a arte da felicidade - dalai lama

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A ARTE DA FELICIDADE, Um manual para a vida DE SUA SANTIDADE, O DALAI_LAMA e HOWARD C. CUTLER Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título THE ART OF HAPPINESS par Riverhead Books. Copyright (c) /998 hv HH Dalai Lama and Ho.--d C. Cutler. M.D. Copyright (c) Livraria Martins Fontes Editora Ltda São Paulo. 2000, para a presente edição. 1ª edição fevereiro de 2000 7' tiragem junho de 2000 Tradução WALDÉA BARCELLOS Bstan-'dzin-rgya-mtsho, Dalai Lama XIV, 1935A arte da felicidade: um manual para a vida / de sua santidade o Dalai Lama e Howard C. Cutler ; tradução Waldéa Barrellos. - São Paulo : Martins Fontes, 2000. Título original: The art of happiness. Todos os direitos para o Brasil reservados à Livraria Martins Fontes Editora ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 0/325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (11) 239-3677 Fax (11) 3105-6867 e-mail: infoCarrtartinsfontes.com http:llw,K,ts.martinsfontes.com Dedicado ao leitor: Que você encontre a felicidade INDICE Nota do autor IX Introdução 1 PRIMEIRA PARTE: O PROPÓSITO DA VIDA 11 Capítulo 1 O direito à felicidade 1,3 Capítulo 2 As fontes da felicidade 20 Capítulo 3 O treinamento da mente

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Livro A arte da felicidade - Dalai lama

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A ARTE DA FELICIDADE, Um manual para a vida

A ARTE DA FELICIDADE, Um manual para a vida

DE SUA SANTIDADE, O DALAI_LAMA

e

HOWARD C. CUTLER

Esta obra foi publicada originalmente em ingls com o ttulo

THE ART OF HAPPINESS par Riverhead Books.

Copyright (c) /998 hv HH Dalai Lama and Ho.--d C. Cutler. M.D.

Copyright (c) Livraria Martins Fontes Editora Ltda

So Paulo. 2000, para a presente edio.

1 edio

fevereiro de 2000

7' tiragem

junho de 2000

Traduo

WALDA BARCELLOS

Bstan-'dzin-rgya-mtsho, Dalai Lama XIV, 1935A arte da felicidade: um manual para a vida / de sua santidade o Dalai Lama e Howard C. Cutler ; traduo Walda Barrellos.

- So Paulo : Martins Fontes, 2000.

Ttulo original: The art of happiness.

Todos os direitos para o Brasil reservados

Livraria Martins Fontes Editora ltda.

Rua Conselheiro Ramalho, 330/340

0/325-000 So Paulo SP Brasil

Tel. (11) 239-3677 Fax (11) 3105-6867

e-mail: infoCarrtartinsfontes.com

http:llw,K,ts.martinsfontes.com

Dedicado ao leitor:

Que voc encontre a felicidade

INDICE

Nota do autor IX

Introduo 1

PRIMEIRA PARTE: O PROPSITO DA VIDA 11

Captulo 1 O direito felicidade 1,3

Captulo 2 As fontes da felicidade 20

Captulo 3 O treinamento da mente

para a felicidade 41

Captulo 4 O resgate do nosso estado

inato de felicidade 58

SEGUNDA PARTE: O CALOR HUMANO E A COMPAIXO 73

Captulo 5 Um novo modelo para a intimidade 75

Captulo 6 O aprofundamento da nossa ligao

com os outros 95

Captulo 7 0 valor e os benefcios da compaixo 127

TERCEIRA PARTE: A TRANSFORMAO

DO SOFRIMENTO 147

Captulo 8 Como encarar o sofrimento 149

Captulo 9 O sofrimento criado pela

prpria pessoa 168

Captulo 10 A mudana de perspectiva 194

Captulo 11 A descoberta do significado na dor

e no sofrimento 225

QUARTA PARTE: A SUPERAO DE OBSTCULOS 2415

Captulo 12 A realizao de mudanas 247

Captulo 13 Como lidar com a raiva e o dio 278

Captulo 14 Como lidar com a ansiedade e reforar

o amor-prprio 297

QUINTA PARTE: REFLEXES FINAIS SOBRE COMO

LEVAR UMA VIDA ESPIRITUAL 329

Captulo 15 Valores espirituais essenciais 331

Agradecimentos 359

Obras selecionadas de autoria de Sua Santidade,

o Dalai-Lama 363

NOTA DO AUTOR

Neste livro esto relatadas longas conversas com o Da~ lai-Lama. Os encontros pessoais com o Dalai-Lama no Arizona e na ndia, que constituem a base desta obra,

foram realizados com o objetivo expresso da cclaborao num projeto que apresentaria suas opinies sobre como levar uma vida mais feliz, acrescidas das minhas prprias

observaes e comentrios a partir da perspect;va de um psiquiatra ocidental. O Dalai-Lama permitiu com generosidade que eu escolhesse para o livro o formato que

a meu ver transmitiria melhor suas idias. Considerei que a narrativa encontrada nestas pginas proporcionaria uma leitu-

A ARTE DA FELICIDADE

ra mais agradvel e ao mesmo tempo passaria uma noo de como o Dalai-Lama pe em prtica suas idias na prpria vida diria. Com a aprovao do Dalai-Lama, organizei

este livro de acordo com o tema tratado; e assim, ocasionalmente, decidi combinar e associar material que pode ter sido extrado de conversas variadas. Da mesma

forma, tambm com a permisso do Dalai-Lama, nos trechos em que considerei necessrio para fins de clareza e compreenso, entremeei trechos de algumas das suas palestras

ao pblico no Arizona. O intrprete do Dalai-Lama, o dr. Thupten jinpa, gentilmente fez a reviso da verso final dos originais com o intuito de se assegurar de

que no houvesse, em decorrncia do processo de organizao, nenhuma distoro inadvertida das idias do Dalai-Lama.

Uma srie de descries de casos e relatos pessoais foi apresentada para ilustrar as idias em pauta. Com o objetivo de manter a confidencialidade e proteger

a privacidade dos envolvidos, em todos os casos alterei os nomes, detalhes e outras caractersticas particulares, de modo que impedisse a identificao dos indivduos.

DR. HOWARD C. CUTLER

INTRODUO

Encontrei o Dalai-Lama sozinho num vestirio de basquetebol pouco antes da hora em que se apresentaria para falar a uma multido de seis mil pessoas na Arizona State

University. Bebericava calmamente seu ch, em perfeita serenidade.

- Se Vossa Santidade estiver pronto...

Ele se levantou, animado, e saiu do vestirio sem hesitar, dando com a turba apinhada nos bastidores, composta de reprteres da cidade, fotgrafos, seguranas

e estudantes - os que procuram, os curiosos e os cticos. Caminhou em meio multido com um largo sorriso; e cumprimentava as pessoas medida que avanava. Finalmente, passou por uma cortina" apareceu no palco, fez uma reverncia, uniu as mos e sorriu. Foi recebido com um

aplauso ensurdecedor. A pedido seu, a iluminao no foi reduzida, de modo que ele pudesse ver a platia com nitidez. E, por alguns instantes, ficou simplesmente

ali parado, observando o pblico em silncio com uma expresso inconfundvel de carinho e boa vontade. Para quem nunca tinha visto o Dalai-Lama antes, suas vestes

de monge de um marrom-avermelhado e da cor do aafro podem ter causado uma impresso um pouco extica. No entanto, sua notvel capacidade para estabelecer contato

com o pblico logo se revelou quando ele sentou e comeou a palestra.

- Creio ser esta a primeira vez que vejo a maioria de vocs. Mas, para mim, no faz mesmo muita diferena se estou falando com um velho amigo ou com um novo

porque sempre acredito que somos iguais: somos todos seres humanos. claro que pode haver diferenas de formao cultural ou estilo de vida; pode haver diferenas

quanto nossa f; ou podemos ser de uma cor diferente; mas somos seres humanos, constitudos do corpo humano e da mente humana. Nossa estrutura fsica a mesma;

e nossa mente e nossa natureza emocional tambm so as mesmas. Onde quer que eu conhea pessoas, sempre tenho a sensao de estar me encontrando com outro ser humano,

exatamente igual a mim. Creio ser muito mais fcil a comunicao com os outros nesse nvel. Se dermos nfase ou objetos externos, alguns aspectos so muito teis, outros muito prejudiciais e outros so neutros. E, quando lidamos com assuntos externos, geralmente tentamos primeiro identificar

quais dessas diferentes substncias ou produtcos qumicos so benficos para que possamos nos dedicar a cultiv-los, propag-los e us-los. E das substncias que,

so danosas ns nos livramos. De modo similar, quando falamos sobre a mente, h milhares de pensamentos diferentes ou de "mentes' diferentes. Entre eles, alguns so muito teis. Esses, deveramos nutrir. Alguns so negativos, muito prejudiciais. Esses deveramos tentar reduzir.

"Portanto, o primeiro passo na busca da felicidade o aprendizado. Antes de mais nada, temos de aprender como as emoes e comportamentos negativos so prejudiciais e como as emoes positivas so benficas. E precisamos nos conscientizar de como essas emoes negativas no so prejudiciais e danosas somente para ns mesmos mas perniciosas para a sociedade e para o futuro do mundo inteiro tambm. Esse tipo de conscientizao aumenta nossa determinao para encara-las

e super-las. Em seguida, vem a percepo dos aspectos benficos das emoes e comportamentos positivos. Uma vez que nos demos conta disso, tornamo-nos determinados a valorizar, desenvolver e aumentar essas emoes positivas por mais difcil que seja. H uma espcie de disposio espontnea que vem de dentro. Portanto, atravs desse processo de aprendizado, de anlise de quais pensamentos e emoes so benficos e quais so nocivos, aos poucos desenvolvemos uma firme determinao de mudar, com a sensao de que `Agora o segredo da minha prpria felicidade, do meu prprio futuro, est nas minhas mos. No posso perder essa oportunidade'. "No budismo, o princpio da causalidade aceito como uma lei natural. Ao lidar com a realidade, preciso levar essa lei em considerao. Por exemplo, no caso de experincias do dia-a-dia, se houver certos tipos de acontecimentos que a pessoa no deseje, o melhor mtodo de garantir que tais acontecimentos no ocorram consiste em certificar-se de que no mais se dem as condies causais que normalmente propiciam aquele acontecimento. De modo anlogo, caso se deseje que ocorra um acontecimento ou experincia especfica, a atitude lgica a tomar consiste em procurar e acumular as causas e condies que dem ensejo a ele. "O mesmo vale para experincias e estados mentais. Quem deseja a felicidade deveria procurar as causas que a propiciam; e se no desejamos o sofrimento, o que deveramos fazer nos certificarmos de que as causas e condies que lhe dariam ensejo no mais se manifestem. muito importante uma apreciao desse princpio causal.

"Ora, j falamos da suprema importncia do fator mental para que se alcance a felicidade. Nossa prxima tarefa , portanto, examinar a variedade de estados mentais que vivenciamos. Precisamos identificar com clareza diferentes estados mentais e fazer distino entre eles, classificando-os segundo sua capacidade de levar felicidade

ou no." O senhor pode dar alguns exemplos especficos de diferentes estados mentais e descrever como os classificaria? - perguntei.

- Por exemplo, o dio, o cime, a raiva, entre outros, so prejudiciais - explicou o Dalai-Lama. - Ns os considerarmos estados mentais negativos porque

eles destroem nossa felicidade mental. Uma vez que abriguemos sentimentos de dio ou rancor contra algum, uma vez que ns mesmos estejamos cheios de dio ou de emoes negativas, outras pessoas tambm nos parecero hostis. Logo, disso resultam mais medo, maior inibio e hesitao, assim como uma sensao de insegurana.

Essas sensaes se desdobram e, com elas, a solido em meio a um mundo visto como hostil. Todos esses sentimentos negativos derivam do dio. Por outro lado, estados mentais como a bondade e a compaixo so decididamente positivos. So muito fteis..,

- Eu s queria saber... - disse eu, interrompendo-o. 0 senhor diz que existem milhares de estados mentais diferentes. Qual seria sua definio de uma pessoa saudvel ou equilibrada em termos psicolgicos? Ns poderamos usar uma definio dessas como uma diretriz para determinar quais estados mentais cultivar e quais suprimir?

Ele riu antes de responder com sua humildade caracterstica.

- Como psiquiatra, voc poderia ter uma definio melhor de uma pessoa saudvel em termos psicolgicos.

- Mas o que eu quero dizer do seu ponto de vista. - Bem, eu consideraria saudvel uma pessoa bondosa, carinhosa, cheia de compaixo. Se mantemos um sentimento de compaixo, de generosidade amorosa, algo automaticamente abre nossa porta interior. Atravs dela, podemos nos comunicar com os outros com uma facilidade muito maior. E essa sensao de calor humano gera uma espcie de abertura. Conclumos que todos os seres humanos so exatamente como ns e, assim, podemos nos relacionar

com eles com maior facilidade. Isso nos confere um esprito de amizade. H ento menos necessidade de esconder coisas e, por conseguinte, os sentimentos de medo, de dvida e de insegurana se dissolvem automaticamente. Da mesma forma, isso gera nos outros uma sensao de confiana. Do contrrio, por exemplo, poderamos encontrar

algum que muito competente e saber que podemos confiar na competncia daquela pessoa. No entanto, se sentirmos que essa pessoa no generosa, ficamos com um p atrs. Nossa sensao "Ah, eu sei que essa pessoa capaz, mas posso mesmo confiar nela?", e assim sempre temos uma certa apreenso, que gera uma forma de distanciamento.

"Portanto, seja como for, na minha opinio, cultivar estados mentais positivos como a generosidade e a compaixo decididamente conduz a uma melhor sade mental e felicidade."

A DISCIPLINA MENTAL

Enquanto ele falava, descobri algo muito interessante na abordagem do Dalai-Lama para alcanar a felicidade. Ela

era absolutamente prtica e racional: identificar e cultivar estados mentais positivos; identificar e eliminar estados mentais negativos. Embora sua sugesto de

comear pela anlise sistemtica da variedade dos estados mentais que experimentamos me parecesse de incio um pouco rida, aos poucos fui me encantando com a fora

da sua lgica e raciocnio. E gostei do fato de que, em vez de classificar os estados mentais, as emoes ou desejos com base em algum julgamento moral imposto de

fora, como "a cobia um pecado" ou "o dio condenvel", ele distingue as emoes como positivas ou negativas atendo-se apenas ao fato de elas acabarem levando ou no felicidade.

- Se a felicidade uma simples questo de cultivar mais estados mentais positivos, como a generosidade entre outros, por que tanta gente infeliz? - perguntei-lhe

ao retomar nossa conversa na tarde do dia seguinte.

- Alcanar a verdadeira felicidade pode exigir que efetuemos uma transformao na nossa perspectiva, nosso modo de pensar, e isso no nada simples - respondeu ele. - necessria a aplicao de muitos fatores diferentes provenientes de direes diferentes. No se deveria ter a idia, por exemplo, de que h apenas uma soluo,

um segredo; e de que, se a pessoa conseguir acertar qual , tudo dar certo. semelhante a cuidar direito do corpo fsico. Precisa-se de uma variedade de vitaminas e nutrientes, no apenas de um ou dois. Da mesma forma, para alcanar a felicidade, precisa-se de uma variedade de abordagens e mtodos para lidar com os vrios

e complexos estados mentais negativos, e para super-los. E se a pessoa est procurando superar certos modos negativos de pensar, no possvel conseguir isso apenas com a adoo de um

pensamento especfico ou a prtica de uma tcnica uma vez ou duas. A mudana demora. Mesmo a mudana fsica leva tempo. Por exemplo, se a pessoa est mudando de um clima para outro, o corpo precisa de tempo para se adaptar ao novo ambiente. E, da mesma forma, transformar a mente leva tempo. So muitos os traos mentais negativos,

e necessrio lidar com cada um deles e neutraliz-los. Isso no fcil. Exige a repetida aplicao de vrias tcnicas e a dedicao de tempo para a familiarizao

com as prticas. um processo de aprendizado.

"Creio, porm, que medida que o tempo vai passando, podemos realizar mudanas positivas. Todos os dias,

ao acordar, podemos desenvolver uma motivao positiva sincera, pensando, `Vou utilizar este dia de um modo mais positivo. Eu no deveria desperdiar justamente

este dia.' E depois, noite, antes de nos deitarmos, poderamos verificar o que fizemos, com a pergunta `Ser que utilizei estedia como planejava?' Se tudo correu de acordo com o planejado, isso motivo para jbilo. Se no deu certo, deveramos lamentar o que fizemos e passar a uma crtica

do dia. Assim, atravs de mtodos como esses, possvel aos poucos fortalecer os aspectos positivos da mente. "Agora, no meu caso como monge budista, por exemplo, acredito no budismo e atravs da minha prpria experincia sei que essas prticas budistas me so muito teis.

Contudo, em decorrncia do hbito, ao longo de muitas vidas anteriores, certos aspectos podem brotar, como a raiva ou o apego. E nesse caso o que eu fao o seguinte: em primeiro lugar, o aprendizado do valor positivo das prticas; em segundo, o fortalecimento da determinao;

e, finalmente, a tentativa de implementar as prticas. No incio, a implementao das prticas positivas muito fraca. Com isso, as influncias negativas ainda detm grande poder. Porm, com o tempo, medida que vamos gradativamente implantando as prticas positivas, os comportamentos negativos se reduzem automaticamente.

Portanto, a prtica do Dharma* de fato uma constante batalha interior, que substitui o antigo condicionamento ou hbito negativo por um novo condicionamento positivo."

E prosseguiu.

- No importa qual seja a atividade ou a prtica, a que queiramos nos dedicar, no h nada que no se tome mais fcil com o treinamento e a familiaridade constantes. Por meio do treinamento, podemos mudar, podemos nos transformar.

* O termo Dharma tem muitas conotaes, mas nenhum equivalente exato em ingls. usado com maior freqncia para fazer referncia aos ensinamentos e doutrina do Buda, abrangendo a tradio (dos textos sagrados assim como o modo de vida e as realizaes espirittuais que resultam da aplicao dos ensinamentos.

s vezes, os budistas usam a palavra num sentido mais geral - querendo dizer prticas religiosas ou espirituais em geral, a lei espiritual universal ou a verdadeira natureza dos fenmenos - e usam o termo Buddhadharma para se referir de modo mais especfico aos princpios e prticas do caminho budista. G7 termo Dharma em snscrito

deriva da raiz etimolgica que significa "segurar"; e nesse contexto, a palavra tem um significado mais amplo: o de qualquer comportamento ou entendimento que sirva para "refrear a pessoa" ou para proteg-la evitando que passe pelo sofrimento e suas causas.

Dentro da prtica budista, h vrios mtodos voltados para o esforo de manter a mente calma quando acontece algo de perturbador. Atravs da prtica repetida desses mtodos, podemos chegar ao ponto em que alguma perturbao possa ocorrer, mas os efeitos negativos exercidos sobre nossa mente permanecem na superfcie, como ondas que podem agitar a superfcie do oceano mas que ,to tm grande impacto nas profundezas. E, embora minha experincia possa ser muito limitada, descobri

a confirmao disso na minha prpria prtica. Portanto, se recebo alguma notcia trgica, naquele momento posso experimentar alguma perturbao na minha mente, mas ela desaparece muito depressa. Ou ainda, posso me irritar e gerar alguma raiva; mas, da mesma forma, ela se dissipa com rapidez. No h nenhum efeito nas profundezas da mente. Nenhum dio. Esse ponto foi alcanado atravs do exerccio gradual. No aconteceu da noite para o dia.

Claro que no. O Dalai-Lama vem se dedicando ao treinamento da mente desde os quatro anos de idade.

0 treinamento sistemtico da mente - o cultivo da felicidade, a genuna transformao interior atravs da seleo deliberada de estados mentais positivos, seguida da concentrao neles, alm do questionamento dos estados mentais negativos - possvel graas prpria estrutura e funo do crebro. Nascem os com crebros que

j vm equipados geneticamente cam certos padres de comportamentos instintivos. somos predispostos mental, emocional e fisicamente para reagir ao ambiente com atitudes que permitam nossa sobrevivncia. Esses sistemas bsicos de instrues esto codificados em inmeros modelos inatos de ativao de clulas nervosas, combinaes especficas

de clulas do crebro que atuam em resposta a algum dado acontecimento, experincia ou pensamento. No entanto, a configurao dos nossos crebros no esttica, no irrevogavelmente fixa. Nossos crebros tambm so adaptveis. Neurocientistas documentaram o fato de que o crebro pode projetar novos modelos, novas combinaes de clulas nervosas e de neurotransmissores (substncias qumicas que transmitem mensagens entre as clulas nervosas) em resposta a novos estmulos. Na realidade,

nosso crebro malevel e sempre est mudando, reconfigurando seus circuitos de acordo com novos pensamentos e experincias. E, em decorrncia do aprendizado, a funo dos prprios neurnios individuais muda, o que permite que os sinais eltricos transitem por eles com maior rapidez. Os cientistas chamam de "plasticidade" a capacidade de mudar inerente ao crebro. Essa capacidade de redefinir a configurao do crebro, de desenvolver novas conexes neurais, foi demonstrada em experincias como, por exemplo, uma realizada pelos drs. Avi Karni e Leslie Underleider nos National Institutes of Mental Health. Nessa experincia, os pesquisadores fizeram com que os objetos desempenhassem uma tarefa simples de coordenao motora, um exerccio de batucar com os dedos, e identificaram por meio de um exame de ressonncia magntica quais as partes do

crebro envolvidas na tarefa. Os objetos da pesquisa passaram ento a praticar o exerccio dos dedos todos os dias ao longo de quatro semanas, tornando-se pouco a pouco mais eficientes e rpidos. Ao final do perodo de quatro semanas, foi repetido o exame do crebro, e ele revelou que a

rea do crebro envolvida na tarefa havia expandido. Isso indicou que a prtica regular e a repetio da tarefa haviam recrutado novas clulas nervosas e haviam mudado as conexes neurais que originalmente estavam envolvidas na tarefa. Essa notvel caracterstica do crebro parece ser o embasamento fisiolgico para a possibilidade de transformao da nossa mente. Com a mobilizao dos nossos pensamentos e a prtica de novos modos ce pensar, podemos remodelar nossas clulas cerebrais e alterar o modo de funcionar do nosso crebro. Ela tambm a base para a idia de que a transformao interior comea com o aprendizado (novos estmulos) e envolve a disciplina de substituir gradativamente nosso "condicionamento

negativo" (correspondente aos nossos padres atuais caractersticos de ativao de clulas nervosas) por um "condicionamento positivo" (com a formao de novos circuitos neurais). Assim, a idia de treinar a mente para a felicidade passa a ser uma possibilidade real.

Em conversa posterior relacionada ao treinamento da mente para a felicidade, o Dalai-Lama salientou o seguinte ponto.

- Creio que o comportamento tico outra caracterstica do tipo de disciplina interior que leva a uma existncia mais feliz. Ela poderia ser chamada de disciplina tica. Grandes mestres espirituais, como o Buda, aconselham-nos a realizar atos saudveis e a evitar o envolvimento

com atos prejudiciais. Se nossa ao saudvel ou prejudicial, depende de essa ao ou ato ter como origem um estado mental disciplinado ou no disciplinado. A percepo que uma mente disciplinada leva felicidade; e uma mente no disciplinada leva ao sofrimento. E, na realidade, diz-se que fazer surgir a disciplina no interior da mente a essncia do ensinamento do Buda.

"Quando falo de disciplina, refiro-me autodisciplina, no disciplina que nos imposta de fora por outros. Alm disso, refiro-me disciplina que aplicada com o objetivo de superar nossas qualidades negativas. Uma gangue de criminosos pode precisar de disciplina para efetuar um roubo com xito, mas essa disciplina intil."

O Dalai-Lama parou de falar por um instante e pareceu estar refletindo, organizando os pensamentos. Ou talvez estivesse apenas procurando uma palavra em ingls. No sei. No entanto, pensando na nossa conversa enquanto ele fazia a pausa naquela tarde, algum aspecto de toda essa histria relativa importncia do aprendizado e da disciplina comeou a me parecer bastante entediante em comparao com os sublimes objetivos da verdadeira felicidade, da evoluo espiritual e da completa transformao interior. Parecia-me que a busca da felicidade deveria de algum modo ser um processo mais espontneo. Levantei essa questo com um aparte.

- O Senhor descreve as emoes e comportamentos negativos como sendo "prejudiciais" e os comportamentos positivos como "salutares". Alm disso, afirma que uma mente sem treinamento ou disciplina geralmente resulta em comportamentos negativos ou prejudiciais,

de modo que precisamos aprender a nos treinar para aumentar nossos comportamentos positivos. At a, tudo bem.

"Mas o que me perturba que sua prpria definio de comportamentos negativos ou prejudiciais a daqueles comportamentos que resultam em sofrimento. E define um comportamento salutar como o que resulte em felicidade. O senhor tambm parte da premissa bsica de que todos os seres por natureza querem evitar o sofrimento e alcanar a felicidade. Esse desejo inato. No precisa ser aprendido. A questo , portanto, a seguinte: se nos natural querer evitar o sofrimento, por que no sentimos, de modo espontneo e natural, uma repugnncia maior pelos comportamentos negativos ou prejudiciais, medida que amadurecemos? E se natural querer alcanar mais felicidade, por que no somos cada vez mais atrados, de modo espontneo e natural, para comportamentos salutares, tornando-nos assim mais felizes

medida que nossa vida avana? Ou seja, se esses comportamentos salutares levam naturalmente felicidade, e ns queremos a felicidade, isso no deveria ocorrer como um processo natural? Por que deveramos precisar de tanta educao, treinamento e disciplina para que esse processo se desenrole?

- Mesmo em termos convencionais, no nosso dia-a-dia - respondeu o Dalai-Lama -, consideramos a educao um fator importantssimo para a garantia de uma vida feliz e de sucesso. E o conhecimento no se obtm espontaneamente. preciso treinamento; temos de passar por uma

espcie de programa de treinamento sistemtico e assim por diante. E consideramos essa instruo e treinamento convencional bastante rduos. Se no fosse assim,por que os alunos anseiam tanto pelas frias? E, no entanto, sabemos que esse tipo de instruo vital para garantir uma vida feliz e bem-sucedida.

"Da mesma forma, realizar atos salutares pode no nos ocorrer naturalmente, mas temos de fazer um treinamento consciente nesse sentido. Isso acontece, especialmente na sociedade moderna, porque existe uma tendncia a aceitar que a questo dos atos salutares e dos prejudiciais - o que se deve e o que no se deve fazer - algo que se considera pertencer esfera da religio. Tradicionalmente, considerou-se ser responsabilidade da religio prescrever quais comportamentos so salutares e quais no so. Contudo, na sociedade atual, a religio perdeu at certo ponto seu prestgio e influncia. E, ao mesmo tempo, nenhuma alternativa, como por exemplo uma tica secular, veio substitu-Ia. Por isso, parece que se dedica menos ateno necessidade de levar um estilo saudvel de vida. por isso que acredito que precisamos fazer um esforo especial e trabalhar com conscincia com o objetivo de adquirir esse tipo de conhecimento. Por exemplo, embora eu pessoalmente acredite que nossa natureza humana essencialmente benvola e compassiva, tenho a impresso de que no basta que essa seja nossa natureza fundamental; devemos tambm desenvolver uma valorizao e conscientizao desse fato. E a transformao de como nos percebemos, atravs do aprendizado e do entendimento, pode ter um impacto muito verdadeiro no modo como interagimos com os outros e como conduzimos nosso dia-a-dia."

C) PROPSITO DA VIDA

_ Mesmo assim, o senhor usa a analogia da formao acadmica tradicional - retruquei, no papel de advogado do diabo. - Isso uma coisa. Porm, se estamos falido de certos comportamentos que o senhor chama de `salutares" ou positivos, que resultariam na felicidade, e oitros comportamentos que resultariam em sofrimento, por que necessrio tanto tempo de aprendizado para identificar quais comportamentos se enquadram em qual categoria e tanto treinamento para implementar os comportamentos Positivos e eliminar os negativos? Ou seja, se algum pe a mo no fogo, ele se queima. A pessoa recolhe a mo, tendo aprendido que esse comportamento resulta em sofrimento. No preciso um longo aprendizado

ou treinamento para que ela aprenda a no mais tocar no fogo.

"Ora, por que no so assim todos os comportamentos ou emoes que resultam em sofrimento? Por exemplo, o senhor alega que a raiva e o dio so emoes nitidamente negativas e que acabam levando ao sofrimento. Mas por que preciso que a pessoa seja instruda a respeito dos Jeitos danosos da raiva e do dio para elimin-los?

Como a raiva causa de imediato um estado emocional desagradvel, e sem dvida fcil perceber diretamente essa perturbaao, por que as pessoas no passam simplesmente a evit-la no futuro de modo espontneo e natural?"

Enquanto o Dalai-Lama ouvia atentamente meus argumentos > seus olhos inteligentes se arregalaram um pouco, como soe ele estivesse levemente surpreso com a ingenuidade dais minhas perguntas, ou at mesmo como se as considerasse divertidas. Depois, com uma risada vigorosa, cheia de boa vontade, ele respondeu.

_ diz que o conhecimento conduz liberdade e seu sucesso em alcanar a felicidade. Quando se q

tmento, maor ser sei

' soluo de um problema, preciso compreender por isso que eu considero a educao e o conhecimento

dade ou a der que h muitos nveis diferentes. Digamos, por exemplo cruciais."

s seres humanos na Idade da Pedra no sabiam Percelvendo, sup, uponho ene, minha persistente resistn-

plo, que o

carne mas mesmo assim tinham a necessidade

cia idia. da mera fa educao como meio de transformacozinhar a

~servou.

biolgica de consumi-Ia. Por isso, comiam exatamente como o interior, ele obse

um animal selvagem. medida que evoluram, aprende-

- Um problema ca da nossa sociedade atual que temos

a acrescentar temperos para tornar a comi- uma atitude diante d. da educao como se ela existisse ape

ram a cozinhar, orosa e depois inventaram pratos mais diver- nas para tornar as pepessoas mais inteligentes, para torn-las

da mais saborosa sificados. E

at mesmo na atualidade, se estamos com al- mais criatvas. s ve2,ezes chega mesmo a parecer que aque

guma doena especfica e, atravs do conhecimento, apren- les que no receberaram grande instruo, aqueles que so

demos que um certo tipo de alimento no bom para menos sofisticados e em termos de formao acadmica, so

ns, muito embora tenhamos o desejo de consumi-lo, ns mais inocentes e helonestos. .Muito embora nossa socieda

nos refreamos. Portanto est claro que quanto mais sofis- de no d nfase a a esse aspecto, a aplicao mais valiosa

,

ticado for o

nvel do nosso conhecimento, com maior efi- do conhecimento e o da instruo a de nos ajudara enten-

ccia lidaremos com o mundo natural. der a importncia d ;da dedicao a atos mais salutares e da

" tambm preciso julgar as conseqncias dos nos- implantao da disciciplina na nossa mente. A utilizao cor

sos comportamentos a longo e a curto prazo, para ponde- reta da nassa intelig~gencia e conhecimento consiste em pro

dentro para fora, para desenvolver um

r-las. Por exemplo, no controle da raiva. Apesar de os vocar mudanas de

animais poderem experimentar a raiva, eles no podem bom corao.

entender que a raiva destrutiva. No caso dos seres humanos, porm, h um nvel diferente, no qual se tem uma espcie de percepo de si mesmo que permite refletir

e observar que, quando a raiva surge, ela prejudica a pessoa. Portanto, pode-se concluir que a raiva destrutiva. preciso ser capaz de fazer essa inferncia.

Logo, no se trata de algo to simples quanto pr a mo no fogo, queimar-se e aprender a nunca mais fazer isso no futuro. Quanto mais sofisticado for seu grau de

instruo e de conhecimento a respeito do que leva felicidade e do que provoca o sofrimento

Captulo 4

O RESGATE DO NOSSO ESTADO

INATO DE FELICIDADE

NOSSA NATUREZA FUNDAMENTAL, fomos feitos para procurar a felicidade. E est claro que os sentimentos de amor, afeto, intimidade e compaixo trazem a felicidade. Creio que cada um de ns

dispe da base para ser feliz, para ter acesso aos estados mentais de amor e compaixo que produzem a felicidade afirmou o Dalai-Lama. - Na realidade, uma das

minhas crenas fundamentais que ns no s possumos inerentemente o potencial para a compaixo, mas tambm que a natureza bsica ou essencial do ser humano a

serenidade.58

- Em que o senhor baseia essa crena?

A doutrina budista da "Natureza do Buda" oferece alguns Fundamentos para a crena de que a natureza essencial de todos os seres conscientes basicamente serena e no agressiva`. Pode-se, entretanto, adotar esse enfoque sem que seja preciso recorrer doutrina budista

da "Natureza do Buda. H tambm outros fatores nos quais baseio essa crena. Para mim o tema do afeto humano ou da compaixo no apenas uma questo religiosa. Trata-se de um fato indispensvel na vida do dia-a-dia.

"Para comear, se olharmos o prprio modelo da nossa existncia desde a tenra infncia at a morte, poderemos ver como fomos nutridos pelo afeto dos outros.

E isso a partir do nascimento. Nosso primeiro ato aps o nascimento o de mamar o leite da nossa me ou de outra mulher. um ato de afeto, de compaixo. Sem ele,no podemos sobreviver. Isso claro. E esse ato no pode ser realizado a menos que exista um sentimento mtuo de afeto. Por parte da criana, se no houver nenhum sentimento de afeto pela pessoa que estiver amamentando, se no houver nenhum vnculo, pode acontecer de a criana no mamar. E, sem o afeto por parte da me ou da outra pessoa, pode ser que o leite no flua livremente. E assim a vida. Assim a realidade.

"Alm disso, nossa estrutura fsica parece ser mais adequada a sentimentos de amor e compaixo. Podemos ver na filosofia budista, a "Natureza do Buda" refere-se a uma natureza da mente que oculta, essencial e extremamente sutil. Esse estado da mente que existe

em todos os seres humanos, totalmente imaculado por Moes ou pensamentos negativos.

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A ARTE DA FELICIDADE

como uma disposio mental tranqila, afetuosa e salutar produz efeitos benficos para mossa sade e bem-Bestar fsico. Inversamente,as sentimentos de frustrao, de medo,agitao e de raiva podem ser danosos nossa sade'

"Podemos ver tambm que nossa sade emocional beneficiada por sentimentos de afeto. Para entender isso, basta refletir sobre como nos sentimos quando os outros nos demonstram cainho e afeto. Ou ainda, observamos como nossos prprios sentimentos ou atitudes afetuosas de modo natural e automtico nos afetam de dentro para fora, como fazem com que nos sintamos. Essas emoes mais suaves e os comportamentos positivos que as acompanham propiciam uma vida familiar e comunitria mais feliz.

``Por isso, creio que podemos deduzir que nossa natureza essencial como seres humanos uma natureza meiga. E se esse o caso, faz ainda mais sentido tentar levar uma vida que esteja em harmonia com essa doce natureza fundamental do nosso ser." - Se nossa natureza essencial gentil e cheia de doce paixo - perguntei -_ eu s gostaria de saber como senhor explica todos os conflitos e comportamentos agressivos que nos cercam por todos os lados.

O Dalai-Lama fixou a cabea, pensativo, por um instante antes de responder.

- Naturalmente 'no podemos ignorar o fato de que existem conflitos e tenses, no apenas dentro da mente de um indivduo, mais tambm dentro da famlia,quando interagimos com outras pessoas, e na sociedade, em nvel nacional e mundial. pois, ao examinar tudo isso, algumas pessOas concluem que a natureza humana basicamente agreSSiva. Elas podem apontar para a histria da humanidade, sugerindo que, em comparao com o comportamento de outros mamferos, o do ser humano muito mais agressivo. Ou ainda, podem alegar, " verdade, a compaixo faz parte da nossa mente. Mas a raiva tambm faz parte da nossa mente. Elas pertencem nossa natureza em termos iguais. As duas se encontram mais ou menos no mesmo nvel." Mesmo assim - disse ele, com firmeza, debruando-se para a frente na cadeira, tenso com um ar alerta -, ainda tenho a firme convico de que a natureza humana fundamentalmente bondosa, meiga. Essa a caracterstica predominante da natureza humana. A raiva, a violncia e a agressividade podem sem dvida surgir, mas para mim isso ocorre num nvel secundrio ou mais superficial.

Em certo sentido, elas surgem quando nos sentimos frustrados nos nossos esforos para alcanar o amor e o afeto. No fazem parte da nossa natureza mais bsica, mais fundamental.

"Portanto, embora a agressividade possa ocorrer, creio que esses conflitos no so necessariamente decorrentes da natureza humana, mas, sim, que resultem do intelecto humano - uma inteligncia humana em desequilbrio, o uso inadequado da nossa inteligncia, das nossas faculdades imaginativas. Ora, ao examinar a evoluo humana, creio que nosso corpo fsico pode ter sido muito fraco em comparao com o de outros animais. No entanto, graas ao desenvolvimento da inteligncia humana, fomos capazes de usar muitos instrumentos e descobrir muitos mtodos para superar condies ambientais adversas. medida que a sociedade humana e as condies ambientais foram aos poucos se tornando mais complexas, tornou-se necessrio um papel cada vez maior da nossa inteligncia e capacidade cognitiva para fazer frente s exigncias cada vez maiores desse ambiente complexo. Por isso, creio que nossa natureza bsica ou fundamental a serenidade,e que a inteligncia um desdobramento posterior. Creio tambm que, se aquela capacidade humana, aquela inteligncia humana, apresentar um desenvolvimento desequilibrado,

sem que seja adequadamente compensada pela compaixo, nesse caso ela pode tornar-se destrutiva. Pode ter conseqncias desastrosas.

"Creio, porm, ser importante reconhecer que, se os conflitos humanos so criados pelo uso indevido da inteligncia, tambm podemos utilizar a inteligncia para descobrir meios e formas para superar esses conflitos. Quando a inteligncia e a bondade ou afeto so usados em conjunto, todos os atos humanos passam a ser construtivos. Quando combinamos um corao amoroso com o conhecimento e a educao, podemos aprender a respeitar as opinies e os direitos dos outros. Isso se torna

a base de um esprito de reconciliao que pode ser usado para dominar a agressividade e resolver nossos conflitos."

O Dalai-Lama fez uma pausa e deu uma olhada de relance no relgio.

- Portanto - concluiu ele - por maior que seja a violncia ou por mais numerosas que sejam as atrocidades pelas quais tenhamos de passar, creio que a soluo definitiva para nossos conflitos, tanto internos quanto externos, reside na volta nossa natureza humana bsica ou fundamental, que meiga e cheia de compaixo. - Olhando mais uma vez para o relgio, ele deu um riso afvel. - E ento... vamos parar por aqui... Foi um longo dia! Apanhou os sapatos, que havia descalado durante a conversa, e se recolheu para seu quarto.

A QUESTO DA NATUREZA HUMANA

Ao longo das ltimas dcadas, a concepo do Dalai Lama da natureza compassiva latente nos seres humanos parece estar aos poucos ganhando terreno no Ocidente, embora tenha sido uma luta rdua. A noo de que o comportamento humano essencialmente egocntrico, de que no fundo mesmo cada um por si, est profundamente enraizada no pensamento ocidental. A idia de que no s ns somos inerentemente egostas mas de que a agressividade e a hostilidade fazem parte da natureza humana

essencial domina nossa cultura h sculos. Naturalmente, ao longo da histria houve um bom nmero de pessoas com opinio contrria. Por exemplo, em meados do sculo XVIII, David Hume escreveu muito sobre a "benevolncia natural" dos seres humanos. E um sculo depois, at mesmo Charles Darwin atribuiu um "instinto de solidariedade" nossa espcie. No entanto, por algum motivo, a viso mais pessimista da humanidade est arraigada na nossa cultura, pelo menos desde o sculo XVII, sob a influncia de filsofos como Thomas Hobbes, que tinha uma opinio bastante negativa da espcie humana. Ele considerava a humanidade violenta, competitiva. Ocupada apenas com interesses pessoais. Hobbes, foi uma vez flagrado dando esmola a um mendigo na fila. Quando questionado a respeito dessa ao generosa, ele alegou no estar fazendo aquilo se importando com o mendigo; estava s aliviando sua prpria conscincia para ajudar diante da pobreza do homem.

Desta mesma forma, no incio deste sculo, o filsofo SantaYana escreveu que impulsos generosos, embora possam existir, costumam ser fracos na natureza humana, mas "cave um efmeros abaixo da Superfcie e descobrir um ser feroz, profundamente egosta". Infelizmente, a psicologia existente, ocidental apoderaram-se de idias como essa, a cincia e at fomentaram essa viso do egosmo. A deram sana primeiros tempos da moderna psicologia cientfica a partir de uma pressuposio geral e fundamental de que fica, houve uma motivaoque em ltima anlise egosta, toda a mente no interesse pessoal.

Se ada meras de aceitar implicitamente a premissa do nosso egosmo essencial, uma srie de cientistas proeminente egocentristas dos ltimos cem anos acrescentou a ela uma tese ao longo da natureza agressiva essencial dos humanos. Freud cr que a inclinao agressividade uma disposio afirmou qual, instintiVa e que subsiste por seus prprios o origine segunda metade deste sculo, dois autores em meios". Na;obert Ardrey e Konrad Lorenz, observaram papel especial, ao comportamento animal em certas espcies de padres e concluram que os seres humanos eram basicamente e predadores tambm, providos de um impulso inato para lutar por territrio.

Nos ltimos anos, porm, a mar parece estar se voltando contra essa viso profundamente pessimista da humanidade, aproximando-se mais da percepo do Dalai-Lama da brandura e compaixo da nossa natureza latente. Ao longo das duas ou trs ltimas dcadas, houve literalmente centenas de estudos cientficos que indicaram que a agressividade no essencialmente inata e que o comportamento violento influenciado por uma variedade de fatores biolgicos, sociais, situacionais e ambientais.

Talvez a declarao mais abrangente sobre as pesquisas mais recentes esteja resumida na Declarao sobre a Vivncia de Sevilha de 1986, que foi redigida e firmada por vinte cientistas de renome, do mundo inteiro. Nesse texto, eles naturalmente reconheceram que o comportamento violento ocorre, sim, mas afirmaram categoricamente que incorreto em termos cientficos dizer que temos uma tendncia herdada para entrar em guerras ou para agir com violncia. Esse comportamento no est programado

geneticamente na natureza humana. Disseram que, apesar de termos o sistema neural necessrio para agir com violncia, esse comportamento em si no ativado de modo automtico. No h nada na nossa neurofisiologia que nos obrigue a agir com violncia. Ao examinar o tema da natureza humana essencial, a maioria dos pesquisadores o percebe atualmente que no fundo temos o potencial para nos tornarmos pessoas serenas, atenciosas, ou pessoas violentas, agressivas. O impulso que acaba sendo realado em grande parte uma questo de treinamento. Pesquisadores contemporneos refutaram a idia da agressividade inata da humanidade. No s isso, mas a idia do "mim" e "meu"

parte de um grupo tinham uma erro. Essa necessidade de fortes hoje. Em estudos, como por dr. Larry Scherwitz, com o objeto de risco para a doena coronrias em pessoas que tinham o foco suras (aquelas que se referiam o nomes "em de que os seres humanos tm um egosmo inato tambm est sofrendo ataque. Estudiosos como C. Daniel Batson ou Nancy Eisenberg, da Arizona State University,realizaram

numerosas pesquisas ao longo dos ltimos anos que demonstram que os seres humanos tm uma tendncia ao comportamento altrusta. Alguns cientistas, como a sociloga

dra. Linda Wilson, procuram descobrir por que isso acontece. Ela props a hiptese de que o altrusmo pode fazer parte do nosso instinto bsico de sobrevivncia - o exato oposto de idias de pensadores anteriores que postulavam que a hostilidade e a agressividade eram a principal caracterstica do nosso instinto de sobrevivncia.

Ao examinar mais de cem catstrofes naturais, a dra.Wilson descobriu um forte padro de altrusmo entre as vtimas, que parecia fazer parte do processo de recuperao.

Descobriu que o trabalho em conjunto para ajudar uns aos outros costumava afastar a possibilidade de problemas psicolgicos no futuro, problemas que poderiam ter resultado do trauma. A tendncia a criar fortes laos com outros, em aes destinadas ao bem-estar dos outros tanto quanto ao prprio, pode estar profundamente enraizada na natureza humana, tendo sido criada no passado remoto, quando aqueles que se uniam tinham chance maior de sobreviver os vnculos sociais, persistem como um exemplo realizado com motivo de pesquisar os fatores ariana.

Com maior freqncia numa entrevista, tinham maior Probabilidade de desenvolver doena coronariana mesmo quando outros comportamentos prejudiciais sade estavam sob controle. Cientistas esto descobrindo que as pessoas a quem faltam fortes laos sociais parecem ter sade frgil, nveis mais altos de infelicidade - uma maior vulnerabilidade ao estresse.

Tomar a iniciativa de ajudar os outros pode ser to essencial nossa natureza quanto a comunicao. Seria possvel traar uma analogia com o desenvolvimento da linguagem que, semelhana da capacidade para a comPaixo e o altrusmo, uma das esplndidas caractersticas da espcie humana. Determinadas reas do crebro,e especificamente devotadas ao potencial para a linguagem. Se formos expostos s condies ambientais adequadas, ou seja, a uma sociedade que fala, essas reas distintas

do crebro comeam a se desenvolver e a amadurece medida que nossa capacidade para a linguagem for crescendo. Da mesma forma, todos os seres humanos podem nascer com o dom natural com a "semente da compaixo" Quando ePsta s condies adequadas - em casa, na sociedade como um todo e, mais tarde talvez, por meio com os nossos prprios esforos direcionados - essa "semente vicejar. por essa idia em mente, pesquisadores esto afira procurado descobrir as condies ambientais timas que peroram que a semente da ateno e compaixo pelos outros amadurea em crianas. J identificaram alguns fatore: capazes de moderar suas prprias emoes,que sejam modelos de comportamento atencioso, que estabelea" limites adequados para o comportamento dos filhos, que comuniquem criana que ela responsvel pelo seu prprio comportamento e que usem a argumentao para ajudar a direcionar a ateno da criana para estados emocionais ou afetivos bem como para as conseqncias do seu comportamento sobre os outros.Uma reviso dos nossos pressupostos bsicos acerca da natureza latente dos seres humanos, de hostil para solidria, pode abrir novas possibilidades. Se comeamos por pressupor o modelo de todo o comportamento humano baseado no interesse pessoal, um beb serve de exemplo perfeito, como "prova" dessa teoria. Ao nascer, os bebs

parecem estar programados com apenas uma idia na cabea: a gratificaro das suas prprias necessidades- alimento, conforto fsico e assim por diante. Entretanto,se eliminarmos esse pressuposto egosta bsico, um quadro totalmente novo comea a surgir. Poderamos com a mesma facilidade dizer que um beb nasce programado para apenas uma coisa: a capacidade e objetivo de trazer prazer e alegria aos outros. Pela simples observao de um beb saudvel, seria difcil negar a meiga natureza latente dos seres humanos. E, a partir dessa nova perspectiva, poderamos defender com sucesso a hiptese de ser inata a capacidade de dar prazer ao outro, a quem lhe devota cuidados. Por exemplo, num recm-nascido, o sentido do olfato desenvolvido at talvez apenas 5% da capacidade de um adulto; e o sentido do paladar pouqussimo desenvolvido. Mas o que existe desses sentidos no recm-nascido est voltado para o cheiro e para o sabor do leite materno. O amamentar no s fornece nutrientes ao beb; ele

serve para aliviar a tenso nos seios. Logo, pode ser que o beb nasce com uma capacidade inata de darprazer me, por meio do alvio da tenso nos seis. O beb tambm est programado em termos biolgicos em reconhecer e reagir a rostos; e so poucas as pessoas que deixam de sentir um prazer autntico quando beb a fita, inocente, seus olhos e sorri. Alguns etlogos uma teoria a partir dessa constatao, propondo

que o um beb sorri para quem cuida dele quando olha para os olhos dessa pessoa, esse beb um "projeto biolgico" profundamente arraigado,

Atenciosos, meigos, na pessoa que lhe presta cuidados por sua vez tambm est obedecendo a uma instintiva igualmente irresistvel. medida que mais pesquisadores saem em campo para descobrir objetivamente na natureza dos seres humanos, a concepo do beb uma trouxinha de egosmo, uma mquina de comer , est cedendo lugar a uma viso de um ser que vem ao mundo com um mecanismo inato destinado a dar aos outros, exigindo apenas as condies adequadas para permitir que a "semente de compaixo" naturalmente germine e cresa.

Uma vez que cheguemos concluso de que a natureza bsica da humanidade bondosa em vez de agressiva, o relacionamento com o mundo nossa volta

Muda de imediato. Encarar os outros como seres essencialmente bondosos, em vez de hostis e egostas, nos ajuda a relaxar, a confiar, a viver tranqilos. Essa atitude nos torna mais felizes.

MEDITAAO SOBRE O PROPSITO DA VIDA

Enquanto o Dalai-Lama permaneceu no deserto do Arizona naquela semana, voltado para o estudo da natureza humana e o exame da mente humana com a ateno minuciosa de um cientista, uma ntida verdade parecia refulgir e iluminar todas as conversas: o propsito da vida a felicidade. Essa simples afirmao pode ser usada como uma ferramenta poderosa para nos ajudar a superar os problemas dirios da vida. A partir dessa perspectiva, passa a ser nossa tarefa descartar o que provoca o sofrimento e acumular o que nos leva felicidade. O mtodo, a prtica diria, envolve uma expanso gradual da nossa conscientizao e entendimento do que realmente propicia a felicidade e do que no a propicia.

Quando a vida se torna muito complicada e nos sentimos assoberbados, costuma ser til dar um simples passo atrs e lembrar a ns mesmos qual nosso propsito geral, nosso objetivo. Quando deparamos com uma sensao de estagnao e confuso, pode ser valioso tirar uma hora, uma tarde ou mesmo alguns dias para apenas refletir sobre o que de fato nos trar a felicidade, e ento reordenar nossas prioridades com base nessa reflexo. Isso pode pr nossa vida de volta no contexto adequado,

permitir uma nova perspectiva e nos possibilitar ver que direo tomar.

O PROPSITO DA VIDA

De vez em quando, deparamos com decises cruciais capazes de afetar toda a trajetria da nossa vida. Podemos, por exemplo, resolver que vamos nos casar,ter filhos ou iniciar estudos para nos tornarmos advogados, artistas ou eletricistas. A firme resoluo de sermos felizes - de aprender sobre os fatores que conduzem felicidade e de adotar medidas positivas para construir uma vida mais feliz pode ser uma deciso exatamente desse tipo. A adoo da felicidade como um objetivo legtimo e a deciso consciente de procurar a felicidade de modo sistemtico podem exercer uma profunda mudana no restante das nossas vidas.

O entendimento que o Dalai-Lama tem dos fatores que acabam propiciando a felicidade baseado em toda uma vida de observao metdica da propriamente, de exames da natureza da condio humana e de investigao desses aspectos dentro de uma estrutura estabelecida pela primeira vez pelo Buda h mais de 25 sculos. E a partir dessa tradio que o Dalai-Lama chegou a algumas concluses explcitas sobre quais atividades e pensamentos so mais valiosos. Ele resumiu suas crenas

nas seguintes palavras que podem ser usadas como uma meditao.

- tais vezes, quando me encontro com velhos amigos, lembro-me de como o tempo passa depressa. E isso faz com que eu me pergunte se utilizamos nosso tempo bem ou no. A utilizao adequada do tempo de extrema importncia. Enquanto tivermos esse corpo e especialmente esse assombroso crebro humano, creio que cada minuto algo precioso. Nossa existncia diria repleta de esperana,embora no haja nenhuma garantia quanto ao nosso futuro. No h nenhuma garantia de que amanh a esta hora estaremos aqui. Mesmo assim, trabalhamos para isso apenas com base na esperana. Portanto, precisamos fazer o melhor uso possvel do nosso tempo. Creio que a melhor utilizao do tempo a seguinte: se for possvel, servir

aos outros, a outros seres conscientes. Se no for possvel, pelo menos procurar no prejudic-los. Creio que esta toda a base da minha filosofia.

"Logo, reflitamos sobre o que realmente tem valor na vida, o que confere significado nossa vida, e fixemos nossas prioridades com base nisso. O propsito da nossa vida precisa ser positivo. No nascemos com a finalidade de causar problemas de prejudicar os outros. Para que nossa vida tenha valor, creio que devemos desenvolver boas qualidades humanas essenciais - o carinho, a bondade, a compaixo. Com isso nossa vida ganha significado e se torna mais tranqila, Mais feliz."Segunda parte

O CALOR HUMANO

E A COMPAIXO

Captulo 5

UM NOVO MODELO PARA

A INTIMIDADE

A SOLIDO E O CONTATO

Entrei na sala de estar da sute do Dalai-Lama, e ele fez um gesto para que eu me sentasse Enquanto serviam o ch, ele descalou os sapatos cmodos cor de caramelo e se instalou no conforto de uma poltrona de dimenses exageradas.

- E ento? perguntou em tom despreocupado, mas com uma inflexo que dizia que estava pronto para qualquer coisa. Ele sorria mas permaneceu calado. espera.

Momentos antes, quando estava sentado no saguo do hotel espera do incio da fossa sesso, eu havia apanhado distrado um exemplar de um jornal alternativo local que estava aberto na pgina do "correio sentimental". Passei os olhos rapidamente pelos anncios apinhados,

pginas e mais pginas de pessoas em busca, na esperana desesperada de entrar em contato com outro ser humano. Ainda pensando nos anncios quando me sentei para comear minha reunio com o Dalai-Lama, de repente resolvi pr de lado minha lista de perguntas preparadas.

- O senhor chega a sentir solido?

- No - respondeu ele, com simplicidade. Eu no estava preparado para essa resposta. Imaginava que ela fosse ser algo semelhante a " claro... de vez em quando todos sentem alguma solido..." Em seguida, eu planejava perguntar como ele lidava com a solido. Jamais esperei estar diante de algum que nunca sentisse solido.

- No? - voltei a perguntar, incrdulo.

- No.

- E a que o senhor atribui isso?

Ele pensou por um instante.

-- Creio que um fator o de eu encarar qualquer ser humano de um ngulo mais positivo. Tento procurar seus aspectos positivos. Essa atitude cria de imediato uma sensao de afinidade, uma espcie de sintonia. "E tambm pode ser em parte porque, do meu lado, h menos apreenso, menos medo, de que, se eu agir de uma certa forma, talvez a pessoa perca o respeito ou pense que sou estranho. E assim, como esse tipo de medo e apreenso normalmente est ausente, existe uma espcie de franqueza. Acho que esse o fator principal."

No esforo de compreender a abrangncia e a dificuldade de adotar essa atitude, fiz minha pergunta.

O CALOR HUMANO E A COMPAIXO

- Mas como o senhor sugeriria que uma pessoa adquira a capacidade de se sentir vontade com os outros, de no sentir esse medo ou apreenso de no agradar ou de ser julgado pelos outros? Existem mtodos especficos aos quais uma pessoa comum poderia recorrer para desenvolver essa atitude?

- Minha crena bsica que primeiro necessrio perceber a utilidade da compaixo - disse ele, com convico. - Esse o fator chave. Uma vez que se aceite o fato de que a compaixo no algo infantil ou piegas, uma vez que se perceba que a compaixo algo que realmente vale a pena, que se perceba seu valor mais profundo,

desenvolve-se de imediato uma atrao por ela, uma disposio a cultiv-la.

"E, uma vez que se estimule a idia da compaixo na mente, uma vez que esse pensamento se torne ativo, as atitudes da pessoa para com os outros mudam automaticamente.

Se abordamos os outros com a idia da compaixo, isso automaticamente reduz o medo e permite uma franqueza com os outros. Cria uma atmosfera amiga e positiva. Com essa atitude, podemos tentar um relacionamento no qual cada um de ns, por si mesmo, cria a possibilidade de receber afeto ou uma reao positiva por parte da outra pessoa. E com essa atitude, mesmo que a outra pessoa seja antiptica ou no nos d uma resposta positiva, pelo menos ns a abordamos com uma sensao de abertura

que nos proporciona uma certa flexibilidade e a liberdade de mudar nossa abordagem conforme seja necessrio. Esse tipo de abertura, no mnimo, permite a possibilidade de ter uma conversa significativa com ela. No entanto, sem a atitude de compaixo, se estamos nos sentindo bloqueados, irritados ou indiferentes, podemos at ser abordados pelo nosso melhor amigo, e simplesmente nos sentirmos constrangidos.

"Creio que em muitos casos as pessoas costumam esperar que a outra pessoa lhes d uma resposta positiva primeiro, em vez de elas mesmas tomarem a iniciativa para criar essa possibilidade. Para mim, essa atitude errada. Ela leva a problemas e pode atuar como uma barreira que s serve para promover uma sensao de isolamento com relao aos outros. Portanto, se desejamos superar aquela sensao de isolamento e solido, creio que nossa atitude fundamental faz uma enorme diferena. E abordar

os outros com a idia da compaixo na mente a, melhor forma de conseguir isso."

Minha surpresa diante da afirmao do Dalai-Lama de que nunca se sentia s foi na proporo direta da minha crena na onipresena da solido na nossa sociedade.

Essa crena no nasceu apenas de uma percepo impressionista da minha prpria solido ou do fio de solido que parecia estar entremeado, como um tema secundrio, mas em toda a trama do meu atendimento psiquitrico. Nas vinte ltimos anos, os psiclogos comearam a estudar a solido com um enfoque cientfico, conduzindo uma boa quantidade de pesquisas e estudos sobre o tema. Uma das concluses mais surpreendentes desses estudos a de que praticamente todas as pessoas relatam que sofrem, sim, de solido, seja atualmente, seja no passado. Numa grande pesquisa, um quarto dos adultos nos Estados Unidos relatou que teria se sentido extremamente s pelo menos uma vez nas vida. Embora costumemos pensar

que a solido crnica uma condio especialmente disseminada

entre os idosos, isolados em apartamentos vazios ou na nas enfermarias dos fundas de asilos, a pesquisa sugere ~ que os adolescentes e jovens adultos tm exatamente as mesmas probabilidades que os idosos de relatar que sentem solido.

Em virtude da ampla ocorrncia da solido, os pesquisadores comearam a examinar as complexas variveis que podem contribuir para ela. Concluram, por exemplo, que h indivduos solitrios que costumam ter problemas para se expor, ter dificuldades para se comunicar com outros, no sabem ouvir e carecem de certas tticas sociais, como por exemplo a de saber aproveitar deixas em conversas (quando concordar com um gesto de cabea, quando responder de modo adequado ou quando permanecer calado).

Esse pesquisa sugere que uma estratgia para superar a solido consistiria em trabalhar para aperfeioar essas tticas sociais. A estratgia do Dalai-Lama, entretanto, parecia desviar-se do aperfeioamento de tticas sociais ou comportamentos externos, privilegiando uma abordagem que ia direto ao cerne da questo - a

conscientizao do valor da compaixo, para depois cultiva-la.

Apesar da minha surpresa inicial, enquanto eu o ouvia falar com tanta convico, vim a acreditar firmemente que ele nunca sentia solido. E havia provas para corroborar sua afirmao. Com muita freqncia, eu havia testemunhado sua primeira interao com um estranho, que

era invariavelmente positiva. Comeou a ficar claro que essas interaes positivas no eram acidentais, nem resultavam simplesmente de uma personalidade naturalmente simptica.

Percebi que ele passara muito tempo pensando na importncia da compaixo, cultivando-a com cuidado e usando-a para enriquecer e afofar o terreno da experincia do dia-a-dia, de modo que tornasse aquele solo frtil e receptivo a interaes positivas com os outros - mtodo que pode, na realidade, ser usado por qualquer um que sofra de solido.DEPENDER DOS OUTROS

X

CONFIAR EM SI MESMO

- No interior de todos os seres existe a semente da perfeio. No entanto, a compaixo necessria para estimular essa semente que inerente no nosso corao e na nossa mente... - Com essas palavras, o Dalai-Lama apresentou o tpico da compaixo para uma platia calada. Dirigindo-se a um pblico de mil e quinhentas pessoas,que tinha no seu meio uma boa quantidade de dedicados estudiosos do budismo, ele passou ento a examinar a doutrina budista do Campo de Mrito.

No sentido budista, o Mrito descrito como registros positivos na nossa mente ou "continuum mental", que resultam de aes positivas. O Dalai-Lama explicou que um Campo de Mrito um manancial ou uma base a partir da qual a pessoa pode acumular Mrito. De acordo com a teoria budista, o estoque de Mrito da pessoa que determina condies favorveis para suas vida, futuras. Esclareceu que a doutrina budista especifica dois Campos de Mrito: o campo dos Budas e o campo dos outros seres conscientes. Um meio de acumular Mrito envolve a gerao de respeito, f e confiana nos Budas, os seres Iluminados. O outro mtodo envolve a prtica de atos relacionados bondade, generosidade, tolerncia e assim por diante acompanhada de um refreamento consciente de aes tais como o assassinato, o roubo e a mentira. Esse segundo mtodo para conquistar o Mrito exige interaes com outras pessoas, em vez de interao com os Budas. Com base nisso, salientou o Dalai-Lama, as outras pessoas podem nos ser de grande ajuda no acmulo de Mrito.

A descrio do Dalai-Lama das outras pessoas como um Campo de Mrito tinha puma bela qualidade 'lrica que parecia se prestar a uma riqueza de imagens. Seu raciocnio lcido e a convico que sustentava suas palavras combinaram-se para conferir fora e impacto especiais sua palestra naquela tarde. Enquanto eu passava os olhos pelo recinto, pude ver que muitas pessoas na platias estavam visivelmente comovidas. Eu mesmo estava menos fascinado. Graas s nossas conversas anteriores,

eu estava nos estgios rudimentares de apreciar a profunda importncia da compaixo; e no entanto ainda me encontrava sob a forte influncia de anos de condicionamento cientfico racional que me faziam encarar qualquer conversa sobre bondade e compaixo como algo um pouco sentimental demais para meu gosto. Enquanto ele falava, a minha mente passou a divagar. Comecei a olhar furtivamente pelo salo, procura de rostos famosos;, interessantes ou conhecidos.

A ARTE DA FELICIDADE

Como tinha feito uma refeio pesada pouco antes da palestra, comecei a sentir sono. Minha ateno ia e vinha. A certa altura, pude sintonizar para ouvir o que ele dizia, "...no outro dia, falei sobre os fatores necessrios para levar uma vida feliz e cheia de alegria. Fatores tais como a sade, os bens materiais, os amigos e assim por diante. Se vocs examinarem minuciosamente, concluiro que todos eles dependem de outras pessoas. Para manter a sade, confiamos em medicamentos preparados

por outros e em atendimento mdico fornecido por outros. Se pesquisarem todas as instalaes materiais que utilizam para aproveitar a vida, descobriro que praticamente no h nenhum desses objetos materiais que no tenha tido ligao com outras pessoas. Se pensarem com cuidado, vero que todos esses bens existem em conseqncia dos esforos de muita gente, seja direta seja indiretamente. Muitas pessoas esto envolvidas em tornar possveis essas coisas. Nem preciso dizer que, quando falamos de bons amigos e companheiros como outro fator necessrio para uma vida feliz, estamos falando da interao com outros seres conscientes, com outros seres humanos.

"Pode-se ver, portanto, que todos esses fatores esto indissoluvelmente ligados aos esforos e cooperao dos outros. Os outros so indispensveis. E assim,apesar de que o processo de relacionar-se com os outros possa talvez envolver dificuldades, brigas e improprios, temos de procurar manter uma atitude de amizade

e carinho, a fim de levar um estilo de vida no qual haja interao suficiente com outras pessoas para que se tenha uma vida feliz."

Enquanto ele falava, senti uma resistncia instintiva. Embora sempre tenha valorizado e apreciado meus amigos e minha famlia, sempre me considerei uma pessoa independente. Segura de si mesma. Que na realidade se orgulhava de possuir essa qualidade. Em segredo, tive

a tendncia a considerar pessoas excessivamente dependentes com uma espcie de desprezo - um sinal de fraqueza.

Naquela tarde, porm, enquanto escutava o Dalai-Lama, algo aconteceu. Como "Nossa dependncia dos outros" no era meu tpico preferido, minha mente voltou a divagar, e eu me descobri, distrado, puxando um fio solto da manga da minha camisa. Prestando ateno por um instante, ouvi quando ele mencionou o grande nmero de pessoas envolvidas na confeco de todos os nossos bens materiais. Enquanto ele falava, comecei a pensar em quantas pessoas estariam envolvidas na feitura da

minha camisa. Comecei imaginando o lavrador que plantou o algodo. Depois, o vendedor que vendeu ao lavrador o trator para arar a terra. Em seguida, por sinal, as centenas ou at milhares de pessoas envolvidas na fabricao do trator, entre elas includas as que extraram o minrio para fabricar o metal de cada pea do trator.

E todos os projetistas do trator. E ento, naturalmente, pensei nas pessoas que processaram o algodo, que teceram o pano e que cortaram, tingiram e costuraram esse tecido. Os ajudantes de carga e motoristas de caminho que fizeram a entrega loja e o vendedor que me vendeu a camisa. Ocorreu-me que praticamente todos os aspectos da minha vida resultavam de esforos dos outros. A preciosa confiana que eu tinha em mim mesmo era uma total iluso, uma fantasia. Quando me dei conta disso, fui dominado por uma profunda noo da interdependncia e da interligao de todos os seres.

A ARTE DA FELICIDADE

Senti que me enternecia. Alguma coisa. No sei o qu. Fez com que eu sentisse vontade de chorar.

A INTIMIDADE

Nossa necessidade de outras pessoas paradoxal. Ao mesmo tempo que nossa cultura se encontra enredada na celebrao de uma independncia feroz, tambm ansiamos por intimidade e por uma ligao com um ser amado especial. Concentramos toda a nossa energia na misso de encontrar aquela pessoa nica que, esperamos, venha curar nossa solido e, entretanto, sustentar nossa iluso de que ainda somos independentes. Embora essa ligao seja difcil de realizar mesmo com uma nica pessoa, eu descobriria que o Dalai-Lama consegue e recomenda que se tenha intimidade com o maior nmero possvel de pessoas. Na realidade, seu objetivo criar essa ligao com todos.

- Na sua palestra de ontem tarde - perguntei-lhe em encontro na sua sute do hotel no Arizona, num final de tarde -, o senhor falou da importncia dos outros e os descreveu como um Campo de Mrito. Mas, quando examinamos nosso relacionamento com os outros, no fundo so tantas as formas diferentes com as quais podemos nos relacionar, tantos os tipos diferentes de relacionamento...

- bem verdade - respondeu o Dalai-Lama.

- Por exemplo, h um certo tipo de relacionamento que altamente valorizado no Ocidente - comentei. - um relacionamento caracterizado por um alto grau de intimidade entre duas pessoas, em que temos uma pessoa especial com quem podemos compartilhar nossos sentimentos mais profundos, nossos medos e assim por diante. As pessoas tm a impresso de que, se no tiverem um relacionamento dessa natureza, algo est faltando na sua vida... Na realidade, a psicoterapia ocidental costuma procurar ajudar as pessoas a desenvolver uma relao ntima dessa espcie...

- , acredito que esse tipo de intimidade possa ser considerado algo positivo - concordou o Dalai-Lama. - Creio que, se algum for privado desse tipo de intimidade, acabar tendo problemas...

- Estou s querendo saber, ento - prossegui -, durante sua infncia no Tibete, o senhor no era apenas considerado um rei, mas tambm uma divindade. Suponho que as pessoas o reverenciassem, talvez se sentissem um pouco nervosas ou amedrontadas na sua presena. Isso no criava um certo distanciamento emocional com relao aos outros, uma sensao de isolamento? Da mesma forma, o fato de viver separado da sua famlia, de ser criado como monge desde a tenra infncia e, como monge, de nunca ter se casado... tudo isso no contribuiu para uma sensao de separao com relao aos outros? O senhor alguma vez j sentiu que perdeu a oportunidade de desenvolver um grau mais alto de intimidade pessoal com os outros ou com uma pessoa especial, como por exemplo uma esposa?

- No - respondeu ele, sem hesitao. - Nunca senti uma falta de intimidade. Naturalmente meu pai j faleceu h muitos anos, mas eu me sentia muito chegado minha me, aos meus mestres, meus professores e a outros. E, com muitas dessas pessoas, eu podia compartilhar meus senti-

mentos, preocupaes e temores mais profundos. Quando eu estava no Tibete, em ocasies formais e eventos pblicos, havia uma certa formalidade, era observado um certo protocolo, mas esse nem sempre era o caso. Em outras ocasies, por exemplo, eu costumava passar tempo na cozinha. Fiz amizade com alguns funcionrios da cozinha, e ns podamos brincar, contar fofocas ou compartilhar histrias, e tudo era muito natural, sem aquela sensao de formalidade ou distanciamento.

"Portanto, quando eu estava no Tibete ou desde que me tornei um refugiado, nunca senti falta de pessoas com quem pudesse compartilhar momentos. Creio que em grande parte isso est relacionado minha natureza. Para mim fcil compartilhar as coisas com outros. Simplesmente no sou muito bom para guardar segredos!"

Ele riu. " claro que s vezes esse trao pode ser negativo. Por exemplo, pode haver algum debate no Kashag* sobre fatos confidenciais, e eu imediatamente comeo a conversar sobre esses fatos com terceiros. No entanto, no nvel pessoal, ser aberto e comunicativo pode ser muito til. Graas a essa natureza, posso fazer amigos com maior facilidade; e no se trata apenas de uma questo de conhecer pessoas e ter uma troca superficial com elas, mas de realmente compartilhar meu sofrimento

e meus problemas mais profundos. E o mesmo acontece quando ouo boas notcias. Imediatamente vou compartilh-las com os outros. Por isso, tenho uma sensao de intimidade e ligao com meus amigos. claro que s vezes para mim fcil criar um vnculo com os outros, porque eles costumam se sentir muito felizes por compartilhar seu sofrimento ou sua alegria com o `Dalai Lama', `Sua Santidade, o Dalai-Lama'." Ele riu

mais uma vez, fazendo pouco do seu ttulo. "Seja como for, tenho essa sensao de ligao, de unio, com muitas pessoas.

Por exemplo, no passado, se eu me sentia decepcionado ou infeliz com a poltica do governo tibetano ou se estava preocupado com outros problemas, at mesmo com a ameaa da invaso chinesa, eu voltava para meus aposentos e dividia aquele sentimento com a pessoa que varre o cho. De um ponto de vista pode parecer um total disparate que algum como o Dalai-Lama, o chefe do governo tibetano, diante de dificuldades nacionais ou internacionais, fosse compartilh-las com um faxineiro." Ele riu mais

uma vez. "Mas, em termos pessoais, sinto que muito til, porque

a outra pessoa participa, e ns podemos encarar o problema ou o sofrimento juntos."

UMA EXPANSO DA NOSSA DEFINIO

DE INTIMIDADE

Praticamente todos os pesquisadores no campo dos relacionamentos humanos concordam que a intimidade tem importncia crucial na nossa existncia. O influente psicanalista budista John Bowlby escreveu que "ligaes ntimas com outros seres humanos so o eixo em torno do qual gira a vida de uma pessoa... Dessas ligaes ntimas, a pessoa extrai sua fora e seu prazer de viver; e, atravs de suas contribuies, essa pessoa transmite fora e prazer de viver aos outros. Essas so questes a respeito das quais a cincia atual e a sabedoria tradicional esto de acordo".

Est claro que a intimidade promove o bem-estar fsico e psicolgico. Ao examinar os benefcios sade proporcionados por relacionamentos ntimos, pesquisadores em medicina concluram que aqueles que tm boas amizades, pessoas a quem podem recorrer em busca de apoio, solidariedade e afeto, tm maior probabilidade de sobreviver

a desafios sade, tais como ataques cardacos e cirurgias de grande porte, e tm menor probabilidade de apresentar doenas como o cncer e infeces respiratrias.

Por exemplo, um estudo de mais de mil pacientes cardacos no Medicai Center da Duke University concluiu que aqueles que no tinham cnjuge ou algum confidente prximo apresentavam uma probabilidade trs vezes maior de morrer dentro de cinco anos aps o diagnstico da doena cardaca, do que os que eram casados ou tinham um amigo ntimo. Outro estudo com milhares de moradores de Alameda County, na Califrnia, ao longo de um perodo de nove anos, revelou que os que tinham mais apoio social

e relacionamentos ntimos apresentavam menores ndices gerais de mortalidade e menor incidncia de cncer. E um estudo realizado na School of Medicine da University of Nebraska, com centenas de idosos, concluiu que aqueles que tinham um relacionamento ntimo apresentavam melhor funo imunolgica e nveis de colesterol mais baixos. Ao longo dos ltimos anos, houve pelo menos uma meia dzia de pesquisas de grande alcance conduzidas por diferentes pesquisadores que examinaram a relao

entre intimidade e sade. Depois de entrevistarem milhares de pessoas, os

diversos pesquisadores parecem todos ter chegado mesma concluso: relacionamentos ntimos so, de fato, benficos sade.

A intimidade igualmente importante para a manuteno da boa sade emocional. O psicanalista e filsofo social Erich Fromm afirmou que o medo mais bsico da humanidade a ameaa de ser isolado de outros seres humanos.

Para ele, a experincia da separao, vivenciada pela primeira vez na tenra infncia, a fonte de toda a ansiedade na vida humana. John Bowlby concordou, citando um bom volume de provas experimentais e pesquisas que corroboravam a idia de que a separao daqueles que cuidam do beb - geralmente a me ou o pai - durante o perodo final do primeiro ano de vida, inevitavelmente gera medo e tristeza na criana. Para ele, a separao e a perda interpessoal estavam nas prprias origens das experincias humanas de medo, tristeza e mgoa.

Portanto, levando-se em considerao a importncia vital da intimidade, como tratamos de conseguir intimidade na nossa vida diria? De acordo com o enfoque do Dalai-Lama, delineado na ltima subdiviso, seria razovel comear com o aprendizado - com a compreenso do que a intimidade, com a busca de uma definio e modelo prtico de intimidade. No entanto, quando nos voltamos para a cincia procura de uma resposta, tem-se a impresso de que, apesar do acordo universal entre os pesquisadores quanto importncia da intimidade, nesse ponto que termina a harmonia entre eles. Talvez a caracterstica mais surpreendente do exame mais superficial de vrios estudos sobre a intimidade seja a ampla diversidade de definies e teorias sobre exatamente o que a intimidade.

Na extremidade mais concreta da escala est o autor Desmond Morris, que escreve sobre a intimidade a partir da perspectiva de um zologo com formao em etologia. Em seu livro Intimate Behavior [Comportamento ntimo], Morris define a intimidade. "Ser ntimo significa estar prximo... Ao meu ver, o ato da intimidade ocorre sempre que dois indivduos entram em contato fsico." Depois de definir a intimidade em termos de puro contato fsico, ele ento passa a examinar as inmeras

formas pelas quais os seres humanos entram em contato fsico uns com os outros, desde um simples tapinha nas costas unio sexual mais ertica. Ele v o contato como o veculo atravs do qual nos consolamos uns aos outros e nos sentimos consolados, por meio de abraos e apertos de mos; e, quando esses meios no nos so disponveis, por vias mais indiretas de contato fsico, como por exemplo um atendimento de manicure. Ele chega a levantar a hiptese de que os contatos fsicos com objetos no nosso ambiente, desde os cigarros e jias at os colches de gua, funcionam como substitutos da intimidade.

A maioria dos pesquisadores no to materialista nas suas definies de intimidade e parece concordar que a intimidade mais do que a mera proximidade fsica. Voltando-se para a raiz da palavra "intimidade", do latim "intima", que significa "interior" ou "mais interior", com enorme freqncia que eles aceitam uma definio mais ampla, como por exemplo a oferecida pelo dr. Dan MCAdamS, autor de diversos livros sobre o tema da intimidade: `'O desejo de intimidade o desejo de compartilhar o nosso eu mais profundo com outra pessoa."

O CALOR HUMANO E A COMPAIXO

No entanto, as definies da intimidade no param por a. Na outra extremidade da escala, em relao a Desmond Moais, h especialistas como por exemplo a dupla de psiquiatras, dr. Thomas Patrick Malone e dr. Patrick Thomas Malone, pai e filho. No seu livro, The Art of Intimacy [A arte da intimidade], eles definem a intimidade como a "experincia da capacidade de conectar". Seu entendimento da intimidade comea com um exame meticuloso da nossa "capacidade de conectar" com outras pessoas, mas os autores no limitam seu conceito de intimidade a relacionamentos humanos. Sua definio to ampla, na realidade, que inclui nossos relacionamentos com objetos inanimados - rvores, estrelas e at mesmo o espao.

Conceitos da forma ideal de intimidade tambm variam pelo mundo afora e ao longo da histria. A noo romntica daquela "Pessoa Especial" com quem temos um apaixonado relacionamento ntimo um produto da nossa era e da nossa cultura. Esse modelo de intimidade, entretanto, no tem aceitao universal em todas as culturas. Os japoneses, por exemplo, parecem confiar mais nas amizades para a obteno da intimidade, ao passo que os americanos parecem procur-la mais em relacionamentos

romnticos com um namorado, namorada ou cnjuge. Ao salientar esse ponto, alguns pesquisadores sugeriram que os asiticos que costumam concentrar menos ateno em sentimentos pessoais, como a paixo, e que se interessam mais pelos aspectos prticos de ligaes sociais parecem ser menos vulnerveis ao tipo de decepo que leva desintegrao dos relacionamentos.

Alm das variantes entre uma cultura e outra, os conceitos de intimidade tambm sofreram mudanas drsticas ao longo do tempo. Na Amrica colonial, o grau de proximidade e intimidade fsica era em geral maior do que o atual, j que parentes e at mesmo desconhecidos ocupavam

espaos confinados, dormiam juntos num aposento e usavam um mesmo aposento para tomar banho, comer e dormir. Mesmo assim, o nvel costumeiro de comunicao entre cnjuges era bastante formal em comparao com os padres da atualidade - no sendo muito diferentes do modo de comunicao entre vizinhos ou conhecidos. Somente um sculo mais tarde, o amor e o casamento tornaram-se altamente romantizados, e a revelao ntima do prprio eu passou a ser um ingrediente pressuposto em qualquer parceria amorosa.

Idias sobre o que considerado comportamento ntimo e pessoal tambm mudaram ao longo do tempo. Na Alemanha no sculo XVI, por exemplo, esperava-se que marido e mulher recm-casados consumassem o matrimnio numa cama carregada por testemunhas que legitimariam o casamento.

Tambm mudou a forma como as pessoas exprimem suas emoes. Na Idade Mdia, era considerado normal exprimir em pblico uma grande extenso de sentimentos com muita intensidade e franqueza - a alegria, a raiva, o medo, a compaixo e at mesmo o prazer em torturar e matar inimigos. Exprimiam-se excessos de riso histrico, de pranto desconsolado, de fria violenta, muito mais do que seria aceito hoje na nossa sociedade. Porm a banalizao da expresso de emoes e sentimentos naquela sociedade exclua o conceito de intimidade emocional. Se o que se deve fazer expor todas as emoes de modo aberto e indiscriminado, acabam no restando sentimentos pessoais a expressar para algumas pessoas especiais.

Naturalmente, as noes que temos como lquidas e certas a respeito da intimidade no so universais. Elas mudam com o Passar do tempo e costumam ser moldadas pelas condies econmicas, sociais e culturais. E fcil ficar confuso' diante da variedade das definies contemporneas da' intimidade no Ocidente - corre manifestaes que vo desde um corte de cabelo ao nosso relacionamento com as luas de Netuno. E onde isso nos deixa no nosso esforo dei entender o que a intimidade.Creio

que as implicaes so claras.

Existe uma incrvel diversidade entre as vidas humanas, variaes infinitas entre as pessoas corre relao a como vivenciam uma sensao de proximidade Essa percepo por si j nos oferece uma grande oportunidade. Ela quer dizer que neste exato momento temos amplos mananciais de intimidade nossa disposio.

A intimidade est por toda parte. Atualmente, muitos de ns vivem oprimidos pela sensao de que falta algo na nossa vida, sofrendo intensamente por uma falta de intimidade. Isso ocorre esPecialmente quando atravessamos os inevitveis perodos na nossa vida em que no (estamos envolvidos num relacionamento romntico ou em que a paixo se esvai

de um relacionamento. Existe na nossa ` cultura uma idia muito difundida de que se consegue alcanar melhor a intimidade dentro do contexto de um relacionamento romntico apaixonado - com aquela Pessoa Extraordinria que distinguimos de todas as outras. Esse ponto de vista pode nos limitar ao extremo, isolando-nos de outras fontes de intimidade em potencial; e pode ser a causa de muita aflio e infelicidade quando essa Pessoa Extraordinria no est disposio.

Est, porm, ao nosso alcance o meio de evitar isso. preciso apenas ter a coragem de expandir nosso conceito de intimidade de modo a incluir todas as outras formas que nos cercam na vida diria. Com a ampliao da nossa definio de intimidade, ns nos abrimos para descobrir muitos modos novos e igualmente satisfatrios de conexo com os outros. Isso nos traz de volta minha conversa inicial com o Dalai-Lama sobre a solido, conversa inspirada por uma leitura casual da seo de

"correio sentimental" de um jornal da regio. Fico a me perguntar. No exato momento em que aquelas pessoas estavam redigindo seus anncios, lutando para encontrar as palavras exatas que trariam o romance para suas vidas e acabariam com a solido, quantas dessas pessoas j estavam cercadas de amigos, parentes ou conhecidos - relacionamentos que poderiam facilmente ser cultivados e resultar em ligaes ntimas genuna e profundamente satisfatrias? Muitas, imagino eu. Se o que procuramos

na vida a felicidade, e se a intimidade um importante ingrediente de uma vida mais feliz, ento sem dvida faz sentido conduzir nossa vida com base num modelo de intimidade que inclua tantas formas de ligao com os outros quantas forem possveis. O modelo de intimidade do Dalai-Lama baseia-se numa disposio a nos abrirmos para muitos outros, parentes, amigos e at mesmo desconhecidos, formando laos profundos e autnticos baseados na nossa humanidade comum.Captulo 6

O APROFUNDAMENTO DA NOSSA

LIGAO COM OS OUTROS

Uma tarde, depois da sua palestra ao pblico, cheguei sute do Dalai-Lama para minha sesso diria. Estava alguns minutos adiantado. Um auxiliar veio discretamente ao corredor para informar que Sua Santidade estava ocupado numa audincia particular, que deveria demorar mais alguns minutos. Ocupei minha posio costumeira diante da porta da sua sute e usei o tempo para rever as anotaes que havia preparado para nossa sesso, enquanto procurava evitar o olhar de suspeita de um segurana

- o mesmo olhar aperfeioado por atendentes de lojas de convenincia para uso diante de adolescentes de 13 ou 14 anos, que ficam passando tempo entre as estantes de revistas.

A ARTE DA FELICIDADE

Em alguns minutos, a porta abriu-se para a sada de um casal bem vestido de meia-idade. Eles me pareceram conhecidos. Lembrei-me de ter sido apresentado rapidamente a eles alguns dias antes. Disseram-me que a mulher era uma herdeira muito conhecida, e o marido, um advogado extremamente rico e poderoso, de Manhattan.

Na poca da apresentao, s trocamos algumas palavras, mas os dois me pareceram incrivelmente arrogantes. Quando iam saindo da sute do Dalai-Lama, porm, percebi uma mudana espantosa. Nada de postura altiva e de expresses presunosas. No seu lugar, dois rostos inundados de ternura e emoo. Pareciam duas crianas. Rios de lgrimas escorriam pelas bochechas. Embora o efeito do Dalai-Lama sobre os outros nem sempre seja to dramtico, percebi que os outros invariavelmente respondiam

a ele com alguma mudana em termos de emoo. Havia muito eu vinha me maravilhando com sua capacidade de sintonizar com os outros, qualquer que fosse sua posio na vida, e de estabelecer uma troca emocional profunda e significativa.

A CRIAO DA EMPATIA

Embora tivssemos falado da importncia do carinho e da compaixo humana durante nossas conversas no Arizona, foi s alguns meses mais tarde, em sua casa em Dharamsala, que tive a oportunidade de examinar com ele os relacionamentos humanos, com maior ateno aos detalhes. quela altura eu estava muito ansioso para ver se poderamos descobrir um conjunto de princpios fundamentais aos quais ele recorre nas suas interaes com os outros - princpios que poderiam ser aplicados para aprimorar qualquer relacionamento, com desconhecidos, parentes,

amigos ou amantes. Aflito para comear, mergulhei de cabea.

- Bem, quanto ao tpico dos relacionamentos humanos... qual o senhor consideraria o mtodo ou tcnica mais eficaz para sintonizar com os outros de uma forma significativa e para reduzir conflitos com os outros?

Ele me lanou um olhar penetrante. No era um olhar indelicado, mas fez com que eu me sentisse como se tivesse acabado de lhe pedir que me desse a exata composio qumica do p da lua.

- Bem, lidar com os outros uma questo muito complexa - respondeu ele, aps um breve silncio. - No h como calcular uma frmula nica que possa resolver todos os problemas. um pouco como saber cozinhar. Quando se est preparando uma refeio deliciosa, uma refeio especial, h vrios estgios no preparo. Pode-se primeiro ter de ferver os legumes separadamente. Depois tem-se de frit-los, para ento combin-los de um modo especial, adicionando temperos e assim por diante.

E, finalmente, o resultado seria esse prato delicioso. Aqui, da mesma forma, para ter talento para lidar com os outros, muitos fatores so necessrios. No se pode simplesmente dizer, "Este o mtodo" ou "Esta a tcnica".

No era exatamente a resposta que eu estava procurando. Achei que ele estava sendo evasivo e tive a sensao de que sem dvida deveria ter algo mais concreto a me oferecer. Pressionei, ento.

- Pois bem, se no h nenhuma soluo nica para aprimorarmos nossos relacionamentos, quem sabe no existam algumas diretrizes mais amplas que poderiam ser teis?

O Dalai-Lama pensou por um instante antes de responder.

- Existem. J falamos da importncia de abordar os outros tendo em mente o pensamento da compaixo. Isso crucial. claro que no basta simplesmente dizer a algum, "Ah, muito importante ter compaixo; voc precisa ter mais amor pelos outros." Uma simples receita como essa, por si, no vai funcionar. No entanto, um meio eficaz de ensinar algum a ser mais carinhoso e compassivo comea com o uso do raciocnio para instruir o indivduo sobre o valor e os benefcios prticos da compaixo; e tambm fazer com que cada um reflita sobre como se sente quando algum gentil com ele, entre outras coisas. Num sentido, isso deixa o indivduo

preparado, de modo que o efeito ser maior medida que ele prossiga em seus esforos para ter mais compaixo.

"Agora, ao examinar os vrios modos para desenvolver a compaixo, creio que a empada um fator importante. A capacidade de avaliar o sofrimento do outro.

Na realidade, por tradio, uma das tcnicas budistas para aperfeioar a compaixo envolve imaginar uma situao em que um ser senciente est sofrendo... por exemplo, um carneiro a ponto de ser abatido pelo aougueiro. E ento procurar imaginar o sofrimento pelo qual o carneiro pode estar passando e assim por diante... - O Dalai-Lama parou por um instante para refletir, passando distrado pelos dedos suas contas de orao. Comentou ento. - Ocorreu-me que, se estivssemos lidando com algum que fosse muito frio e indiferente, essa tcnica talvez no funcionasse. Seria temo pedir ao aougueiro que fizesse essa visualizao.o aougueiro est to embrutecido, to acostumado

quilo tudo, que simplesmente ela no teria nenhum impacto. portanto, por exemplo, seria muito difcil explicar e utilizar essa tcnica no caso de alguns ocidentais que estejam habituados a caar e pescar por prazer, como uma forma d