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A África Fora de Casa - Sociabilidade, Trânsito e Conexões Entre Os Estudantes Africanos No Brasil

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE FILOSOFIA CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E MUSEOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUO EM ANTROPOLOGIA

    Ismael Tcham

    A FRICA FORA DE CASA

    Sociabilidade, trnsito e conexes entre os estudantes africanos no Brasil

    Dissertao de Mestrado

    Recife-PE, 2012

  • Ismael Tcham

    A FRICA FORA DE CASA Sociabilidade, trnsito e conexes entre os estudantes africanos no Brasil

    Dissertao de Mestrado apresentada junto ao

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia /

    (PPGA) da Universidade Federal de Pernambuco/

    (UFPE), como requisito para a obteno do ttulo de

    Mestre em Antropologia.

    Orientador: Prof.Dr. Antonio Motta

    Fevereiro, 2012.

  • Catalogao na fonte

    Bibliotecria Maria do Carmo de Paiva CRB-4 1291.

    T249a Tcham, Ismael. A frica fora de casa : sociabilidade, trnsito e conexes entre os

    estudantes africanos no Brasil / Ismael Tcham. - Recife: O autor, 2012. 99 f. ; 30 cm.

    Orientador: Prof. Dr. Antonio Motta. Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco,

    CFCH. Programa de Ps-Graduao em Antropologia, 2012. Inclui bibliografia e anexos.

    1. Antropologia. 2. Intercmbio educacional. 3. Programas de

    intercmbio de estudantes frica - Brasil. 3. Integrao social. 4. Pluralismo cultural. 6. Tolerncia. I. Motta, Antonio (Orientador). II. Ttulo.

    301 CDD (22.ed.) UFPE (CFCH2012-48)

  • Ismael Tcham

    A FRICA FORA DE CASA: SOCIABILIDADE, TRNSITO E CONEXES ENTRE OS ESTUDANTES AFRICANOS NO BRASIL.

    Dissertao apresentada ao programa de Ps-

    graduao em Antropologia da Universidade

    Federal de Pernambuco como requisito

    parcial para a obteno do ttulo de Mestrado

    em Antropologia.

    Aprovado em: 15 de fevereiro de 2012.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. Antonio Carlos Motta de Lima (Orientador)

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia - UFPE

    Prof. Dr. Peter Schrder (Examinador Titular Interno)

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia - UFPE

    Profa. Dra. Rachel Rocha de Almeida Barros (Examinadora Titular Externa)

    Instituto de Cincias Sociais - UFAL

    ________________________________________________________________ Profa. Dra. Mnica Franch (Examinadora Titular Externa)

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia - UFPB

    Recife-PE, 2012

  • Dedicatria

    A minha famlia,

    pela compreenso e o estmulo

    em todos os momentos.

  • Agradecimento

    Ao longo desta minha trajetria acadmica que corresponde o mestrado e

    das etapas precedentes, muitos foram os momentos de realizaes positivas, percalos,

    agruras e alegrias e, muitas ocasies de emoes fortes e contraditrias que terminavam s

    vezes com lagrimas nas madrugadas aquecidas de saudades de tudo que me pertencia. So

    quase (10) dez anos vivendo como peregrino de saber. Apesar da distncia com o solo

    ptrio nunca vivi solitariamente esta aventura.

    Pois, admito ser uma vivncia rica em experincias, procedimentos e

    condutas na busca pela educao superior que levo como uma lio em minha orientao na

    vida social e acadmica. O meu agradecimento vai, pois, para todos aqueles que, mais do que

    me ajudaram e seguem ajudando-me, longe ou perto, estando sempre ao meu lado.

    Os meus sinceros votos de gratido tambm vo, para aqueles que, mais do

    que transmitiram o conhecimento, sempre me incentivaram na procura da Sabedoria, aquela

    que no se aprende nos livros...

    Citar nomes agora pode ser extremamente arriscado, de modo que, posso

    correr o risco de deixar algum injustamente esquecido. Ainda assim, gostaria de fazer alguns

    agradecimentos especficos:

    Ms Juliana Holanda, Prof. Dr. Moises de Melo Santana, Prof.

    Dr. Antonio Freitas a vocs um obrigado especial por se fazerem sempre presentes e me darem, continuamente, fora

    para prosseguir.

    Ao Prof. Dr. Antonio Mota, a quem agradeo pelas oportunidades que me

    ofereceu em participar de vrios congressos, encontros, cursos e seminrios. Agradecimento

    especial pelo apoio, orientao excelente e as conversas, que mais do que esclarecer ou

    fornecer pistas de investigao, foram autnticas de terapias para renovar energias e

    continuar o trabalho.

    Deste sempre procurei que o mestrado no fosse uma aquisio egosta de

    conhecimentos, mas que constitusse, desde a primeira aula at a ltima linha da dissertao,

    uma forma de melhor servir a sociedade e principalmente populao pesquisada.

    Para finalizar, agradeo a receptividade de todos interlocutores traduziu-se

    num importante fator de incentivo ao longo de toda a realizao desta dissertao, tendo

    mesmo levado criao de laos de amizade, de forma que, por altura da minha aprovao no

  • processo seletivo de doutorado recebi no meu facebook seus correios desejando felicidades.

    Espero que este trabalho constitua um instrumento, ainda que muito pequeno, possa

    proporcionar s nossas universidades e gestores dos pases signatrios dos acordos de

    cooperao educacional um maior debate para despertar na direo de uma efetiva insero do

    diferente, identificado neste caso, pelos palopianos vinculados ao Programa Estudante

    Convnio de Graduao.

  • RESUMO

    A mobilidade espacial com fins de estudos um processo histrico e se manifesta de diversas

    formas dependendo de acordos firmados entre os pases ou instituies envolvidos e seus

    reflexos so sentidos em todas as dimenses de quem a vive. Pois, construo de uma poltica

    de intercmbio coerente tem que ter por base duas preocupaes indissociveis: por um lado

    regulao dos fluxos dos intercambistas e, por outro, a criao de instrumentos que facilitem o

    acolhimento e a integrao destes. Desta forma, a presente pesquisa tem como finalidade de

    compreender as dinmicas e os processos de sociabilidade e de reconfigurao identitria dos

    estudantes oriundos dos Pases Africanos de Lngua Portuguesa-PALOP, vinculados ao

    Programa Estudante Convnio de Graduao - PEC-G em duas Universidades Federais no

    Nordeste do Brasil: UFPE e UFAL. Metodologicamente, o trabalho foi organizado em trs

    partes: primeiramente realar, a partir de uma perspectiva diacrnica, a presena dos

    estudantes estrangeiros nas universidades e nas escolas desde a Idade Mdia com destaque na

    histrica mobilidade estudantil no contexto africano. Posteriormente averiguarmos os laos

    culturais entre o Brasil e a frica tomando-os como determinantes estruturais que justifiquem

    em parte a presena dos palopianos nas duas Instituies pesquisadas para depois realizar o

    nexo com suas implicaes econmicas, polticas e da evoluo de aes diplomticas

    recentes nas duas direes. Por fim, o enquadramento terico deste trabalho diversificado,

    conjugado com os dados coletados no campo. Compondo um discurso vivo dos palopianos

    relativo sociabilidade entre si e com o outro, revelando percepes de estigmas e esteretipos construdos socialmente, o que sinaliza a particularidade de seus percursos e

    vivncias nesta dispora. Conclui-se mostrando que a mobilidade estudantil uma tendncia

    global contempornea. Neste sentido ela sensibiliza a adoo de polticas de integrao

    especificas, resguardando valores como diversidade e tolerncia.

    Palavras-chave: circulao, internacional, estudante, sociabilidade, integrao, mobilidade

  • ABSTRACT

    The spatial mobility with study purposes is a historical process and is manifested in different

    ways depending on the agreements signed between countries or institutions involved and their

    effects are felt in all dimensions of those who live it. Construction of an exchange student

    coherent policy must be based on two inseparable concerns: one regulating the flow of

    exchange students, and secondly creation of tools that facilitate the reception and integration

    of them. So, this research aims to understand the dynamics and sociability processes and

    identity reconfiguration of the students from the African Portuguese Speaking Countries-

    PALOP, bound to the Graduate Student Program Agreement - PEC-G in two Federal

    Universities in Northeast Brazil: UFPE and UFAL. Methodologically, the work was

    organized into three parts: firstly to punctuate from a diachronic perspective the presence of

    foreign students in universities and schools since the Middle Ages with emphasis on the

    historical student mobility in African context. Later we ascertain the cultural links between

    Brazil and Africa taking them as structural determinants in part to justify the presence of the

    students from the African Portuguese Speaking Countries in two researched institutions then

    take nexus with its economic implications, political and recent evolution of diplomatic actions

    in both directions. Finally, the theoretical framework of this work is diverse, in conjunction

    with field data collected. Composing alive speech on students from the African Portuguese

    Speaking Countries of sociability among themselves and with the "other", revealing

    perceptions of stigma and stereotypes socially constructed, which signals the particularity of

    their journeys and experiences in abroad. It concluded by showing that student mobility is a

    contemporary global trend in this direction, to sensitize the adoption of specific integration

    policies safeguarding the values of diversity and tolerance.

    Keywords: circulation, international, student, sociability, integration, mobility

  • Sumrio

    Introduo 1

    Estrutura e desenvolvimento do trabalho

    Perspectiva metodolgica adotada 5

    PARTE 1 FRICA EM MOVIMENTO 12

    1.1. A mobilidade internacional de africanos--------------------------------------------------12

    1.2. A frica de volta ao Brasil-------------------------------------------------------------------18

    1.3. PEC-G/PEC-PG: Cooperaes Bilaterais Educacional entre o Brasil e a frica-----21

    PARTE 2 - EXPERINCIAS E CONTRASTES DA VIDA FORA DE CASA 26

    2. 1. Trnsitos e conexes: os estudantes africanos no Brasil---------------------------------26

    2.2. Quando os estudantes chegam ao Brasil ---------------------------------------------------30

    2.3. Permanncia e manuteno-------------------------------------------------------------------34

    2.4. Lugares, convivncias e adaptao----------------------------------------------------------37

    2.5. Como eles pensam sobre os que lhes acolhem?------------------------------------------46

    PARTE 3 - TEATRALIZANDO AS DIFERENAS 53

    3.1. Torneios amistosos ou campo de batalha?----------------------------------------------53

    3.2. Nos espao urbano: festas, msica e a pertena------------------------------------------61

    3.3. Permanncia e mudanas de hbitos--------------------------------------------------------66

    3.4. E o futuro a quem pertence?-----------------------------------------------------------------69

    CONSIDERAES FINAIS 75

    Referncias bibliogrficas 84

    ANEXOS

    Anexos-----------------------------------------------------------------------------88

    Quadro I: Mobilidade dos estudantes entrevistados-----------------------------------------88

    Quadro II: Mobilidade de Estudantes do PEC-G do PALOP na UFPE/2011------------90

    Quadro III: Mobilidade dos Estudantes PEC-G do PALOP na UFAL/2011-------------90

  • 1

    Introduo

    O objetivo principal deste trabalho compreender lgicas de sociabilidade,

    configurao e reconfigurao identitrias dos estudantes africanos vinculados ao Programa

    Estudante Convnio de Graduao-PEC-G a partir das suas vivncias temporrias em duas

    cidades nordestinas: Recife e Macei.

    O Brasil um exemplo inscrito na histria de como os lugares de encontro de

    culturas diferentes se tornam privilegiados na observao de culturas em movimento. As

    identidades na sociedade global se movem cada vez mais na direo e na aceitao de

    sociedades interculturais, onde se evidenciam uma interao de vrias identidades tnicas e

    culturais.

    Esta realidade social em que diversos grupos co-habitam em uma nica sociedade

    nacional, compartilhando vises do mundo ligados as crena e aos valores, de uma certa

    forma, faz parte do continente africano cujas dinmicas sociais e culturais de diversas

    tradies ancestrais tambm abrangeram quase o mundo inteiro atravs do processos de

    deslocamento forado dos seus filhos para vrias partes do planeta.

    Cabecinha e Cunha (2008, p. 7) lembram que estamos diante de uma realidade

    cultural contempornea e dinmica que escapa a qualquer tentativa de definio demasiado

    fechada. Neste sentido, o intercultural deve ser visto como adjetivo, que nesse conceito existe

    de processual.

    Apesar desta dinmica social, as lgicas identitrias permanecem intimamente

    ligadas aos lugares, costumes, s tradies, aos hbitos, aos valores e crenas de um

    determinado povo ou grupo, de modo que quando um sujeito se desloca, ainda que seja

    temporariamente, de seu habitat simblico original, isso de alguma forma causa um certo

    desenraizamento de convvio familiar e de sua cultura de origem, o que, em certa medida,

    acarreta no mnimo insegurana, podendo levar a um processo contnuo de socializao,

    reconfigurao da identidade e hbitos a partir de outras referncias culturais e de dinmicas

    sociais.

    A par desta percepo, e com base na minha trajetria acadmica no Brasil,

    enquanto estudante africano oriundo da Repblica de Guin-Bissau, tornou-se evidente que a

    circulao dos africanos no Brasil, fundamentado nos acordos de cooperao-tcnica,

  • 2

    acadmica e cultural, inclui fatores sociais e diversas situaes subjacentes que se combinam

    para distinguir a circulao internacional destes atores sociais em meio a um processo

    crescente e mais amplo de mobilidade contempornea, estimulada pela globalizao e pela

    internacionalizao do ensino superior. Estes acordos constituem uma real metfora da

    interdependncia planetria contempornea, cuja capacidade de acolhimento de quem

    desembarca, pelo pas que o recebe e da sua estratgia de integr-lo no novo circuito social

    so indicadores que permitem examinar o grau de abertura de uma sociedade em relao ao

    que lhe estranho, no apenas acolher o estranho, mas tambm apelar transformao

    mtua a partir do encontro de diferentes grupos.

    A vinda dos estudantes dos pases africanos de lngua portuguesa para o Brasil

    tem caractersticas peculiares que podem no ser percebidas ao levar em conta apenas a

    tendncia contempornea da circulao de pessoas em todas as partes do mundo, propiciada

    pelos inmeros fatores: comrcio, turismo, religio, etc. Mas, ao invs disso, torna-se

    interessante se tomarmos como ponto de partida principalmente o passado que liga o

    continente africano ao Brasil.

    Um passado que poderia ser narrado, tomando como ponto de partida o prprio

    incio da humanidade isto , frica como o bero da humanidade. Mas interessa-nos neste

    estudo apenas parte desta histria que acabou deixando marcadores culturais indelveis das

    fricas na sociedade e na cultura brasileira. Convm ressaltar que tais marcadores culturais,

    ancoradas, sobretudo na cor da pele negra da parte significativa da populao brasileira, assim

    como sua condio histrica subalterna ainda hoje a razo para discriminar o negro no

    Brasil independentemente da sua origem nacional. Discriminao que se manifesta

    corriqueiramente de forma verbal e ldica e que tambm perceptvel pelos estudantes no

    cotidiano da sociedade brasileira.

    Com efeito, muitos estudantes africanos, vinculados ao PEC-G, tornaram-se alvo

    de relaes raciais e de racismo no meio acadmico que frequentam, embora parte

    significativa da populao deste pas se reconhea no continente africano o berrio da sua

    afrodescendncia. A compreenso deste fato tambm tem sido uma estratgia discursiva

    fundamental assumida pela Diplomacia Brasileira na retomada recente dos interesses do

    Brasil em relao aos pases africanos e destes com o Brasil.

    Muitos estudiosos nacionais e internacionais interessados em acompanhar a ao

    brasileira na frica denominam tais processos de uma reaproximao ou da diplomacia

    cultural. A diplomacia brasileira acredita que haver uma natural receptividade dos africanos

    s iniciativas e aes da poltica internacional brasileira pelo fato do Brasil possuir certas

  • 3

    afinidades culturais com aquele continente, resultando-se na solidariedade cultural e poltica,

    o que pode explicar em parte a presena dos jovens estudantes oriundos das fricas nas

    universidades brasileiras.

    H mais de meio sculo que os africanos, nomeadamente os de Pases Africanos

    de Lngua Portuguesa (PALOP), livremente vm para o Brasil com a esperana e um sonho

    individual e familiar para realizao de suas formaes acadmicas, cujo processo articulado

    no interior de uma estrutura diplomtica poltico-discursiva tomando inicialmente a histria

    como fundamento para o renascimento dos interesses brasileiros na frica, facilitado pelos

    interesses e necessidade de fortalecimento de aes de desenvolvimento sustentvel social e

    econmico dos governos africanos.

    Para o Brasil, a frica seria um ponto estratgico para sua insero e afirmao

    internacional, enquanto os africanos vislumbram no Brasil uma multiplicidade de

    oportunidades de cooperao para o desenvolvimento em todas as reas. comum ouvir um

    jovem em Bissau expressar a dvida entre ir realizar um curso superior no Brasil ou em

    Portugal. Todavia, pelo crescente aumento da presena de jovens estudantes oriundos dos

    PALOP nas universidades brasileiras vinculados ao Programa Estudante Convnio de

    Graduao-PEC-G pode justificar em tese a preferncia destes pelo Brasil em relao

    Portugal.

    A macia presena dos estudantes palopianos, sobretudo no Nordeste do Brasil,

    gerou o nosso interesse e a oportunidade para ampliar e aprofundar a compreenso sobre esse

    contingente de jovens estudantes que se deslocam para a referida regio, aproximando-se de

    seus diversos universos sociais reconstitudos nessa dispora, assim como de suas relaes de

    sociabilidade, de solidariedade, conflitos e contradies implcitos.

    Para que isso fosse possvel organizou-se o presente estudo em (3) trs partes

    adotando um conjunto de procedimentos metodolgicos com o intuito de especificar a escolha

    desta populao, assim como o campo terico, e disciplinar a abordagem deste trabalho cujo

    desdobramento encontra-se no tpico intitulado de Perspectiva metodolgica adotada, onde

    se prope apresentar o problema da pesquisa e justificar a sua pertinncia, bem como explanar

    tambm a razo da escolha terica diversificada e de abordagem multidisciplinar, com foco

    em teoria interacionista, assim como adoo da estratgia de observao e a coleta de

    informao no campo sobre a temtica estudada. No obstante, os trabalhos desenvolvidos

    sobre a circulao internacional dos estudantes africanos no mundo, e em especial no Brasil,

    com fins de estudos so escassos, j que as poucas referncias existentes no focalizam as

    especificidades na base das quais determinados acordos acadmicos se assentam.

  • 4

    A Parte 1 desta monografia dedicada, aos processos de deslocamento de

    populaes africanas no interior do continente ou mesmo alm dos limites das fronteiras

    polticas impostas na Conferncia de Berlim, ocorrida em 1884, que serviu para redefinir

    alguns aspetos do mapa colonial dos finais do sculo XIX. As fronteiras nacionais em frica

    nasceram da imposio desta conferncia, criando um estado orgnico colonial imposto pelas

    potncias colonizadoras. No incio do sculo XX, a frica estaria completamente recortada e

    dividida por pases. O fato que tambm cria dificuldades em traar as rotas de deslocamento

    dos africanos em direo as Amricas e em particular para o Brasil, constituindo um aspecto

    da realidade histrica e cultural cuja complexidade ainda debatida.

    Atualmente os acordos acadmicos tambm celebram novas formas de circulao

    de cidados de vrios pases africanos pelo mundo e para o Brasil. Vale lembrar que no Brasil

    o convnio educacional inicia-se no final 1919, com a presena de estudantes estrangeiros nas

    escolas brasileiras. No contexto europeu, a circulao internacional para fins de estudos est

    presente desde a Idade Mdia e no contexto africano a circulao dos alunos das escolas

    cornicas, os chamados marrabus, remonta ao sculo XVII e marca uma das primeiras formas

    de mobilidade de pessoas com fins de estudos na frica. No plano econmico, discorreu

    sobre a redefinio da diplomacia brasileira em relao frica.

    Na Parte 2 ocupamo-nos, atravs de diversas abordagens, em demonstrar o

    quanto as experincias de mobilidades de pessoas so frteis aos processos de reconstruo

    identitrias atravs da interao, sociabilidade e a trocas simblicas. Com efeito, os estudantes

    vo se envolvendo num vagaroso processo de insero cultural nas cidades acolhedoras e vo

    formalizando projetos pessoais mediante a interao com os outros. A presena dos

    estudantes africanos nas universidades brasileiras uma tendncia que cresce a cada ano e

    evidencia aspectos sociais desafiadores nos quais os estudantes revelam por meio de

    narrativas com destaque s questes que vo desde a ausncia de um suporte oficial de

    acolhimento, acesso moradia, at a regularizao da permanncia no Brasil, e questionam a

    permanncia de normas regidas que regulam a vivncia dos conveniados no Brasil: o tempo

    da permanncia no Brasil, a escolha do curso e de universidade, insero, formao e o

    retorno. Possibilidades de redefinio de suas relaes com as instituies e seus processos de

    sociabilidades e integrao no universo acadmico.

    Outro fato contemplado nesta parte do trabalho so as narrativas de intercambistas

    relativas s representaes no Brasil sobre a frica, em especial no Nordeste.

    Na Parte 3 analisamos as formas de organizao social dos estudantes do PEC-G

    nas suas respectivas cidades. Procuramos em linhas gerais dar conta de dimenses

  • 5

    subjacentes caracterizadoras da mobilidade e das vivncias dos estudantes africanos nas duas

    Instituies de Ensino Superior do Nordeste do Brasil: a Universidade Federal de Pernambuco

    e a Universidade Federal de Alagoas. Para tal, enfocamos os aspectos das motivaes e

    transito no Brasil, e das impresses acerca da integrao em cada cidade, Recife e Macei,

    onde se localizam os campi.

    A pesquisa apoiou-se em alguns estudos de caso sobre os estudantes africanos

    vinculados ao PEC-G das outras regies do Brasil, por exemplo, do socilogo senegals

    Pascal Kaly e do moambicano Carlos Subuhnna, que reforaram a nossa compreenso da

    presena africana e seus conflitos no Brasil, conflitos esses s vezes gerados entre si, ou seja,

    entre grupos nacionais que se evidenciam com clareza nos palcos de interaes como nas

    festas africanas e nos torneios de futebol organizados regularmente pelos prprios estudantes.

    Nesta parte do trabalho optamos tambm por apresentar as informaes obtidas no

    campo onde os interlocutores revelam suas percepes sobre o meio social em que vivem nas

    cidades, as universidades em que estudam e ainda sobre os obstculos e benefcios esperados

    do convnio, festas e dificuldades de estar fora de casa e de conviver com Outros,

    processos de discriminao racial e da dura rotina acadmica nesta dispora bem como as

    expectativas de sucesso e reconhecimento profissional em seus pases de origem, ou em

    outros mercados onde possam exercer atividades profissionais nas suas reas de formao.

    Finalmente, o ltimo tpico, denominado de Consideraes Finais serve como

    sntese de diferentes olhares e percursos dos entrevistados nesta dispora, abrindo novas

    perspectivas para pesquisas futuras.

    Perspectiva metodolgica adotada

    Nesta dissertao adotou-se o estudo de caso, para averiguar os processos de

    reconfiguraes identitrios dos estudantes africanos oriundos dos pases da lngua

    portuguesa/PALOP vinculados ao Programa Estudante Convnio de Graduao (PEC-G) da

    Universidade Federal de Pernambuco/UFPE e da Universidade Federal de Alagoas/UFAL1. A

    proposta do estudo visa responder questes como: o que acontece com os estudantes africanos

    nas cidades do Recife e Macei? E como descobrir de que modo este trnsito afeta as suas

    1 Doravante passar-se- a denominar os estudantes oriundos do PALOP-(Pases Africanos de Lngua Oficial

    Portuguesa), genericamente de palopianos.

  • 6

    identidades e vises de mundo? Para tentar responder as questes levantadas acima, decidiu-

    se realizar a pesquisa somente com os estudantes oriundos de Pases Africanos de Lngua

    Oficial Portuguesa-PALOP.

    Tal medida deve-se, em primeiro lugar, ao fato deles corresponderem ao maior

    contingente de estudantes africanos no Brasil, se confrontado com nmero de estudantes

    oriundos de pases africanos francofonos e anglofonos. Em segundo lugar, a escolha dos

    palopianos deve-se, em certa medida, pela razo de possurem entre si um histrico colonial

    comum e, em terceiro lugar, por escolherem o Brasil para realizar seus estudos, um pas

    marcado pelos laos histricos que ligam s antigas colnias de Portugal, o que por si,

    constitui uma dimenso significativa a ter em conta.

    A propsito houve tambm a preocupao de restringir a pesquisa aos estudantes

    vinculados ao Programa /PEC-G, por estes representarem concretamente os acordos bilaterais

    entre o Brasil e os PALOP. Com efeito, pretendeu-se com este estudo dar uma pequena

    contribuio no sentido de encontrar uma resposta parcial das questes supracitadas sob o

    ngulo de quem passa pela experincia da vivncia estudantil noutro pas na sua dimenso

    ntima e humana, assim como outras questes que se colocam sobre a circulao dos

    estudantes africanos no Brasil.

    Desse modo as opes metodolgicas adotadas, derivaram-se diretamente da

    especificidade dos atores sociais a serem estudados, dos objetivos anunciados e dos

    pressupostos tericos que os informam. Neste sentido, optou-se desde o incio pelo

    enquadramento terico diversificado e de abordagem multidisciplinar, com foco em teoria

    interacionista, enquadramento que possibilitou desenvolver simultaneamente uma estratgia

    de observao e a coleta de informao no campo sobre a temtica em estudo.

    Um dos tericos utilizados foi Goffman (1993), que ressalta a importncia de

    entenderem-se as interaes entre indivduos enquanto construes discursivas que se

    relacionam, intrinsecamente, com as esferas mais amplas do social, do poltico, e de

    formaes ideolgicas e culturais dentro de um processo que retrata o macro-social nas

    manifestaes interacionais dos falantes, e vice-versa.

    A perspectiva analtica interacionista Goffmaniana, privilegia a experincia vivida

    dos indivduos, interpreta o funcionamento da sociedade luz das interaes e procura

    entender o que essas interaes significam para a construo mental e prtica das realidades

    sociais. Goffman (1967, p. 2) advoga que seus estudos interacionais esto focados num

    aspecto geral de interesse dos etngrafos. Seguindo a tradio de Goffman, colhemos

    narrativas que evidenciam as interaes entre diversos grupos de estudantes africanos. A

  • 7

    perspectiva estruturalista se faz presente neste trabalho para enriquecer o presente estudo,

    sobretudo por opor-se interpretao da realidade na perspectiva interacionista2.

    A corrente terica estruturalista prioriza as estruturas sociais em relao s

    escolhas individuais, diminui as aes e interaes sociais estrutura social e entende-as

    como um conjunto de padres de relacionamento, dotados de uma existncia prpria e

    independente dos indivduos ou grupos que nela ocupam posies. Segundo Bourdieu (1990,

    p. 9, 21) o real, na concepo interacionista, seria o que as pessoas definem como tal, isto , o

    mundo social reduzido s representaes que dele fazem os agentes, e ento a tarefa das

    cincias sociais consistiria em produzir uma explicao das explicaes produzidas pelos

    sujeitos sociais.

    Ao optarmos por este campo de pesquisa o leitor poderia questionar-se se haveria

    algo de novo num campo emprico que to bem o observador conhece, como neste trabalho,

    por exemplo. Se haveria, de fato, interesse em discutir e analisar as consequncias sociais da

    vivncia dos estudantes africanos no Nordeste do Brasil, regio que apresenta na sua

    formao social o maior ndice populacional com descendncia africana. Neste sentido,

    partimos do pressuposto de que a vinda dos africanos ao Brasil a partir da abolio da

    escravatura no s tem interesse como h necessidade de ampliar estudos sobre ela.

    Todavia, no se quer ter a pretenso de contar a nossa prpria histria, nem

    descobrir respostas imediatas para um problema complexo, mas procura-se trazer a lume as

    implicaes sociais resultantes de decises ou conjunto de decises tomadas, histrias de

    atores sociais envolvidos interaes e sociabilidades que dela resultam, e resultados de estar

    com o outro no recinto deste. A escolha pelo estudo de caso como mtodo de pesquisa para

    esse trabalho foi julgada como sendo a mais adequada, por ser capaz de levar em conta

    diversos pontos de vista, ao levar em conta que um objeto pode ser uma unidade que se

    analisa, uma entidade ou um programa. Evidencia-se como um tipo de pesquisa com forte

    cunho descritivo na qual o pesquisador pode no pretender intervir sobre o fenmeno, mas

    conhece-lo tal como ela aparece.

    Para Becker (1993, p. 107) um estudo de caso no precisa ser apenas descritivo.

    Pode ter um profundo alcance analtico, pode interrogar a situao, pode confrontar a

    situao com outras j conhecidas e com as teorias existentes. Para esse autor, o estudo de

    caso pode ajudar a gerar novas teorias e novas questes para as futuras investigaes, e

    2 GOFFMAN, E.Interactional Ritual: essays on face-to-facebehavior. New York: Anchor Books, 1967. Disponivel em http://www.taddei.eco.ufrj.br/AntCom/RodriguesJr.pdf: Acesso realizado em 20 de novembro de

    2011.

  • 8

    destaca a pesquisa qualitativa como um dos princpios caractersticos. uma investigao que

    se assume como particularstica, debruando-se sobre uma situao especfica, procurando

    descobrir o que h nela de mais essencial. Consiste na observao detalhada de um contexto e

    de um acontecimento especfico (o caso). Requer a observao de diversas variveis, de

    modo a comparar e constatar com outros casos e interativo (BECKER, 1993, p. 108).

    Portanto, foram depois destas orientaes terico-metodolgicas, facilitadas pela

    intimidade travada com o campo, que a pesquisa foi possvel de ser desenvolvida. Houve,

    contudo, o cuidado de manter um dilogo sempre aberto com os nossos interlocutores,

    explicando-lhes o objetivo da pesquisa e fazendo com que eles interviessem nas discusses.

    Mas, somente as estratgias de observao participante e as de investigao de tipo intensivo-

    qualitativo permitiram uma aproximao intimidade dos estudantes palopianos.

    Partindo desses princpios, o objetivo era fazer falar os interlocutores o mais

    descontrada e livremente possvel. Tal maneira de falar colocou os interlocutores num

    esforo de fazer funcionar a memria. Um recurso que a Antropologia legitima como a forma

    pela qual as pessoas do sentido as suas experincias vividas e interpretam seu mundo

    (CALDEIRA, 1989, p. 29). No entanto, o recurso memria pode possibilitar muito mais,

    medida que permite descortinar situaes de conflitos, festas, jogos, e outros eventos sociais,

    bem como os processos de construes de identidades, uma vez que memria e identidade

    encontram-se imbricadas, pois o processo de memorizao possibilita reconstruir e redefinir

    continuamente as identidades, tanto individuais quanto coletivas dos grupos:

    A memria algo vivo e como tal encontramos armazenadas nela uma srie de

    lembranas precisas e completas de eventos presenciados e vivenciados. claro

    que ela seletiva e, por outro lado, na recuperao da histria vivida, a histria

    presente servir de parmetro. Realmente, pode-se falar com propriedade numa

    dialtica prpria da memria, medida que o passado referencial para orientar

    nossos passos no presente e o presente serve como ponto de referncia para uma

    releitura, interpretao e atribuio de sentido ao passado (BERNARDO, 2007, p.

    32).

    Na mesma direo Caldeira (1989, p. 21) ressalta o aspecto social da memria,

    aponta a memria de um grupo social como produzida socialmente, no se tratando apenas de

    uma produo coletiva: ela associa o passado ao presente, trazendo experincias do grupo que

    as interpretam e reinterpretam o passado, usando essas interpretaes para dar sentido sua

    experincia presente e legitimar diferentes interesses. Assim, as vises sociais do passado no

  • 9

    so fixas, mas sujeitas a reinterpretaes, as quais o presente e as condies sociais do grupo

    mudam.

    Entrevistas pouco estruturadas deram oportunidade espontaneidade de dilogo e

    negociao. Com efeito, o resultado foram treze (13) histrias de atores que participam do

    PEC-G na UFPE e na UFAL, cada uma delas com suas origens, trajetrias e circunstancias

    nicas. Para a entrevista, adotou-se uma sequncia temporal, de modo a propiciar uma

    evoluo espontnea dos nossos interlocutores do passado para o presente, e do presente para

    o futuro.

    No que diz respeito ao passado, procurou-se explorar memrias, marcas,

    sentimentos de pertena, motivaes em estudar no Brasil e outras questes. Buscou-se saber

    a relao de atores com o pas de destino, e concretamente com o local de estudos, ainda no

    pas de origem, assim como os conhecimentos, expectativas, redes sociais e meios sedutores,

    e suas, diferenas sentidas ao desembarcar, primeiras impresses, facilidades e dificuldades

    enfrentadas no destino. Com efeito, permitiu nossos interlocutores a reconstruo do passado,

    no somente por meio da fala, como tambm nos comportamentos revelados

    involuntariamente.

    Convm ressaltar que alm das entrevistas, houve circunstncias de interaes

    informais com os interlocutores, assim como com outros membros do PEC-G e de seus

    colegas brasileiros/as, que permitiram complementar a nossa busca por meio da observao

    direta e participativa nos eventos frteis e de manifestaes ricas de simbolismo de valores e

    vises diferentes de mundo.

    As entrevistas em Recife e Macei foram realizadas no perodo de frias

    acadmicas entre Janeiro, Fevereiro e Maro de 2011. Tiveram uma durao mdia de uma

    hora e meia. Quase todas as entrevistas ocorreram no recinto domstico dos interlocutores, na

    intimidade da casa, favorvel tambm nossa observao, j que permite o pesquisador

    inteirar-se de como o pas de origem ou a pertena cultural reconfigurada no interior do lar,

    assim como captar a absoro da cultura local.

    As restantes aconteceram em espao pblico, no bar restaurante Nova Kis, em

    frente Padaria Universitria, na Avenida General Polidoro, bairro Cidade Universitria, em

    Recife, num dia de domingo, no silncio de um bar quase vazio. Outro aspecto interessante

    foi a possibilidade de alguns entrevistados falarem em crioulo; recurso que Ncia Tavares, de

    Cabo Verde, residente em Macei, adicionou estrategicamente sua fala para ativar a

    memria de tempos de convvio com a famlia.

  • 10

    Outros critrios foram empregados para selecionar os entrevistados. Um deles foi

    o de tempo de estadia no Brasil. Esse critrio justifica-se fundamentalmente pelo menos em

    duas perspectivas: cultural e terica.

    A primeira baseia-se no fato de determinadas culturas africanas privilegiarem o

    fator tempo ou a idade de uma pessoa. Nestas culturas acredita-se que o conhecimento, a

    experincia de vida somente vem com a idade, ou tempo de permanncia em determinado

    lugar. Os primeiros a chegarem ao Brasil so tambm a memria do grupo; aqueles que

    enfrentaram uma infinidade de acontecimentos. Quando um velho morre uma biblioteca

    que desaparece, dizia o poeta Maliano Amad Ampat B3. Desta forma se associa a idade,

    ou os anos vividos num determinado lugar, sabedoria. Os primeiros que aqui

    desembarcaram so os que primeiro ouviram falar da Serra da Barriga e assistiram pela

    televiso a aprovao da Lei 10.639 / 03, e os debates sobre as cotas para Negros no Brasil.

    A segunda refere-se s vertentes tericas que reconhecem a existncia de uma

    scio-dinmica prpria na relao entre quem estava e quem chegou, conforme defende

    ELIAS e SCOTSON, (1994). O comportamento de quem est fora de lugar pode variar de

    acordo com a fase em que estiver, defende (MACHADO, 2002, p. 36). Contudo, houve

    cuidado em selecionar os entrevistado/as em etapas diferentes da chegada ao Brasil, os mais

    antigos esto no Brasil h 3 (trs) ou mais de 4 (quatro) anos. Os entrevistados mais recentes

    esto na etapa inicial de intercmbio, chegaram h menos de 2 (dois) anos.

    Convm informar que no momento inicial do estudo, em que se tentou definir sua

    metodologia, provocou de imediato diversos problemas, dentre eles, a ideia de alargar o

    campo de pesquisa atingindo pelo menos estudantes do PEC-G em quatro universidades

    federais do Nordeste Brasileiro, UFAL, UFPE, UFPB e UFS, escolha que poderia, em funo

    de limitao de tempo exigido para elaborao de uma dissertao de mestrado, inviabilizar

    um trabalho desta natureza.

    Ao mesmo tempo, deparou-se com a ideia de limitar a pesquisa exclusivamente

    aos estudantes de um pas, mas adotou-se a iniciativa de definir um universo maior de atores

    atingindo uma representatividade geral dos palopianos, fundamentada, pois, na ideia de que

    tal medida poderia no s possibilitar apreenso de hbitos de cada ator, como tambm de

    captar particularidades que caracterizam a vinda dos angolanos, cabo-verdianos, guineenses,

    3 Hampt B (1900-91) participou da elaborao dos primeiros estudos que usam as fontes orais de maneira

    sistemtica, como em "Histria Geral da frica", publicada pela UNESCO em 1980. Se escritos como esse e

    outros de carter sociolgico e filosfico so mais conhecidos, o relato autobiogrfico tem o mrito de revelar a

    trajetria desse mestre da transmisso oral e comprovar a fora da "oralidade deitada no papel" (nas palavras do

    autor).

  • 11

    moambicanos e sotomenes ao Brasil e, com isto, encontrar em cada histria de vida, tanto o

    que de mais nico as distingue, como o que de mais comum os ligam.

    A partir de contatos intensos de estudantes desses pases, evidenciou-se o fato de

    que suas histrias esto imbricadas; portanto, a histria de um complementava a outra4. Neste

    sentido, procuramos realizar uma entrevista equilibrada com estudantes de nacionalidades

    distintas. Em nossa defesa, encontramos Boudon (1990, p. 127), segundo o qual, quanto mais

    as cincias sociais avanam, mais se torna evidente a impossibilidade de qualquer tentativa de

    unificao de campo e metodologia. Acompanhamos o cotidiano destes nas universidades

    durante quase um ano, principalmente em Recife, local onde at ento ramos pouco

    conhecido. Perodo o qual segundo Becker (1993, p. 86) seria suficiente para observaes

    mltiplas que convena de que nossa concluso no est baseada em alguma expresso

    momentnea e passageira das pessoas que estudamos.

    De modo semelhante, as circunstncias que cercam as aes das pessoas s vezes

    mudam de acordo com uma programao temporal regular. As pessoas podem no ter

    a ideia da temporalidade de seu comportamento, mas o pesquisador tem que ter, pois

    os dados coletados em pocas diferentes refletem realidades diferentes. Em geral

    quando observamos durante um perodo longo de tempo, acreditamos que no

    confundimos um fenmeno que no muda, e que tivemos a oportunidade de observar

    processos de mudana podem estar ocorrendo (BECKER, 1993, p. 87).

    No incio, no houve a preocupao com os grupos na sua totalidade; deu-se

    maior ateno a atores particulares que teriam sido transformados em referncias no seio dos

    grupos por viverem mais tempo no Brasil, cujas aes influenciam em muitos casos os

    estudantes recm chegados. Participamos como observador de pelo menos cinco (5) festas,

    uma referente comemoraes da independncia da Guin-Bissau em setembro de 2010 e

    outra de Angola em Abril do mesmo ano, e mais duas em Macei, uma das quais referiu-se ao

    encerramento da Semana de Cultura Africana, e a outra a do Dia da frica, em maio. Alm

    delas houve muitos convvios de carter festivo que aconteceram nas residncias.

    Propusemo-nos tambm a participar como observador em cerca de dez (10)

    torneios de futsal masculino e feminino, realizados no perodo de setembro de 2010 a maio de

    4 Alm de j mencionado, grupos interligados das partes de uma organizao ou um programo, como o caso

    dos estudantes do PEC-G, significa que nossa tentativa de compreender qualquer aspecto especifica do que

    vemos provavelmente exige que ns tenhamos algum entendimento de seus outros aspectos principais. As

    observaes que registramos exigem que ns prestamos ateno a outros aspectos observveis, por mais que

    sejam inesperados ou desagradveis para ns, para que faam algum sentido (BECKER, 1993, p. 90).

  • 12

    2011, nas instalaes esportivas da UFPE, sendo possvel compreender o que est por trs

    dessa mesma realidade. Apesar da tenso apresentada, esses jogos de futsal tornaram-se a

    nica atividade grupal fixa e eventos significativos para as comunidades africanas em Recife.

    Enfim, a motivao da escolha do Brasil para realizao de estudos, questes

    relacionadas a dificuldades encontradas nas cidades do destino quanto insero social,

    perspectivas de retorno ao pas de origem, contrastes no local de estudos, tambm

    prevaleceram como critrio de seleo do universo de anlise. As informaes recolhidas

    foram transcritas e depois digitalizadas, enviadas aos entrevistado/as, para eventuais consultas

    e, depois, submetidas descrio e anlise de natureza qualitativa.

    Parte 1 - frica em movimento

    1.1. A mobilidade internacional de africanos

    Os fluxos migratrios no contexto africano remontam historicamente aos

    processos ancestrais. Teria sido talvez um continente onde se deu a maior mobilidade

    humana, no s pelo fato de ter sido bero da humanidade, mas tambm por razes que vo

    desde as complexas questes climticas no interior da frica, aos processos violentos da

    islamizao, conflitos entre os diferentes imprios e reinos, at o recente processo de

    colonizao que se iniciou com a invaso do continente pelas potncias coloniais, levando seu

    povo a deslocar-se constantemente. Alm dessas questes apontadas, sempre existiram na

    frica deslocamentos de populaes de uma regio para a outra pelas razes variadas. Mas,

    constata-se que os registros existentes sobre a mobilidade dos africanos no interior do prprio

    continente quase sempre vista como:

    uma maneira de escapar da pobreza, da morte por desnutrio. Para alguns autores, o

    movimento migratrio no continente africano apresenta uma especificidade motivada

    por conflitos tnicos e, sobretudo polticos e, estes so fatores que tornam difcil

    anlise da migrao internacional na frica e, sobretudo, ao sul do Saara (CASTLES

    e MILLER, 2004, p. 172).

  • 13

    A circulao de pessoas alm dos limites das fronteiras polticas de cada pas

    africano em direo aos pases vizinhos parece no ser vista por muitos estudiosos como

    estratgia de concretizao dos projetos de vida pessoal ou familiar, mas apenas como simples

    estratgia de sobrevivncia. Projetos que envolvem propsitos de cunho afetivo, emocional,

    religioso, de sade ou intelectual, no so motivos levados em considerao para o

    deslocamento dos indivduos.

    Portanto, talvez pela homogeneizao terica e metodolgica, muitos analistas so

    conduzidos a no colocar foco nas divises polticas, nas diferenas lingusticas, tnicas e

    culturais que distinguem os povos daquele continente. Com efeito, tais tendncias tericas

    fazem com que os fluxos migratrios na frica sejam invisibilizados ou reduzidos a

    abordagens de perspectiva de fuga.

    As diversas vertentes de abordagem terica sobre o processo de mobilidade social

    no mundo tambm no levam em conta a circulao dos estudantes no contexto africano,

    embora seja uma realidade secular em frica. No contexto europeu a circulao internacional

    para fins de estudos est presente desde a Idade Mdia com a criao das primeiras

    universidades (Bolonha, Paris, Oxford). Essas universidades contavam com professores e

    estudantes de diferentes regies e pases, formando comunidades internacionais.

    Os estudantes de origens diferentes reuniam-se em torno de um objetivo comum,

    o conhecimento. Com o avano dos estados nacionais modernos, a universidade sofreu um

    processo de nacionalizao. Contudo, esse processo no eliminou as necessidades do carter

    internacionalista da produo do conhecimento cientfico, especialmente no sculo XX,

    apesar de as universidades ficarem subordinadas s necessidades e presses dos estados, das

    sociedades e do mercado, no contexto do desenvolvimento nacional5:

    Na era antes de Cristo h registros que jovens da sociedade romana iam Grcia (Atenas, Rodes, Alexandria, Prgamo) para estudar. Professores gregos eram

    importados para fundar escolas em Roma. Nos sculos XII e XIII estabelece-se o conceito de Universidade na Europa (Universidade de Salamanca - 1218). Na

    Renascena d-se incio ao estmulo para os intercambistas (Florena, Cambridge,

    Basel). No sculo XIX, com a expanso da Revoluo Industrial, outros pases

    comeam a exportar intercambistas (China e Japo). No ps 2. Guerra Mundial h

    mudana no conceito de "viagens de estudos", passando a ser o foco no aprendizado

    para convivncia pacfica entre os povos. Em 1950 ocorre o incio dos estudos da

    educao para a PAZ. Frana e Alemanha iniciaram o movimento de programas

    governamentais para intercmbio cultural (CHARLE & VERGER apud JURANDIR ZAMBERLAM, GIOVANNI CORSO, LAURO BOCCHI, JOAQUIM FILIPPIN,

    WLADYMIR KULKAMP, 2009, p. 23).

    5 Objetivo de atual processo de internacionalizao de ensino inculcar nos mesmos, na equipe acadmica e na

    equipe administrativa, novos conhecimentos, novas habilidades e atitudes que lhes permitam atuar de maneira

    eficaz num meio global, interdependente, internacional e multicultural, (STALLIVIEIRI, 2008, p.3).

  • 14

    Pois, observou-se que historicamente um dos aspectos mais importantes que

    sempre propiciaram circulaes, no interior do continente africano, foi a migrao com fins de

    estudos. Este processo iniciou-se no contexto africano desde que os fencios comearam a

    estabelecer colnias na costa africana do Mediterrneo, por volta do sculo X a.C. Um povo

    que teve seu epicentro no norte da antiga Cana, ao longo das regies litorneas dos atuais

    Lbano, Sria e Israel. A civilizao fencia caracterizou-se por uma cultura comercial

    martima empreendedora que se espalhou por todo o Mediterrneo durante o perodo que foi

    de 1550 a.C. a 300 a.C.

    Neste perodo inicial os contatos entre africanos Subsaarianos com os fencios e

    outros povos muulmanos tinham carter mercantil, envolvendo, sobretudo a troca de objetos

    e produtos de necessidades bsicas. Mais tarde verificou-se um processo intenso de

    islamizao, sobretudo de povos principalmente de etnias Fula e Malinque da frica

    subsaariana, estes j com profundos conhecimentos do Alcoro realizavam longas viagens de

    misses no interior do continente africano, s vezes sem volta, e estabeleciam escolas

    cornicas em lugares distintos: aceitavam e recebiam alunos vindos de diferentes regies da

    frica; l esses alunos permaneciam estudando por muitos anos. Tais estabelecimentos

    escolares persistem em vrios lugares da frica contempornea, coabitando com as

    instituies modernas de ensino, denominados de madrassa6. No pretendemos aqui analisar

    exaustivamente diversos aspectos de tal histria de imigrao para fins de estudos no interior

    do continente africano nem tal seria possvel, por causa de propsitos anunciados neste

    trabalho, pretendemos antes apresent-las como exemplos e evidenciar a nossa estranheza

    pelo fato de negligenciar sua pertinncia na anlise terica contempornea sobre os

    movimentos migratrios internacionais. Da nossa leitura, alm de enfatizarmos sua

    persistncia considemos tambm importante no s pela travessia das fronteiras, como

    tambm por envolver o deslocamento espacial a um povoado, e tratar-se da migrao num

    perodo longo, em que os alunos passam por um processo de transformao social e cultural

    significativa.

    6 O islamismo fez sua entrada no continente a partir da frica do Norte, do Egito ao Marrocos, sendo uma das

    primeiras regies a ser conquistadas pela expanso inicial rabe-islmica (sculos VII e VIII). Dos sculos X a

    XVI, mercadores muulmanos contriburam para o surgimento de importantes reinos na frica Ocidental, que

    floresceram graas ao comrcio feito por caravanas que, atravessando o Saara, punham em contato o mundo

    mediterrneo ao das estepes e savanas do Sudo Ocidental e frica centro-ocidental. A converso de certos

    monarcas africanos fez no s o isl avanar como criou uma florescente cultura. Assim, cidade de Tumbuktu

    (no atual Mali) era, no sculo XIV, um ncleo urbano conhecido pelo alto nvel de suas escolas islmicas, que

    atraam muulmanos de vrias partes do mundo (RVISTA PANGE, 2005).

  • 15

    A partir desta observao pode-se concluir que a circulao ou mobilidade de

    pessoas em processo de qualificao, ainda que se apresente como tendncia da circulao

    internacional contempornea, tem razes na antiguidade, sobretudo no interior do continente

    africano. No obstante, de interesse terico citar Geertz (2001) j que traz para este trabalho

    questes pertinentes sobre um dos aspectos subjacentes mobilidade internacional estudantil

    para distintas regies do mundo em busca da qualificao tcnica e profissional.

    Esse autor chama ateno para a possibilidade do atual contexto mundial de integrao

    produtiva e da interdependncia econmica poderem estar sendo pensadas considerando suas

    repercusses no campo social e cultural. Nesta perspectiva Geertz afirma:

    a cultura e a poltica da segunda metade do sculo XX como um mundo em pedaos, no qual os conceitos de nao, estado, cultura e poltica, pensados respectivamente como fronteiras, instituies, comportamentos, crenas e poderes no

    se aplicam mais. A viso de um mundo definido geogrfica e culturalmente como um

    consenso em torno de elementos fundamentais, tais como concepes, sentimentos e

    valores comuns, parece pouco vivel diante de tamanha disperso, circulao e

    desarticulao (GEERTZ, 2001, p. 219).

    Para esse autor so as falhas, as disperses, as mobilidades humanas e as fissuras

    que parecem demarcar a paisagem da identidade coletiva. Apesar desta afirmao a

    circulao para fins de estudos ao longo dos ltimos anos tem apresentado forte tendncia de

    crescimento, sobretudo nos pases em vias de desenvolvimento. Ao examinarmos os dados

    estatsticos da UNESCO de intercmbios acadmicos internacionais neste incio de milnio,

    chama a ateno o fato de a mobilidade de estudantes intercambistas internacionais apontar

    para um aumento cada vez mais expressivo de pessoas que esto em circulao com fins de

    estudos.

    Assim, de acordo com as estatsticas publicada em 2006 da UNESCO, pelo

    menos 2,5 milhes de estudantes de ensino superior se encontravam fora de seus pases de

    origem comparando com os percentuais dos cinco anos anteriores que era de 1,75 milho

    representando um aumento de 41% desde 1999 (UNESCO 2006)7.

    Contudo, a UNESCO ressalta que o aumento da circulao de estudantes pelo

    mundo deve ser analisado tambm considerando a expanso geral da educao superior cujo

    aumento no nmero de matrculas passou de 92 para 132 milhes nos perodos de 1999 e

    2004, o que representou um crescimento de 40%. Ainda tomando como referncia o mesmo

    7 Cf. Global Education Digest 2006. Comparing Education Statistics Across The World. UNESCO. Institute for

    Satistics. Montreal, 2006. Disponvel em: http://www.uis.unesco.org/TEMPLATE/pdf/ged/2006/GED2006.pdf.

    Acesso realizado em: janeiro de 2010.

  • 16

    documento da UNESCO (2006), o volume de estudantes internacionais teve um impacto

    significativo nos pases anfitries, considerado os principais receptores desse pblico.

    De acordo com as estatsticas, seis pases recebem mais de 67% dos estudantes

    internacionais de todo o mundo: os Estados Unidos (23%), o Reino Unido (12%), Alemanha

    (11%), Frana (10%), Austrlia (7%) e Japo (5%). Ainda ressalta o documento que as

    populaes de estudantes internacionais cresceram quase trs vezes mais rpido (41%) do que

    o nmero de matrculas nacionais nestes pases (15%):

    Pelas estatsticas da OCDE (2002), h uma crescente demanda em termos relativos de estudantes que realizam estudos fora de seu pas de origem. Entre os pases da

    OCDE observa-se que os pases que mais concentram estudantes estrangeiros,

    agregando mais de 80% dos mesmos so: Estados Unidos (34%), Reino Unido (16%),

    Alemanha (13%), Frana (11%), Austrlia (8%) e os outros 18% restantes se

    encontram mais dispersados (PELLEGRINO, 2002, p. 24).

    Pelas informaes recentes deste balano demonstra-se um volume expressivo de

    estudantes estrangeiros no mundo. O caso da frica subsaariana vem confirmar o crescimento

    deste contingente, pois apresenta um crescimento desta populao. De acordo com a

    UNESCO, a mobilidade dos estudantes africanos da regio subsaariana para outras regies ou

    pases trs vezes mais elevada do que o percentual global: cinco pases africanos tm mais

    estudantes de curso superior estudando fora do que em seu pas: Cabo Verde, Comores,

    Djibout, Guin-Bissau e Togo, UNESCO (2006, p. 37, 38)8. Vale lembrar que se tratam de

    pases pequenos com a mdia de um milho de habitantes.

    De acordo com a UNESCO, dos 194.000 (cento e noventa e quatro mil)

    estudantes no exterior procedentes da frica subsaariana, Zimbbue tem o maior grupo no

    exterior (17.000), seguido por Nigria (15.000), Repblica de Camares (15.000) e Qunia

    (14.000). Quanto aos destinos dos estudantes procedentes da regio subsaariana, as

    observaes do documento UNESCO (2006) mostram que em primeiro lugar est

    preferencialmente a Europa Ocidental (51%) e o segundo destino est na prpria regio

    subsaariana (21%), seguida pela Amrica do Norte (20%). O Oeste Asitico e Pacfico,

    Emirados rabes, Amrica Latina e Caribe so destinos que apresentam menores volumes de

    8 No geral as estatsticas da Diviso de Populao das Naes Unidas - UNPD, o nmero estimado da populao

    emigrante africana no mundo at 1990 era de 16.351.076 milhes de pessoas e em 2005 verificou-se um

    aumento no volume que passou para 17.068.882 milhes de africanos, considerando homens e mulheres juntos

    (DESIDRIO, 2006, p. 102).

  • 17

    estudantes africanos. Os estudantes de educao superior que permanecem na frica vo para

    a frica do Sul e para os pases da frica do Norte9.

    O Brasil participa neste cenrio de mobilidade internacional ou de circulao

    estudantil de jovens subsaarianos com mais de 11% da mdia mundial. Segundo Desidrio

    (2006, p. 167) baseado nos registros do Ministrio das Relaes Internacionais Itamaraty,

    ingressaram nas Universidades brasileiras pelo PEC - G, durante o perodo de 2000 a 2006

    um volume de 2.342 estudantes africanos. Pela ampliao de acordos de cooperao entre o

    Brasil e os pases subsaarianos, a vinda de estudantes africanos ao Brasil aumentou

    significativamente. Se comparada aos demais estudantes estrangeiros, os estudantes

    subsaarianos representam o volume mais expressivo. Verifica-se ainda uma demanda

    constante de solicitaes de vagas no Programa e nas Instituies de Educao Superior, pois,

    cada vez mais, estudantes africanos chegam ao Brasil para realizarem seus estudos10

    .

    Desde os anos 1960, parte significativa do contingente dos estudantes africanos no

    Brasil realizou seus estudos na UFPE e na UFAL. A vinda dos estudantes s cidades de

    Recife e Macei cresce cada vez mais. No entanto, difcil de determinar o nmero preciso

    dessa populao devido limitao da informao. Estima-se que atualmente existe nos dois

    Estados do Nordeste Brasileiro mais de 200 estudantes africanos vinculados ao PEC-G,

    conforme demonstra o quadro de alunos matriculados nas duas instituies, que se segue

    (vide anexo II).

    9 De acordo com os dados do Censo Demogrfico de 2000, antes de qualquer subdiviso de interesse, observa-se

    que residem no Brasil um contingente total de 15.568 africanos (DESIDRIO, 2006, p. 87). 10

    O universo do ensino superior impressiona o seu crescimento acelerado e sua insero na globalizao em

    marcha. O Relatrio (2006) da UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura

    - mostra os nmeros da expanso da educao superior nas ltimas seis dcadas: em 1950 eram 6,5 milhes de

    estudantes universitrios no mundo; em 1960, 13 milhes; em 1980, 61 milhes; em 1995, 82 milhes; em 1999,

    92 milhes e, em 2004, 132 milhes. Levando-se em considerao as taxas de crescimento assumidas pela

    UNESCO e OCDE (Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico), pode-se estimar que hoje,

    aproximadamente 168 milhes de estudantes freqentam o ensino superior.

  • 18

    1.2 A frica de volta ao Brasil

    No que diz respeito s relaes entre o Brasil e a frica, especialmente aos

    processos migratrios, deve-se levar em conta que eles se iniciam a partir do processo de

    escravido apesar de algumas pesquisas revelarem que ao longo da histria, a frica e o

    Brasil eram territrios contnuos que separaram-se por meio de fenmenos da natureza,

    conforme aborda vrios estudos geolgicos, caracterizados atualmente pela descontinuidade

    territorial marcada pelo Oceano Atlntico (SARAIVA 1999, p. 31).

    Em todo caso, a lgica do processo escravagista, baseada na imigrao forada

    dos africanos ao Brasil, iniciada no sculo XVI, reaproximou culturalmente esse continente

    do Brasil. Para a grande maioria de estudiosos brasileiros, a mo-de-obra escrava foi o que fez

    pulsar a organizao social da colnia portuguesa e da organizao do Estado Imperial no

    Brasil. A frica passou a ocupar ento um papel central na formao da sociedade e na

    dinmica da cultura brasileira. Tal processo de imigrao forada estendeu-se at final do

    sculo XIX, inaugurando a primeira dispora africana na terra do Pau Brasil (SARAIVA

    1999).

    Com o fim das primeiras formas do processo escravista transatlntico por meio da

    promulgao da Lei urea assinada pela Princesa Isabel em 1888, seguiu-se o processo de

    retorno dos ex-escravizados e seus descendentes para frica concretamente ao atual Benin,

    Libria e Nigria levado a cabo pelo Estado Colonial Brasileiro (SARAIVA 1999). A partir

    do ano 1900 o Brasil interrompe todas as formas de relaes com a frica subsaariana, exceto

    com a frica do Sul e mantm acordos bilaterais com os pases da frica do Norte. Durante

    as primeiras dcadas do sculo XX, o Brasil se concentrou no processo interno de

    desenvolvimento social e econmico.

    No curso deste processo de transformao, a elite brasileira incentivou um macio

    fluxo migratrio dos europeus e asiticos enquanto a frica travava suas lutas anti-coloniais.

    Convm lembrar que faremos ao longo do texto o uso do termo imigrao por corresponder

    ao tipo de circulao que pretendemos estudar, na qual se define, segundo Hall (2003), como

    a sada de um cidado ou cidados que entram num pas que no o de origem. O fenmeno da

    imigrao pode ser definido de acordo com o tempo de estadia imigrante na sociedade de

    destino. Desse modo pode ser denominado imigrante temporrio ou permanente.

    Na primeira metade do sculo XX, inmeros esforos cientficos e tericos

    levados a cabo pelas diversas vertentes de abordagens tericas (Movimento Eugenista

  • 19

    Brasileiro) teriam recomendado a preveno contra a imigrao dos africanos para o Brasil, e

    mesmo aps um perodo de mais de meio sculo de suspenso de relaes entre o Brasil e os

    pases da frica Subsaariana no inicio do sculo XX, perodo em que o Brasil se concentrou

    aos seus projetos, enquanto os pases africanos arrancavam os regimes coloniais das suas

    terras por meio de lutas pela independncia poltica.

    Durante todo esse perodo da luta anti-colonial africana, a memria africana no

    Brasil foi silenciada, sobretudo no governo de Juscelino Kubitschek. O Brasil, pas com a

    maior populao de origem africana na dispora escravagista, estabeleceu diretrizes de

    cooperao externa voltada para a Europa, a sia e os pases latino-americanos, mas no se

    posicionou no perodo de efervescncia poltica na frica.

    O Estado brasileiro acompanhou de forma tmida, sem nenhuma reao explcita,

    a independncia de mais de 20 pases africanos no incio da dcada de 1960 (SARAIVA

    1992, p. 32). Mas, nunca foi de fato possvel cortar o cordo umbilical que uniria para

    sempre o Brasil e o continente africano. Somente em 1961, o presidente Jnio Quadros iria

    reorganizar a poltica externa brasileira que favorecia o retorno da diplomacia brasileira

    frica com aes concretas. A partir da registrou-se uma reciprocidade, por meio de

    instalaes de instituies consulares em Acra, Tunis e Dacar depois em Bissau e Lom.

    Africanos provenientes de pases recm-independentes, chegando ao Brasil com fins de

    estudos, inauguravam uma nova modalidade migratria dos cidados africanos.

    O restabelecimento de relaes com a frica Subsaariana, de acordo com Reis,

    (2010, p. 142) deve-se em parte necessidade de celebrar a autonomia da diplomacia

    brasileira em relao aos Estados Unidos. O contexto desta experincia no Brasil coincide

    com o auge dos processos de descolonizao observados no continente africano. O Brasil

    apostaria na frica como novo espao para negociao de novos acordos bilaterais buscando

    fortalecer relaes Sul-Sul. Uma aproximao cultural com alguns pases africanos pode ser

    pensada como estratgia que facilitaria a viabilidade de interesses, pretenses e expectativas

    econmicas em relao frica.

    Embaixador de Cabo Verde Daniel Pereira, em uma conferncia ministrada em

    Recife, no dia 26 de maio de 2011 intitulada: Novas Parcerias para o Desenvolvimento da

    frica assegurou que nas ltimas dcadas do sculo XX frica e Brasil ampliaram acordos

    de cooperao bilateral propiciando um fluxo constante de pessoas com interesses diferentes.

    A maior populao africana no Brasil est vinculada s instituies de ensino pblico e

    privada, enquanto que a frica importa do Brasil as empresas, as fbricas e os empresrios de

    distintos ramos de negcios, assim como produtos industriais e miditicos.

  • 20

    Com a eleio do presidente Luiz Incio Lula da Silva em 2002, o Brasil adotou

    como prioridade a abertura e a reabertura de postos diplomticos, tanto de embaixadas como

    de reparties consulares, no continente africano, que haviam sido fechados durante

    administraes anteriores, passando de 18 para 30 no total. Em contrapartida o nmero de

    embaixadores africanos no Brasil foi elevado de dezesseis para vinte e cinco entre 2003 a

    200611

    . No plano econmico, a redefinio da diplomacia brasileira em relao frica tem

    favorecido significativamente o setor empresarial. Isso pode ser constatado pelo crescente

    nmero de empresas brasileiras, sobretudo as exportadoras de servios, que l esto

    realizando projetos.

    Para Pereira, essas aes fizeram com que o comrcio brasileiro com a frica

    crescesse mais de 200%, segundo dados do Ministrio das Relaes Exteriores.

    Consequentemente, o nmero de vos e rotas martimas entre Brasil e frica multiplicou-se

    por cinco. Carlos Lopes afirma que se olharmos para o crescimento das relaes da frica

    com outras economias emergentes como a China, ndia ou os pases do Golfo, o Brasil j fica

    para trs. Tambm importante sublinhar que a frica cresce como continente acima dos 6%

    ao ano, mas h pases, como Angola, superando os 20% por ano. Por todas essas razes

    justifica-se pelo menos em parte o novo interesse do Brasil pela frica, lembra Carlos Lopes,

    Sub-Secretrio Geral das Naes Unidas e encarregado do Instituto para Formao e Pesquisa

    (Unitar), em Genebra - Sua (Conferncia em agosto de 2011, Salvador/BA).

    Pereira lembra que para fortalecer ainda mais a cooperao do Brasil com os

    pases africanos, preciso superar um difcil obstculo, em aspectos cientficos, sociais e

    culturais: a ausncia de conhecimento sobre a frica por grande parte da populao,

    sobretudo no meio acadmico e empresarial. A frica no tema corrente na academia que

    apenas h pouco tempo tornou timidamente obrigatrio o estudo da histria da frica no

    ensino fundamental e mdio nas escolas pblicas do Brasil, a partir da aprovao, em 2003,

    da Lei 10.639, pelo governo Lula, diz Lopes (Conferncia, agosto de 2011). Vale frisar que

    determinadas Instituies de Ensino Superior, como a Universidade de So Paulo (USP) e a

    Universidade Federal da Bahia (UFBA), sempre tiveram um ncleo de estudos africanos.

    Outras instituies de ensino superior instituram ncleos de estudos afro-brasileiros e

    africanos.

    11

    Cludio Ribeiro, coordenador do grupo de estudos sobre frica, da Pontifcia Universidade Catlica de So

    Paulo (PUC-SP).

  • 21

    A propsito, ainda so poucas as pesquisas acadmicas acerca de temticas

    africanas no Brasil12

    . No campo empresarial, segundo Daniel Pereira, embaixador de Cabo

    Verde, existem enormes oportunidades para pequenas empresas, mas apenas grandes

    corporaes, como Petrobrs, Camargo Correa, Norberto Odebrecht, Companhia do Vale do

    Rio Doce, etc, tm conseguido se firmar nos pases africanos, ampliando, pois, a presena

    empresarial brasileira no continente africano 13. Mas, no apenas no plano econmico que

    o Brasil e o continente africano esto ampliando e fortalecendo suas relaes, tambm no

    plano educacional e cultural na qual ocupamos a analisar seguidamente.

    1.3 PEC-G e PEC-PG: Cooperaes Bilaterais Educacional entre o Brasil e a frica

    Ao fazermos uma rpida retrospectiva sobre o Convnio Educacional Brasileiro,

    identificamos de imediato que desde 1919, j se registrava a presena de estudantes

    estrangeiros no Brasil. Tratava-se de estudantes oriundos de Argentina, Chile, Uruguai e

    Paraguai que estavam no pas por iniciativas isoladas cursando Ensino Superior na Escola

    Militar e na Escola Naval. Em 1941, registrou-se um aumento do nmero de estudantes

    estrangeiros nas escolas brasileiras, intensificando-se a partir da a necessidade de celebrao

    formal de Convnios de Cooperao Cultural Bilateral que inclua o aspecto educacional. a

    partir deste momento que se tem a denominao de estudante-convnio, isto , selecionado

    por via diplomtica, com fundamento nesses Acordos Bilaterais do Brasil para atender a

    outros pases, especialmente os latino-americanos.

    No que diz respeito ao convnio educacional entre o Brasil e os pases africanos,

    este se institui a partir de uma ao diplomtica pioneira da Universidade da Bahia-UBA,

    12

    Vale lembrar que em 20 de agosto de 2008, o Governo Lula enviou para o Congresso Nacional o projeto de

    Lei n. 3891/08 sobre a criao da Universidade Federal da Integrao Luso-Afro-Brasileira-UNILAB, uma

    instituio de ensino superior pblica sediada na cidade de Redeno, Cear, sendo aprovado em 13 de maro de

    2009. A UNILAB estar voltada aos PALOP, Timor Leste e Macau, seu objetivo visa a integrao de CPLP

    (http://www.unilab.edu.br/).

    13

    O comrcio externo brasileiro com os pases africanos no perodo de 2005 cresceu 26%, ao efetuar um recorte

    percebemos que o comercio do Brasil com os pases africanos de lngua portuguesa - PALOP cresceu 225%. O

    saldo positivo para o Brasil ronda em torno de 640 milhes de dlares. De forma geral o comrcio entre o Brasil

    e os pases africanos at outubro de 2007 aumentou significativamente passando de (5) bilhes para (12, 8)

    bilhes de dlares. Daniel Pereira acrescenta que a populao mundial corresponde a (7) bilhes de habitantes, a

    frica fornece a esse cenrio cerca de (1) bilho de pessoas, o que demonstra ser um mercado importante

    FONTE: (Conferncia apresentada por Daniel Pereira, Embaixador de Cabo Verde, Macei, 23 de outubro de

    2008).

  • 22

    atravs do Centro de Estudos Afro-Orientais CEAO com Itamaty. De acordo com Reis

    (2010, p. 141) essas duas instituies foram responsveis pelo estabelecimento de

    intercmbios com os pases africanos. Os pesquisadores e religiosos de matriz africana da

    Bahia tinham interesse nessa aproximao educacional com os povos nags ou iorubs na

    perspectiva de ter contato direto com os ancestrais e reativar conexes culturais e religiosas:

    A vinda dos estudantes oriundos dos pases da frica Ocidental (iorubs e nags) significava a reativao dos laos culturais e religiosos. A vivncia destes atores

    sociais no Brasil era fundamental para os pesquisadores buscarem razes da

    africanidade bahiana nos estudantes iorubs e nags. Portanto, contato com os

    estudantes significava encontro com ancestrais. (REIS, 2010, p. 147).

    Neste sentido, podemos afirmar que o vis religioso tambm era uma das

    perspectivas que impulsionaram o estabelecimento de cooperao educacional entre o Brasil e

    os pases africanos no incio da dcada de 1960. Sendo que o primeiro grupo de estudantes

    africanos chegou Bahia em 07 (sete) de dezembro de 1961. Um contingente composto de

    quinze estudantes, dentre os quais 05 (cinco) de Gana, 04 (quatro) de Senegal, 2 (dois) Cabo

    Verde, 1 (um) camarons e 3 (trs) mestios de origem francesa. Estes ltimos vieram realizar

    curso de ps-graduao, j que dentro dos critrios estabelecidos pelo Itamaraty, no haveria

    restries para bolsas de ps-graduao para estudantes oriundos da universidade de Dakar no

    Senegal, diz Reis (p. 148).

    Em 1964, o Programa Estudante Convnio de Graduao PEC-G recebe o seu

    nome que vigora at hoje em documento do Ministrio de Relaes Exteriores MRE. Em

    1967, uma comisso ministerial elaborou o primeiro instrumento normativo com 19 clusulas,

    adequado ao padro de um convnio regular e institucionalizado, o qual regulamentava a

    oferta e a distribuio das vagas de acordo com o pas, a seleo dos candidatos e a forma de

    direcionamento do estudante-convnio nas Instituies de Ensino Superior IES.

    Entretanto, no inicio dos anos 70 do sculo XX que a presena dos estudantes

    africanos nas universidades brasileiras se tornou visvel, fato decorrente inicialmente da

    euforia do processo das independncias dos pases africanos de colonizao portuguesa. Em

    1974, celebra-se a reviso do 1 Protocolo de Acordo acrescentando mais clusulas, com a

    finalidade de atualizar e tornar simples e operacional, bem como para atender crescente

    demanda desse perodo, na qual registrou o ingresso mais de 1.600 estudantes. A partir desse

    ano o PEC-G deixa de restringir-se aos pases latino-americanos ampliando o carter formal

    para os pases africanos:

  • 23

    O estudante-convnio um aluno especial, selecionado diplomaticamente em seu pas pelos mecanismos previstos no Protocolo do PEC-G e dentro dos princpios

    norteadores da filosofia do Programa. Este visa cooperao bilateral na rea

    educacional, graduando profissionais de nvel superior, dos pases signatrios dos

    Acordos de Cooperao (Manual - PEC-G, P. 30).

    Em 1981, foi assinado entre a Secretaria de Ensino Superior - SESu do Ministrio

    da Educao - MEC e o Departamento de Cooperao Cultural, Cientfica e Tecnolgica do

    MRE, um documento Adicional ao Protocolo, com a finalidade de ofertar o ensino do

    portugus para os estudantes estrangeiros nas universidades brasileiras, bem como assinatura

    do 3 Protocolo para disciplinar o tempo de permanncia do estudante-convnio e a

    integralizao nos cursos.

    Na dcada de 1990, foi concluda a verso atual como 5 Protocolo e traz em seu

    contedo as diretrizes definidas no Manual do Estudante-Convnio; a partir dele o PEC-G

    daria prioridade aos pases que apresentassem candidatos no mbito de programas nacionais

    de desenvolvimento socioeconmico, acordados entre o Brasil e os pases interessados, por

    via diplomtica.

    A mobilidade dos estudantes africanos do PALOP nos perodos aps a

    independncia de seus pases se dava em maior frequncia com a antiga Unio Sovitica.

    Com o fim da Unio Sovitica em final de 1991, uma forte tenso foi gerada na esfera poltica

    e econmica nos pases africanos recm-independentes, desencadeando um processo de

    realinhamento poltico e ideolgico e de necessidade de integrao desses pases a uma nova e

    nica ordem mundial.

    Tal processo perpassava a recomposio das estruturas educacionais e

    consequente requalificao de recursos humanos desses pases atravs dos acordos

    internacionais, parcerias estas promovidas entre os pases para adequao s exigncias de

    desenvolvimento, que vo mais alm de celebraes nacionalistas ou partidrias, e atendem

    aos modelos de desenvolvimento impostos pelos pases hegemnicos. Os intercmbios

    passaram a ser o nico instrumento importante na promoo de novas oportunidades de

    formao, possibilitando aos cidados desses pases a obteno de experincias profissionais e

    de novas tecnologias. Pellegrino sustenta que:

    a circulao internacional de estudantes qualificados ou em vias de qualificao deve ser considerado importante na medida em que no circulam somente pessoas,

    mas tambm circulam, sobretudo ideias que favorecem o intercmbio de expresses,

    saberes e signos de regies e culturas, enquanto mecanismo importante

    manuteno de vnculos transnacionais. A mobilidade de pessoas qualificadas

    permite manter maiores nveis de relacionamentos com os pases parceiros devido

    uniformizao de cdigos administrativos e profissionais, consequentemente, gera

  • 24

    tambm maior nmero de retornos, contudo, do ponto de vista de ser esta migrao

    um brain exchange ou brain gain(PELLEGRINO, 2002, p. 23)14.

    A cooperao na rea de educao tem sido um instrumento importante para

    impulsionar o desenvolvimento por meio da formao de recursos humanos dos pases em

    vias de desenvolvimento. A circulao de pessoas, com objetivos da educao formal, parece

    ser uma tnica recorrente nas sociedades africanas contemporneas. Hoje, perceptvel a

    presena dessa nova categoria de migrantes temporrios ou intermedirios nas universidades

    brasileiras. Eles vivem e interagem durante um perodo relativamente prolongado, criando

    vnculos sociais profundos nas universidades e nas cidades por onde transitam.

    Para Delours (2001, p. 47) as universidades constituem arenas privilegiadas de

    interao composta de teias relacionais onde circulam os diferentes discursos que vo

    construir subjetividades e na qual os indivduos podem tomar conscincia de suas reais

    condies de vida; por isso mesmo, o campo no qual se desenrola parte de uma luta poltica,

    fruto de um processo cultural e histrico na fixao dos significados em uma dada sociedade.

    Essas subjetividades esto vinculadas s condies de produo da existncia, tanto no

    aspecto material quanto imaterial. De acordo com esse autor, a existncia da diversidade, e

    consequente diferenciao nesses aspectos, no interior da universidade, possibilita o

    surgimento de contedos culturais e simblicos que refletem concepes e interesses distintos

    ou mesmo conflitantes.

    Apesar disso, Cohen (1997) chama a ateno para pontos fundamentais ao

    entendimento das contra-tendncias da globalizao: as mudanas rpidas e densas no mundo

    econmico e sua relao com os setores das comunicaes; as formas de migrao

    internacional pelos modelos permanente ou temporrio, e a relao de cidadania que se

    vincula ao contexto, que altera as transaes, interaes e concentraes de determinados

    segmentos do mundo econmico em determinadas cidades; o cosmopolitanismo e o localismo

    que atuam na criao e promoo de culturas locais ampliadas como cultura cosmopolita; e

    por fim a desterritorializao da identidade social como desafio hegemonia do Estado-

    nao.

    14

    A noo de brain drain abordado na anlise de processo de migrao refere-se aos recursos humanos

    qualificados e que estejam no efetivo exerccio da profisso em locais fora de seu pas. Ela pe em evidncia os

    aspectos negativos dessa migrao, por se tratar de uma evaso de profissionais qualificados necessrios aos

    interesses de desenvolvimento social do pas. Nesse sentido, em oposio viso tradicional de brain drain, uma

    nova perspectiva abordada como brain gain refora a ideia de que h outra maneira de perceber o fenmeno,

    enfatizando que poderia haver nessa reverso, impactos positivos que as migraes de pessoas qualificadas

    geram como inverses (remessas), criao de redes que promovem intercmbio e Cooperao, circulao do

    conhecimento e impulsionam a formao de capital humano nos pases de origem (MARQUES, 2003, p. 34).

  • 25

    A mobilidade de pessoas, sob uma nova lgica espacial que Castells (1999, p.

    468) chama de espao de fluxos, propiciou a fragilidade das fronteiras nacionais alcanada

    pela etapa atual do modo de produo capitalista, tendo em vista a produo, a circulao e o

    consumo de bens materiais e financeiros e produziu efeitos nas esferas no apenas econmica

    e financeira, mas tambm nas dimenses social e cultural.

    Sassen (1998, p. 95) sustenta que a globalizao aumentou o volume de fluxos

    migratrios e apresenta uma tendncia de crescimento. Os diferentes tipos de mobilidade

    sejam laborais, de refugiados, de migrao permanente, ou temporrio estudantil, so

    categorias de migrantes que estariam presentes em um mesmo pas, e trariam, portanto,

    dificuldades de implantao de polticas governamentais nacionais e internacionais. Importa

    frisar que estariam tambm dentro do tema circulao a problemtica da diversidade tnica e

    do racismo, aspectos subjacentes, mas que, s vezes, so ofuscados por metforas como a do

    hibridismo, que no avana alm das fronteiras tambm hbridas, dificultando lidar, assim,

    com a complexidade da questo da diferena, no se levando em conta que a diversidade

    ainda constitui a forma de distino entre os indivduos que compem a populao receptora e

    as procedentes das outras sociedades, com suas diferentes lnguas e diversas prticas culturais.

    Cohen (1997, p. 47) destaca que a relevncia da circulao internacional no

    contexto da globalizao no somente inevitvel como tambm potencialmente positiva.

    Esse deslocamento massivo dever ser entendido como parte das estratgias de sobrevivncia,

    de impulso para alcanar novos horizontes, e a globalizao, neste contexto, age como fator

    de estmulo ao aumentar o fluxo de informaes a respeito dos padres de vida e das

    oportunidades existentes ou imaginadas em outros pases.

    A mobilidade internacional torna-se ainda mais importante, enquanto fenmeno

    que se amplia e diversifica os lugares, gerando uma dinmica intensa, e que envolve no

    somente aqueles que compem os grupos em movimento, os quais vivem as consequncias

    dessa mobilidade espacial, mas tambm as famlias dos migrantes, os locais de origem e as

    sociedades receptoras, que participam efetiva e conjuntamente desse cenrio ou desta

    realidade social. A partir destes acordos entre o Brasil e os pases africanos novos fluxos e

    circulao de pessoas aumentaram reciprocamente luz de dispositivos e aberturas

    necessrias na vigncia dos acordos.

    No curso deste processo de deslocamento temporrio dos estudantes africanos

    para o Brasil, concretamente ao Nordeste Brasileiro, chama a ateno, alm de assuntos

    relacionados aos seus pases de origem, um outro fato interessante a lembrar: a questo

    relacionada aos seus processos de sociabilidade, insero social e cultural desses estudantes

  • 26

    num pas com a existncia de processos de discriminao e racismo. Imagine-se o que

    acontece com a percepo e a vivncia destes estudantes, quase todos pretos africanos nesse

    contexto, em particular no interior do espao acadmico nesta dispora, enfrentado os

    percalos de viver e conviver ainda que temporariamente, fora de casa.

    Convm frisar que este trabalho no se trata de uma pesquisa sobre fenmeno

    social da migrao, mas de uma perspectiva que procura analisar as dinmicas sociais dos

    estudantes africanos em trnsito, no Recife e em Macei; partindo dos princpios de que a

    mudana de contextos simblicos ainda que temporrio, e a exposio diversidade, so teis

    reconstruo dos liames de sociabilidade e, por extenso, de reconfiguraes de identidades;

    pois os processos de sociabilidade que delas decorrem constituem um dos aspectos

    fundamentais que tero proeminncia nos prximos captulos.

    PARTE 2 - EXPERINCIAS E CONTRASTES DA VIDA FORA DE CASA

    2. 1. Trnsitos e conexes: os estudantes africanos no Brasil

    Os fluxos de contingente de estudantes vindos das ex-colnias de Portugal em

    frica aumentam cada vez mais nas regies do Nordeste Brasileiro, quer em nmero quer em

    termos da diversidade de origem tnica, passando a apresentar um perfil escolar e etrio que,

    pelas suas especificidades, contribui positivamente na reconfigurao do perfil do corpo

    discente, na dinmica intercultural do espao acadmico e no processo de internacionalizao

    do conhecimento promovido pelas instituies acolhedoras.

    As experincias dos jovens angolanos, cabo-verdianos, guineenses e

    moambicanos que fizeram travessia do atlntico na perspectiva de realizarem seus estudos

    nas universidades brasileiras, demonstram por meio de relatos, serem uma experincia frtil,

    na medida em que, apesar de estarem em trnsito, a interao com os brasileiros e de outros

    intercambistas estrangeiros e a troca simblica que dela decorre no espao intra e extra

    universitrio nesta dispora, cria uma atmosfera favorvel para que esses atores sociais

    redesenhem imagens de si e dos outros, num processo de redescoberta dos prprios pases

    de origem e de reclassificao do outro conforme diz (DUBAR 2000).

  • 27

    Neste sentido parece ser oportuno trazer a percepo de Bhabha acerca da

    circulao contempornea de pessoas:

    Encontramo-nos no momento de trnsito em que espao e o tempo se cruzam para

    produzir figuras complexas de diferena e identidade, passado e presente, interior e

    exterior, incluso e excluso. Isso porque h uma sensao de desorientao, um

    distrbio de direo no alm: um movimento incessante, que o termo francs au-del exprime to bem aqui e l, de todos os lados, fort/da, para l e para c, para frente e para trs (BAHBHA apud LOPES e BASTOS, 2010, p. 9).

    Segundo Hall (2003) a proliferao de modalidades de identidades ambivalentes

    numa multiplicidade entrecruzada e dinmica, das identidades culturais contemporneas, cujo

    carter plural e plstico, contextual e interativo, mutvel e entrelaado. Parece, no entanto,

    que o prprio questionamento sobre as identidades e socializao reflete as dramatizaes

    articuladas com experincias de mobilidade cuja ansiedade est encravada em molduras

    duplas de vida. Sposito (1993), ao revisitar os clssicos, verificou que desde Durkheim,

    desenvolveram-se reflexes sobre a socializao a partir de diversas perspectivas, de acordo

    com o prprio contexto histrico, com concepes distintas de sociedade, dos atores sociais e

    das interaes, exprimindo modelos determinados de sociedade e de cultura. Hoje, vrios

    autores questionam se tais paradigmas, produzidos no contexto de certa concepo clssica de

    sociedade, so capazes de explicar os processos sociais que ocorrem na sociedade

    contempornea, no bojo das profundas transformaes