder enquanto ganhava as batalhas para sua terrinha. Mas em 387 a.C., com a morte do marquês Wen, e a ascensão de seu filho Wu, o gênio difícil de Wuzi cobrou suas dívidas, e ele

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teve que sair corrido de Wei para não perder a vida. Acabou se refugiando em Chu, onde encontrou guarida junto ao rei Tao, que o transformou em seu primeiro-ministro. Fiel a sua própria lógica, Wuzi prometeu fidelidade total ao rei – algo parecido com o que alguns jogadores de futebol fazem quando andam de clube em clube. Reorganizou o governo, criou leis, aplicou-as, e criou tanta antipatia em torno de si que, quando o rei morreu em 381 a.C., Wuzi não conseguiu escapar; cataram-lhe antes de fugir e o executaram.

Quando lemos estes dados biográficos de Wuzi, não temos dificuldade de perceber que ele devia ser alguém bastante antipático e intratável. Contudo, há uma faceta neste homem que o torna controverso e fascinante: ele era admirado e amado por seus soldados, compartilhava com eles suas conquistas e dificuldades, era tido como severo, mas também possuidor de um extremo senso de justiça. Segundo consta, lutou 76 batalhas, tendo empatado 12 e vencido todas as outras. Estendeu o território de Wei em milhares de quilômetros, e é possível que seu sucesso causasse uma inveja tremenda nos outros.

Estes detalhes seriam meras fofocas da história se o texto de Wuzi não fosse tão contrário, em proposta, ao modo de vida que

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seu autor teria levado. Wuzi nos apresenta uma espécie de resumo do que havia sido trabalhado nos Seis ensinamentos de Taigong, na Lei de Sima e ainda, incorpora alguns elementos da estratégia de Sunzi. Tudo isso é comprimido num texto pequeno – talvez o menor de todos os escritos estrategistas – e amarrado numa proposta moralizante de guerra, repleta de conceitos confucionistas de humanismo, benevolência e altruísmo.

O livro de Wuzi não traz nenhuma novidade em termos táticos ou de ataque, mas uma intensa preocupação com a qualidade do material humano empregado nas operações. Seu livro reforça os aspectos da seleção de oficiais e soldados, da formação da tropa, da conduta adequada em batalha (e fora dela), e do estabelecimento de um controle rígido sobre as ações e o comportamento do exército.

Para se ter uma idéia, Wuzi defendia, por exemplo, que nunca se deveria atacar os camponeses, nem pilhá-los. A gentileza e a cortesia para com eles ajudaria a conquistar a confiança do dominado, que veria no invasor um espécie de libertador – ou , ao menos, como alguém que não queria incomodar.

Wuzi também buscava encorajar os oficiais distribuindo benefícios as suas famílias, e valorizando o regime vigente. Assim

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sendo, construir uma imagem sobre este estrategista é definitivamente complicado: se por um lado ele pareceu ser alguém odioso, por outro, seus valores humanísticos suavizavam bastante o impacto da guerra, e conquistavam a soldadesca a seu serviço. Talvez por estas mesmas razões, aliás, ele seja esta figura contraditória: sua severidade assustava as elites corruptas, e causava admiração entre os mais humildes. Apesar disso, a historiografia chinesa não lhe perdoou, e salvou grande parte de seus erros para a posteridade.

Mesmo assim, o livro de Wuzi foi vastamente lido pelos estrategistas, já que parecia incorporar experiências diversas num texto enxuto e fácil de ser lido. Como vimos no capítulo anterior, segundo Hanfeizi, todo mundo tinha um exemplar de seu livro debaixo do braço.

Isso pode, talvez, significar que os estrategistas da época entendiam que o livro de Sunzi e Wuzi se complementavam (mais até do que, talvez, o livro de Sunbin), e nos itens que Sunzi optou por não adentrar (política, governo, etc.), Wuzi dava conta do recado sem ser uma leitura cansativa e pedante. Afinal, o livro de Taigong era longo e aborrecido, e repleto de conselhos para ponderação. Sima

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era pior ainda, propondo leis de cavalaria e cortesia que já eram passado; mas Wuzi propunha uma daquelas sínteses necessárias, fáceis de assimilar, e numa apresentação direta semelhante a de Sunzi. Wuzi empregou algumas histórias para ilustrar suas idéias - coisa que Sunzi deixou de lado, mas que foi profundamente explorado por Sunbin -, o que dá um balanço suave a leitura de seus escritos. É possível que, por ser uma figura mal vista, as pessoas não gostassem de citá-lo, apesar de estudar sua obra. Neste ponto, a figura misteriosa de Sunzi levava vantagem: afinal, ninguém tinha receio moral de se referir a ele, já que ninguém o conhecia ao certo.

Fragmentos do livro de Wuzi Da necessidade dos estratagemas

Wuzi, envolto num manto confucionista, serviu-se dos seus conhecimentos de assuntos militares para conseguir uma audiência junto do marquês Wen, de Wei. Disse o marquês Wen: Não ligo para questões militares.

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Wuzi observou: Sei ver o que está oculto e, graças ao passado, investigar os acontecimentos futuros. Porque são, Senhor meu, as vossas palavras tão diferentes dos vossos pensamentos? No momento, Senhor meu, e durante as quatro estações, fazeis esfolar animais e curtir seus couros, que depois são pintados de vermelho e azul e decorados com chifre de rinoceronte e marfim. Se os usardes no Inverno, não ficareis quente, tal como no Verão não vos Fazeis lanças de sete metros e meio e curtas albardas com metade daquele Cobris as rodas dos vossos carros com couro, tomando-os desagradáveis vista e pesados quando usados na caça. Não compreendo, Senhor meu, como pensais servir-vos deles. Se estão a ser preparados para a guerra, ofensiva ou defensiva, e não buscais homens capazes de deles se servirem, serão como galinhas lutando contra a raposa, cachorrinhos atacando um tigre. Embora os seus corações sejam os de lutadores, perecerão. No passado, o Senhor da tribo Cheng Shang dedicava toda a sua atenção ao cultivo das suas virtudes, fugindo a assuntos militares. Daí resultou ter o seu Estado sido extinto. Também houve um Senhor de Yu Hu que se apoiava somente no número e no valor das suas tropas,

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pelo que veio a perder os seus altares de terra e de cereais. O governante iluminado, avisado por estes precedentes, promoverá certamente na sua capital a cultura e as virtudes, mas no campo preparar-se-á para a defesa. O governante que não sabe avançar quando confrontado pelo inimigo não é reto e aquele que contempla os corpos dos que em batalha morreram lamentando-os não é benevolente. Perante o que o próprio marquês Wen lhe desenrolou uma esteira e a sua esposa, respeitosamente, lhe ofereceu uma taça de vinho. Fizeram-se sacrifícios no templo ancestral e Wuzi foi nomeado comandante- chefe. Defendeu os rios do poente e lutou em setenta e seis batalhas contra os senhores feudais, obtendo vitórias totais em sessenta e quatro e ficando as restantes indecisas. Abriu novas terras em todas as direções e alargou as fronteiras em 1000 li. Todos estes foram os feitos de Wuzi. O caminho (Dao) da estratégia

O que se chama o «caminho correto» é o retorno aos princípios fundamentais. «Retidão» é a forma como os assuntos são

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conduzidos e o mérito obtido. «Planejamento» é o modo de evitar o prejuízo e se obterem vantagens. «Fundamentos» constituem a salvaguarda do trabalho de cada um e a proteção das suas realizações. Se a conduta não estiver de conformidade com o «caminho correto» e o agir em desacordo com a «retidão» então, mesmo que a posição de alguém seja elevada e honrosa a desgraça vai atingi-lo.

É por isso que o sábio controla o seu povo dentro dos mais altos princípios e o governa com retidão. Estimula-o com rituais e sossega-o com tratamento humano. Quando estas quatro virtudes são praticadas, o povo floresce; quando são esquecidas, se perde. Foi assim que, quando Tang, o Vitorioso, atacou Jie, e o povo de Xia mostrou a sua alegria; quando Wu, de Zhou, atacou Zhouxin, da dinastia Shang, o povo de Yin não se fez qualquer oposição. Agiram de conformidade com a vontade do Céu e do homem e puderam realizar estes feitos. Administrando questões militares e civis

Normalmente, quando se administra uma nação e se controla um exército, há que

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instruir o povo mediante o ritual, e encorajá-lo mediante a retidão, incutindo-lhe desta forma o sentido da honra. Se o sentido da honra dos homens for amplo, poderão partir em campanha; se não for muito grande, poderão somente defender-se. Obter uma vitória é fácil; preservar os seus frutos é difícil. É por isso que se diz que, quando o país está em guerra, aquele que obtiver cinco vitórias virá a ser afetado por uma calamidade, aquele que obtiver quatro está exausto, aquele que obtiver três torna-se Senhor protetor, aquele que obtiver duas será rei e aquele que obtiver uma será imperador. Aquele que ganhou um império graças a vitórias sem conta é uma raridade, enquanto aqueles que pereceram tentando-o são muitos. Operações Militares

Há cinco pontos conducentes a operações militares: primeiro, a busca da fama; segundo, a luta por vantagens; terceiro, a acumulação de animosidade; quarto, a desordem interna; quinto, a fome.

Há também cinco categorias de guerra: primeiro, a guerra correta; segundo, a guerra de agressão; terceiro, a guerra furiosa; quarto, a guerra dissoluta; quinto, a guerra de insurreição. As guerras feitas para acabar com

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a violência e abafar a desordem são corretas; as que dependem da violência são de agressão; quando se formam tropas [em virtude de os governantes se encontrarem em fúria], são guerras furiosas; aquelas em que toda a propriedade é tomada por ambição são dissolutas; aquelas que, acontecendo encontrar-se o Estado em desordem e o povo cansado, se provocam por levantamentos e agitação entre as gentes, são de insurreição

Há formas para se lidar com cada uma delas: uma guerra correta remedeia-se com governos corretos; uma guerra agressiva, humilhando-se; uma furiosa; se acalmado; uma guerra dissoluta, pelo ludíbrio e traição; uma guerra de insurreição, pela autoridade. Avaliando os inimigos O marquês Wu disse a Wuzi: Qin ameaça-me a oeste, Chu aperta-me a sul, Zhao confronta-me pelo norte, Qi espreita as minhas fronteiras a leste, Yen corta-me a retaguarda e Han toma posições à minha frente. Tenho de me defender nos quatro lados contra estes seis Estados. Estou em posição muitíssimo difícil. Como acabar com esta preocupação? Wuzi replicou-lhe: A forma de manter o país seguro está na precaução. Agora, que já

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conheceis os perigos, a desgraça já começa a afastar-se. Permite-me que disserte acerca destes seis países. O exército de Qi é grande, mas não é firme. O exército de Qin está disperso, com cada porção a combater por sua conta. O exército Chu está bem organizado, mas não tem resistência. O exército Yen se defenderá, mas não tomará a iniciativa. Os exércitos dos Três Chins estão bem organizados, mas não são calejados. Quanto aos homens de Qi, são resistentes, o Estado é rico, mas o soberano e os ministros são arrogantes e extravagantes e tratam o povo com desprezo. O governo é complacente, mas os impostos são injustos, e o exército não tem uma postura ofensiva ou defensiva definida. Portanto, embora grande, também não é firme. O modo de combater o exército Qi é o seguinte: dividi-lo em três partes e atacar-lhe a direita e a esquerda, forçando-as à submissão, após o que ficará destruído. O Estado Qin é forte e o país repleto de precipícios e o governo rigoroso, com prêmios e castigos autênticos. O seu povo não cede com facilidade e todos estão dispostos a lutar, pelo que todos se encontram dispersos, cada um combatendo por sua conta. A forma de combater Qin é a de lhe oferecer uma

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vantagem aparente e o atrair retirando. Os oficiais irão atrás da isca, separando-se dos generais. Aproveitai-vos dos seus erros e batei os seus elementos dispersos. Prepare emboscadas, agarre oportunidades e os seus generais sairão derrotados. O Estado de Chu é fraco, embora o seu território seja grande. O governo é hesitante e o povo está saturado. Portanto, ainda que bem organizado, nada poderá agüentar. A forma de combater Chu é sutilmente lançar a confusão nos seus acampamentos. Fazer-lhe baixar o moral. Avançar com tropas ligeiras e retirar com rapidez, abatendo-os e cansando-os. Sem serem levados a uma batalha, os seus exércitos serão vencidos. As gentes de Yen são estúpidas, honestas e também cuidadosas. Apreciam o valor e a retidão, pelo que não recorrem a truques e ludíbrios. Defendem-se, mas não saem para lutar. A forma de combater Yen estará em os agitar e perturbar. Avançar sobre eles e se retirar para longe, passando depois e rapidamente para a sua retaguarda, tornando os superiores perplexos e os subordinados amedrontados. Tomarão medidas contra nossos carros e cavalaria, recuando. Isso permitirá aprisionar-lhes os generais

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Os Três Chins são os Reinos Centrais.2 O seu povo é de temperamento pacífico e cansado de combater. O governo é ordenado. Embora bem preparados para a guerra, prezam os seus generais e ressentem-se com os salários dos funcionários. Os oficiais nunca lutarão até a morte. A forma de os combater estará em pressionar as suas formações e manter essa pressão. Quando as suas hostes surgirem, resistir-lhes; quando se retirarem, persegui-las. Cansar-lhes os exércitos. É essa a ideia geral. É certo que num exército existem sempre oficiais valentes como tigres, e suficientemente fortes para com facilidade levantarem um vaso de bronze, e que, velozes como cavalos bravos, serão capazes de tomar bandeiras e aprisionar generais. -há-os, com certeza. Deverão ser selecionadas, anotados, acarinhados e honrados, porque constituem o cerne de qualquer exército. Tais homens sabem empregar as cinco armas, são talentosos, robustos, ágeis e ansiosos por tragar o inimigo. Elevai-lhes as honrarias e obterão vitórias decisivas. Trate dos seus pais, esposas e filhos com prodigalidade. Estimule-os com prêmios e impressione-os com punições para que

2 Zhao, Han e Zhou.

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venham a agüentar qualquer batalha. Se souber usar tais homens, eles serão o bastante para atacar forças duas vezes superiores às suas. «Excelente», bradou o marquês Wu. Condições para combater Wuzi disse: «Quando se aprecia a situação do inimigo, oito condições há que vos permitirão combater sem recurso à adivinhação: Primeiro, quando o vento sopra com força, faz muito frio e os seus homens acordaram cedo para avançarem, quebrarem o gelo, vadearem os rios, sem temer as dificuldades; Segundo, quando de calor escaldante, a meio do Verão, e acordaram tarde e cheios de pressa, com grandes distâncias a percorrer e sofrendo de fome e de sede; Terceiro, quando o seu exército já está acampado há muito e desprovido de cereais e comida, com a sua gente ressentida e furiosa, com muitos indícios e sinais de mau agouro, sem que os oficiais superiores saibam dar cabo da situação; Quarto, quando o seu equipamento está gasto e lhe faltam alimentos, remédios e a chuva e o nevoeiro persistem, com as tropas ansiando por saques, e não há para fazer;

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Quinto, quando o exército não é grande e o terreno e a água inconvenientes, os homens e os cavalos estão doentes e sem esperança de apoio dos Estados vizinhos; Sexto, quando as estradas ficam longe, o Sol está no poente e os oficiais e soldados cansados e apreensivos, exaustos e ainda sem comer e sem se terem libertado das armaduras para se aliviarem; Sétimo, quando o general é molenga e os seus delegados negligentes, os homens e os oficiais de intenções pouco firmes e toda a hoste em constante alarme - um exército isolado e sem hipótese de ajuda; Oitavo, quando o exército inimigo ainda não está ordenado, o acampamento por terminar ou quando cruza terreno pleno de elevações, subindo precipícios, uns visíveis, outros meio ocultos. Dentro de qualquer destas condições, poder-se-á atacá-lo sem hesitação. Condições para atacar Há seis situações dentro das quais, sem procederdes a adivinhações, devereis evitar atacar o inimigo. São elas: Primeiro, quando o seu país é grande e a sua população numerosa e próspera;

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Segundo, quando os superiores amam os seus inferiores e a sua benevolência cresce e se espalha; Terceiro, quando os prêmios são de contar e os castigos sempre cuidadosamente analisados e com justiça aplicados, Quarto, quando os que, pelo seu mérito, são compensados com lugares apropriados, onde as responsabilidade são dadas aqueles que sabem e os empregos aos capazes, Quinto, quando o seu exército é grande e bem equipado; Sexto, quando há ajudas de todos os lados e o inimigo é auxiliado por Estados poderosos. Regra geral, quando em inferioridade em qualquer destes pontos, deve-se, sem dúvida, evitar atacá-los. Quero, no fim das contas, dizer que, quando tiver oportunidade, avançai; quando ver que está em dificuldade, retire-se. Aparências O marquês Wu exclamou: Desejo, pela aparência externa do inimigo, conhecer a sua situação interna, observar o seu avanço e saber quando parará, deduzindo, deste modo, o que vai suceder. Posso saber como deverá ser? Wuzi replicou-lhe: Quando o inimigo avança sem cuidados ou planos, as suas bandeiras e

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flâmulas em confusão e desordenados e tanto homens como cavalos olham frequentemente para trás, pode-se atacá-lo, mesmo que nos seja dez vezes superior, e vencê-lo. Quando as forças dos senhores feudais ainda não se agruparam, quando os soberanos e ministros estão em desacordo, quando os fossos e os baluartes não estão terminados, quando as ordens e as proibições não foram ainda editadas e toda a hoste se revela em tumulto, pretendendo avançar sem o poder, é então possível atacar um inimigo do dobro do nosso tamanho e, mesmo que sejam cem as batalhas, nenhuma calamidade ocorrerá. Atacar sem hesitar O marquês Wu indagou: Sob que condições pode, sem hesitação, um inimigo ser atacado? Wuzi respondeu-lhe: O emprego de tropas deverá estar de acordo com a avaliação dos pontos fracos e fortes do inimigo, após o que rapidamente se atacam as suas posições críticas. Quando o inimigo ataca a partir de longe e as suas formaturas ainda se mostram dispersas, pode ser atacado; quando as suas tropas acabaram de comer e estão ainda descontraídas, pode ser atacado; quando em debandada, pode ser atacado; quando exausto

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e fatigado, pode ser atacado; quando ainda não obteve as vantagens que o terreno oferece, pode ser atacado; quando deixou escapar o momento e dele não se aproveitou, pode ser atacado; quando chega de grande distância e não descansou ainda, pode ser atacado; quando, vadeando um rio, apenas metade das suas forças o passou, pode ser atacado; quando em estrada cheia de precipícios e estreita, pode ser atacado; quando as suas bandeiras e decorações se agitam confusamente, pode ser atacado; quando as suas formações constantemente se alternam, pode ser atacado; quando os seus generais ficam separados das tropas, pode ser atacado. Em todos os casos, porém, haverá que empregar tropas de escol para romper as linhas adversárias, dividindo-as para que o grosso das nossas forças as possa seguir. Ataque-se com rapidez e sem hesitação. (adaptado de Samuel Griffith A Arte da Guerra. Lisboa: Europa América, s/d)

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5º Capítulo

O intervalo macabro de Qin

No final do século 4 a.C., o reino de Qin

era considerado um dois mais bárbaros da China. Na visão dos contemporâneos, em Qin as pessoas falavam errado, eram grosseiras, sua música era feia, ficavam batucando em botijas de barro e não andavam em carros, mas em cima dos cavalos. Comiam mal, sabiam pouco sobre os ritos e a cultura erudita, eram pobres, e ainda mantinham contato direto com os estrangeiros do Oeste.

Os sábios, que tanto andavam pela China em busca de emprego, tinham receio de ir pra lá. Qin era considerado uma punição, quase um exílio interno dentro do império. Mas quando o período dos Estados Combatentes começou, Qin resolveu que não ficaria para trás, nem levaria pancada dos outros reinos. A seu favor, Qin tinha duas coisas que nenhum outro Estado tinha nesta época: sendo um país “atrasado” e “inculto”, eles podiam experimentar fórmulas novas de organização política e militar, sem precisar ter que percorrer um longo caminho que as

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tradições exigiam: em suma, Qin não precisava “civilizar-se”, mas podia inventar sua própria civilização. Para isso, Qin contava com a outra vantagem, que era a quase total ausência de famílias ou clãs poderosos que pudessem ameaçar a formação de um Estado centralizado e moderno. O governo de Qin não precisava discutir suas reformas com quem quer que fosse, e as discordâncias internas podiam ser facilmente eliminadas.

O que ocorreu, pois, é que Qin atraiu todos aqueles pensadores cansados com as discussões intermináveis das escolas de pensamento, e dispostos a entabular novos projetos para o futuro. Uma característica geral dos intelectuais que foram para Qin era a desilusão com o humanismo confucionista, a percepção da incapacidade dos reinos de darem jeito na decadência geral, a necessidade de mudança – incluindo a abolição total do sistema imperial Zhou – e a criação de um novo país, unificado, com uma estrutura inédita de administração centralizada e construída por teorias alternativas.

E quem foi para lá? Os estrategistas e os legistas. Estas duas escolas foram o cerne do novo Estado Qin, e formaram uma simbiose eficaz no processo de reunificação da China – porém, sua continuidade foi marcada por um

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regime excessivo e violento, que veremos agora.

Façamos uma análise sobre quem eram os legistas, para entender melhor seu papel em Qin e sua conexão profunda com os estrategistas. Os legistas defendiam que o único Dao (caminho) que podia pôr ordem novamente na China deveria ser baseado num novo tipo de Fa (Lei) rígida, dura, e inequívoca, a qual todas as pessoas serviriam. Esta lei emanaria de um governo centralizado, em que as famílias importantes seriam abolidas, e substituídas por uma burocracia meritocrática, que responderia diretamente ao imperador por meio de uma escala hierárquica de responsabilidades claramente organizadas e definidas.

Os dois mecanismos principais de regulação social seriam a recompensa e o castigo, mediante o cumprimento (ou não) da lei estabelecida. Vejam que este ponto fundamental está presente em todos os discursos estrategistas, e é impossível saber quem influenciou quem. A questão é que os legistas conceberam que este princípio legal – que na visão dos estrategistas era eminentemente militar – deveria ser estendido a toda a sociedade, sem exceções.

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O mais importante dos autores legistas, e que nos interessa aqui, foi Hanfeizi, que já comentamos antes, e que estava presente junto ao rei de Qin, no século 3 a.C., assessorando-o diretamente na construção de um novo Estado. Junto com ele havia um time de primeira: Lubuwei, um ex-mercador com vastos conhecimentos intelectuais; Lisi, outro especialista em legismo, e que havia estudado com Hanfei; e ainda, um estrategista pouco conhecido, mas que será fundamental neste capítulo, chamado Wei Liaozi.

Os legistas entendiam que para haver uma organização social harmônica e consistente, não deveriam existir discordâncias intelectuais – e para isso, as outras escolas de pensamento deveriam ser restringidas ou mesmo, proibidas. A única doutrina a ser estudada seria a da lei – e como alternativas, os legistas permitiam apenas o estudo da agricultura ou das artes militares.

Isso fazia todo o sentido, já que os legistas defendiam que para acontecer a uniformização do pensamento social, era necessário proibir as discordâncias em relação ao sistema. Isso ocorreria sempre que as pessoas tivessem oportunidade de pensar ou refletir sobre a vida, e a única maneira de impedi-las de pensar seria não dar-lhes espaço

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para isso. Assim sendo, os legistas imaginaram que se pudessem mobilizar constantemente a população, ela não teria nem tempo e nem oportunidade de discordar ou ponderar, o que facilitaria seu domínio, manipulação e instauração da ordem pública.

O melhor meio para fazê-lo seria, portanto, a divisão das atividades entre a agricultura e o serviço militar. Quem não fosse trabalhar no campo ou em obras públicas, labutando noite e dia, deveria servir nas forças armadas, sempre envolvidas com a escalada de conflitos intermináveis deste período. Este plano diluía as possibilidades dos camponeses se concentrarem para reivindicar o que fosse, do mesmo modo que a vida em caserna tinha uma série de exigências cotidianas que naturalmente afastavam outros tipos de elucubração por parte da soldadesca.

Só que Qin foi além: transformou a vida burocrática e militar numa carreira de sucesso, cheia de possibilidades para aqueles que fossem destemidos e audazes (dentro da lei, claro). Os soldados, por exemplo, ganhavam prêmios pelo número de cabeças cortadas, e um assassino profissional podia chegar à oficial facilmente. As tropas de Qin se caracterizaram pela disciplina incrível e pela ferocidade em combate.

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Com isso, Qin conseguiu em pouco tempo montar um Estado novo, bem organizado e forte, com uma força militar incrivelmente determinada. A supremacia de Wei foi gradualmente abalada, e as forças de Qin foram conquistando reino a reino, num movimento irresistível. Suas campanhas foram avassaladoras, e seu exército chegou a ter 500.000 soldados. Em 221 a.C., Qin finalmente completou seu projeto de impor uma nova a ordem ao país, unindo-o novamente sobre o poder de uma nova dinastia – Qin, comandada por um soberano que se autodenominou Qinshi Huangdi – ou, o primeiro soberano de Qin.

Sabemos das realizações de Qinshi: ele unificou o país sob um único sistema – o legista – e com isso padronizou a escrita, os pesos, medidas, a moeda, e principalmente, buscou padronizar o pensamento. Como meio para continuar mobilizando o povo, Qinshi ordenou a construção de seu mausoléu – a famosa tumba dos guerreiros de terracota de Xian – e determinou a conclusão do trabalho de ligar várias muralhas separadas em uma só, que veio a ser conhecida como a grande muralha da China. Fez também a primeira grande queima de livros na história desta civilização, tentando proibir a propagação de

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outros pensamentos, perseguiu sábios e reprimiu o povo impiedosamente. Após sua morte, em 206 a.C., a dinastia dissolveu-se rapidamente, e o legismo passou um bom tempo sendo repudiado como teoria.

E onde entram os estrategistas nesta história? Na corte de Qin, conta-se que um tal Wei Liaozi estava junto dos principais assessores de Qinshi Huangdi, e ajudou em grande parte das formulações do novo reino. O namoro entre os legistas e estrategistas estava calcado no aspecto militarista de ambas as teorias. Estava bem claro o interesse legista em tornar o país de Qin num grande quartel, e tanto Hanfeizi como Lisi eram ávidos leitores de estratégias. Um legista anterior a eles, Shang Yang, já havia proposto o mesmo tipo de sistema, centrado na agricultura e no militarismo, e sua obra estava na cabeceira dos intelectuais de Qin.

Mas a transformação de um país num quartel exigia adaptações sérias de planejamento, e nem passava pela cabeça dos estrategistas anteriores proporem um sistema deste gênero. Mesmo Taigong, Sima Jiang e Wuzi estavam longe de projetarem a vida da caserna sobre a sociedade, e seus discursos referiam-se mais ao confucionismo ou ao daoísmo do que ao legismo. Quanto a Sunzi,

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sabemos que estas referências ecoam em sua obra, mas ele se absteve de fazer qualquer aprofundamento no sentido político da coisa. Esta adaptação coube ao desconhecido, porém importante, Wei Lioazi.

Quase nada sabemos sobre ele, e as informações a seu respeito são tão escassas quanto de Sunzi. No entanto, seu texto permaneceu relativamente bem preservado, e nos serve para compreender perfeitamente suas intenções.

Wei pretendia adaptar as teorias estratégicas de guerra à vida cotidiana comum. Sua teoria baseava-se na concepção de que um exército eficiente contava com uma série de fatores: soldados treinados e disciplinados, oficiais encorajados, leis rigorosas, deveres e possibilidades bem definidas, e um plano de ascensão individual. Se este mesmo sistema fosse aplicado aos cidadãos comuns, por meio de uma espécie de “ditadura militar esclarecida”, o sistema social estaria em ordem, e a pretensão legista – de unificar a sociedade por meio de uma única lei – alcançaria seu efeito desejado.

A tomada de poder na China, por parte de Qin, iludiu estes pensadores de que seus pontos de vista estavam absolutamente corretos. A instauração de um regime duro

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trouxe pujança econômica no início, mas em breve descambou para uma nova escalada de repressão e violência contra uma população cansada, insatisfeita e agredida. O que os pensadores de Qin não perceberam é que as estratégias consagradas em Sunzi – e mesmo em seus concorrentes – pregavam, insistentemente, que uma guerra não deve durar por muito tempo, que seus saberes se aplicavam em tempos de crise (não de paz), e que toda campanha longa gerava inevitavelmente um desgaste severo. Talvez esta seja mais uma das razões pelas quais Sunzi se calou sobre política: ele já sabia, de antemão, que governos que estavam sempre em guerra acabavam enfraquecidos. A tentativa de Wei Liaozi, de criar um sistema em que a guerra se tornava um dos fatores fundamentais da existência do sistema político, invertia perigosamente a relação das coisas: para ele, o Estado existia em função do conflito e da violência, e não para evitá-los ou resolvê-los. Ora, um país que vive da guerra fatalmente se desgastará, colherá inimigos aos montes, esgotará o povo e se autodestruirá. Uma entidade política não poderia existir e continuar em função da destruição.

Wei Liaozi acabou desaparecendo sem deixar rastros, e basicamente só temos o seu

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texto, em que ele discute, além de estratégias, as formas pelas quais um governo totalitário deve ser construído. Em comum acordo com os legistas, eles conseguiram transformar Qin numa grande potência, mas ao custo do sacrifício de milhões de vidas. Qin passou a ser detestado pelo povo e pelos intelectuais, e seu projeto inovador naufragou nas próprias bases, diante da contradição flagrante de um Estado que precisava de conflitos para “instaurar a paz e uma ordem duradoura”. Qin foi substituído pela Dinastia Han, que permaneceria no poder nos 6 séculos seguintes, e as teorias legistas foram sendo postas de lado gradualmente. Quanto aos textos estrategistas, estes foram relegados ao plano militar, onde foram conservados e lidos. O texto apolítico de Sunzi alcançou, por esta época, um sucesso inabalável, e continuou sendo aplicado nas instituições militares. Alguns escritores daoístas tentaram adentrar o campo da estratégia, mas nenhum deles nem sequer chegou a abalar o prestígio da Lei da Guerra. Como já dizia um antigo provérbio: “fazer o mais simples é sempre mais difícil”; e Sunzi conseguiu isso de modo brilhante.

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Fragmentos do Wei Liaozi Preparação

A dignidade é uma questão de imutabilidade. A generosidade é uma questão de senso de oportunidade. A inteligência é uma questão de reagir aos acontecimentos. O combate é uma questão de domínio do espírito. O ataque é uma questão de imprevisibilidade. A defesa é uma questão de organização externa. A impecabilidade é uma questão de medida e cálculo. A resistência é uma questão de preparo. A prudência é uma questão de precaver o pequeno. A sabedoria é uma questão de gerenciar o grande. Livrar-se de pragas é uma questão de determinação. Ganhar seguidores é uma questão de ser humilde com os demais.

O arrependimento está em confiar no duvidoso. O mal está no massacre. O preconceito está no egoísmo. O infortúnio está em detestar saber dos próprios defeitos. O excesso está em esgotar a riqueza do povo. A falta de clareza está em admitir intrusos. A insubstancialidade está em representar com demasiada facilidade. A estreiteza mental está em alienar a inteligência. A calamidade está na especulação. A injúria está na familiaridade

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com pessoas insignificantes. A ruína está em não se ter defesa. O perigo está em não se ter ordem. Punição e Recompensa

Castigos e recompensas são meios de revelar talento marcial. Se uma milícia pode ser toda ela levada a estremecer diante da exe-cução de um homem, mate-o; se dez mil pessoas conseguem se alegrar com a recompensa de um homem, então dê-lhe uma recompensa. As execuções mais impressionantes são as de pessoas importantes; as recompensas mais impressionantes são aquelas feitas a pessoas menos importantes.

Quando aqueles que merecem ser executados são invariavelmente executados, ainda que tenham uma alta patente, sejam pessoas importantes, isso significa atingir a todos, de baixo para cima; se recompensas são dadas, mesmo que sejam a vaqueiros e a cavalariços, isso significa recompensar de cima para baixo. Ser capaz de castigar as mais altas patentes e recompensar as mais baixas é o talento marcial de um comandante militar; é por isso que líderes de homens levam os comandantes a sério.

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A importância do exército e da agricultura

Um país grande dá ênfase à agricultura e ao combate; um país médio dá ênfase ao conforto e à defesa; um país pequeno dá ênfase aos negócios e à subsistência. Com agricultura e combate ele não busca poder externo; com conforto e defesa, ele não busca ajuda externa; com negócios e subsistência, ele não busca re-cursos externos. Vigilância interna

Na organização militar, cinco pessoas formam um grupo; os membros do grupo responsabilizam-se uns pelos outros. Dez pes-soas formam um pelotão; os membros do pelotão responsabilizam-se uns pelos outros. Cinqüenta pessoas formam um batalhão; os membros do batalhão responsabilizam-se uns pelos outros. Cem pessoas formam um regimento; os membros do regimento responsabilizam-se uns pelos outros.

Se um grupo tem membros que transgridem ordens ou infringem regras, os demais são isentos de castigo, se notificarem isso; se tiverem conhecimento disso, mas não notificarem, toda o grupo é castigado. Se um

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pelotão tem membros que transgridem ordens ou infringem regras, os demais são isentos de castigo, se notificarem isso; se tiverem conhecimento disso, mas não notificarem, toda o pelotão é castigado.

Se um batalhão tem membros que transgridem ordens ou infringem regras, os demais são isentos de castigo, se notificarem isso; se tiverem conhecimento disso, mas não notificarem, todo batalhão é castigado. Se um regimento tem membros que transgridem ordens ou infringem regras, os demais são isentos de castigo, se notificarem isso; se tiverem conhecimento disso, mas não notificarem, todo o regimento é castigado. Os oficiais, de comandantes de pelotão a generais, responsabilizam-se uns pelos outros; se algum transgride ordens ou infringe regras, aqueles que notificam isso escapam do castigo, ao passo que aqueles que têm conhecimento, mas não notificam, estão sujeitos ao mesmo castigo.

Quando grupo e pelotões são coesos e os escalões mais altos e mais baixos estão vinculados, não há traição que não seja descoberta, ou uma má ação que não seja notificada. Pais não podem favorecer os próprios filhos; irmãos mais velhos não podem favorecer os seus irmãos mais novos.

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Principalmente quando compatriotas se alojam juntos e comem juntos, como pode haver quaisquer transgressões de ordens ou favoritismo? Recompensas e punições em ações militares

A regra para se unir o grupo é a seguinte: Cinco pessoas formam um grupo, têm a mesma insígnia e respondem a um oficial comandante. Se elas perdem urna parte de sua equipe, mas tomam outra, isso é levado em conta. Se elas tomam uma equipe sem haver perdas, há uma recompensa. Se perdem parte da equipe, sem tomar uma equipe, são executadas, e as suas famílias, mortas. Se se perde o chefe de um pelotão ou grupo, mas se captura um chefe, isso é levado em conta. Se um chefe é capturado sem haver perda, há uma recompensa. Se se perde um chefe sem a captura de outro, os responsáveis são executados, e as suas famílias, mortas, a não ser que voltem à batalha e cortem a cabeça de um chefe inimigo, o que os absolverá. Se um comandante é perdido, ao se capturar um comandante inimigo, isso é levado em conta. Se um comandante inimigo é capturado sem haver perdas, há uma recompensa. Se um

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comandante é perdido ao se fracassar na captura de um comandante inimigo, os responsáveis são acusados de deserção. (adaptado de Thomas Cleary A sabedoria do guerreiro. São Paulo: Record, 2001)

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6º capítulo

As Três Estratégias

A história do livro As Três Estratégias começa - se pudermos acreditar mais uma vez em Sima Qian - em torno de 216 a.C., uma década antes da dinastia Qin cair. Um jovem nobre decadente, chamado Zhang Liang, andava perdido pela China, pensando num meio de acabar com o imperador Qinshi Huangdi. Ele já havia realizado uma tentativa anterior, inteiramente fracassada, e estava totalmente desolado. Qinshi parecia ser inexpugnável, e nada indicava que a situação pudesse mudar. Foi então que, num belo dia, depois de muito vagar, Zhang Liang foi atravessar uma ponte, e deparou-se com um velho, que havia deixado cair seu sapato no rio. Zhang, educadamente, prontificou-se a buscá-lo. Quando trouxe o sapato, o velho chutou-o pra longe e pediu novamente Zhang para buscá-lo. Zhang ficou irritado, mas controlou-se e foi atrás do sapato de novo. Quando o trouxe, o velho simplesmente fez voar o calçado para ainda mais longe, e insistiu que Zhang fosse atrás do dito.

Numa história normal, Zhang, ou qualquer outra pessoa, achariam que aquele

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senhor estava fazendo uma brincadeira de mau gosto ou debochando de sua cara. Mas, como Zhang era um predestinado, de características especiais – e contra a lógica usual destas situações – ele foi atrás do sapato do velhinho, pegou-o e o trouxe de volta.

Ele estava de cabeça quente, mas controlado; foi o que permitiu que ele reparasse que o velho estava com uma aura estranha de autoridade, um brilho incomum, e de pronto modificou sua atitude. O ancião agradeceu a gentileza, e disse a Zhang que ele era uma pessoa especial. Pediu que dali a cinco dias o encontrasse num lugar convencionado, para dar-lhe um presente. Zhang ficou atiçado e curioso, e foi ao encontro do senhor dias depois. Quando lá chegou, o velho o esperava e gritou com ele: “Porque se atrasou tanto? Você é um grosseiro mal educado. Deixou um velho esperando! Volte daqui a cinco dias!” Zhang quase saiu do esquadro de novo, mas segurou-se. Voltou cinco dias depois, bem mais cedo do que antes, e encontrou o velho lá apenas para ganhar outra bronca e ouvir: “volte daqui a cinco dias!”.

Devem ser nestes momentos que os heróis mostram sua obstinação. Talvez por curiosidade, ou por que não tinha nada melhor, Zhang decidiu fazer diferente. Foi

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quase um dia antes no lugar marcado e ficou esperando. O velho chegou, sorriu-lhe e disse: “paciência e disciplina, agora sim. Este é o caminho”. Deu-lhe um livro e continuou: “Você será o mestre do novo imperador daqui a dez anos. Daqui a treze anos, nos encontraremos de novo perto da margem norte do rio Chi. No pé do monte Guqian haverá uma pedra amarela: serei eu”, e desapareceu. Ele nunca mais foi visto.

Quando terminou este encontro estranhíssimo, Zhang Liang olhou o livro que havia ganhado, e percebeu que se tratava de um tratado militar desconhecido. O livro parecia ser simples, e aparentemente combinava os textos de Taigong com os de Sunzi e de outros autores. Ele dividia-se em três partes apenas: as estratégias superiores, medianas e inferiores. Por causa disso, ele acabaria sendo chamado de As três estratégias, e para evitar confusões, a tradição chinesa o salvou como As três estratégias do duque da pedra amarela.

Quando Sima Qian escreveu os Registros Históricos, ele tomava o cuidado de se certificar sobre os eventos, as fontes e os personagens que apresentava, mas em certas ocasiões – seja porque isso fosse verdade para ele, seja porque ele gostava de apimentar suas

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histórias – Sima não se furtava a colocar estes acontecimentos mágicos no meio de suas narrativas. Por causa disso, qualquer afirmação sobre a história das Três estratégias é problemática, e não podemos nos fiar na lorota de Zhang Liang. O que podemos saber sobre este livro, então?

As três estratégias poderiam ser consideradas, com efeito, a antítese do livro de Wei Liaozi. O texto provavelmente foi escrito no início da época Han, após a derrocada de Qin, e serviria para a instituição da nova dinastia. Elas propõem um uso inteligente da estratégia, mas baseados numa razão de governo totalmente diferente da legista. Ao separar as estratégias em três classificações, o livro nos apresenta, na verdade, uma estratégia para usar as estratégias. O emprego da estratégia não poderia ser indiscriminado, bem como não deveria ser utilizado em qualquer situação, como muitos supunham. Para cada nível de problema ou contexto, existiria um método adequado para lidar com ele. Assim, o “Duque da pedra amarela” (o suposto “verdadeiro” autor das Três estratégias), defendia que as estratégias, como dissemos antes, poderiam ser divididas em três, que seriam:

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- As estratégias superiores: aquelas que tratam do certo e do errado, do apropriado e do incorreto, separam o bom do mau, e permitem prever o sucesso ou o fracasso. - As estratégias medianas: permitem diferenciar o que é virtuoso do que é apenas conhecimento, e observar as variações no emprego da força e do poder. - As estratégias inferiores: investigam o que é seguro ou não, se as estratégias estão seguindo o caminho apropriado aos fins, e se vão levar a calamidade ou a fortuna.

O livro ainda diz que as estratégias superiores devem ser empregadas para identificar os sábios, e separá-los dos inimigos. As medianas, para controlar os generais e unir o povo. As inferiores, para governar corretamente, e conduzir os eventos, afastando os perigos e favorecendo a boa conclusão das coisas.

O mais curioso é que este mesmo texto cita uma série de manuais militares dos quais nunca ouvimos falar antes. Em Sunzi há uma única referência a um deles, o que pode significar que estamos diante de materiais inéditos, que poderão ser desencavados, num futuro próximo, de uma tumba qualquer da China. De qualquer modo, as Três estratégias

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são cheias de conselhos para administrar o país e os exércitos, se precavendo contra as guerras e dissolvendo as tensões sociais. De fato, ele se parece mais com o livro de Taigong, Wuzi ou de Wei Liaozi, mas é inteiramente novo no modo como apresenta suas teorias, as fontes as quais recorre, e principalmente, na sutileza com que aborda o problema da estratégia. Afinal, as Três estratégias consistem num exame acurado do que empregar, quando, como e contra quem os recursos da força, do poder e da inteligência. Ele está longe de ser um livro apolítico como Sunzi ou Sunbin, mas também não está absolutamente engajado em uma corrente de pensamento qualquer – senão refutando, de modo geral, o legismo da obra de Wei Liaozi. Isso faz sentido quando analisamos o caráter intelectual da dinastia Han, principalmente em seus primórdios, após a dura guerra civil que se seguiu a queda de Qin. Liu Bang, o primeiro imperador Han, era um ex-camponês que com muita dificuldade estudou alguma coisa, mas que se destacou por ser extremamente inteligente, conhecedor de estratégias e um administrador flexível. Conta-se que uma vez, enraivecido com a indecisão de seus conselheiros, ele urinou em seus chapéus. Contudo, ao debater com um de seus

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principais auxiliares, Lujia, Liu Bang mostrou porque tinha futuro como fundador de uma dinastia. Ele teria afirmado que “havia conquistado o império de cima de seu cavalo. Para que ler?”, ao que Lujia respondeu: “O senhor pode ter conquistado o império com seu cavalo, mas pode governá-lo de cima dele?”. Liu Bang sentiu que finalmente havia escutado uma opinião inteligente e convocou Lujia a redigir os novos princípios de governo da dinastia, que se concretizaram em um livro chamado Novos Princípios da Política.3 Este livro defendia um retorno da tolerância, do humanismo e da benevolência confucionista como características apropriadas de um bom governo. No entanto, Lujia introduziu aí uma síntese interessante: a conciliação da liberdade individual (conceito daoísta) com a existência de uma lei severa e conscienciosa (ao modo legista), mas sem ser excessiva ou arbitrária. E como fazer isso? Por estratégias de governação.

Deveria ser dada, às pessoas, a liberdade – mas suas opções deveriam se

3 Xinyu, que pode ser traduzido como Novos Discursos ou Novos pronunciamentos. Curiosamente, Jean Levi, destacado sinólogo francês, interessou-se em realizar a tradução do Xinyu de dispomos após traduzir a Lei da Guerra de Sunzi.

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calcar numa consciência preparada pela educação, e vigiada por uma lei que impedisse os excessos ou as desigualdades. Preferia-se “corrigir” ao “punir”, mas o governo precisaria manter-se atento a condução dos negócios sociais, para impedir que eles descambassem em desregramento ou conflito.

É neste momento em que começamos a observar um trânsito de idéias entre as Três estratégias e o livro de Lujia. Embora ele não esteja declarado – mas como era hábito na época, Lujia cita idéias, mas praticamente nenhum autor – pensa-se uma forma de governar que seja previdente, evitando a guerra por meio da administração dos conflitos, qualificando funcionários e generais, preparando políticas governamentais que sejam claras e administrando a vida pública de maneira suave e coerente. Podemos nos perguntar se as Três estratégias, na verdade, não seriam quase que um disfarce para as três escolas – confucionismo, daoísmo e legismo – nomeando-as como as estratégias superior, mediana e inferior; mas a análise dos temas, bem como os textos citados, nos fazem supor que estas idéias estão todas misturadas ao longo dos três capítulos, e fazer tal afirmação seria arriscado. De qualquer modo, é bem possível que este livro – junto com o de Lujia –

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tenha sido uma das leituras mais importantes da época Han, que teve que enfrentar várias guerras ao longo de sua existência duradoura. A sobrevivência e a violência eram condições absolutamente presentes naquela época, e o que podemos chamar de “tempos de paz” significavam, na verdade, apenas um momento da história chinesa em que havia menos guerras, e um governo forte para enfrentá-las e administrá-las.

...

Em tempo: Zhang Liang de fato existiu, e apesar das histórias estranhas que o rondam, ele esteve presente no momento da entronização de Liu Bang como o primeiro imperador de Han. Tempos depois, visitou, junto com o imperador, o lugar que o velho indicara, e encontrou a pedra amarela. Guardou-a consigo até a morte, que foi tranqüila. Não é impossível que o próprio Zhang Liang tenha escrito as Três estratégias, mas criou uma lenda fabulosa para enobrecer o livro. No mais, Zhang Liang e Lujia se conheceram e trabalharam juntos durante algum tempo, mas não sabemos se foram amigos, e que impressões trocaram. Todavia, a análise dos livros de ambos demonstra uma

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profunda afinidade de idéias, que não deve ser menosprezada.

...

Quanto ao nosso caro Sima Qian, que nos permitiu até aqui saber dos detalhes da vida destes homens, vale contar sobre um pouco sobre o seu destino como historiador – que tem relação, inclusive, com a história das estratégias chinesas. Sima viveu durante o tempo de Wudi (141-87 a.C.), um dos mais longevos imperadores chineses, e cujo título – Wu, o marcial – já indicava o seu desejo de expandir as fronteiras do império. Wudi foi um grande conquistador, e administrou relativamente bem o país, mas tinha um gênio dificílimo. Um de seus generais, Liling, foi enviado para combater no noroeste do país com uma força militar de cinco mil homens, e defrontou-se com um exército inimigo gigantesco, formado por aproximadamente trinta mil cavaleiros. Como sua tropa era essencialmente de infantaria, Liling adotou uma tática inovadora, colocando os lanceiros à frente e posicionando os arqueiros e besteiros atrás das primeiras linhas. Com isso, ele conseguiu fazer com que os inimigos não conseguissem penetrar suas formações, sendo

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aniquilados pelas flechas. Liling havia antecipado em séculos estratégias que seriam consagradas pelos ingleses em Crécy e Azincourt, na idade média, ou depois, pelo exército imperial britânico no século 19. No entanto, o sucesso de Liling não foi aproveitado, e ele foi abandonado à própria sorte, não recebendo reforços. Quando o estoque de flechas acabou, sua tropa teve que se render, e ele acabou sendo preso.

Wudi ficou furioso com a derrota, e com captura de seu oficial. Estava na cara que algum funcionário da corte havia cometido um erro – fosse por arrogância em confiar na tática inovadora de Liling, fosse por inveja do mesmo – e o haviam deixado na mão, com uma perda vergonhosa.

Infelizmente, bons intrigantes sabem como fazer as coisas, e o discurso geral dos auxiliares da corte foi de que o próprio Liling havia se excedido e agido de modo imprudente. Como ele não estava lá para se defender, a desculpa parecia boa – até mesmo para o imperador. Neste momento, porém, Sima Qian interveio a favor de Liling, defendendo-o de modo sincero e coerente. Seu argumento era de que Liling não estava presente para expor sua defesa, bem como para identificar o responsável por não enviar

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reforços, causando o desastre no noroeste. Louvou ainda a inteligência de sua tática, o que demonstrava que ele não deveria ser um oficial imprudente, e que conhecia questões de estratégia.

Os intrigueiros ficaram de calças na mão, e precisavam de uma saída. Resolveram mexer com os brios do imperador, e como meio de desviar a discussão, acusaram Sima Qian de estar desafiando sua majestade, discordando dele e apoiando um incompetente. Wudi, de cabeça quente e pouco disposto a continuar aquela conversa, resolveu bater o martelo do modo mais rápido e condenou Sima pelo crime de ofensa. Tal crime era punido com uma multa pesada ou com a castração; mas o azarado Sima era pobre, e não tinha dinheiro para pagar a multa. Seu triste destino foi virar eunuco, sendo desgraçado com a pena de não poder constituir família. Contudo, ele sobreviveu a esta indignidade, e manteve-se firme na missão de escrever a sua grandiosa obra sobre a história da China. Numa carta endereçada a um amigo, curiosamente, ele se lamenta de ser um aleijado como Sunbin – mas que não desistira, de qualquer modo, de prosseguir em sua missão.

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Fragmentos do Livro das Três estratégias do Duque amarelo

As Três estratégias Os sábios veneram o céu, o sensato venera a terra, o instruído venera os anciãos. Logo, três níveis de estratégia são arquitetados para sociedades em declínio. A estratégia superior institui honras e recompensas, distingue farsantes de destemidos, esclarece as causas de vitória e derrota, sucesso e fracasso. A estratégia intermediária diferencia qualidades e comportamentos e analisa adaptações de estratégia. A estratégia inferior desenvolve qualidades nominativas, examina segurança e perigo e esclarece o erro de frustrar o sábio. Desse modo, se os líderes têm um conhecimento profundo da estratégia superior, eles são capazes de nomear o sábio e capturar inimigos. Se eles têm um conhecimento profundo da estratégia mediana, podem comandar generais e administrar tropas. Se eles têm um conhecimento profundo da estratégia inferior, conseguem entender as fontes da prosperidade e da decadência e

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entender os princípios necessários para governar uma nação. Como governar Os Três Sublimes4 não faziam discursos, mas a sua influência circulava por toda parte, e, portanto, o mundo não tinha a quem atribuir o mérito. Quanto aos imperadores, eles seguiam o céu e seguiam as leis da terra; faziam discursos e davam ordens, e, assim, o mundo se tornou bastante pacífico. Os líderes e administradores distribuíam o mérito uns aos outros, e, assim, enquanto a sua influência prevalecia por toda parte, as pessoas comuns não sabiam por que era assim. Por esse motivo, eles empregavam administradores com eficiência, sem a necessidade de cerimônias ou recompensas, seguindo adiante sem impedimentos. Quanto aos reis, eles governavam as pessoas por intermédio do Caminho, conquistando os seus corações e vencendo as suas mentes, instituindo regras para se proteger contra a corrupção. De todos os cantos, acorriam líderes locais, e eram pagos tributos aos reis.

4 Provável referência aos fundadores míticos da civilização chinesa, Foxi, Nugua e Huangdi.

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Embora fizessem preparativos militares, eles não tinham guerras. Os governantes não desconfiavam dos administradores. O país era estável, o governante seguro, e os administradores se aposentavam quando apropriado. Eles também conseguiam ter bom êxito, sem obstrução. Quanto aos hegemons5, eles governam por meio da estratégia, convocam homens de por meio da confiança e os utilizam por meio de recompensas. Quando a confiança acaba, os homens pedem o rumo; quando não há recompensas, eles não obedecem às ordens. Conhecendo as pessoas Essencial para governos civis e militares é observar as mentes das pessoas, para distribuir os empregos. Aos que correm perigo deve ser dada segurança, os temerosos devem ser distraídos. Desertores devem ser conquistados de volta, os falsamente acusados devem ser absolvidos, àqueles que têm queixas deve ser dada audiência. Os humildes devem ser enobrecidos, os poderosos devem ser contidos,

5 Os soberanos que disputavam o poder durante o período dos Estados Combatentes.

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os hostis devem ser eliminados. Os gananciosos são enriquecidos, os ambiciosos são empregados. Os medrosos são abrigados, os competentes são amparados. Os difamadores são silenciados, os críticos são testados. Rebeldes são sujeitados, os violentos são dominados. Os convencidos são criticados, os submissos são acolhidos. Os conquistados são assentados, aqueles que se rendem são libertados. Fortalezas tomadas são mantidas, desfiladeiros tomados são bloqueados, lugares inacessíveis tomados são guarnecidos, cidades tomadas são repartidas, terras são divididas, mercadorias devem ser distribuídas.

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7º Capítulo

A Redenção de Sunzi

Para os chineses, a história é cíclica. Nenhuma dinastia dura pra sempre, bem como as mudanças do mundo dependem das crises. Sima Qian havia analisado isso, devidamente bem, nos seus extensos Registros Históricos. Mas eles eram do século 1 a.C.; depois disso, a dinastia Han ainda durou bastante, mas tinha que acabar – e os fins, em geral, são violentos.

Em torno de 184 d.C., uma série de revoltas abalou a estabilidade da dinastia. Houve uma grave crise no campo, acompanhada de um período de fome. Sabemos que as crises da antiguidade se estabelecem numa espécie de tripé, que seriam fome, guerra e doença. Quando um começa, detona acidentalmente o início os outros, caso o poder institucional não interfira. Ora, a situação que encontramos na China Han deste período era propícia a uma destes caos destruidores; o império estava debilitado por lutas entre facções internas, que na corte dividiam-se entre militaristas, clãs antigos, eunucos e letrados. Este descaso com o campo fomentou uma revolta profunda entre os camponeses, esfomeados e doentes, que

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começaram a se juntar num movimento denominado turbantes amarelos, cuja orientação misturava discursos místicos com reforma social. Rapidamente eles se espalharam, dominando – pela via armada – vastas regiões do país.

Um ministro chamado Cao Cao tentou, inicialmente, dominar a dinastia Han manipulando o imperador, vencendo a insurreição e forçando sua nomeação como primeiro ministro; contudo, acabou promovendo uma tentativa de derrubar o governo, e lançou o país numa divisão total em 206 d.C. Cao Cao era um excelente estrategista, poeta, e leitor ávido de Sunzi. Ele conseguiu abocanhar uma parte do país com ajuda de seu filho, Caopi (outro brilhante general), no qual fundariam depois sua própria dinastia, a Wei. A parte que se pretendeu leal a casa de Han se auto-firmou como dinastia Shu-Han, e era governada por Liu Bei; por fim, uma terceira parte declarou sua independência, se proclamando dinastia Wu, no sul da China. Esta foi a época conhecida famosamente como Era dos Três reinos, na qual as estratégias foram retomadas de maneira intensa, e a guerra tornou-se uma realidade presente por mais de quarenta anos.

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No imaginário chinês, este período da história é marcado por heroísmos inesquecíveis, batalhas épicas e artimanhas infindáveis pelo poder. Cao Cao consolidou-se como uma espécie de arquivilão, um general imbatível, culto e sedutor, mas cujas pretensões eram más. Esta visão não é absolutamente correta, já que ele se tratou de um intelectual interessado e profundo, apesar de ambicioso. Parte de sua indignação e revolta contra os Han foram motivadas pelas vilanias do regime em seu final melancólico. Cao Cao chegou a ser chamado para assumir o governo, mas declinou. Sua figura, complexa, é mais uma dessas cujo julgamento posterior dado pelos historiadores não foi absolutamente gentil ou favorável.

Mas os romances que vêm depois da história precisam definir papéis. Seu principal antagonista, e o grande herói deste período, foi Zhuge Liang (também chamado de Kungming), defensor fiel de Liu Bei. Zhuge era um estrategista igualmente capaz e brilhante, e tanto seus embates contra Cao Cao ou com outros inimigos são conhecidos como aventuras incríveis. As histórias de ambos transformaram-se em contos morais ou de astúcia, e são utilizados até hoje para ilustrar exemplificar inteligência, sagacidade,

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estratégia e habilidade. Para termos uma idéia do fascínio que estas batalhas épicas proporcionaram, por exemplo, veja-se a figura de Guanyu, um dos bravos guerreiros de Shu-Han, que tornou-se um deus, chamado Guandi, defensor da justiça e protetor dos fracos, depois de realizar façanhas incríveis e desaparecer misteriosamente.

Foi este clima de intensos combates entre os três reinos que trouxe de volta a moda das leituras estratégicas, mas contando com o aspecto absolutamente prático da necessidade de vitória. Talvez seja por essa razão que os empates técnicos fossem mais constantes do que as vitórias acachapantes. Todos estes grandes generais da época eram estudiosos, e nenhuma deles levava jeito para trouxa.

Desenvolveu-se, por conta disso, um fenômeno curioso, porém interessante em nossa história, que foi o resgate redentor da obra de Sunzi. Tanto Cao Cao quanto Zhuge Liang o leram, o aplicaram, e como se não bastasse, escreveram seus comentários particulares sobre a obra, levando seu embate para as rodas literárias e para os militares.

O Livro A Lei da Guerra foi considerado o texto perfeito e acabado sobre como lidar com as guerras. Ele simplesmente lançou nas sombras todas as outras obras de estratégia, e

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passou a ser o foco das atenções dos estudiosos de estratégia. Cao Cao, mesmo sendo um letrado extremamente culto – ou exatamente por causa disso – divulgou amplamente a obra, e fez mais: incluiu seus próprios comentários em certos tópicos da mesma, propondo uma edição que foi largamente apreciada. De fato, acredita-se hoje, inclusive, que o formato do livro que temos em mãos é baseado diretamente em sua versão final.

Zhuge não ficou para trás, e fez uma extensa análise da obra, que dividiu-se em vários pequenos livros. Embora menos conhecidos dos que os comentários de Cao Cao, os escritos de Zhuge também foram bastante respeitados e lidos, apesar de suas análises teóricas serem consideradas (embora muito sábias) cansativas. Ou seja, a regra da eficácia e da simplicidade voltava à baila: enquanto Cao Cao deixava seus pensamentos anexados a Sunzi, Zhuge era mais conhecido por suas histórias de heroísmo e bondade do que, propriamente, por seus pensamentos. Que ironia!

O destino trágico destes homens tinha que se encontrar, fatalmente, de um modo ou de outro, e isso ocorreu na terrível e fantástica batalha de Chibi (ou Garganta vermelha), romântica e magistralmente retratada no filme

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de John Woo, A batalha dos três reinos. Envolvendo quase um milhão de guerreiros, forças terrestres e navais, ela foi o exemplo perfeito do jogo da estratégia e da supremacia. Cao Cao foi ao encontro de Shu-Han e Wu. Depois de horas e dias de movimentação, a carnificina começou, e a água se tingiu de vermelho. As espadas e lanças perderam o fio depois de cortar tanta carne, e os corpos flechados tinham mais buracos que peneiras. Corpos calcinados pelos ataques com fogo espalhavam-se pelo rio Yangzi e pelas margens próximas. Uma destruição de características apocalípticas envolveu os três exércitos, mas no final, a superioridade das estratégias navais de Wu prevaleceu, e Cao Cao perdeu a batalha. Pior do que isso, virou o vilão da história. Contudo, ele conseguiu impor respeito às forças adversárias, e manteve o reino de Wei, falecendo por lá em 220 d.C. Zhuge, o grande vencedor, colheu os louros desta vitória grandiosa, mas que na verdade, apenas ratificou limites. Os três reinos continuaram a existir, e a China estava ainda longe de ser reunificada. Alguns anos depois, o mesmo Zhuge Liang estava cansado, e morreu de exaustão no meio de uma campanha com apenas 54 anos.

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A batalha da garganta vermelha foi vencida por meio de um estupendo jogo de estratégias, envolvendo uso de espiões, domínio da meteorologia e da topografia, artimanhas e estratagemas incomuns. Uma das historietas mais famosas deste encontro é a dos barcos de palha. O exército dos aliados de Shu e Wu estava em desvantagem numérica e sem flechas para enfrentar as forças de Cao Cao. Zhuge bolou um artifício engenhoso para roubar munição do inimigo: prevendo que haveria neblina, ordenou a construção de alguns barcos, forrados de palha, que deveriam ir na linha de frente de um ataque simulado. Assim, quando as névoas vieram, Zhuge ordenou que sua frota avançasse, chamando a atenção da guarnição da Cao Cao. Estes reagiram ao suposto ataque, e despejaram milhares de flechas sobre os barcos de palha, sem que conseguissem, de fato, ferir um inimigo sequer e nem ao menos percebessem o engodo. Depois, os aliados recolheram as flechas cravadas na palha e se prepararam para a luta.

Zhuge Liang, pois, manobrou habilmente o uso dos recursos de seu exército, a captura de materiais do inimigo, o ataque com fogo e ainda, o domínio do tempo, prevendo com sutileza mudanças climáticas

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que favoreciam suas forças, inferiores, no curso do combate. Ele demonstrou um domínio e friezas fundamentais para a vitória, mas mais do que isso: seu conhecimento sobre a Lei da Guerra de Sunzi se comprovou superior ao de Cao Cao. Os momentos fundamentais desta batalha foram decididos pela aplicação de alguns capítulos claramente descritos no livro de Sunzi.

Séculos depois, a história destes gênios da estratégia virou um famoso romance, intitulado O Romance dos três reinos (Sanguozhi), que também transformou-se em uma das mais famosas e consagradas óperas chinesas. Existem, ainda, jogos eletrônicos que reproduzem o conflito dos três reinos, nos quais o jogador deve aprender, inclusive, um pouco da história desta guerra, sem o que ele não consegue avançar de fase...

.....

Como comentamos no início deste

capítulo, a história, para os chineses, é cíclica. Depois de alguns séculos de desunião, a China voltou a ser uma unidade pelos Sui (589-618) e depois, pelos Tang (618-907). É muito grande a nossa tentação de achar que, por trás destas grandes reunificações, existem sempre grandes

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líderes que resolveram tudo sozinhos. Como dizem os chineses, porém, os sábios atuam nas sombras – e somente outros sábios podem perceber e entender isso.

Curiosamente, alguns séculos depois das aventuras incríveis dos três reinos, a pungente e irresistível dinastia Tang recebia enviados de todas as partes do mundo. O comércio enviava sedas (e possivelmente, porcelanas) para todas as partes do mundo conhecido; artistas estrangeiros eram representados na cerâmica tricolor da moda; enviados do império romano bizantino e dos árabes postavam-se de joelhos ao imperador Tang, pedindo favores comerciais; e intelectuais proeminentes escreviam comentários para...A lei da Guerra, de Sunzi!

Vamos olhar para o tempo em que os Tang viviam: apesar de cosmopolitas e transculturais, a dinastia tinha que enfrentar alguns problemas reais. Um deles, por exemplo, foi a tentativa de invasão árabe, repelida na terrível batalha de Talas, em 751 d.C. A historiografia ocidental gosta de afirmar que os chineses foram derrotados neste grandioso embate, mas isso é um engano tremendo; na verdade, trata-se de um complexo de culpa, já que os europeus passaram séculos com medo do Islã. De fato, a

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batalha de Talas se tratou de um encontro magnífico entre as forças combinadas do Islã árabe – o que incluía fiéis provenientes da Espanha e da Arábia saudita – contra uma China multicultural, disposta a aceitar qualquer religião, desde que ela não atentasse contra a dinastia estabelecida.

E qual foi o resultado? Nenhum, senão que os chineses se dispuseram a reconhecer o islã como uma religião, contanto que eles aceitassem a lei básica chinesa – o que os muçulmanos fizeram, e sem ceder nenhum território. Se isso for uma derrota, como alguns autores ocidentais afirmam, precisamos, então, rever nossos conceitos de vitória e de sucesso.

A batalha de Talas foi uma das mais importantes do mundo antigo. Ela marca o fim da expansão muçulmana no extremo oriente, assentando o islã principalmente na Índia e na Malásia. Se a batalha de Chibi foi grandiosa, Talas foi simplesmente hiperbólica. Os números contaram-se aos milhões; houve fome nas regiões próximas, por conta da movimentação das tropas; gentes de várias partes do mundo se encontraram, ali, para celebrar a morte. Os islâmicos vieram com sua tradicional cavalaria, veloz, audaciosa, mas levemente armada; os chineses,

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tradicionalmente infantes, lembraram das lições de Liling e posicionaram-se a espera do ataque. Tudo prenunciava a hecatombe mortal, para a qual os chineses estavam, há séculos, preparados com suas estratégias... ou não!

Por motivos politiqueiros, um general coreano, chamado Gao Xianzhi, que entendia bulhufas de estratégia, foi enviado para comandar as forças Tang neste terrível confronto. O lugar da batalha, perto do rio Talas (que emprestou seu nome ao evento) ficava no longínquo Afeganistão, que na época, era parte a rota da seda e tributário dos chineses. Além do exército chinês, Gao chamou uma grande tropa de cavaleiros mercenários da região, que na hora decisiva da batalha viraram a casaca e se jogaram contra ele. Por fim, Gao cometeu uma série de erros, que comprometeram a vitória chinesa e permitiram um empate custoso. Para a intelectualidade chinesa, a impressão que ficou foi a de derrota- ainda que o império Tang não tivesse perdido nenhum território substancial. No entanto, isso motivou um aprofundamento do estudo da estratégia, transformando-se num debate que gerou inúmeros comentários sobre a Lei da Guerra. Na versão que conhecemos hoje do livro, e que incorpora os

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comentários de especialistas de várias épocas (incluindo Cao Cao), quatro deles são autores da dinastia Tang: Jia Ling, Li Quan, Duyou e Dumu. Os dois primeiros são pouco conhecidos, e Li Quan parece ter sido, ainda, um sábio misterioso ligado a práticas exotéricas. Duyou, porém, tinha dezesseis anos quando a batalha de Talas aconteceu, e acompanhou diretamente o evento. Tornou-se um importante conselheiro militar e funcionário da dinastia, e foi seguido por seu neto, Dumu, nos estudos da estratégia.

O que estes pensadores faziam, no geral, era aceitar o texto de Sunzi, mas tecendo apontamentos sobre questões que julgavam dúbias ou mal esclarecidas. Seu questionamento básico era: se Sunzi era tão claro, porque alguns generais não conseguiam aplicá-lo? Baseados nesta premissa, estabeleceu-se a relação dos debates e fragmentos de comentários que recheiam a obra, orientando o leitor nos mais diversos sentidos. Chega a ser divertido quando um autor discorda do pensamento de outro, o que mostra que a inclusão destes pensamentos foi sendo feita gradualmente, de modo que um pudesse ler, analisar e ponderar sobre os apontamentos do antecessor.

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Durante a dinastia Song (907-1278), este processo continuou, e mais cinco comentadores adicionaram seus nomes ao texto de Sunzi. O primeiro, Zhangyu, era realmente um especialista em artes militares e um historiador de heróis guerreiros e generais; Mei Yaochen era um literato, encarregado de organizar a biblioteca imperial, e um leitor curioso da obra; Wangxi era um historiador de mão cheia, e funcionário público capacitado; Chen Hao foi um general magnífico, astuto e vencedor; por fim, um tal Hoyanxi aproveitou a deixa e legou alguns comentários para obra –e é só isso que sabemos sobre sua figura. Tanto estudo parecia indicar a invulnerabilidade chinesa no campo da guerra e do pensamento marcial. A descoberta da pólvora, amplamente usada entre os Song, parecia garantir uma supremacia incontestável. Durante esta dinastia, escreveu-se, inclusive, a primeira enciclopédia de armas (Wujing Zongyao, de Zeng Gongliang), que continha catapultas, barcos armados, explosivos, lança-chamas, protótipos de canhões, flechas incendiárias, etc. incorporando milênios de experiências no campo militar (neste mesmo catálogo é que aparece, pela primeira vez, a fórmula definitiva da pólvora). Outro livro de estratégias, de

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autor desconhecido, surgiu neste mesmo momento, sendo chamado de Cem estratégias incomuns. Trata-se de um catálogo de estratégias diferentes das usuais, criativas, inovadoras, que estavam presentes nos livros de estratégia desde Sunzi.

Contudo, existe uma “regra” na história chinesa que, usualmente, pode valer para outras histórias do mundo. Quando esta civilização começa a escrever bastante sobre um determinado tema, ou é porque este assunto é pouco conhecido, ou é porque ele está sendo esquecido. No caso dos Song, todos estes estudos militares nos mostram que o governo estava pouco interessado, de fato, em questões marciais. Os Song foram displicentes nos seus cuidados militares, seu exército não era grande e nem bem preparado, e geralmente se contratavam mercenários para realizarem missões punitivas e/ou oficiais.

Por causa disso, os chineses ficaram embasbacados e surpresos quando, numa manhã assustadora, estava lá Gengis Khan e sua turma, vindo das estepes mongólicas, para sitiar Beijing e o restante do país. Gengis adorava a guerra, e seu desejo era o de transformar a China numa grande estepe. Ele era, porém, um líder brilhante e inteligente, além de conquistador nato. Rapidamente

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percebeu que seria muito mais vantajoso manter a China sob seu domínio do que destruí-la. Assessorado por um sábio chamado Yeluchucai, Gengis construiu as bases para uma nova dinastia sino-mogólica (os Yuan, 1280-1368), e estudou detalhadamente os manuais de guerra e estratégias chineses. Uma contradição latente, mas o dominado ensinava ao conquistador novos modos de lutar. Quando as hordas mongóis atacaram a Ásia central, a Rússia e a Europa, levaram consigo armas, maquinário e estratégias chinesas, que lhes granjearam a fama de invencíveis.

De qualquer maneira, a fama de Sunzi estava absolutamente consolidada daí por diante, e ele se transformou no grande nome da estratégia na história chinesa.

Fragmentos de Sunzi comentados (optei aqui por utilizar um capítulo inteiro, Sobre o uso de espiões, para ilustrar as passagens dos comentaristas) Sunzi disse: Quando se forma um exército de cem mil homens, e ele é enviado para uma terra distante, as despesas do povo e do governo

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ultrapassam mil moedas de ouro por dia. Haverá comoção no país e no exterior, as pessoas ficarão esgotadas pelas requisições de aprovisionamento e a vida de setecentas mil casas será alterada. Cao Cao: Antigamente, oito famílias constituíam uma comunidade. Quando um homem de uma família ia para a tropa, os outros sete contribuíam para a sua manutenção. Portanto, quando se constituía um exército de cem mil, os que ficavam para semear e arar os seus campos correspondiam a setecentos mil lares. Aquele que persegue a vitória durante muitos anos numa batalha decisiva, mas deseja apenas riquezas, postos ou honrarias, é um ignorante desumano. Não é um general, nem mesmo um apoio do soberano ou um mestre da vitória. Um governante esclarecido e um general sábio são vencedores porque suas ações se baseiam em sua vidência. Ho Yanxi: A seção dos Ritos de Zhou designada “Oficiais Militares” nomeia o “Chefe de assuntos particulares do governo”.

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Este oficial, possivelmente, dirigia as operações secretas em outros países A vidência não pode ser alcançada por meio de espíritos, nem deuses, nem por analogia com o passado, nem mesmo por cálculos; depende, exclusivamente, dos homens que conhecem o inimigo. Existem cinco tipos de espiões: o espião nativo, o espião interno, o agente duplo, o espião dispensável e o espião vivo. Quando estão todos em atividade, ninguém sabe onde estão operando; são chamados de “trama celeste”, e são um dos tesouros do soberano. Os espiões nativos são camponeses do povo inimigo a serviço do nosso exército. Os espiões internos são oficiais inimigos empregados em nosso exército. Dumu: Entre os oficiais, há homens de valor a quem foram retirados comandos; outros, tendo cometido faltas, que foram castigados. Há também os bajuladores e aduladores, que só ambicionam riquezas. Há ainda outros injustamente em postos baixos, os que não conseguiram lugares de responsabilidade e aqueles cujo único fito é o de se aproveitarem dos tempos perturbados para pôr em prática as suas capacidades. Há, ademais, indivíduos

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de duas caras, dúbios e enganosos, sempre à espera de oportunidades. Quanto a estes, será fácil indagar da sua situação econômica, pagando-lhes a seguir generosamente com ouro e seda e submetê-los à tua vontade. Poderás então encarregá-los de indagar da verdadeira situação no seu país e vires a conhecer os planos que contra ti existem. Podem igualmente abrir brechas entre o soberano e os seus ministros, quebrando-lhes a harmonia. Os espiões duplos são espiões inimigos que empregamos em nosso exército. Li Quan: Quando o inimigo envia espiões para observar o que faço e o que não faço, suborno-os com largueza, viro-os para o meu lado e torno-os meus agentes. Os espiões dispensáveis são espiões nossos a quem entregamos, de propósito, informações falsas. Duyu: Fazemos constar informações na realidade falsas, que deixamos os nossos agentes dar a conhecer. Estes, atuando em território inimigo, serão capturados e as transmitirão certamente. O inimigo vai

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aceitá-las como boas e procederá de conformidade com elas. As nossas ações evidentemente não corresponderão e os espiões serão condenados à morte. Zhangyu: Durante a nossa dinastia, o chefe do Estado-Maior, Cao, perdoou um homem condenado, disfarçou-o de monge, obrigou-o a engolir uma bola de cera e mandou-o para Tangut. Mal o falso monge lá chegou, foi logo aprisionado. Contou aos seus captores a história da bola de cera e, pouco depois, evacuou-a. Abrindo-a, Os Tanguts encontraram lá dentro uma carta do chefe do Estado-Maior, Cao, para o seu dirigente de planejamento estratégico. O chefe bárbaro ficou altamente enfurecido e mandou matar não só o ministro, como o suposto monge. Era este o esquema. É evidente que os agentes dispensáveis apenas podem ser empregues uma vez. Por vezes, o envio de agentes ao inimigo para tratarem de alianças cobre um ataque que efetuo pouco depois. Espiões vivos são aqueles que voltam com informações sobre o inimigo. Duyu: Escolhem-se homens espertos, talentosos, inteligentes e, com fácil acesso àqueles que privam com o soberano ou

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elementos da nobreza. Poderão assim ficar a conhecer o que fazem e quais os seus planos. Uma vez conhecida a situação real, regressam e informam-nos. Por isso são chamados agentes «vivos». Dumu: Trata-se de pessoas que podem ir e voltar apresentando relatórios. Para agentes vivos temos de contratar homens inteligentes que pareçam estúpidos, que se mostrem moles, mas sejam de coração duro, e ainda ágeis, vigorosos, resistentes e corajosos, conhecedores de coisas baixas, capazes de agüentar a fome o frio, a porcaria e a humilhação. No exército, os espiões devem ser íntimos do comandante. Devem ter os melhores prêmios; seus assuntos são totalmente confidenciais. Mei Yaochen: Os agentes secretos recebem as suas instruções na própria tenda do general, a quem são chegados e íntimos. Dumu: Trata-se de assuntos «segredados ao ouvido». Quem não for sábio ou esperto, humano e justo, não pode usar espiões. Quem não for delicado e sutil não vai conseguir nenhuma informação deles.

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Dumu: Começa-se por estudar o caráter do espião para se apurar se é sincero, verdadeiro e, de fato, inteligente. Só depois poderá ser empregue... Entre os agentes, alguns há que apenas querem riqueza, sem perderem tempo a avaliar a verdadeira situação do inimigo, e limitando-se a usar palavras ocas. Em tais alturas, tenho de ser subtil e profundo para poder separar a verdade da falsidade nos seus relatos e discriminar o que é válido daquilo que o não é. Mei Yaochen: Cuidado, não tenha o espião vira-casaca. O uso da espionagem é um tema delicado, muito delicado! Não existe lugar em que a espionagem não possa ser empregada. Se os planos vazarem antes, os espiões e todos com quem ele falou devem ser executados. Chen Hao: eles devem ser todos mortos, para tapar sua boca e evitar que os inimigos os ouçam. Quando se quiser atacar um exército, sitiar uma cidade, assassinar uma pessoa, deve-se conhecer os nomes dos comandantes, dos oficiais, dos guardiões, dos pajens e dos

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guardas pessoais. Os espiões devem saber instruídos ao máximo nestes detalhes. Dumu: Se deseja praticar uma guerra ofensiva, tem de conhecer os homens do inimigo. São sábios ou estúpidos, espertos ou tapados? Conhecedor das suas qualidades, tome as medidas adequadas. Quando o rei de Han mandou Hanxin, Cao Can e Guan Ying atacar Weibao, perguntou-lhes: «Quem é o comandante-chefe de Wei?» A resposta foi:”Bozhi”. O rei declarou então: «Ele acabou de desmamar! Não se pode comparar com Hanxin. E quem comanda a cavalaria?» A resposta foi: «Feng Ching.» O rei declarou: «É filho do general Feng Wuzhi, de Qin. Tem valor, mas não se iguala a Guan Ying. E quem comanda a infantaria?» A resposta foi: «Xiangde.» O rei declarou: «Não está à altura de Cao Can. Nada tenho com que me preocupar. » É indispensável descobrir os espiões que trabalham para o inimigo; suborna-os, e tente fazê-los passar para o seu lado. Cuide bem deles, e oriente-os. Eles se tornarão espiões duplos. Os espiões duplos são aqueles que aliciam espiões nativos e internos.

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Zhangyu: Isto porque o agente duplo sabe quais são os seus conterrâneos com ambições e quais os oficiais que têm sido esquecidos nos seus postos. Estes podem ser atraídos pau o nosso serviço. Por meio deles, podem ser enviados espiões dispensáveis, com informações erradas, para o seio do inimigo. Zhangyu: Sabendo os agentes duplos em que pontos o inimigo pode ser iludido, somente com o seu apoio nos podemos servir dos dispensáveis com falsos dados. Por meio deles, pode-se também empregar os espiões vivos, quando for necessário. O soberano deve conhecer pormenorizadamente as atividades de seus cinco tipos de espiões. Este conhecimento advirá dos espiões duplos, e por esta razão eles devem ser tratados com o máximo de atenção. Nos tempos antigos, a dinastia Yin ascendeu graças a Yi Chih, que antes servia aos Xia; e os Zhou chegaram ao poder graças a Luyu, servo dos Yin. Zhangyu: Yi Chih era um ministro de Xia que se passou para Yin. Luyu, um ministro de Yin que se passou para Zhou!

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Somente um soberano sábio e um general habilidoso são capazes de utilizar pessoas inteligentes como espiões, e empregá-los com, garantido a realização de grandes feitos. As operações secretas são fundamentais na guerra, e delas dependem a movimentação do exército. Jialin: Um exército sem agentes secretos é como um homem sem olhos e sem ouvidos. (adaptado de André Bueno A Arte da Guerra. São Paulo: Jardim editorial, 2010 e Samuel Griffith A Arte da Guerra. Lisboa: Europa América, s/d)

Fragmentos das obras de Zhuge Liang As condições para se vencer uma guerra Diz um livro antigo: "Os que desprezam as pessoas cultas não têm meios para conquistar completamente o coração de ninguém. Os que desprezam as pessoas comuns não têm meios para fazer ninguém trabalhar com todo o afinco". Para as operações militares é importante procurar conquistar o coração dos heróis, criar

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regras estritas de recompensas e punições, incluir as artes culturais e marciais e combater com técnicas duras e também flexíveis. Aprecie as amenidades sociais e a música. Familiarize-se com a prosa e a poesia. Ponha a humanidade e a justiça na frente da sagacidade e da bravura. No silêncio, fique tão quieto quanto um peixe em águas profundas; em ação, seja tão rápido quanto uma lontra. Dissolva as tramas inimigas; divida suas forças. Deslumbre o povo com seu estandarte; alerte as pessoas com pratos e tambores. Ao recuar, assemelhe-se a uma montanha em movimento; ao avançar, assemelhe-se a uma tempestade de chuva. Ataque e esmague com força destruidora; entre em combate como um tigre. Pressione e detenha os inimigos; atraia-os para desviá-los. Confunda-os para capturá-los. Seja humilde, para fazê-los orgulhosos. Seja franco, mas distante; enfraqueça-os, emprestando-lhes força. Dê segurança aos que estiverem em perigo; acalme os que estiverem com medo. Se as pessoas se opuserem a você, leve suas palavras a sério. Se têm ressentimentos, deixe-as expressarem-nos.

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Contenha os fortes, ampare os fracos. Conheça os que têm planos; encubra qualquer calúnia. Quando houver despojos, distribua-os. Não confie em sua força nem dê pouco valor ao adversário. Não seja convencido por sua competência, nem faça pouco caso dos subordinados. Não deixe que os favores pessoais interfiram na autoridade. [...] Agindo assim, pode-se ganhar uma guerra sem matar ninguém. Os cinco males Há cinco tipos de males que provocam a decadência das tropas. O primeiro é a formação de facções que conspiram para o assassinato de homens reputados, criticando e difamando os sensatos e os bons. O segundo é o luxo nos uniformes, estimulando a inveja. O terceiro são as absurdas falsidades e confabulações a respeito do sobrenatural. O quarto é o julgamento baseado em opiniões particulares, que mobiliza grupos por razões pessoais. O quinto são as alianças secretas com os inimigos, para descobrir onde há vantagem.

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Todas as pessoas que assim agem são traiçoeiras e imorais. Afaste-se delas e não se associe com elas. Conhecer as pessoas Nada é mais difícil de entender do que a natureza das pessoas. Embora o bem e o mal sejam diferentes, muitas vezes eles se parecem há gente que parece honesta, mas rouba; que fingem ser dignos, mas desprezam os outros; valentes por fora, mas covardes por dentro; alguns esforçados, mas desleais. É difícil saber a diferença, mas há meios para isso; O primeiro é fazer-lhes perguntas sobre o que é certo e errado, para observar suas idéias. O segundo é esgotar todos os seus argumentos, para ver como reagem. O terceiro é consultá-las sobre estratégias, para ver se são espertas. O quarto é anunciar que está havendo encrenca, para ver se são corajosas. O quinto é embebedá-las, para observar sua natureza. O sexto é apresentar-lhes a perspectiva de ganhos, para ver se são modestas.

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O sétimo é lhes dar uma tarefa com prazo, e ver como se saem, para saber se merecem confiança. Sobre os generais Há nove tipos de generais. Os generais humanitários comandam com virtude, trata todos com a mesma cortesia, sabem quando os soldados estão com frio e com fome e notam quando estão exaustos e magoados. Os generais conscienciosos não procuram fugir a nenhuma tarefa, não se deixam influenciar pelo lucro e preferem morrer com honra a viver na desonra. Os generais amáveis não são arrogantes por causa de sua alta posição, não dão excessivo valor a suas vitórias, são sábios, mas sabem ser humildes, são fortes, mas tolerantes. Os generais espertos têm insondáveis recursos extraordinários, reações e movimentos multifacetados, transformam a desgraça e prosperidade e arrancam a vitória das garras do perigo. Os generais fiéis dão generosas recompensas para quem avança e aplicam severas penalidades em quem recua, recompensam

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imediatamente e punem igualmente todos os postos, até mesmo os mais altos. Os generais de infantaria andam a pé ou a cavalo, com ânimo para enfrentar cem homens e são peritos no uso de armas de curto alcance com espadas e lanças. Os generais de cavalaria enfrentam as alturas vertiginosas, atravessam os desfiladeiros perigosos, atiram a galope como se estivessem em fuga, ficam na vanguarda quando avançam e na retaguarda quando recuam. Os generais ferozes com sua coragem fazem os exércitos tremer com sua determinação, fazem pouco de inimigos poderosos, são hesitantes para travar lutas fúteis e corajosos no meio de batalha importantes. Os grandes generais consideram-se ineficientes quando visitam os sábios, seguem bons conselhos como a uma corrente, são magnânimos e, contudo capazes de firmeza, são simples, mas têm muitas estratégias. (adaptado de Thomas Cleary, O conhecimento da arte da guerra. São Paulo: Gente, s/d)

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8º capítulo

As 36 estratégias e Liuji

O final da dinastia mongol foi melancólico. Depois te terem conhecido grandes imperadores e fazerem parte de um império mundial, os mongóis haviam se acostumado com a indolência das cortes, e sua poderosa cavalaria era uma vaga lembrança do passado. Incapazes de controlar o vasto território de seus domínios com uma força numericamente exígua, eles foram obrigados a terceirizar, gradualmente, suas forças armadas com chineses, coreanos e tribos do norte asiático. Fracassaram de modo vergonhoso ao invadir o Japão, e apanharam nas selvas do Vietnã. Por fim, abandonaram aos poucos as lidas militares, e no final, quando estourou a revolta chinesa contra a dinastia, estes antes tão orgulhosos cavaleiros foram expulsos vergonhosamente do país a pé, por debaixo da grande muralha.

A dinastia que se seguiu, a Ming (1368-1644), foi o último período imperial de poder legitimamente chinês. Um forte senso militarista se estabeleceu entre os novos governantes, que de início deram um incentivo geral a reforma das forças armadas. Neste

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período, testemunha-se um grande avanço nas técnicas militares – a difusão do canhão, por exemplo – e mesmo um desenvolvimento da tecnologia naval, como foi o caso da famosa armada de Zheng He, que em torno de 1420-40 pode ter chegado a América, depois de realizar um vasto périplo pela África, Ásia e Oceania. No campo da estratégia, três contribuições destacam-se neste período: primeiro, as Lições da Guerra de Liuji, um ex-funcionário da corte mongol que mudou de lado e serviu no início do governo Ming; o aparecimento das Trinta e seis estratégias, livro misterioso e sucinto, mas que se tornou um sucesso de divulgação tanto nos meios cultos quanto populares; por fim, a iniciativa dos governantes Ming de criarem uma grande coleção de livros oficiais, juntando todo o material literário das dinastias anteriores, nos quais se incluíam os clássicos dos estrategistas. Graças a esta última política cultural, muitos destes livros que estavam dispersos foram novamente recolhidos e publicados, sendo dados novamente a conhecer.

Os Ming não eram apenas traumatizados com as perdas históricas da cultura chinesa tradicional durante o período mongol, mas tinham um receio recorrente quanto aos estrangeiros – fossem eles

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bárbaros do norte, já conhecidos, ou novos intrusos, como era o caso dos europeus que começaram a aparecer em suas praias e portos. Estes brancos estranhos e tão diferentes eram agressivos, tinham tecnologias curiosas e hábitos muito diferentes. Sua presença marítima nos mares asiáticos era audaciosa, mas bastante ativa e determinada. Os povos do oeste (portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses) negociaram de vários modos – às vezes por meio de guerras, às vezes pela diplomacia – sua presença junto ao mundo chinês, e representavam um novo desafio militar para a dinastia. Os Ming eram capazes de resistir militarmente a estas presenças incômodas em seu território, mas perceberam, rapidamente, que a China estava começando a perder a corrida tecnológica na história mundial.

De fato, em torno dos séculos 15 e 16, os chineses começaram a desenvolver uma atitude, diante do mundo, extremamente perigosa para sua própria sobrevivência. O império Ming, receoso de que as incursões estrangeiras pudessem prejudicar sua continuidade histórica, política e cultural, iniciaram um projeto de fechar a China aos visitantes estrangeiros, minimizando a entrada de elementos estranhos a sua sociedade.

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Principalmente no século 16, quando os portugueses chegaram às costas do país, e tentaram instalar-se em Macau, suas primeiras tentativas de enfrentar a dinastia culminaram com derrotas fragorosas para os chineses. A China ainda tinha um poderio equivalente ao dos europeus, além da vantagem numérica; conheciam a técnica de artilharia, e seu potencial naval não era desprezível, mas prefeririam isolar-se dos outros países, limitando o comércio exterior a alguns portos, principalmente pelo receio de que novas idéias entrassem no país. Tal atitude mostra, desde já, que os Ming acreditavam, equivocadamente, que poderiam encontrar todas as respostas para suas necessidades de sobrevivência no passado, nos antigos escritos, na sabedoria tradicional. Desprezando as novas tecnologias, os Ming não podiam conceber os avanços que se desenvolviam na Europa, e fechavam-se perigosamente aos rumos da geopolítica mundial da época. Mesmo a política de salvação das obras do passado, como vimos, é um sintoma disso.

Para termos uma idéia do desenrolar desta política eremítica da China, podemos acompanhar alguns exemplos marcantes. Um deles foi o abandono das técnicas marítimas desenvolvidas na época das viagens do

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almirante Zheng He, e a ordem para esvaziar as praias chinesas de habitantes (e por causa disso, pescadores e comerciantes portuários passaram a ser mal vistos). Por outro lado, este período é o auge do Templo Shaolin, centro das artes marciais chinesas - que apesar de não ser tão milenar como se supõe, já que os Ming eram seus grandes patrocinadores – era considerado, principalmente, um grande perpetuador das tradições militares chinesas, com seus monges peritos na arte do combate clássico, o wushu (arte marcial) ou kungfu (habilidades de combate). Ora, não demorou muito para que estas políticas equivocadas surtissem seu efeito negativo; já no século 16, os piratas japoneses (chamados wako) infestaram as costas chinesas, saqueando cidades, fazendo escravos e contrabando. Desprovidos então de sua marinha, os Ming conceberam um plano que julgavam genial: formaram um grupo de lutadores de Shaolin para perseguir e enfrentar os wako quando estes estivessem em terra firme. Foram muitos os combates heróicos, até que... os monges foram todos mortos! Quem acabou resolvendo o problema foram os portugueses: em troca da concessão de Macau, eles aceitaram formar uma flotilha para perseguir os piratas e destruí-los, o que fizeram de modo eficaz. Esta

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história mostra o quanto a dinastia, por mais militarizada que fosse, estava fragilizada em suas bases, por manter-se desatualizada dos acontecimentos do restante do mundo.

E o que já era ruim ainda podia piorar; dentro desta mentalidade canhestra, os Ming começaram a conceber bobagens, tais como achar que pelos simples fato de canhões serem armas eficientes, eles poderiam pintar janelas para falsos canhões nas muralhas ou torres, e isso seria suficiente para afastar os inimigos! Não é preciso dizer que o fim dos Ming, em 1644, foi mais uma grande trapalhada histórica, misturada com um erro estratégico terrível, do que propriamente uma incapacidade de realizar guerras de modo efetivo. Envolvidos por uma rebelião interna, os Ming resolveram pedir ajuda aos jurchen, uma tribo mongólica que servia de mercenária na fronteira, para que combatessem os rebeldes. Ora, os jurchen simplesmente aproveitaram a chance, entraram no país como convidados, deixaram que as tropas imperiais de digladiassem com os rebeldes e por fim, quando ambos estavam cansados e destruídos, atacaram-nos e tomaram o poder para si, fundando a última dinastia imperial chinesa, os Manchu, que durou até 1911. Esta era a prova definitiva de que os Ming haviam

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abandonado, por completo, um estudo sério das estratégias.

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Voltemos então a Liuji e suas Lições da

Guerra. Para começar, Liu era um vira casaca, que havia servido aos mongóis e depois, passou-se para o lado do primeiro soberano Ming. Tinha fama de ser honesto, dedicado e leal (o que, na biografia de alguém que muda de lado, é algo interessante a ser explicado). Apesar de ser um estrategista, tal como Sunbin e Wuzi, acabou sendo enganado, passou por uma intriga e quebrou a cara. Liuji teve a sorte de morrer de desgosto, sem perder qualquer pedaço do corpo.

O livro de Liu é um exemplo perfeito e acabado do que seria a mentalidade reacionária e saudosista da dinastia Ming. Suas Lições da Guerra trata-se de uma coletânea de histórias de batalhas ou artimanhas estratégicas que serviriam de exemplo para um bom general aprender a comandar seus exércitos e ganhar guerras. Até a estrutura do livro se parece com as Crônicas dos Estados Combatentes (Zhanguoce), de que falamos anteriormente, e que trata apenas destas histórias de cunho estratégico e

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guerreiro. No entanto, o livro de Liuji recolhe episódios da história chinesa acontecidos até a época Tang, e nisso ele não tem originalidade alguma. Podemos perceber que sua tentativa consistiria, na verdade, em demonstrar que o passado contém os exemplos necessários para a resolução dos problemas atuais, como se baseados numa sabedoria estratégica perene e imutável. A partir da apresentação de fragmentos dos livros de estratégia mais antigos – principalmente a Lei da Guerra, de Sunzi – ele nos conta uma história que ilustra como aplicar determinado estratagema em certa circunstância. É um livro fácil e rápido de ler, mas nada inventivo. Todavia, devemos ressaltar que, para a mentalidade da época, o texto se apresentava como absolutamente pertinente e mesmo, necessário. Embora não tenha tido grande alcance, permitiu que Liuji fosse incluído entre os estrategistas clássicos da China, tendo sua obra preservada.

Bem mais popular que o livro de Liuji, porém, foi o livro das Trinta e seis estratégias. Apesar de ser considerado bem mais antigo, este sucinto texto foi divulgado, na verdade, na época Ming, principalmente depois da iniciativa da biblioteca imperial. E no que ele consiste? Numa simples apresentação de 36

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frases, cada qual contendo um significado estratégico a ser desvendado.

A bem da verdade, ele nem chega a ser um livro, sendo mais um panfleto ou uma lista de frases a serem decoradas, mas seu impacto no imaginário e na literatura chinesa foram incomensuráveis. Talvez por serem de fácil apreensão (embora o entendimento de seus sentidos seja objeto de um estudo aprofundado), ou pelo próprio texto ser extremamente sintético, as Trinta e seis estratégias alcançaram uma difusão só comparável a de Sunzi – ou ainda maior, se pensarmos que elas caíram no gosto popular, e muitas de suas frases viraram provérbios bastante citados.

O livro começa com um parágrafo obscuro: “seis por seis dá trinta e seis. Calcular oculta a estratégia. A estratégia é um cálculo bem feito. Aprenda a calcular e saberá que estratégia utilizar. Elas são objetivas e diretas, e não teóricas ou subjetivas”. É possível que o número seis refira-se aos hexagramas do Tratado das Mutações (Yijiing), provavelmente o mais antigo dos livros chineses, e que trata da ciência e dos oráculos mais antigos desta civilização. O hexagrama era um conjunto de seis linhas positivas (yang) ou negativas (yin) que davam sentido a uma

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previsão. O misterioso e anônimo autor das Trinta e seis estratégias (alguns atribuem sua autoria a um antigo general Song, chamado Tan Daoji, mas nada disso é confirmável) possivelmente quis fazer um jogo como número seis e a possibilidade de calcular o desfecho de uma situação, apresentando então uma estratégia mais apropriada para o evento em questão. Aproveitando o ensejo, o livro ainda está organizado em seis grupos de seis frases, que sistematizam o seu aprendizado e memorização.

Curiosamente, a estratégia mais famosa de todas é a trinta e seis, que diz: “a melhor estratégia é fugir”. Ela se tornou numa espécie de equivalente popular do nosso “quando um não quer, dois não brigam”. Maozedong, o grande líder chinês, também fez uso dela quando ainda era guerrilheiro, na famosa Longa Marcha, ao fugir das tropas republicanas de Chiang Kaishek. Evitar um combate quando não se pode vencer é sabedoria, e não covardia.

No entanto, as outras estratégias são mais enigmáticas, se não forem devidamente explicadas: a vinte sete, por exemplo, não é tão difícil: “finja-se de louco mas fique esperto” é compreendida por meio de uma piada famosa, que tem origem na tradição popular chinesa.

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Um homem aparentemente louco servia de piada num bar, em que o mandavam escolher entre uma moeda de cobre e outra de prata; e ele invariavelmente pegava a de cobre, de menor valor. Um cavalheiro se compadeceu do homem e, lhe puxando num canto, disse: “escute, estes homens te avacalham todo o dia; porque você não pega a de prata, que vale muito mais?”; ao que o suposto louco respondeu: “é, mas no dia que eu pegar a de prata, a brincadeira acaba”. A primeira estratégia, em compensação, é indecifrável: “enganar o céu para atravessar o oceano” significa, na verdade, usar de recursos que desviem a atenção do público para cumprir um outro plano maior. A segunda, “sitiar Wei para salvar Zhao” também só pode ser entendida se possuirmos algum conhecimento sobre história chinesa. Trata-se de um acontecimento da época dos Estados combatentes, quando Sunbin ajudou a salvar o reino de Zhao através de um estratagema simples: como Wei atacava Zhao, este pediu ajuda ao reino de Qi, cujo estrategista principal era Sunbin, que enviou suas forças para atacar a capital de Wei, e não para dar-lhes combate direto em Zhao. Quando os generais de Wei souberam que um exército se dirigia para sua terra, levantaram o cerco de Zhao e se foram.

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Sunbin conseguiu, assim, libertar Zhao. Ele aproveitou ainda a oportunidade e fez uma emboscada, no meio do caminho, para as tropas de Wei, que estavam fatigadas da marcha forçada para sua terra, e foram totalmente humilhadas. Assim, sem nunca ter sitiado de fato a capital de Wei, Sunbin conseguiu libertar e conquistar o apoio de Zhao, além de impor respeito junto a Wei. Vemos, por estes breves exemplos, que as Trinta e seis estratégias são, na verdade, um conjunto rico de pensamentos da sabedoria chinesa, cujo valor aplica-se não somente na guerra mas mesmo, na vida cotidiana. Seu sucesso deve-se a esta possibilidade única de dialogar com várias camadas da sociedade, apresentando-se como um texto fácil de guardar, mas que exige uma proveitosa discussão para ser compreendido em toda sua extensão.

A vasta literatura que os Ming recolheram e deixaram a sua disposição não fez, contudo, com que eles se tornassem mais sábios. Ao contrário, eles parecem ter esquecido o que já dizia o início das Trinta e seis estratégias: quem sabe calcular, sabe que estratégia utilizar; elas são objetivas, e não teóricas. Mas em seus delírios saudosistas, os Ming ficaram a repetir a cantilena do passado

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ideal, e com isso, perderam o contato com a realidade. Não souberam planejar nem cuidar dos riscos, e sua intransigência contra uma renovação cultural fez com que um povo muito mais atrasado tecnologicamente – os manchus - acabassem tomando o poder. As conseqüências disso seriam trágicas para o futuro da China dali por diante...

Fragmentos das Lições de Guerra de Liuji

Como simular uma emboscada Disse Liuji: Na guerra, se estiver destituído de poder, aparente abundância de tal maneira que os inimigos não consigam saber se, na verdade, você é fraco ou forte. Então hesitarão em lutar contra você, que poderá manter suas forças intatas. A regra é: "Quando os adversários não querem lutar contra você, é porque pensam ser contrário aos próprios interesses ou porque você os levou a pensar assim" (Sunzi). Durante a era dos três reinos, Zhuge Liang, general do reino de Shu, designado para uma das passagens mais estratégicas na fronteira

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com o reino de Wu, ficou sozinho para guardar a fortaleza com dez mil soldados, quando os outros generais Shu levaram seus exércitos para o sul. Sima Yi, general do reino de Wei, levou vinte mil soldados para atacar Zhuge Liang. Quando estavam a cerca de quarenta quilômetros do posto avançado Shu, Sima Yi enviou batedores para fazer o reconhecimento. Quando os batedores voltaram, disseram que Zhuge Liang tinha poucos soldados na cidadela. Enquanto isso, Zhuge Liang também ficou sabendo da chegada iminente do exército Wei. Temia ser atacado e queria chamar de volta um dos outros generais Shu, que saíra mais cedo com suas tropas. Entretanto, já estavam muito longe e não havia nada que pudessem fazer para ajudar. Os comandantes e oficiais defensores Shu tremeram de medo, pois nenhum deles sabia o que fazer. Zhuge Liang, entretanto, permaneceu calmo. Ordenou aos soldados que arriassem as bandeiras, guardassem os tambores de guerra e ficassem o maior tempo possível dentro da fortaleza. Mandou abrir todos os portões da cidade fortificada e limpar as ruas. Sima Yi, o general Wei, pensava que Zhuge Liang estivesse sendo cauteloso. Quando viu

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essa aparente fraqueza, suspeitou que houvesse soldados escondidos de tocaia. Por isso levou suas tropas de volta para as montanhas ao norte. No dia seguinte, à hora da refeição, Zhuge Liang riu com seus auxiliares, dizendo: - Sem dúvida Sima Yi pensou que eu estava apenas simulando fraqueza e havia armado emboscadas, por isso correu para as montanhas! Conhecendo o oponente Disse Liuji: Na guerra, quando os adversários são disciplinados em seus movimentos e estão bem afiados, ainda não é a ocasião de lutar contra eles. É melhor fortificar sua posição e aguardar. Espere que percam energia depois de ficar alerta por muito tempo. Então, levante-se e ataque-os. Não deixará de ganhar. A regra é: "Demore-se até que os outros se enfraqueçam" (Primavera e Outonos de Confúcio). No início da dinastia Tang (618-905), seu fundador Gaozu fez uma campanha contra um déspota que assumira o controle territorial no fim da dinastia Sui anterior (588-618). Quando o Gaozu cercou o déspota na antiga

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capital do leste, o líder de uma rebelião camponesa simultânea trouxe todos os seus seguidores para socorrer o déspota Sui. Entretanto, Gaozu bloqueou o exército camponês em um distante desfiladeiro montanhoso chamado "Reduto militar". Quando o exército camponês reuniu-se a leste do rio, estendendo-se por quilômetros, todos os comandantes do exército de Gaozu ficaram amedrontados. Gaozu em pessoa cavalgou até o cume da montanha, com alguns cavaleiros, para observar o exército camponês. Ao ver o povo, ele falou: "Essa multidão nunca enfrentou um adversário importante e agora está atravessando uma estreita garganta de maneira caótica, sem disciplina militar. O fato de se reunirem perto da cidade significa que fazem pouco de nós. Creio que se nossas forças não devem se mover e esperar até que os camponeses desanimarem. Depois de ficarem longo tempo em campo, os combatentes ficarão famintos e, com certeza, recuarão por vontade própria. Se então atacarmos enquanto procuram cair fora, teremos garantido nossa vitória". O exército camponês permaneceu em formação de combate desde antes da madrugada até depois do meio-dia. Os combatentes ficaram famintos e cansados e

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começaram a olhar em volta e a brigar por causa de comida e bebida. Gaozu mandou um de seus comandantes levar trezentos guerreiros montados para o sul, a fim de passar galopando pelo flanco oeste da multidão, dando-lhe estas instruções: "Se a multidão não se movimentar quando você fizer a investida, pare e volte para cá. Se perceber movimento, vire-se e ataque pelo leste". Quando os cavaleiros passaram galopando, os camponeses se movimentaram e Gaozu deu ordem para atacar. Desceram a encosta da montanha até o vale, seguindo para leste e atacando os insurgentes por trás. O líder dos camponeses, que já fora oficial militar, afastou seus combatentes, mas antes que se reagrupassem, o imperador atacou-os com tropas montadas ligeiras, dizimando-os onde quer que fossem. A multidão espalhou-se pelos quatro ventos e o líder foi capturado vivo, sendo executado mais tarde na capital do novo império Tang, em 621. (adaptado de Thomas Cleary, O conhecimento da Arte da Guerra. São Paulo: Gente, s/d)

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As 36 estratégias 1. Enganar o Imperador e Atravessar o Mar. 2. Sitiar Wei para Salvar Zhao. 3. Matar com uma Faca Emprestada. 4. Aguardar Descansado o Inimigo Esgotado. 5. Pilhar uma Casa em Chamas. 6. Clamor a Leste, Ataque a Oeste. 7. Criar Algo a Partir do Nada. 8. Abertamente Reparar a Passagem, Secretamente Marchar para Chencang. 9. Observar o Fogo na Margem Oposta. 10. Esconder o Punhal por detrás de um Sorriso. 11. Deixar a Ameixeira Murchar em Vez do Pessegueiro. 12. Aproveitar a Oportunidade para Apoderar-se do Carneiro. 13. Bater na Grama para Espantar a Cobra. 14. Tomar de Empréstimo um Cadáver para o Retorno da Alma. 15. Atrair o Tigre para que Desça da Montanha. 16. Para Capturar Algo, Primeiro Deve-se Largá-lo. 17. Atirar um Tijolo para Atrair Jade. 18. Para Prender os Bandidos, Primeiro Captura-se Seu Chefe. 19. Roubar a Lenha de sob o Pote.

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20. Turvar a Água para Apanhar os Peixes. 21. Desfazer-se da Pele como a Cigarra Dourada. 22. Trancar a Porta para Pegar o Ladrão. 23. Aliar-se a um Inimigo Distante para Atacar um Próximo. 24. Pedir Passagem pela Estrada para Conquistar Guo. 25. Substituir as Vigas por Toras Podres. 26. Apontar para a Amoreira, mas Amaldiçoar a Acácia. 27. Fazer-se de Louco mas Manter o Equilíbrio. 28. Atrair o Inimigo ao Telhado e, depois, Remover a Escada. 29. Cobrir a Árvore Morta com Flores Falsas. 30. Trocar o Papel de Conviva pelo de Anfitrião. 31. O Estratagema da Mulher Bonita. 32. O Estratagema dos Portões da Cidade Abertos. 33. O Estratagema de Semear a Discórdia. 34. O Estratagema de Ferir a Si Próprio. 35. O Estratagema de Encadear Estratagemas. 36. Fugir é o Melhor Estratagema.

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9º capítulo

O Século da derrota

Em 1897, um decreto real manchu promovia um concurso de arco e flecha, com prêmios em dinheiro para os melhores atiradores. Havia uma razão para isso: dois anos antes, uma inspeção no exército havia demonstrado que muitos soldados chineses não sabiam usar corretamente o arco. A questão é que, alguns meses antes, as forças armadas chinesas foram absolutamente arrasadas pelos japoneses na guerra de 1894-1895, tendo a marinha chinesa sido afundada toda num dia só! E o que o imperador entendeu disso? Que os chineses foram derrotados porque não sabiam atirar flechas!

O impressionante relato deste episódio absurdo está na crônica de Marques Pereira, jornalista de Macau que, em 1899, escrevia no semanário Tassi Yangkuo um relato pormenorizado do exército chinês. A situação era catastrófica: enquanto as forças européias dispunham de navios metálicos, canhões modernos de projétil, fuzis de repetição e metralhadoras, os manchus insistiam no treino com espadas, escudos e arqueria. A maior parte dos soldados era camponesa, não tinham

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nenhum treino, recebiam um soldo ridículo e nada sabiam sobre guerra moderna. No próprio conflito com o Japão, a esquadra chinesa dividia-se em duas: uma parte encomendada nos estaleiros europeus, que os chineses mal sabiam utilizar, e outra feita com os tradicionais juncos, com canhões carregados pela boca (como nas guerras napoleônicas). Em algumas horas eles foram absolutamente esmagados pela superioridade técnica, estratégica e organizacional dos japoneses. Quanto às tropas em terra, estas foram comunicadas que simplesmente não receberiam seus soldos, e foram dispensados no caminho da batalha! Enquanto o governo negociava um tratado com o Japão, estes soldados sem rumo voltaram para seus lares pilhando, no caminho, o que pudessem encontrar de valor. Como foi que um dos maiores impérios do mundo havia chegado a esta situação de descalabro total? O que aconteceu com o poder militar tremendo que a China possuía antes? O século 19 é o período das desgraças chinesas, e constituiu, provavelmente, os cem piores anos de sua história. Para entendermos o que aconteceu, precisamos voltar, então, ao período em que os jurchen tomam o poder no país e inauguram a sua dinastia, a Qing, que lançaria a civilização

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chinesa em um dos períodos mais tenebrosos de sua história.

.....

Quando os jurchen (ou manchus) tomam o poder em 1644, a China era, ainda, um dos países mais avançados do mundo. No entanto, a política Ming de se fechar ao mundo exterior havia causado um impacto tremendo no desenvolvimento tecnológico e comercial do país. Foi esta insistência deliberada no conservadorismo que impediu o país de continuar evoluindo, e que permitiu aos manchus tomarem o poder por meios antigos – a velha carga de cavalaria, o uso massivo de flechas, o combate corpo a corpo. No século 17 esta tática poderia ainda valer alguma coisa, embora na Europa ela já tivesse sido abandonada. Contudo, em combates em larga escala, o número ainda fazia uma diferença substancial. Quanto ao uso de canhões, o seu potencial dependia da situação em que eram empregados – no entanto, não se tinha dúvidas de que a artilharia era um dos futuros da guerra. Em ocasiões de bombardeio ou cerco, ou mesmo na guerra naval, suas qualidades estavam definitivamente comprovadas. Nas guerras táticas, porém, o

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uso de estratégias diretas anda permitia que os guerreiros antigos tivessem alguma chance.

Mas os machus, ao fundarem a dinastia Qing, perceberam que para melhor controlar o povo chinês seria interessante manter – e aprimorar, na verdade, - esta política pública de ignorância científica e ideológica. Deliberadamente, pois, eles restringiram o uso das armas de fogo, o estudo das tecnologias navais e de guerra, da estratégia, promoveram uma espécie de confucionismo caquético e moralista que se negava a reconhecer o valor da modernidade, e acentuaram o caráter hermético e fechado do país em relação ao estrangeiro. O objetivo dos Qing era claro: quanto menos os chineses soubessem sobre armas e novas tecnologias, melhor seriam submetidos; quanto menos idéias novas eles tivessem acesso, menos eles criticariam o regime. Por outro lado, valorizando as doutrinas tradicionais do confucionismo, do daoísmo e do budismo, os chineses manteriam sua crença de que todas as respostas necessárias se encontram no passado, e que a nova dinastia se interessava em respeitá-lo e mantê-lo vivo. Um dos resultados diretos disso foi a confecção de uma nova coleção de escritos antigos, chamada de Quatro grandes ramos da literatura (Siku Quanshu), que se

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propunha, simplesmente, a formar uma grande enciclopédia com todos os textos antigos chineses (incluindo os Ming), que salvaguardariam o patrimônio intelectual chinês para a eternidade.

De início, a visão dos manchus não parecia equivocada. Eles conseguiram, por meio de suas técnicas tradicionais de guerra, submeter o Tibet e impor protetorados nos Vietnã e na Coréia. Com um uso restrito de armas de fogo e canhões, constituíam ainda uma potência respeitável no meio asiático, e sua cavalaria era temida como a dos seus ancestrais liderados por Gengis Khan. Todavia, esta confiança arrogante nos antigos métodos criou uma miopia impossível de ser curada sem um trauma violento. No final do século 18, a Inglaterra enviou um embaixador, lorde Macartney, para negociar privilégios comerciais junto ao país, assim como o que os portugueses conseguiram em Macau. O imperador Qianlong os dispensou sem maiores considerações, e os ingleses, rancorosos por esta indignidade, esperaram por uma revanche. No livro O império imóvel, de Alain Peyrefite, temos uma descrição das impressões que os europeus tiveram da China – uma país que, ao seu ver, constituía uma espécie de museu vivo. Os ingleses ficaram chocados com

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canhões de madeira (e as velhas janelas para artilharia pintadas nas muralhas, feitas para assustar), balas de barro (feitas por mandarins que roubavam o metal das fundições e o substituíam, nos arsenais, por projéteis de argila que “teriam a mesma eficácia”), soldados vestidos de pele com escudos arcaicos de couro, uma meia dúzia de fuzis de mecha do século 16... O próprio Macartney chegou à conclusão de que os chineses se interessariam em comprar armas, mas sua visita foi infrutífera. A entrada na China teria de se feita por outro meio.

Enquanto isso, os próprios manchus bolavam estratégias mirabolantes para conter a ameaça inglesa. Um dos conselheiros do imperador, assustado com os gigantescos navios ingleses, sugeriu que se convocassem catadores de pérolas para cortarem os lemes dos navios, caso os europeus causassem problemas! Em outra, quando a frota inglesa partiu, os tripulantes dos juncos foram instruídos a sacudirem facões e espadas no ar para assustá-los, quando passavam. Para os ingleses, isso só confirmava que a China estava pronta a ser invadida e conquistada.

Idéias como essa não eram novas, mas nunca se mostraram possíveis até então. Os espanhóis, no século 16, já haviam imaginado

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como poderiam dominar a China, tal como fizeram na América, mas perceberam a total impossibilidade de concretizar a empreitada, dado o poder e a tecnologia dos chineses da época. No século 17, o pirata chinês Coxinga, fiel aos destronados Ming, conseguiu vencer os holandeses numa batalha naval, assegurando a liberdade da ilha de Taiwan. As notícias que os missionários cristãos enviavam do país davam conta da extensão de seu poder e organização, e afastavam anseios maiores. No entanto, no final do século 18, começara a ficar claro que os chineses estavam ficando para trás, a embaixada inglesa confirmou as impressões. Se tratava apenas, portanto, de achar um motivo.

Este veio alguns anos depois, em 1839, quando o principal produto de exportação inglesa para a China, o ópio, foi proibido pelo governo manchu. O país estava sendo destruído pela droga, cujo consumo era liberado; milhares de chineses tiveram sua saúde destruída pelo vício, e a violência aumentara por conta dos usuários que não queriam (ou podiam) trabalhar e apelavam para o roubo para sustentarem o hábito. Pela primeira vez na história da humanidade, um governo percebeu o que seria a “questão das drogas”, e passou a perseguir os traficantes de

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ópio, coibindo seu uso. Leis duras foram impostas contra o uso da droga, e o governador de Guandong (Cantão, principal porta de entrada da droga) conseguiu admiravelmente bem reprimi-la, queimando toneladas da substância e expulsando os viciados das ruas.

No entanto, a Inglaterra não pensava do mesmo jeito, e reclamando seus direitos comerciais sobre o ópio, enviou para lá sua armada de vapor e metal. A China novamente não conseguiu entender o que estava acontecendo: como aquele país tão pequeno e distante, desconhecedor das tradições milenares, poderia vir e tão facilmente vencer as terríveis forças manchus? O baque foi enorme e traumatizante. Os Qing foram obrigados a assinar seu primeiro tratado humilhante, cedendo Cantão, Hong Kong e outras inúmeras concessões comerciais aos britânicos. Aparentemente, eles não assimilaram bem a questão, tentando novamente outra guerra com os ingleses (a segunda guerra do ópio) em que foram novamente vencidos e submetidos em condições vergonhosas.

Diante disso, os Qing se perceberam diante de uma enrascada: como fazer a dinastia sobreviver sem perder o controle da

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situação? Fazer evoluir o país, com tecnologias estrangeiras, poderia permitir que os chineses tivessem acesso a certos conhecimentos que poderiam por em perigo a estabilidade do governo – que em essência, apesar de achinesado, continuava sendo uma dinastia estrangeira.

A decisão foi a pior de todas: negociar com os estrangeiros para manter a repressão interna. Com isso, o século 19 foi uma desgraça para a sociedade chinesa. Todas as guerras em que o país se envolveu foram perdidas. A revolta Taiping, feita por um profeta que se achava irmão de Jesus e que queria derrubar os Qing, foi reprimida com muito custo, e com a intervenção decidida dos europeus, cujo auxílio humilhante foi pedido pelas autoridades manchus. Nas décadas de 60 e 70, outras pequenas guerras foram sendo feitas, que culminaram com mais tratados desvantajosos e mesmo, como saque do palácio imperial de verão por forças anglo-francesas. Ser militar tornou-se uma profissão vergonhosa e indigna, e as tropas começaram a ser compostas por vagabundos, bêbados, viciados, mendigos convocados a força ou de pilantras em busca de uma oportunidade. A elite da tropa, formada pelos manchus,

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mantinha-se na sua quimera guerreira de cavalaria das estepes.

A intelectualidade chinesa tentou alguma reação, mais sem sucesso. As tentativas de modernizar o exército e a marinha eram esporádicas, e nunca completadas, fosse por causa da corrupção ou do receio Qing de permitir o acesso chinês aos novos conhecimentos. Assim, em 1895, o que havia de moderno nas forças armadas chinesas foi destroçado rapidamente pelos já ocidentalizados japoneses, reforçando o sentimento de saudosismo para com o passado. Em 1900, uma revolta ainda mais inacreditável ocorreu na China: o levante dos boxers. Inspirados por seitas místicas que afirmavam que as artes marciais chinesas eram invencíveis, e que poderiam fechar o corpo dos lutadores até mesmo contra as balas, os “boxers”, como foram apelidados pelos europeus, eram praticantes de kungfu que acreditavam piamente na força das tradições chinesas do passado, e por isso atacaram os estrangeiros em várias partes do país, por supor que estes estavam destruindo sua cultura e sociedade.

Embora assustadores, os boxers foram totalmente derrotados por uma força combinada de europeus e japoneses; numa

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demonstração bárbara e acintosa de poder, os prisioneiros boxers capturados foram decapitados, e suas cabeças expostas em praça pública. Quanto ao império Qing, novamente pagou a conta das dívidas de guerra, espoliando o já combalido povo chinês. Nesta época, a regente do país era Cixi, uma mulher que só se interessava em como manter-se no poder. Sua lendária habilidade em negociar acordos era comparável apenas com sua infinita incompetência para enxergar o presente. Para se ter uma idéia, em certa ocasião foram coletados impostos para a construção de uma nova marinha para a China, mas a imperatriz recolheu este dinheiro e afirmou que “mostraria ao mundo o que era uma verdadeira marinha”. Mandou construir um fantástico palácio de mármore, em forma de navio, que em sua visão estreita da realidade imporia um “temor moral” nos estrangeiros quanto ao poder dos Qing em realizar obras admiráveis...

Por causa disso, os chineses criaram uma antipatia reincidente pelo seu próprio passado, julgando que ele era responsável pelo seu atraso tecnológico e humano. Grande parte dos críticos reformadores da época insistia na necessidade de modernizar-se a moda européia, adotando um modelo parecido com

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do Japão. Não haveria solução para o país se a coisa continuasse do jeito que estava. De crise em crise, a China foi cedendo ao momento derradeiro de seu período imperial, e em 1911, os chineses, liderados por Sun Yatsen, derrubaram a última dinastia e proclamaram a república. Terminava, finalmente, o maior e mais antigo império da Terra.

E o pensamento estratégico, o que aconteceu neste período? Imobilizados por um governo cego, os pensadores chineses nada podiam fazer; e quando decidiram atuar, buscavam as respostas em novos rumos, tentando afastar-se de seu próprio passado. Sunzi e os outros autores empoeiraram nas prateleiras das bibliotecas e livrarias. O pensamento estratégico chinês só seria recuperado de modo magistral por um temível combatente comunista que, no início da república, já dava o ar de sua graça. Era Maozedong, que veremos a seguir.

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10º capítulo

Maozedong e a sagração de Sunzi

“A política é uma guerra sem derramamento de sangue, e a guerra uma política com derramamento de sangue”. Maozedong

No século 18, um religioso francês, o

padre Amiot, traduziu a Lei da Guerra de Sunzi para o francês, e dizem – “dizem” – que Napoleão foi um de seus leitores mais ávidos – razão pela qual, supostamente, em seu cárcere em Santa Helena, ele teria afirmado: “quando a China se levantar, o mundo tremerá”. Quando os japoneses atacaram Pearl Harbor em 1942, a estratégia empregada foi exatamente a descrita no capítulo 11 do livro de Sunzi; contudo, os mesmos japoneses, que até então vinham estudando com constância o livro, parecem ter esquecido de ler o resto, e conduziram o restante da guerra de modo desastroso. Chiang Kaishek, líder das forças republicanas chinesas durante o período do final da década de 20 até 1949, e que gostava

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de ser chamado de “generalíssimo”, gabava-se de ser um leitor assíduo de Sunzi, apesar de ter levado uma sova atrás de outra. Porém Maozedong, o chefe da guerrilha comunista, e depois, o primeiro presidente comunista do país mais populoso do mundo, esse sim era, de fato, um estudioso e conhecedor da obra de Sunzi.

Que fique bem claro, não temos pretensão alguma de fazer deste livro um panfleto comunista ou pró-Mao; na verdade, como todo e qualquer bom estrategista, Maozedong (ou Mao Tsé-tung, numa grafia mais conhecida) foi também uma figura controversa, complexa, e cujo julgamento histórico ainda está por ser feito. Líder libertador ou tirano maquiavélico, este não é o centro da discussão: a questão é que Maozedong foi um estrategista de mão cheia, um conhecedor de Sunzi como há muito não se via, e que expressou isso por meio de suas conquistas.

E quais foram? Maozedong conseguiu resistir às forças republicanas chinesas, que eram o triplo das suas, durante o primeiro período de guerrilha; depois, contribuiu decisivamente para a vitória sobre os japoneses na segunda guerra; após 1945, voltou a enfrentar seu inimigo Chiang Kaishek,

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cujo exército continuava a ser imensamente superior ao seu, e o venceu, instaurando o comunismo no país em 1949; pouco depois, estava na guerra da Coréia, se batendo contra os americanos e conseguindo o primeiro empate do Oriente contra o Ocidente; derrotou as tropas indianas numa disputa de fronteiras em 1962; por fim, ajudou a treinar, orientar e auxiliar as tropas vietnamitas contra os franceses, e depois, contra os americanos, que resultaram na famosa vitória da guerra do Vietnã.

Analisando este breve currículo, é impossível não considerar Mao como um estudioso extremamente competente da arte estratégica chinesa. Não importa quais forem as críticas a sua pessoa, não se pode negar que, no aspecto militar, ele foi relativamente bem sucedido.

Mas como se deu a trajetória do “Maozedong general”? Desde o início de sua carreira política, Mao não parecia ser do tipo que tivesse pretensões guerreiras ou militaristas. Ele participou do movimento de Sun Yatsen para derrubar o império Qing, e instaurar a república no país. Vindo de uma família pequeno-burguesa do interior, sua educação alternou entre o tradicionalismo chinês e os estudos das teorias modernas

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européias, notadamente no marxismo. Isso não era um problema para Sun Yatsen, cujas orientações ideológicas se alternavam numa mistura de democracia republicana americana, um socialismo brando e um confucionismo modernista. Na verdade, Sun Yatsen era um homem charmoso, inteligente, agregador, capaz de instar as pessoas ao seu redor ao embarcar em suas causas. Como administrador, porém, era um incompetente consumado, um verdadeiro “banana”. Logo após derrubar os Qing, Sun não conseguiu manter-se no poder, tendo que ceder aos caprichos da elite chinesa da época. Quem acabou assumindo o governo em seu lugar foi Yuan Shikai, um general latifundiário que tinha pretensões de restaurar a monarquia e ser um novo imperador. Yuan, porém, morreu logo, em 1916, e no vácuo de seu curto período de exceção Sun voltou ao topo. Contudo, como era um consumado idealista incompetente, não conseguiu fazer nada de muito bom, e a melhor coisa para sua carreira foi morrer em 1925, virando um herói nacional incontestável. É uma virtude para os grandes nomes da história não durarem muito, antes que possam fazer besteiras.

Quem assumiu o poder foi seu discípulo Chiang Kaishek (ou, Jiang Jieshi), que em

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breve botou as mangas para fora e tornou-se ditador. Chiang teve uma carreira curiosa: foi um dos seguidores mais próximos de Sun, chegando a casar com sua filha; participou de uma missão militar na União Soviética, a mando de Sun, para estudar técnicas modernas de guerra e comprar armas, e voltou para a China se dizendo comunista (tendo mesmo ajudado na formação do partido comunista chinês). No entanto, ao assumir, o poder, realizou uma virada violenta no jogo político: primeiramente, começou uma caçada implacável aos vermelhos, culminando com o terrível massacre do partido comunista, em 1927, promovido enquanto este estava em sua assembléia em Shanghai. No seguir, tentou criar uma nova linha política que negociava levianamente com Moscou, com os Estados Unidos e com a ascendente Europa nazi-fascista. É possível que Chiang esperasse tirar o melhor partido de cada lado, mas por conta disso ele cometeu erros grosseiros de estratégia e visão política. Convocou missões militares alemães para treinar o exército chinês (quando a Alemanha já começava a se alinhar com o Japão na década de 30); delegou poderes a membros do extinto império chinês para supostamente administrar melhor o país (lançando-o numa escalada de corrupção sem

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precedentes); mas seu pior erro, porém, foi não ter eliminado todos os comunistas no massacre de Shanghai, deixando escapar o jovem Maozedong. Dali por diante, Chiang teria um inimigo que nunca conseguiria superar em toda sua vida.

É possível que Mao ainda tivesse ilusões, até 1927, de que a China poderia conhecer o socialismo sem uma revolução sanguinolenta, mas sua crença foi por água abaixo com a ascensão de Chiang. Mao teve que se lançar à luta armada, e daí sua carreira de estrategista começou.

Mao não estava sozinho, mas contava com a ajuda competentíssima de dois de seus grandes companheiros de luta e vida: Zhude e Zhu Enlai. Ambos eram também excelentes soldados, leais e dedicados comunistas. Acompanharam Mao em todas as suas dificuldades e vitórias, e em 1976, quando tanto Zhude e Zhu Enlai morreram, Mao não resistiu e os acompanhou, privando a China, de uma só vez, de seus líderes mais decisivos no século 20.

No entanto, o jovem Maozedong não entendia patavinas de estratégia, e se viu obrigado a recorrer aos seus conhecimentos de literatura clássica chinesa para suprir o problema. Foi este, provavelmente, o

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momento de reencontro entre ele e a obra de Sunzi. Apesar disso, da sua parte, havia a clara consciência de que aqueles conhecimentos precisavam ser adaptados ao contexto moderno, sem o que, ele repetiria o mesmo erro das gerações anteriores. Suas crenças foram reforçadas quando ele foi obrigado a fugir, com suas forças, para o interior da China, no episódio conhecido como a Longa Marcha (1934-35). Os comunistas tomaram uma surra das tropas de Chiang, infinitamente superiores em número e equipamento. Ainda assim, Mao conseguiu escapar para o norte, se reagrupar, e formar um núcleo poderoso de preparação para suas tropas, antevendo um novo período de combates.

Mais uma vez, Mao estava correto em suas projeções. Chiang estava muito confiante em suas forças e seus sucessos. Após a morte de Sun, ele comandou a repressão aos senhores da guerra – latifundiários que mantinham exércitos particulares no campo – e foi bem sucedido. Perseguir o incipiente exército comunista também lhe pareceu tarefa fácil, e a relativa facilidade com que alcançou seus objetivos (era, ao menos, o que ele pensava) lhe deu a impressão particular de ser um grande estrategista e militar invencível. Chiang divulgou a fama de ser um leitor de

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Sunzi, e permitiu que o chamassem de generalíssimo, título de um “sempre vencedor”. No entanto, havia algo que ele tinha que resolver, e que estava engasgado na garganta dos chineses: a ocupação japonesa.

Cedo ou tarde, ele havia previsto – assim como Mao – de que a China teria que acertar contas contra a presença japonesa em seu território, e a oportunidade veio em 1936, no verdadeiro início da segunda guerra mundial. Um incidente banal deu ensejo para que os japoneses invadissem o país, objetivando ocupar territórios ricos em matérias-primas. Chiang havia concebido uma estratégia que julgava brilhante: enquanto os japoneses atacassem no norte, ele atacaria forças japonesas aquarteladas no sul, desviando sua atenção. Contudo, Chiang não observou alguns elementos fundamentais da estratégia, já discutidos em Sunzi, que eram:

1) A preparação de suas forças: se os soldados treinados pelos alemães eram competentes, o mesmo não se pode dizer de seus generais. Chiang tinha por hábito designar como oficiais homens de sua confiança ou membros da elite chinesa, que gostavam do prestígio dos uniformes, mas não da profissão. Ficou famoso o

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episódio da academia da força área, organizada pelos italianos, que fornecia brevês de aviadores a filhos de ricaços sem que esses soubessem pilotar! Além disso, os italianos empurraram aviões obsoletos para os chineses, que o governo corrupto de Chiang comprou sem preocupar-se com o depois. Sem oficiais capazes, um exército não pode funcionar.

2) Uma linha de ação definida: quando Chiang começou a flertar com comunistas e nazistas, não concebeu que isso poderia se voltar contra ele. O que aconteceu foi que, logo no início dos combates, é provável que os alemães tenham entregado as posições e planos chineses aos japoneses, com os quais já encetavam uma aliança.

3) Não sitiar: Sunzi foi bem claro: sitiar uma cidade é a pior coisa a se fazer. É demorado, consome recursos e expõe as tropas ao perigo.

Chiang cometeu estes três erros, e

rapidamente suas tropas foram destroçadas pelos japoneses. Em 37, ele deixou no comando da cidade de Nanjing (Nanquim) um velho senhor da guerra que, ao ver os japoneses se aproximarem, consultou seu

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médium particular e resolveu dar no pé, deixando a cidade a mercê do invasor e ocasionando o terrível episódio do Massacre de Nanquim, o primeiro holocausto da segunda guerra mundial.

Enquanto isso, o obstinado Mao estudava, e aguardava o momento certo para agir. Os comunistas educavam seus soldados não só nas artes militares, mas os ensinavam a ler e a escrever. Como Mao afirmou, “uma revolução não é um convite para jantar”, e suas forças aprumavam-se para entrar em ação. Além disso, enquanto as tropas republicanas eram corruptas, violentas, e passavam saqueando os campos em busca de comida e mulheres, os guerrilheiros comunistas tornaram-se lendários pelos seus princípios humanitários, ajudando os camponeses na terra, pagando pela comida e defendendo-os contra a bandidagem.

Foi a Mao que Chiang recorreu quando viu que não poderia enfrentar os japoneses diretamente. Propondo uma aliança contra o inimigo comum, ambos lançaram uma campanha para a expulsão do invasor – apesar de Mao nunca ter se enganado com Chiang. Em certa feita, ele teria afirmado que sua aliança com Chiang são como “os casais que

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dormem na mesma cama, mas sonham sonhos diferentes”.

Perto do fim da segunda guerra, tantos os soviéticos quanto os americanos já sabiam que Mao tinha muito mais chances de vencer a futura guerra civil chinesa do que os republicanos. A obsessão de Chiang em vencer Mao cegava-lhe qualquer tentativa de negociação, e atrapalhou mesmo a campanha contra os japoneses. O que se viu de 1945 a 1949 foi o desenrolar de uma história singular: o exército comunista era a metade – ou menos, ainda - do republicano, mas sua determinação, estratégia e organização o fizeram vencer. Chiang fugiu para Taiwan, onde fundou sua nova república chinesa e por lá ficou, até 1975, protegido pela frota e pelas bombas atômicas americanas.

....

Mao recorreu a Sunzi para ganhar suas guerras, e tinha um certo orgulho de ter se convertido de rato de biblioteca em um valoroso soldado. Sua produção na área de estratégia aparece nos livros

Sobre a Táctica na Luta Contra o Imperialismo Japonês (1935)

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Problemas Estratégicos da Guerra Revolucionária na China (1936)

Linha Política, Medidas e Perspectivas na Luta Contra a Ofensiva Japonesa (1937)

Lutar pela Mobilização de Todas as Forças para a Vitória da Guerra de Resistência (1937)

Problemas Estratégicos da Guerra de Guerrilhas Contra o Japão (1938)

Sobre a Guerra Prolongada (1938)

Problemas da Guerra e da Estratégia (1938)

Problemas Tácticos Atuais na Frente Única Anti-Japonesa (1940)

Não raro, ele cita Sunzi, ou as

estratégias da Lei da Guerra em seus trabalhos, dando-lhes um lustre clássico. Contudo, a virtude de seu trabalho está em ter adaptado para as condições da guerra moderna as noções antigas de estratégia presentes no trabalho de Sun. No livro principal de Mao, o Livro vermelho (no qual se encontra uma coletânea de citações que são consideradas o cerne de sua obra) uma parte é inteiramente dedicada às questões da guerra e da teoria estratégica. Como o próprio Mao

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afirmou: “Somos a favor da abolição da guerra, não queremos a guerra. Mas a guerra só pode ser abolida com a guerra. Para que não existam mais fuzis, é preciso empunhar o fuzil” O teste definitivo para as estratégias de Mao vieram na guerra da Coréia e na libertação do Vietnã. Enfrentar o exército despreparado de Chiang era uma coisa, mas combater os experientes americanos, recém saídos da segunda guerra, era outra completamente diferente. Mao usou de artimanhas diversas na Coréia, fazendo com que sua intervenção forçasse os americanos a retrocederem. Embora o conflito tenha dado empate – com a morte de um dos filhos de Mao no campo de batalha – o resultado foi considerado um sucesso, tendo em vista que a China acabara de sair de um conflito devastador, e suas bases econômicas ainda estavam combalidas.

No Vietnã, o general Giap, usando as estratégias maoístas, conseguiu encurralar os franceses em 1954 na batalha de Dien Bienpu, vencendo-os de modo definitivo. O estratagema fundamental desta batalha foi o uso do terreno: Giap aguardou a oportunidade de enfrentar os franceses numa batalha definitiva, usando a topogafia a seu favor. Forçou-os a combater num planalto que eles acreditavam ser ideal para um conflito aberto,

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e cuja cadeia de montanhas mais próxima parecia ser inacessível. No entanto, Giap já havia instalado a artilharia no topo destas montanhas, peça por peça, numa dessas estratégias chamadas “incomuns” (ou, “não ortodoxas”) por Sunzi. Os franceses sofreram por dias, sem poder reagir ao fogo de artilharia, e finalmente se renderam.

Mao, o grande artífice dessas vitórias, acabou legando seus pensamentos sobre estratégia na sua coleção de escritos, que hoje podem ser facilmente consultados. No entanto, ao resgatar Sunzi, ele deu uma nova abertura para o passado chinês, consolidando-o como uma peça fundamental da cultura desta civilização. Mao não gostava do confucionismo ou do daoísmo, mas apreciava sobremaneira o pensamento legista e estrategista. Para sua felicidade absoluta, os textos de Sunzi e Sunbin foram descobertos depois, em 1972, durante seu governo. O grande timoneiro provavelmente se sentiu realizado.

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Fragmentos do pensamento estratégico de Maozedong

Os objetivos da guerra A guerra não tem outro fim senão "conservar forças e aniquilar as do inimigo" 6(aniquilar as forças do inimigo desarmá-las, "privá-las de toda capacidade de resistência", e não aniquilá-las apenas fisicamente). Na antiguidade, usavam-se, para a guerra, lanças e escudos: a lança servia para atacar e aniquilar o inimigo; o escudo, para defender e conservar a vida. Até nossos dias, é graças ao aperfeiçoamento desses dois tipos de armas que resultam todas as outras. Os bombardeiros, as metralhadoras, a artilharia de longo alcance, os gases tóxicos são aperfeiçoamentos da lança, e os abrigos, capacetes de aço, fortificações, máscaras contra gases, aperfeiçoamentos do escudo. Os carros de assalto são uma arma nova, onde se acham combinados a lança e escudo. O ataque é o meio principal para destruir ás forças do inimigo, mas, não se saberá passar sem a defesa. O ataque visa aniquilar diretamente as

6 Paráfrase de Sunzi, sobre a qual Mao irá desenvolver o texto.

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forças inimigas e, ao mesmo tempo, conservar as próprias forças, porque, se não aniquilamos o inimigo, ele o fará. A defesa serve diretamente à conservação das forças, mas é, ao mesmo tempo, um meio auxiliar de ataque ou um meio de preparar a passagem ao ataque. A retirada se relaciona à defesa, é seu prolongamento, enquanto a perseguição é a continuação do ataque. É de se observar que, entre os objetivos da guerra, o aniquilamento das forças do inimigo é o fim principal, e a conservação d próprias forças o fim secundário, pois não se pode assegurar com eficácia a conservação das próprias forças, senão pelo aniquilamento em massa das forças do inimigo. Disso resulta que o ataque, tanto um meio fundamental para aniquilar as forças do inimigo, desempenha o papel principal, e a defesa, tanto um meio auxiliar para aniquilar as forças do inimigo e tanto um meio de conservar as próprias forças, desempenha papel secundário. Se bem que na prática recorramos, muitas situações, sobretudo à defesa e, em outras, sobretudo ao ataque, este não será menos o método principal, se considerarmos o desenrolar da guerra como um todo.

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Os princípios militares de Maozedong Eis nossos princípios militares: 1. Atacar primeiro as forças inimigas dispersadas e isoladas, e, em seguida, as forças inimigas concentradas e poderosas; 2. Apossar-se primeiro das cidades pequenas e médias e das vastas regiões rurais e, em seguida, das grandes cidades; 3. Fixar, como objetivo principal, o aniquilamento das forças vivas do inimigo, e não a defesa ou a ocupação de uma cidade ou território. A possibilidade de ocupar ou tomar uma cidade ou território resulta do aniquilamento das forças vivas do inimigo e, com freqüência, uma cidade ou território não podem ser ocupados ou tomados definitivamente senão depois de várias retomadas; 4. Em cada batalha, concentrar forças de superioridade absoluta (duas, três, quatro e mesmo cinco ou leis vezes as forças do inimigo), cercar completamente as forças inimigas, lutar para as destruir totalmente sem lhes dar a possibilidade de escapar da emboscada. Em casos particulares, infligir ao inimigo golpes esmagadores, ou seja, concentrar todas as forças para um ataque de frente e um ataque sobre um dos f1ancos do

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inimigo, ou sobre dois, aniquilar uma parte de suas tropas e colocar a outra parte em fuga, a fim de que nosso exército possa deslocar ràpidamente suas forças para esmagar outras tropas inimigas. Esforçar-se para evitar as batalhas de usura, nas quais os ganhos sejam inferiores til perdas, ou apenas sirvam para compensá-las. Dessa forma, embora no conjunto estejamos (numericamente falando) em condição de inferioridade, teremos a superioridade, absoluta em cada setor determinado, em cada batalha, e isto nos assegura a vitória no plano operacional. Com o tempo, obteremos a superioridade de conjunto e, finalmente, aniquilaremos todas as forças inimigas; 5. Nunca entrar em combate sem preparação, ou em combate cuja vitória não seja certa. Fazer o máximo de esforços para estar bem preparado para cada compromisso e para assegurar a vitória em relação a condições entre as duas partes; 6. Dar tudo, em nosso estilo, de combate - bravura, espírito de sacrifício, menosprezo pela fadiga e tenacidade nos combates contínuos (engajamentos sucessivos, realizados em curto período e sem repouso); 7. Esforçar-se para aniquilar o inimigo, recorrendo à guerra de movimento. Ao mesmo

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tempo, dar a devida importância à tática de ataque de posições, quanto ao objetivo de se apossar de zonas fortificadas e cidades do inimigo; 8. No que se refere ao ataque de cidades, ocupar; decisivamente, todas as zonas fortificadas de todas cidades nas quais o inimigo impôs fraca resistência. Apossar-se, no, momento propício, de todos os pontos fortificados e de todas as cidades defendidas moderadamente pelo inimigo, sempre que as circunstâncias o permitirem. Quanto aos pontos fortificados e às cidades tenazmente defendidas, esperar a ocasião prudente e/' então, ocupá-los; 9. Completar nossas forças com a ajuda de todas as armas e da grande maioria dos efetivos tomados ao inimigo. Os recursos principais em homens e materiais para nosso exército estão no front; 10. Saber aproveitar o intervalo entre duas campanhas para descansar, instruir e consolidar as tropas. Os períodos de descanso, treinamento e consolidação não devem, em geral, ser muito longos, e, tanto quanto possível não deixar ao inimigo tempo para recuperar fôlego. Tais são os principais métodos aplicados pelo Exército Popular de Libertação, para enfrentar

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Chiang Kaichek. Foram forjados pelo Exército Popular de Libertação, no transcurso de longos anos de combate entre inimigos dentro e fora do país e se adéquam perfeitamente a nossas condições atuais... Nossa estratégia e nossa tática repousam na guerra popular; nenhum exército em oposição ao povo pode utilizar nossa estratégia e nossa tática. Da iniciativa Sem preparação, a superioridade das forças não é uma superioridade verdadeira e perdemos a iniciativa. Se compreendermos esta verdade, as tropas, inferiores em força, mas preparadas, podem freqüentemente, com um ataque inopinado, bater um inimigo em superioridade.7

7 Um tema recorrente nos textos de estratégia: a preparação é fundamental para o confronto, podendo inverter o jogo de forças.

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Conclusão

A Arte da Guerra Chinesa nos dias de Hoje

Em 1979 os chineses resolveram, por

uma série de questões políticas e ideológicas, atacar os seus antigos aliados vietnamitas. O exército chinês saiu cantando vitória, mas na verdade foi expulso com o rabo entre as pernas pelos experientes combatentes do Vietnã. Um líder político do partido comunista chinês da época chegou a afirmar que as forças armadas do país “pareciam um exército de carteiros e motoristas”, sem nenhuma aptidão militar notável. Isso mostrou que, após a era Mao, encerrada em 1976, a China havia descuidado do seu lado militar, e era necessário empreender uma modernização geral das forças armadas.

A época dos conflitos verdadeiramente revolucionários havia passado, e os chineses não podiam mais improvisar ou confiar somente no “ímpeto popular”. Desde então, uma atenção especial tem sido dada ao preparo dos soldados e ao reequipamento das forças, priorizando a aquisição de novas tecnologias. Contudo, a questão estratégica

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não foi deixada de lado, e em 1992 foi aberta uma academia de estudos clássicos de Sunzi em Shandong. O objetivo deste centro de estudos é promover simpósios e publicações na área da estratégia, tanto militar quanto comercial. Antes disso, as obras estratégicas circularam principalmente dentro das academias militares, sendo vastamente impressas e difundidas pela editora do exército chinês. Foi o exército, inclusive, um dos primeiros promotores dos novos textos descobertos em 1972. Mas a questão é: o que os chineses, no geral, pensam sobre esta filosofia estratégica?

Temos que ter em mente que na China, a idéia de associar a guerra com a competição comercial, como muito se divulga no Ocidente, é um tanto intimidadora e agressiva demais. Os empresários chineses gostam de ler e conhecer sobre estratégia, e quase todo o cidadão comum deste país conhece alguma das trinta e seis estratégias. Contudo, a competição comercial envolve certas regras que não permitem o uso de expedientes amorais como o saque, o roubo ou a violência, como ocorre na guerra (ou, ao menos, não deveriam). A preocupação central não é de usar certas estratégias no mundo dos negócios para superar barreiras; mas sim, de

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transformar uma área de conflito humano em um palco de violência desproporcionada, em que as regras do respeito já não valem mais. Mesmo Maozedong, que se tornou um perito na leitura de Sunzi, não transparece no restante de seus escritos – filosóficos, morais, históricos, sociológicos, educativos, etc. – qualquer idéia de que os estratégicos deveriam ser aplicados a outros campos da vida, sendo circunscritos ao âmbito militar.

Como bem explicitou o sinólogo e filósofo francês François Jullien no seu Tratado da Eficácia (1998), a análise da obra de Sunzi no mundo atual chinês visa a obtenção do sucesso, com o uso da estratégia, justamente para evitar o conflito desnecessário, para encontrar as melhores formas e maneiras de administrar um problema.

Este é, provavelmente, o perigo da mercantilização da violência que muitas das traduções comerciais ocidentais de Sunzi (e de outras obras) têm propagandeado. Sabe-se que a Lei da Guerra, principalmente, possui um caráter nitidamente militar, sendo divulgada entre as principais escolas de oficiais nos Estados Unidos e Europa. Na guerra do Golfo, em 1991, foi fartamente noticiado que oficiais

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da marinha e dos fuzileiros americanos estudavam o livro de Sunzi.

Todavia, contam-se aos milhares os pretensos intelectuais, administradores e motivadores profissionais que defendem exaustivamente que o mundo é um campo de batalha sem valores morais, em que tudo é lícito e toda violência, se justificada, é sancionada. Este é o tipo de abuso, em relação às obras estratégicas chinesas, que mais danos causam ao seu estudo consciente e profundo.

Como vimos, vários estrategistas chineses propunham interpretações do caminho (Dao) que se atrelavam ou fundamentavam a execução das estratégias. É a ausência de um discurso político que deixou Sunzi mais aberto a manipulação – mas nem por isso, menos perigoso. Aceitar pura e simplesmente que as estratégias chinesas servem para alcançar a eficácia em qualquer plano, independente das circunstâncias, é esquecer que a maior parte destes livros foram escritos quando a guerra já começou, e a partir disso, os valores e leis de uma sociedade já não contam mais como regras válidas.

A leitura da própria Lei da Guerra foi banalizada, e hoje existem inúmeras traduções do livro (em português se contam aos montes) sendo cada uma pior do que a outra, com raras

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exceções. As estratégias chinesas são um excelente meio, sim, de enfrentar as adversidades da vida, se empregadas com ponderação, cuidado, e uma observação criteriosa da realidade circundante. No entanto, se empregadas de maneira vil ou superficial, tornam-se logo uma fonte de conflito, ao invés de administrá-lo.

Gostaria de encerrar este livro com uma historieta de estratégia, presente no Zhanguoce. A meu ver, ela ilustra perfeitamente bem o que consistira o cerne da filosofia estratégica que, durante séculos, foi o tema central destes pensadores chineses: O Rei Wei, de Qi, vivia inteiramente cercado de cortesãos que lhe afagavam a vaidade e seguiam seus caprichos. Certo dia, Zouxi disse ao rei: - Majestade, não sou exatamente de má aparência. (Era homem de “oito pés” de altura). Mas, no norte da cidade, há um Sr. Shu, famoso por seu belo aspecto. Um dia, fiquei em frente ao espelho e perguntei a minha mulher: “Quem achas mais bonito, eu, ou o Sr. Shu?” “Tu, naturalmente”, respondeu minha mulher. Não ousei basear-me em sua palavra e fiz a mesma pergunta à minha concubina. “Como pode o Sr. Shu comparar-se

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contigo?”, foi sua resposta. Na manhã seguinte, chegou um visitante e, após uns instantes, fiz-lhe a mesma pergunta; ele respondeu: “O Sr. Shu não pode comparar-se contigo”. No dia imediato, o próprio Sr. Shu foi visitar-me. Examinei-o cuidadosamente e achei que ele era muito mais bonito do que eu. Olhei-me bem ao espelho e fiquei inteiramente convencido de que eu não me podia comparar a ele. Assim, deitei-me em minha cama e pensei: minha mulher me louva, porque é parcial em relação a mim; minha concubina me louva, porque tem medo de mim; meu amigo me louva, porque tem algo a pedir-me. Ora, Qi é um reino de mil li quadrados, com cento e vinte cidades. Todas as damas e todos os servidores do palácio são parciais em relação a Vossa Majestade. Todos os cortesãos têm medo de seu poder. E todo o povo tem alguma coisa a pedir-lhe. Assim, parece-me difícil que Vossa Majestade consiga ouvir a verdade. - Dizes bem - respondeu o rei. Então, baixou um decreto: „Todos os ministros, funcionários e pessoas comuns que puderem mostrar meus enganos receberão a mais alta classe de recompensas. Os que escreverem cartas para aconselhar-me receberão a recompensa de segunda classe. E os que puderem criticar-me

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e a meu governo na praça do mercado, de modo que isso me chegue aos ouvidos, receberão a recompensa de terceira classe”. Baixado o decreto, viu-se o rei inundado por uma torrente de conselhos e a corte ficou repleta de gente. Isso continuou por vários meses. Um ano depois, não havia erro do governo que não tivesse sido considerado e apontado por alguém. Os países vizinhos, Yen, Zhao, Han e Wei, souberam do que o rei fizera e acabaram reconhecendo o Estado de Qi como seu dirigente.

Isso é o que se chama ganhar a guerra sem

sair de casa. (Lin Yutang, A sabedoria da índia e China. Rio de Janeiro: Pongetti, 1957)

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Anexo

Qual a relação dos estrategistas com outras

escolas de pensamento chinesas?

No decorrer deste livro, discutimos

algumas vezes a relação dos estrategistas com outras escolas filosóficas da China Antiga. De fato, somente num tempo recente os estrategistas começaram a ser considerados como uma espécie de “escola”, ou linhagem de estudiosos do tema, dentro da história do pensamento chinês.

Contudo, é difícil traçar uma relação direta entre eles e os outros pensadores chineses. De fato, talvez seja melhor entender o processo de diálogo dos estrategistas com as outras escolas filosóficas como uma troca constante, permeada de aquisições e empréstimos sem que, contudo, se deixe explícito a fonte.

Vamos recordar os pontos principais de cada escola:

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Os confucionistas, ou letrados (Rujia) eram defensores da educação, propondo que a continuidade de uma sociedade dependia da manutenção de sua cultura. Propunham que o melhor meio de realização do individuo seria a busca de uma sabedoria de vida, calcada no estudo, que o permitisse estabelecer um processo de harmonia com a natureza e com os outros seres humanos.

Quanto aos caminhantes, ou daoístas, seu discurso centrava-se do desprendimento do ser humano em relação à cultura e as coisas materiais, desejando um retorno a sua natureza original, ou espontaneidade. Eram, basicamente, o oposto complementar dos confucionistas.

Os legistas propunham a construção de uma lei forte, centralizadora, que condicionasse o ser humano para a vida em sociedade, alcançando assim uma harmonia raciocinada e científica.

Quanto aos moístas, estes acreditavam num amor universal e comunitário, baseado na abolição da cultura de elite e na vida simples e austera das comunidades campesinas. Seu ideal era, possivelmente, o da antiga tribo ou vila, em que o poder se via ausente e a vida era administrada em comum.

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Existia ainda a escola cosmológica, que estudava a natureza, os fenômenos físicos, e analisava as leis de funcionamento da mesma.

Este breve olhar sobre as principais escolas da antiguidade nos permite fazer algumas conexões com o pensamento estrategista. Certos elementos parecem ser constantes nos textos, tais como:

- Punição e Recompensa: punir os erros, e premiar os bons serviços: esta metodologia de administração de problemas dentro da tropa era intensamente defendida pelos legistas, como forma ideal e justa, para estimular a sociedade como um todo a comportar-se corretamente. Existindo padrões claros, as pessoas só errariam se assim o desejassem, e arcariam com as conseqüências de seus atos. Havendo, pois, consciência do que certo e errado, como alguém poderia cometer crimes? - O uso do terreno e do clima: esta foi, provavelmente, a maior contribuição dos cosmológicos. A observação e o domínio do tempo, dos terrenos e das condições climáticas é um dos elementos chave nos discursos dos principais tratados estratégicos. - Métodos defensivos: por mais contraditório que pareça, os moístas foram grandes

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contribuidores nas estratégias defensivas, pois acreditavam na obrigação moral de defender os mais fracos e em desvantagem. Parte do livro de Mozi, que contém a doutrina desta escola, dedicava 3 capítulos as táticas de guerra defensivas. - Preparação e estudo: é o confucionismo que institui, dentro da mentalidade chinesa, a idéia de que é impossível aprender algo sem estudar. Tanto o é que, em chinês, “estudar” (xue) é praticamente sinônimo de aprender. Não existe uma frase como em português: “aprendi sem estudar, ou estudei e não aprendi nada”. Alguém que estuda, mas não aprende, na verdade “não compreendeu” corretamente o que estudava. Afirmar que se estudou algo implica em assumir que se sabe do que se está falando. Por isso, para os chineses a preparação é fundamental. Um velho ditado chinês diz algo mais ou menos assim: “para se cortar rapidamente uma árvore, gaste dois terços do tempo afiando o machado”. Havendo preparação, as coisas se desenrolam naturalmente. O estudo das estratégias, pois, é um estudo como qualquer outro, que deve ser apreendido com afinco e profundidade. Esta é uma regar geral da mentalidade chinesa até os

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dias de hoje, no que toca qualquer conhecimento, e herança direta de Confúcio.

A contribuição dos daoístas merece um destaque especial. Os daoístas se propuseram, na verdade, a enveredar pelo campo da estratégia, apresentando, inclusive, seus próprios tratados sobre o assunto. Thomas Cleary, um dos principais tradutores de textos clássicos chineses para o inglês, defende taxativamente que os estrategistas eram influenciados, principalmente, pelo daoístas. Contudo, suas explicações não conseguem conciliar os objetivos tão diversos dos daoístas com o dos estrategistas – senão, no tocante aos métodos para a busca de eficácia. Ralph Sawyer, o principal tradutor das obras estratégicas chinesas, comenta inclusive sobre um livro intitulado O Dao da guerra, de Wang Chen (século 9 d.C.), que se trata do principal trabalho daoísta sobre o tema, direcionando-se a questão da guerra.

Este é o ponto principal de atrito de uma possível conexão entre daoístas e estrategistas. Quando lemos textos que supostamente tratam de estratégia entre os daoístas, como o Mestre Huainan (da época Han), ou O Mestre do Vale Fantasma (o suposto mestre de Sunbin, mas cujo texto só

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surge depois da época Han), vemos uma ampla gama de questões relativas à administração política e humana que mais facilmente dialogam com o confucionismo do que com qualquer outra escola. Ora, autores como Cleary vêem aí que as preocupações humanísticas presentes nos textos daoístas são as mesmas relativas a administração dos recursos humanos entre os estrategistas, mas isso é uma leitura errônea: de fato, quando lemos os textos estratégicos, podemos perceber que eles transitam facilmente entre os discursos confucionista, daoísta e legista sem grandes preocupações, senão em função de sua coerência interna.

A pergunta, pois, é se os estrategistas concebem estas coisas sozinhas ou, se ele tomam de empréstimo das outras escolas tornando-se, assim, meros repetidores sem originalidade. Devemos tomar cuidado com isso, volto a insistir. É bem provável que os estrategistas pudessem pregar emprestadas idéias com outras escolas, mas a sua experiência em combate mostrava, diretamente, a eficácia – ou não – delas. Textos como o de Wei Liaozi mostraram que a imposição de uma lei draconiana e interminável são desaconselháveis e mesmo impossíveis de cumprir, fatalmente cansando

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as tropas e o povo; por outro lado, o idealismo cavalheiresco e romântico do Sima Fa se foram há tempos, embora ocasionalmente se pretenda o retorno de códigos de conduta na guerra (como no caso dos duelos aéreos da primeira guerra mundial). Por outro lado, textos como o de Sunzi mostram que na eminência de uma guerra, toda a cultura, por mais perfeita que seja, encontra-se em perigo – e neste caso, a preparação é um elemento definitivo para enfrentar qualquer crise. A questão da flexibilidade e da adaptação, tão cara aos daoístas, aparece igualmente nos textos estratégicos, mas como um recurso, e não uma meta constante. Mesmo quando lemos o texto de Liuji, observamos uma coleção de coisas que deram certo e que poderiam ser usadas – o que quer dizer que milhares de outras coisas deram absolutamente errado, e para cada estrategista vitorioso existe outro que é perdedor.

Assim sendo, buscar detalhar as conexões possíveis do pensamento estratégico com o de outras escolas é um trabalho exaustivo, e que talvez não seja absolutamente necessário. Devemos ter em mente que os estrategistas buscaram propor metodologias próprias, voltadas para questões específicas, nos quais os elementos utilizados – fossem

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eles emprestados ou não – serviam para atender uma função, ou cumprir um papel. Mais importante do que saber qual escola tem preeminência ou não sobre estes pensadores estratégicos é perceber se, de fato, suas teorias funcionam. Ou, parafraseando Deng Xiaoping (1977-1990), o líder chinês que substituiu Maozedong:

Não importa a cor do gato: importa é se ele

caça ratos

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Referências bibliográficas Gostaria de apresentar algumas sugestões bibliográficas para completar este trabalho, de modo que o leitor possa se inteirar mais e conhecer melhor sobre a história da estratégia na China. Optei por privilegiar o material em português, embora alguns livros que julguei indispensáveis sigam no idioma original. Sobre Sunzi e Sunbin: André Bueno, A Arte da Guerra. São Paulo: Jardim editorial, 2010. - Esta é minha tradução sobre os treze capítulos originais de Sunzi, baseadas no texto original. Samuel Grifhitt, A arte da Guerra. Lisboa: Europa-América, s/d. - Esta versão conta com uma tradução de Sunzi com os comentários posteriores, e um anexo com o texto de Wuzi. Um tanto antiquada, porém boa. Ralph Sawyer, A arte da guerra: Sun tzu e Sun pin. São Paulo: Martins Fontes, 2002. - Versão das obras de Sunzi e Sunbin traduzidas a partir da versão de Sawyer, o maior especialista americano em história das estratégias chinesas. Roger Ames e D. C. Lau. A arte da guerra de Sun pin. São Paulo: Record, 2004. - Tradução excelente da obra de Sunbin, feita por

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sinólogos famosos e com o texto original descoberto em 1972. Conta ainda com uma magnífica introdução histórica. Sobre os outros textos: Jean Levi, Os 36 estratagemas: manual secreto da arte da guerra. São Paulo: Ciranda cultural, 2007 (trad. Mariana Echalar) - Excelente estudo sobre as 36 estratégias, brilhantemente correlacionadas aos hexagramas do Ijing, feitas pelos erudito sinólogo Jean Levi. Harro Von Senger, O livro dos Estratagemas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. - Um livro dedicado a explicar as 36 estratégias, ilustrando-as com histórias sobre sua aplicação. Contudo, este texto só analisa 18 das estratégias, deixando para um segundo volume (que ainda não saiu) a sua continuação. Trata-se de uma excelente introdução histórica ao assunto. Taigong (T‟ai Kung), na versão de Francisco de Abreu, Os seis ensinamentos secretos. Lisboa: Silabo, 2003. - Tradução da obra de Taigong, mas com alguns problemas - além do uso de arcaísmos, o autor é partidário da idéia de que Taigong veio antes, talvez como forma de promover o livro.

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Ralph Sawyer, The tao of deception. Estados Unidos: Basic books, 2007. - Uma história da estratégia chinesa, feita pelo maior especialista ocidental no tema. O livro de Sawyer é fantástico, analisando uma história da guerra na China pelo ponto de vista desta civilização e de seus textos clássicos. Ralph Sawyer, The seven military classics of ancient china. Estados Unidos: Westview, 1993. - Sawyer é principalmente um tradutor abalizado do chinês, tendo apresentado diversos textos absolutamente desconhecidos sobre estratégias chinesas para o público americano. Neste livro, ele apresenta os sete principais tratados de estratégia da antiguidade chinesa, que servem de base para praticamente todas as outras traduções existentes no mundo ocidental. Cada um deles conta, ainda, com uma introdução histórica detalhada, e uma bibliografia extensa. Trata-se de um dos trabalhos decisivos no campo da sinologia. Thomas Cleary, A sabedoria do guerreiro. São Paulo: Record, 2001. - Cleary é um tradutor admirável da língua chinesa, dirigindo-se, contudo, mais ao publico leigo do que propriamente ao acadêmico. Suas traduções são agradáveis, e não raro utilizam terminologias modernas para serem mais

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acessíveis. Os trabalhos de Cleary buscam dialogar com os leitores de estratégia que não sejam apenas militares - administradores, curiosos, assistentes sociais, filósofos, etc. Neste livro, ele apresenta seleções dos mais diversos tratados chineses antigos de estratégia, mas organizados por temas. Thomas Cleary, O conhecimento da arte da guerra. São Paulo: gente, s/d. - Neste outro livro de Cleary, são apresentados trechos de obra de Zhuge Liang e Liuji, sempre de modo temático e selecionado. Wee Chow Hou e Lan Luh Luh, As 36 estratégias dos chineses. São Paulo: Record, 2003. - Uma apresentação completa sobre as 36 estratégias. Embora dedicado ao público dos negócios, conta com uma ilustração histórica correta e cuidadosa, que valoriza bastante a análise. (Atualizado em 2012) Uma excelente novidade são as traduções dos textos clássicos de estratégia chineses feitas pelo Monge Marcos Beltrão, e disponíveis em http://www.marcosbeltrao.net/mestres_de_guerra.php. Esses textos suprem a lacuna fundamental que existia em nossa língua sobre a arte da guerra chinesa.

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Sobre a História da China: Anne Cheng, História do pensamento chinês. Petrópolis: Vozes, 2008. - O mais recente, completo e excelente manual sobre a história do pensamento chinês, de suas origens ao século 20. André Bueno. Mirações do Celeste - estudos em história e cultura chinesa. Rio de Janeiro: Agbooks, 2010. - Neste livro, analiso um perfil geral da civilização chinesa, de modo introdutório, nos seus mais diversos aspectos e baseado na documentação chinesa - ou seja, a visão da China por seus próprios olhos. Também disponível em www.miracoes. blogspot.com W. Scott Morton, China - História e Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. - Um livro saboroso de se ler, fácil, agradável, e porém muito bom e informativo sobre a história da China. Jonathan Spence. Em busca da China Moderna. Rio de Janeiro: Companhia da Letras, 2006. - Estudo denso e aprofundado sobre a história da civilização chinesa em seus períodos mais recentes, após a dinastia Ming. Leitura essencial para quem se pretenda sinólogo ou mesmo conhecedor da China.

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Cronologia da História Chinesa Dinastia Xia (2205 -1766? - 1523?) Dinastia Shang (1523 - 1027) Dinastia Zhou Anterior (1027 - 771) Dinastia Zhou Posterior (771 - 221) Primaveras e Outonos (771 - 481) Estados Guerreiros (481-221) Dinastia Qin (221 - 206) Dinastia Han Ocidental (-206 - 12 d.C.) Dinastia Xin (12 - 23) Dinastia Han Oriental (23 - 221) Dinastias do Sul e do Norte (219-580) Dinastia Sui (581 - 618) Dinastia Tang (618 - 907) Cinco Dinastias (907 - 960) Dinastia Song (960 - 1279) Dinastia Yuan (1280 - 1368) Dinastia Ming (1368 - 1644) Dinastia Qing (1644 - 1911) República da China (1911 - 1949) República Popular da China (1949 em diante)

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A pronúncia de alguns nomes chineses Neste livro, utilizamos o sistema de transcrição pinyin, atualmente o mais difundido, para apresentar os nomes chineses. Como a escrita chinesa é logográfica - ou seja, composta de pictogramas e ideogramas que representam uma ideia, mas não sua pronúncia - o idioma chinês acaba criando uma situação curiosa e excepcional, que é o de podermos ler ou escrever em chinês sem ao menos sabermos pronunciar uma palavra. Por causa disso, cada país buscou criar seus próprios sistemas de alfabetização da pronúncia oficial (“mandarim”, ou putonghua) até que a China propôs o seu, o pinyin, que tem se difundido rapidamente. A vantagem do pinyin é a de apresentar uma pronúncia fácil, clara e próxima das letras representadas, com algumas exceções convencionadas. Citemos alguns exemplos de palavras que são praticamente idênticas em português: Sunzi, Sunbin, Han (“ran”), Wei (“uei”), Taigong, Liuji, Song, Yuan, Ming. Contudo, as convenções do pinyin é que merecem atenção, para que não cometamos gafes no momento de pronunciar certos nomes.

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“Q” é igual a tch - ou seja, Qi é Tchi, Qin é Tchin. “Zh” é igual a dj - ou seja, Zhuge é djugue, Zhao é djao. “C” é igual a ts - Cao Cao é Tsao Tsao. “R” é igual ao nosso “r” caipira - por exemplo, o Ren confucionista (humanismo), seria algo muito parecido com o r de “porta” acaipirado, ou com um “j” mastigado. “D” e “B” são “duros”, como “dado” ou “bola”. “T” e “P” são “cuspidos, soprados”, como “tédio” (mas soprando o “t”) e “pus”. Na internet podemos achar muitas tabelas de conversões de nomes em chinês, e suas pronúncias. É importante prestar atenção a sutileza da pronúncia, que apesar das convenções do pinyin, só pode ser compreendia, plenamente, com a sua audição direta.