a ação de deus, a revelação e a historicidade da ressureiçao de jesus

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revelação

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  • 4 A ao de Deus, a revelao e a historicidade da ressurreio de Jesus

    4.1. Introduo

    No captulo anterior fixamos nossa ateno nas interpretaes dos textos bblicos que narram a ressurreio, passando pela reflexo da questo do corpo do Ressuscitado. Neste captulo, refletiremos sobre o sentido da f, como expresso da ao de Deus, na ressurreio de Jesus. Embora tenham existido controversas entre f na ressurreio e a ressurreio propriamente dita, que ainda no foram dissipadas totalmente, certo que a f ocupa um papel fundamental para dar sentido interpretativo, para adeso e compromisso com o Ressuscitado.

    A importncia da f ficar melhor caracterizada quando tratarmos da ressurreio como ato de Deus, que continua se revelando. A abordagem desse tpico ser sucinta. Bem sabemos das suas implicaes na teologia da revelao, na teologia trinitria e na escatologia. Seria certamente uma riqueza refletir sobre esses assuntos a partir da ressurreio.139 Porm, seguindo o plano de trabalho de Queiruga, no adentraremos nesses temas. Isso alongaria demasiado nossa pesquisa, comprometendo seu foco.

    Veremos tambm que a revelao manifestada na ressurreio mantm sua coerncia na percepo da identidade do Ressuscitado, que o Crucificado, e que continua sua causa. A vida de Jesus antes da Pscoa de extrema importncia. Essa a constatao de Queiruga e de outros autores que nos orientam para dar sentido e adeso ressurreio.

    No incio deste trabalho nos dedicamos bastante sobre a problemtica do Jesus histrico. E nos parece relevante conclu-lo refletindo sobre a questo da historicidade da ressurreio de Jesus Cristo a partir de alguns autores com os quais trabalhamos. Afinal, na cristologia produzida um pouco depois do embate entre teologia liberal e querigmtica, e passando por autores mais recentes, como

    139 E alguns autores citados desenvolvem essas reflexes. o caso de E. Schillebeeckx, X. Lon-

    Dufour, G. Faus. Para eventuais consultas sobre esses temas, sugerimos verificar os ndices nas respectivas obras desses autores. A referncia completa est no nosso elenco bibliogrfico.

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    J. Moingt e Queiruga, ainda h espao para verificar como abordada a questo da historicidade da ressurreio. sobre esse tema que vamos nos ocupar na parte final desse captulo.

    4.2. O significado da ao de Deus na ressurreio de Jesus

    J refletimos sobre o sentido dos textos bblicos, as narrativas das aparies e do sepulcro vazio, e percebemos neles a maneira como apontam para o mais alm de uma possvel experincia emprica, quando tratam da ressurreio de Jesus.

    Podemos nos firmar no consenso da exegese atual que admite o carter teolgico das primeiras confisses pascais. E sabemos tambm que a ressurreio , fundamental e essencialmente, a ao de Deus que liberta Jesus do poder da morte.

    Obviamente, caracterizar a ao de Deus no mundo no tarefa fcil. Foi-se o tempo em que se acreditava, com toda naturalidade, que Deus fazia chover ou no, afastava as doenas ou no, conforme sua vontade. Essas heranas pr-modernas podem habitar o imaginrio religioso de certo nmero de pessoas, mas j no so mais admitidas pelas conscincias pautadas por um mnimo de rigor de cientificidade dos dias atuais.140

    O pensamento teolgico de Queiruga guiado pela convico de que Deus no age intervindo pontualmente no mundo. A justificativa dessa postura se d na inteno de salvaguardar a prpria transcendncia divina. Essas ideias j plantaram suas razes na teologia. W. Kasper, por exemplo, dir que no se pode, jamais, colocar Deus no lugar de uma causalidade intramundana. E caso Deus se encontre no mesmo nvel das coisas intramundanas, ento j no seria Deus, seno um dolo.141 Essa citao tirada dentro do contexto mais amplo, em que o referido autor trata sobre os milagres de Jesus narrados nos evangelhos. A reflexo de Kasper, na qual, em parte, se apia Queiruga, tender a encarar as

    140 Essa temtica da conscincia religiosa dentro da mudana de paradigma bem desenvolvida

    por A. T. QUEIRUGA, Fim do cristianismo pr-moderno, especialmente no primeiro captulo, pgs. 13-68 e no eplogo, pgs. 243-254. 141

    W. KASPER, Jess, el Cristo, p. 112.

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    narrativas dos milagres muito mais a partir da sua orientao teolgica.142 Queiruga aproveita essa intuio para demonstrar a necessidade de uma mudana de concepo na noo de milagre, no mais concebido como uma interveno fsica ou psquica, que transtorna o curso natural do mundo. Nesse sentido, no mais preciso admitir a ressurreio de Jesus como um milagre.

    Considerando que seja difcil fundamentar a ressurreio de Jesus na categoria de milagre e preservando o carter teolgico dos textos pascais, que exigem sria interpretao, preciso reconhecer, e Queiruga faz isso usando as palavras de Hans Kng, que h um dilema a ser superado na tratativa da ressurreio de Jesus: preciso num primeiro momento, perceber a ao de Deus que ressuscita Jesus; depois, aceitar as experincias dos discpulos com Jesus depois de sua morte; e, por outro lado, recusar qualquer noo de interveno sobrenatural que implique a suspenso das leis naturais. 143

    Queiruga se esfora muito em mostrar que a ressurreio de Jesus uma ao real de Deus, sem interferir no plano concreto do mundo, ou seja, sem interferncia emprica. A ressurreio, apesar da horrvel evidncia do cadver e a inegvel destruio parcial que isso significa, afirma, ao contrrio, que essa quebra visvel no significa desapario da pessoa como tal, mas paradoxalmente sua definitiva e suprema afirmao.144 nesse campo paradoxal que Deus age, tirando da evidncia do fim a esperana ativa do recomeo, que tambm continuidade. A teologia do Novo Testamento convicta em afirmar que Deus quem ressuscita Jesus dos mortos. 145

    A convico da ressurreio tem tambm outra implicao extremamente relevante. Dizer que Jesus est ressuscitado pela ao de Deus, significa firmar a certeza de que Deus est com Jesus, mesmo diante do significado escandaloso de

    142 Mas bem verdade que o prprio Kasper assume um substrato histrico das aes de Jesus:

    Seria falso deduzir que no haja absolutamente ao alguma milagrosa de Jesus com garantia histrica. No h nenhum exegeta digno de tomar-se a srio que no admita um substrato fundamental de aes milagrosas de Jesus historicamente certas. W. KASPER, Jess, el Cristo, p. 110. Esse tpico interessante pode ser lido nas pginas 108-137. 143

    Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar a Ressurreio, p. 95. 144

    Ibid., p. 100. 145

    Entretanto, com o passar do tempo foram surgindo frmulas nas quais o prprio Jesus o sujeito da ressurreio. So exemplos as confisses provavelmente pr-paulinas, de 1 Ts 4, 14 e as aluses do quarto Evangelho. Para Queiruga isso se explica na compreenso da ao criadora de Deus e a ressurreio de Jesus um modo operante do Deus que cria e continua criando. A ao criadora de Deus, por seu carter transcendente, no concorre com a criatura, mas faz com que ela seja e se exera em sua prpria ao: quanto mais Deus ressuscita a Cristo, mais Cristo mesmo que ressuscita. Ibid., p. 101.

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    sua morte, uma morte carregada de maldio. Tambm nesse aspecto, a proclamao da ressurreio de Jesus implica em assumir algo totalmente novo e inusitado, pois a ideia de um messias crucificado no est nem um pouco de acordo com a expectativa do Antigo Testamento e bastante contrria s esperanas do messianismo judaico. A morte de cruz , dessa forma, a ruptura com as Escrituras e com o judasmo.146 Conceber a ressurreio de Jesus como um ato de Deus, significa dizer tambm que as razes oficiais que o levaram morte no so aceitas por aqueles que afirmam a sua ressurreio e, em definitivo, Deus no est do lado dos acusadores e se coloca ao lado de Jesus confirmando tudo aquilo que ele viveu e ensinou sobre o ser de Deus. Alm disso, como bem observa W. Pannenberg, no contexto da poca, era impossvel conceber tal acontecimento seno realizado pela ao e vontade de Deus. E a prpria pregao crist primitiva entendeu o evento da ressurreio de Jesus dentre os mortos, tambm como uma afirmao de sua pretenso pr-pascal. Isso bem expresso, por exemplo, na forma de falar do livro dos Atos dos Apstolos: Saiba, portanto, toda casa de Israel, com certeza: Deus constituiu Senhor e Cristo, a esse Jesus que vs crucificastes, 2, 36, cf. tambm, 3, 15; 5, 30.147

    Flvio Josefo, em seu famoso texto conhecido como Testimonium Flavianum diz que quando Pilatos, por causa de acusaes feitas pelos principais homens daquela sociedade, condenou Jesus morte, os que antes o haviam amado no deixaram de faz-lo. nessa mesma perspectiva que Tertuliano dir que o sangue dos mrtires semente de cristos.148 S a convico interior de que a morte de Jesus foi injusta e de que ele estava em Deus e Deus estava com ele que proporcionou a abertura suficiente para adentrar no mistrio da sua ressurreio. E foi justamente essa mesma convico que impulsionou seus discpulos a continuarem sua causa, muitas vezes, enfrentando o mesmo destino do mestre. Nas palavras de Schillebeeckx, a ressurreio, como ao de Deus em Jesus e com ele, no apenas confirma a mensagem de Jesus e a praxe de sua vida;

    146 Cf. J. G. FAUS, La humanidad nueva, p. 128. Gonzles Faus mostra o esforo teolgico

    presente no Novo Testamento para ressignificar a morte de Jesus. Uma audcia, carregada de escndalo e loucura, conforme assume o prprio Paulo ao pregar um messias crucificado (1 Cor 1, 23), ou um messias que foi feito maldio (Gl 3, 13). Essa conscincia surge graas capacidade de reflexo das primeiras comunidades em interpretar a vida de Jesus e aplicar nela o sofrimento e enfrentamento da morte como o destino dos profetas, justos e do servo, temas esses resgatados nas diversas fases da conscincia religiosa judaica. Cf. Ibid., pp. 128-136. 147

    Cf. W. PANNENBERG, Fundamentos de cristologa, p. 84. 148

    Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreio, p. 155.

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    revela tambm sua pessoa como indissoluvelmente unida com Deus e com a mensagem de Deus.149

    Alm disso, aquele que morreu como blasfemo, cuja vida deveria ser esquecida, est ressuscitado como o amm do Pai. Eis como Queiruga interpreta esse evento:

    Sem a ressurreio Cristo deixara de ser ele mesmo; no mximo seria o maior e o melhor na linha dos profetas; mas, definitivamente, um fracassado na larga lista dos que, com generosidade e iluso, quiseram elevar o nvel da humanidade. O Pai quedaria em sua distncia e em seu silncio, no sabemos se impotente ou desinteressado, frente a tragdia do sofrimento humano.150

    Deus no se faz silncio, ao contrrio, se faz palavra encarnada, conforme lemos na teologia joanina e agora se faz palavra viva ao ressuscitar Jesus. Esse ato de Deus, em seus mltiplos significados, joga um facho de luz, intenso e luminoso, sobre a vida de Jesus. Uma vida reveladora da realidade de Deus que deseja a realizao plena do ser humano.

    4.3. A revelao de Deus na ressurreio de Jesus

    As narrativas bblicas concordam que os discpulos s reconheceram Jesus quando ele j no mais se fazia presente. Isso fica bem evidente na apario aos discpulos de Emas. Nessa narrativa, Jesus se d a conhecer, e sua eficcia se situa muito mais no campo da palavra comunicada do que na manifestao visual. A narrativa indica claramente que eles no deveram a uma presena fsica insistente, ao controle obstinado da experincia sensvel, a certeza da volta de Jesus vida, mas que receberam de uma revelao dirigida ao seu corao, tanto quanto a seu esprito, bem mais que a seus sentidos.151 Esse conhecimento que graa, s pode ser recebido na gratuidade da f.

    Essa percepo s pode ser bem compreendida quando se supera o conceito apologtico milagroso da ressurreio. Na verdade, a teologia nas ltimas

    149 E. SCHILLEBEECKX, Jesus: a histria de um vivente, p. 647.

    150 A. T. QUEIRUGA, Repensar la cristologa, p. 158.

    151 J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 317.

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    dcadas, principalmente depois da Dei Verbum,152 tem se esforado para compreender a revelao numa perspectiva bem menos apologtica e muito mais histrica.

    Uma leitura mais atenta dos textos bblicos permite perceber que a f na ressurreio de Jesus ganhou fora medida que foi partilhada e comunicada. Aquilo que do ponto de vista histrico comeou como um rumor, gradativamente, se tornou a revelao da Boa Nova. E, como observa Queiruga, assumir a dinmica reveladora da ressurreio, no seu carter transcendente, e ao mesmo tempo, dispensando qualquer referncia ao milagroso constatado empiricamente no faz perder nada de seu significado. A revelao real, no porque Deus tenha de entrar no mundo, irrompendo em seus mecanismos, fsicos ou psicolgicos, para fazer sentir uma voz milagrosa; real porque ele j est falando desde sempre no gesto ativo e infinitamente expressivo de sua presena criadora e salvadora.153 A leitura crtica da Bblia mostrou com enorme clareza que podemos aceitar a realidade da presena divina na histria da salvao, na histria da humanidade, acolhendo sua revelao a partir daquilo que as narrativas manifestam, sem sermos, obrigatoriamente, prisioneiros da letra dessas mesmas narrativas.

    A revelao requer sempre e necessariamente a exteriorizao pblica. Por essa razo, a ressurreio de Jesus s se torna efetivamente revelao quando se exterioriza como acontecimento pblico da palavra que, como diz Moingt, a assinatura irrecusvel de Deus favor de Jesus. Dessa forma, quando se fala de revelao e ressurreio no h que se pensar em dois acontecimentos sucessivos e de naturezas distintas. H um vnculo unindo o acontecido com Jesus ao que se diz ter acontecido com ele. E se trata de um fato revelador porque no comunicado somente o ocorrido com Jesus em benefcio dele mesmo. A ressurreio do Primognito dentre os mortos no um ato absolutamente solitrio, mas primcias da ressurreio universal.154 A ressurreio palavra reveladora porque insere pessoas em seu contexto e se torna um ato fundador e agregador de mais e mais pessoas que se fiam na promessa de ser a ressurreio de Jesus para todos.

    152 Estamos nos referindo principalmente a teologia catlica.

    153 A. T. QUEIRUGA, Repensar a Ressurreio, p. 104.

    154 MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 326.

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    A narrativa da ressurreio tem um valor de revelao manifestado num duplo testemunho: uma revelao recebida de Deus; e comunicada como acontecimento de encontro com Jesus. muito interessante a observao feita por Moingt quando fala das narrativas bblicas:

    Os evangelistas, pondo no primeiro plano de suas narrativas a incredulidade obstinada dos discpulos, de preferncia a uma aceitao espontnea dessas aparies, no nos pedem que confiemos nas evidncias sensveis das quais se tivessem beneficiado, e que creiamos no que tivessem tido o privilgio de ver. Bem ao contrrio, eles nos advertem de que tiveram de se render, apesar das hesitaes e das resistncias dos prprios sentidos, autoridade de uma nica revelao capaz de lhes dar a evidncia da ressurreio de Jesus e de lhes prescrever que a testemunhassem; e exortam-nos a crer nela, como eles mesmo o fizeram, sob a autoridade da palavra de Deus.155

    Entretanto, isso no pode nos induzir a crer que as primeiras testemunhas acreditaram na ressurreio de Jesus por uma suposta revelao puramente interior. Ao contrrio, h a firme convico de que relatam a certeza de um acontecimento por eles experimentado e vivido. Essa certeza, no entendimento de Moingt, chega at eles como uma revelao que se faz na sua histria, uma

    histria que contada e partilhada.156 certo, como nos diz Lon-Dufour, que Deus tem falado em seu filho Jesus, quer dizer, no atravs de uma personalidade singular que se tivesse expressado margem de sua poca.157 Jesus o Verbo de Deus carregado da palavra reveladora de Deus, conjugado na histria durante o curso de sua vida. Esse tambm o modo de Deus se revelar.

    natural admitir que alguma coisa se passou. Algo que efetivamente tenha marcado a convico da presena de Jesus na evidncia de sua ausncia. De algum modo Jesus se tornou uma realidade viva. Para Moingt essa iniciativa de Jesus, o que garante a atividade da parte de Deus em ressuscitar seu filho. De uma frao do po a outra, ele (Jesus) atuou de novo, unicamente por sua iniciativa. Os laos de sua existncia comum, na sua ressurreio, entraram na vida deles (apstolos) como um fato de vida, como um acontecimento de suas prprias vidas.158

    Certamente preciso salvaguardar o papel determinante de Deus. Considerando que seja impossvel descrever e demonstrar emprica e

    155 MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 326.

    156 Cf. Ibid., p. 319.

    157 X. LON-DUFOUR, Resurreccin de Jess y mensaje pascual, p. 292.

    158 J. MOINGT, op. cit., p. 320.

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    historicamente a ressurreio em si mesma, e, mais ainda, tendo em conta o carter simblico-teolgico dos textos bblicos que narram esse evento, preciso um esforo bastante grande para evitar qualquer reducionismo interpretativo. Um deles pode vir das simplificaes feitas a partir da teologia querigmtica de Bultmann, por exemplo. Admitindo a impossibilidade de acessar o Jesus histrico e considerando o carter mtico dos textos da ressurreio, pode-se atribuir que tal acontecimento seja uma construo teolgica das primeiras comunidades, que ganhou fora na pregao apostlica. A sutileza est em assumir a ressurreio

    unicamente como uma construo teolgica. claro que a ressurreio de Jesus apresentada, desde as narrativas mais antigas at essas mais recentes sob a aparncia de historicidade, numa perspectiva perpassada por uma abstrao de natureza teolgica. O que se quer evitar colocar a ao mesma da ressurreio de Jesus no enredo da passividade de Deus, numa inverso drasticamente errnea, na qual a pregao apostlica seria a fonte ativa da ressurreio de Jesus. Quem, como Bultmann, identifica a ressurreio com a pregao atual da Igreja, prontamente tender em declarar como lendrias todos os relatos que materializam a f.159

    Embora seja complexo determinar o que se passou na conscincia dos discpulos a fim de operar uma mudana radical de postura, certo afirmar a ocorrncia de uma experincia impactante. Para Moingt h, nessas narrativas, um testemunho que caracteriza um acontecimento de presena. Essa categoria tambm desenvolvida por Queiruga. Para ambos os autores, presena no entendida no sentido emprico, mas na perspectiva de uma sensibilidade que percebe um espao, antes vazio, agora novamente preenchido. Nesse sentido, as narrativas no servem para fazer crer em tudo o que se passou, mas sim para testemunhar um reencontro. Um acontecimento de presena no se reduz a um fato puro e simples, no resulta de uma pura e banal constatao emprica; ele se produz em uma troca de reconhecimento, e nisso que simblico.160 possvel, assim, falar de encontro que comunica. Uma comunicao no s entre aqueles a quem Jesus apareceu, mas tambm entre aqueles que partilharam dessa experincia. A presena de Jesus se faz entender como acontecimento de

    159 X. LON-DUFOUR, Resurreccin de Jess y mensaje pascual, p. 281.

    160 Ibid., p. 218

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    encontro, quando ele pe os discpulos em condies de comunicar uns aos outros que ele restabeleceu contato com eles.161

    Tal categoria tambm trabalhada por Lon-Dufour. Os evangelhos nos permitem atualizar o que pode ser hoje a presena do Senhor que no se reduz em estar cara a cara ou a uma relao exclusivamente individual: h uma estrutura norteadora que se mostra nessa sequncia: iniciativa, reconhecimento e misso.162 A iniciativa sempre de Deus que torna presente o Ressuscitado atravs do anncio das primeiras manifestaes de sua ressurreio, do querigma apostlico e do anncio eclesial, como extenses da dinmica reveladora de Deus.

    Havia uma ligao entre Jesus e os discpulos, que foi interrompida pela sua morte. A ressurreio restabelece novamente essa ligao de vivncia. Eventualmente, essa ligao pode ser pensada somente no nvel psicolgico, o que dispensaria a necessidade da ressurreio. preciso lembrar que estamos adentrando no campo da f. E a f no consiste em crer no fato puro e simples e sim em qualific-lo: Jesus ressuscitado na glria de Deus.163 No se trata somente da lembrana de quem j morreu, trata-se do reconhecimento de exaltao daquele que vive.

    o momento do salto da f. O que no significa dizer um salto no irracional e nem mesmo uma aposta nos moldes de Blaise Pascal, mas de admitir a gratuidade da graa.

    Por esse motivo, seria faltar gratuidade da f tanto recusar-lhe a aceitao racional que o exame crtico da narrativa pode conseguir, na medida em que ele o pode, quanto querer dot-la de provas histricas em boa e devida forma, supondo que isso seja possvel. A f no nos obriga a crer, j o dissemos, na realidade histrica de tudo que os discpulos contaram; mas a manifestao de Jesus ressuscitado, pertence histria da salvao, assim como sua ressurreio, pede que creiamos ter essa manifestao ocorrida na histria vivida por eles, e tudo o que atribudo a histria requer um estudo racional da narrativa, como fizemos. No da natureza da f, tampouco, dar certezas histricas ou transformar em certeza o que seria plausvel ou duvidoso aos olhos da razo; no entanto, fazendo-nos partilhar a f dos discpulos, ela permite a comunho com a certeza que tiveram da presena do Senhor.164

    Gradativamente vamos chegando concluso de que a ressurreio de Jesus revela uma forma impactante de presena que dispensa a constatao emprica e

    161 X. LON-DUFOUR, Resurreccin de Jess y mensaje pascual, p. 321.

    162 Ibid., p. 310.

    163 J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 321.

    164 Ibid., p. 322. A citao longa, mas seria pena no transcrev-la dada a clareza da sua

    argumentao.

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    se fortalece na certeza da f. E essa revelao de Deus mostra a outra face da ressurreio: Jesus ressuscitado por Deus, na mesma identidade para dar sequncia sua causa e envia seus discpulos a trabalharem por essa mesma causa.

    4.4. Identidade, continuidade e envio

    Um aspecto que merece ser destacado o da identidade do Ressuscitado. E esse acaba sendo um tema controverso porque mesmo entre aqueles que negam a historicidade da ressurreio, h a convico em assumir a identidade do Ressuscitado. Para Queiruga, por exemplo, os discpulos creram e confessaram que Jesus de Nazar, injustamente condenado morte, foi ressuscitado por Deus.165 E o mesmo afirmado da sua exaltao como glorificado e entronizado no mistrio de Deus. a afirmao de identificao do Exaltado na continuidade do vivente que foi crucificado: Vede minhas mos e o meu lado! (Jo 20, 20). No com um Cristo indiferenciado com o qual nos encontramos, seno com aquele que tem dado sua vida por seus amigos. O necessrio retorno ao passado , portanto, retorno ao evangelho de amor e da morte.166

    essa identificao que garante a continuidade da causa de Jesus. Ele morreu por uma causa e sua ressurreio faz com que essa mesma causa

    permanea viva e atuante. Por isso, independente da abordagem que se faa sobre esse tema, no se pode separar Jesus de sua causa. Tendo em conta a peculiaridade especfica do acontecimento pascal, ambos so inseparveis. No possvel que esta causa continue se Jesus no estiver vivo e presente.167 Nesse

    sentido, a palavra sobre a ressurreio implicativa. Por isso que a f na ressurreio de Jesus de Nazar, no proclamar a memria de um personagem do passado, nem sequer limitar-se a anunciar a sua exaltao plenitude divina, mas tambm inclui seguimento.168

    165 A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreio, p. 140.

    166 X. LON-DUFOUR, Resurreccin de Jess y mensaje pascual, p. 311.

    167 A. T. QUEIRUGA, op. cit., p. 143.

    168 Ibid., p. 143.

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    A pregao apostlica contida nos escritos neotestamentrios enxerga bem essa realidade. E no obstante o fato de atestarem, por diversas frmulas, a exaltao de Jesus, agora elevado condio de Cristo, o fazem na conscincia segura de que o Messias exaltado no outro seno o vivente crucificado. De fato, o Novo Testamento construdo a partir da experincia ps-pascal, que soube articular bastante bem esse duplo movimento cristolgico: a cristologia do alto, onde Cristo sai da sua glria e se esvazia humanizando-se para humanizar a humanidade; e a cristologia de baixo, onde Jesus, na vivncia autntica e fiel da sua humanidade faz por desvelar sua divindade, em certo sentido, para divinizar a nossa humanidade.

    Por conseguinte, a experincia da ressurreio pode e deve ser recuperada no prprio significado desse evento na vida de Jesus. A escuta de sua palavra, o seguimento de sua conduta, a sintonia com sua atitude, so a melhor maneira de iniciar-se no significado autntico da ressurreio, que no algo anexado a sua vida, seno a ecloso, em definitivo, do que nela j est ocultamente presente.169

    Esse aspecto carece ser sempre mais refletido e recuperado na leitura feita da ressurreio. Pois, ele aponta para um estilo de vida, vivido de forma comprometida e bem na contramo de uma situao religiosa que mantinha convices bastante elitistas. A ressurreio de Jesus indica que suas opes e maneira de viver continuaram vivas na conscincia de cada membro da comunidade. Indica tambm, que seus desejos e projetos continuaram vivos. A insistncia nas narraes evanglicas de ver, tocar e comer com o Ressuscitado querem mostrar muito mais que provas empricas. Indicam que a vida de Jesus foi autntica e, assim sendo, ela est ressuscitada. Essa experincia dos apstolos em encontrar com o Ressuscitado mostra que a vida dele constitui um paradigma e uma referncia segura para onde esses mesmos apstolos devem caminhar.

    E justamente essa vida autntica, partilhada com os discpulos que ajuda a fundamentar a f na ressurreio de Jesus. Por isso, desde as primeiras manifestaes do Ressuscitado h a percepo do envio. A ressurreio de Jesus marcada por essa convico: uma vez feita a experincia de f e determinada a adeso, o passo seguinte o anncio. Dessa forma, a ressurreio no uma espcie de prmio de consolo para aqueles que viram o seu mestre padecer.

    169 A. T. QUEIRUGA, Repensar la cristologa, p. 159.

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    Essa afirmao justificada pelo fato de que as experincias de encontro com o Ressuscitado se deram principalmente com aqueles que tinham tido uma convivncia anterior com Jesus. essa experincia primeira que agora otimizada depois da ressurreio.170

    Como diz Lon-Dufour, o primeiro contato com o Ressuscitado est condicionado linguagem do tocar e do ver, e j carrega o reconhecimento da identidade daquele que est presente. O reconhecimento se realiza, como em Emas, no momento em que o Senhor desaparece e a alegria dos discpulos total depois que o Senhor se separou deles.171 Obviamente, no a alegria motivada pela ausncia de Jesus, justamente pela convico de sua presena sentida e significada pela f. E o mesmo texto ainda teologicamente significativo quando mostra a outra face da ressurreio, que o envio. Num primeiro momento, evidente a frustrao por causa do aparente fracasso ocorrido em Jerusalm, e depois justamente para l que eles retornam e anunciam: verdade! O Senhor ressurgiu! (cf. Lc 24, 34).

    Reforando o papel da f na compreenso da ressurreio como identificao e continuidade da causa de Jesus, Lon-Dufour dir que o encontro cara a cara no desemboca numa viso, mas essa s dada pela f. Este um dos caminhos da f que parte do Jesus terreno para descobrir a Cristo ressuscitado.172 Essa a forma de se alcanar a concepo semtica da verdade, que se faz no dilogo e na experincia. Parece no ser de todo exagerado dizer que o dilogo e a experincia com Jesus no curso de sua vida foram determinantes para os discpulos firmarem a convico na verdade da ressurreio. Maria Madalena no se voltou para o Senhor porque o viu, mas porque o ouviu pronunciar seu

    nome.173 por conta dessa intensa intimidade que o antes no acaba e continua no depois. E tambm essa cena guarda aquele sentido da ressurreio sobre o qual estamos tratando: vai anunciar aos meus irmos! E Maria anunciou. (cf. Jo, 20, 17-18). E, conclui Lon-Dufour, se pouco depois ela, (Maria Madalena) d testemunho de que viu o Senhor, porque o termo ver j perdeu sua conotao sensvel.174 Trata-se de um ver que desperta o crer, s compreendido a

    170 Obviamente Paulo uma exceo ao que estamos afirmando.

    171 X. LON-DUFOUR, Resurreccin de Jess y mensaje pascual, p. 308.

    172 Ibid., p.308.

    173 Ibid., p.308.

    174 Ibid., p. 308.

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    partir da f. E a f que impulsiona os discpulos a cumprirem o mandamento do envio: Ide, portando e fazei que todas as naes se tornem discpulas. (Mt 28, 19).175

    Existe um vnculo entre a ressurreio de Jesus e a histria dos apstolos, estendido para a histria humana e marcado pela relao entre as aparies de Jesus aos discpulos e seu envio em misso. Dessa forma, a ressurreio ganha essa conotao de continuidade. o que demonstra Moingt:

    Esse vnculo nos ensina, antes de tudo, que a inteno de Jesus no simplesmente fazer constatar sua ressurreio, mas se dar uma sequncia, uma vez que, do mesmo modo, a misso conferida aos discpulos no para no testemunho de sua volta vida, mas consiste em prosseguir sua pregao do Evangelho do Reino.176

    Isso refora bastante a convico dos prprios apstolos que no se sentiram sozinhos como continuadores da misso iniciada por Jesus, misso da qual eles mesmos participaram. A misso continua sendo de Jesus e eles no o substituem. o prprio impulso da ressurreio, experimentado pela f, que d a firmeza da permanncia de Jesus, e Ele permanecer, no meio deles todos os dias at a consumao dos sculos. (cf. Mt 28, 20).

    4.5. A historicidade da ressurreio de Jesus

    Depois de tudo o que temos visto desde o incio do nosso trabalho, convm lev-lo a termo abordando mais uma vez a questo de fundo que, assim pensamos, perpassou nossa reflexo: em que sentido possvel afirmar a historicidade da ressurreio de Jesus?

    Vimos no primeiro captulo que R. Bultmann se nega a buscar as razes histricas da f. A f crist no est interessada pela questo histrica. E no que se refere ressurreio de Jesus Cristo, j vimos isso, os textos das aparies e do sepulcro vazio no podem inspirar confiana histrica, pois so perpassados pela linguagem mtica. A concluso de Bultmann bastante convicta: Jesus

    175 Certamente uma frmula de uso litrgico, mas que testemunha bastante bem a conscincia da

    comunidade ao interpretar a ressurreio de Jesus na perspectiva da misso e envio. 176

    J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 323.

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    ressuscitado no querigma da Igreja. Historicamente, isso que se pode saber sobre a ressurreio. o mximo a que se pode chegar.

    A cristologia recente mais sensvel a esse tema, pois ela no est disposta, como Bultmann, a abrir mo da pessoa de Jesus para plantar as razes da f to somente no querigma primitivo.

    Nossa proposta passar por alguns autores que nos acompanharam nesse

    percurso e perceber suas convices sobre a historicidade da ressurreio. Esses autores enfrentaram a problemtica moderna acerca do Jesus histrico e desenvolvem suas abordagens sobre a ressurreio sempre com essa questo de fundo.

    4.5.1. Walter Kasper e a historicidade do testemunho

    Para Kasper, os testemunhos sobre a ressurreio falam de acontecimentos que transcendem o mbito do historicamente constatvel e, por isso mesmo, representam um limite exegtico-teolgico. No seu modo de entender, a teologia clssica no deu a devida importncia questo hermenutica dos testemunhos sobre a ressurreio e cedeu tentao marcadamente apologtica, usando esses mesmos textos para fundamentar a f pascal. Mais ainda, cedeu tambm tentao de querer provar a ressurreio de Jesus como um fato histrico, insistindo de forma exagerada nos relatos do sepulcro vazio e das aparies. Com se isso despreza a discusso sobre a ressurreio, lanando-a para uma questo perifrica e marginal. Porque a f pascal no primeiramente f no

    sepulcro vazio, seno no Senhor exaltado e vivente.177 De fato, Kasper insiste nesse equvoco da apologtica tradicional. Aquilo

    que se manifestou como um signo da ressurreio tornou-se, pretensa e equivocadamente, a prova histrica dela mesma.

    Claro que os telogos posteriores a Bultmann no poderiam ficar isentos de refletir sobre a ressurreio sem passar pela discusso acerca do Jesus histrico. A impresso que se tem que, para Bultmann, no evento da ressurreio no ocorreu praticamente nada com Jesus Cristo, mas sim com os discpulos. Pscoa e

    177 W. KASPER, Jess, el Cristo, p. 116.

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    origem da f pascal se identificam. Disso se deduz, e Kasper no aceita essa deduo, que a posio de Bultmann reduz a f na ressurreio, a f pascal, numa soteriologia que, em ltima analise, uma eclesiologia. Afinal, tudo depende exclusivamente do querigma e este no depende de mais nada.

    Atualmente, parece pouco produtivo encarar as narrativas da ressurreio de Jesus desde o ponto de vista histrico. Porm, cair no extremo oposto tambm gera um tipo de teologia que Kasper no pretende aceitar. Ento, ele busca, em sua reflexo, harmonizar os dados bblicos com a realidade histrica, chegando assim a um maior equilbrio quanto a essa temtica. Tal ponto de equilbrio fornecido pela categoria de signo. Ainda que se quisesse suspender algum juzo sobre a historicidade ou no dos textos bblicos, eles continuariam cumprindo sua funo de signos, uma vez que no dizem algo determinado e objetivo sobre um evento, apenas apontam para ele. Noutras palavras, o signo no suficiente para

    explicar porque no tem essa finalidade, mas muito suficiente para significar, ou dar sentido realidade da qual signo. A ttulo de exemplo, o sepulcro vazio no prova, nem explica a ressurreio, mas um signo que tende a excluir qualquer classe de docetimo.178

    Uma vez determinado que os textos bblicos so signos da ressurreio, Kasper vai assumir, na sua cristologia, que s possvel entrar em contato com a

    verdade e a realidade da f expressas na ressurreio por meio do testemunho apostlico. nessa perspectiva que ele interpreta o texto de Romanos 10, 14-15.17: Como vo acreditar sem ter ouvido? E como vo ouvir se ningum prega? E como algum vai pregar se no enviado?179

    Mesmo assumindo a irrevogvel importncia do testemunho apostlico, quando trata do espinhoso tema da historicidade da ressurreio, Kasper faz questo de ressaltar que no foi a f que fundou a realidade da ressurreio, mas justamente o contrrio. Foi a presena do Ressuscitado, impondo-se aos discpulos, que fundamentou a f.

    No obstante o desejo de determinar o acontecido na ressurreio, para Kasper, a questo definitiva no pode ser essa. Trata-se, isso sim, de saber da

    178 W. KASPER, Jess, el Cristo, p. 167.

    179 Ibid., p. 170. J referimos isso: as aparies do Ressuscitado tambm so compostas de um

    mandato de envio.

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    disponibilidade de cada cristo, na mesma medida que os primeiros, de se deixar possuir por Cristo. Por isso ele dir:

    Se a f pascal e, portanto, a f em Cristo repousa sobre o testemunho dos apstolos, ento no nos acessvel de outra maneira seno atravs do testemunho apostlico, transmitido na Igreja como comunidade de crentes. Somente neste e por este testemunho o Cristo ressuscitado permanece realidade atual, por seu esprito na histria; pois uma realidade histrica s pode ser conhecida na histria. Nesse sentido, e somente nesse, se pode dizer que Jesus tem ressuscitado no querigma. Jesus a perene presena na histria atravs do testemunho da Igreja apostlica.180

    Certamente h sutilezas nessa citao, sobretudo, quando se trata de um autor que no quer assumir as posies de Bultmann, mas tambm no quer se fiar na confiana do historicismo liberal. Fundamentalmente, Kasper admite que a f na ressurreio histrica, uma vez que ela se faz presente na pregao

    apostlica, acolhida no querigma eclesial. Da ressurreio propriamente dita, ele se esquiva de definir. A justificativa se d pela impossibilidade de alcance. A salvaguarda da historicidade da ressurreio est na fora do querigma nascido do encontro com o Ressuscitado, encontro que desperta para a f pascal, origem do querigma, e este no produto da f.

    Diante da questo da historicidade da ressurreio de Jesus, se bem conseguimos captar o pensamento de Kasper, fica indefinido se a ressurreio em si mesma histrica, mas possvel admitir que a f na ressurreio de Jesus, essa sim, historicamente percebida.

    4.5.2. Pannenberg e a historicidade da ressurreio

    Outro autor que tambm enfrenta a questo da historicidade da ressurreio de Jesus W. Pannenberg. Ele desenvolve sua crtica teologia querigmtica de Bultmann e sustenta a historicidade da ressurreio. E tambm afirma a possibilidade de atribuir valor de verdade histrica aos eventos das aparies e do sepulcro vazio narrados pelos textos bblicos. Aquilo que expresso na linguagem da esperana escatolgica tem que ser afirmando como um evento historicamente acontecido.181

    180 W. KASPER, Jess, el Cristo, p. 174.

    181 W. PANNENBERG, Fundamentos de cristologa, p.122.

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    No convincente, para esse autor, o argumento de que a possibilidade histrica da ressurreio de Jesus, como o ato de recobrar uma vida imperecvel seja uma contradio s leis da natureza. Em resposta a esse argumento, ele recorre aos pressupostos da fsica moderna. Em primeiro lugar, se conhece sempre somente uma parte das leis da natureza. Por outra, em um mundo que, como conjunto, apresenta um singular processo irreversvel, o fato individual nunca fica determinado por completo pelas leis da natureza. 182 Alm disso, as leis da natureza compem uma parte do amplo espectro de percepo da realidade e, por isso, insuficientes para determinar a sua totalidade.

    A outra objeo a que Pannenberg responde no mbito teolgico. Desde o ponto de vista de algumas posies teolgicas seria impossvel afirmar a ressurreio de Jesus como um evento acontecido historicamente, porque na ressurreio dos mortos, o resultado seria caracterizado numa forma distinta de ser, teoricamente desprovido de materialidade.183 O historiador, com certeza, deveria julgar conforme as normas do antigo ser e, por conseguinte, no poderia dizer nada a respeito da ressurreio dos mortos.184 Certamente, a vida do Ressuscitado configura-se numa realidade de nova criao e no pode simplesmente ser perceptvel no mundo ao modo das demais realidades. Ento, Pannenberg dir que o novo ser ressuscitado s poder ser experimentado mediante o modo extraordinrio chamando viso e designado somente por meio de uma linguagem simblica. Mais ainda, ele sustenta que, nesse modo inusitado de se encontrar com o Ressuscitado, ocorrem algumas manifestaes diretas a determinadas pessoas concretas dentro dos moldes dessa realidade presente em determinado espao de tempo e num nmero preciso de acontecimentos. Esses acontecimentos devem ser afirmados como histricos. Negar o conceito de acontecimento histrico desses eventos implica, igualmente, em negar a ressurreio de Jesus, ou as aparies do ressuscitado como algo realmente acontecido no tempo.

    Ento Pannenberg no se deixa convencer pelos argumentos que tendem a descaracterizar a historicidade da ressurreio de Jesus:

    No existe nenhuma razo aceitvel para afirmar a ressurreio de Jesus como um acontecimento que realmente ocorreu, caso no seja possvel certific-lo assim,

    182 W. PANNENBERG, Fundamentos de cristologa, p. 122.

    183 Esse o pensamento de Queiruga.

    184 W. PANNENBERG, op. cit., p. 123.

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    desde o ponto de vista histrico. No a f que nos d a certeza de que determinado acontecimento se realizou ou no se realizou, h dois mil anos; mas somente a investigao histrica, na medida em que se possa chegar certeza em semelhante matria.185

    A investigao histrica constitui, ento, o nico caminho para conseguir

    uma certeza, pelo menos aproximada, referente aos acontecimentos de uma poca passada.

    Obviamente no nossa inteno adentrar na densidade dessa cristologia, , to somente, apresentar a posio de Pannenberg sobre a historicidade da ressurreio. A concluso alcanada que, para ele, a ressurreio de Jesus um evento acontecido historicamente no mundo. Fatalmente, vem a pergunta sobre o papel da f. Podemos objetar que, nesse caso, inevitvel embasar a f numa certeza puramente racional. Para Pannenberg, a f se faz necessria para assumir as conseqncias daquilo que ocorreu na histria. Ainda, certo que as narrativas das aparies e do sepulcro vazio so muito mais que signos da ressurreio ou construes simblicas e teolgicas. Mesmo admitindo o dado simblico e teolgico das narrativas, elas tm sua origem num fundo histrico que testemunham a favor da prpria historicidade da ressurreio de Jesus.

    4.5.3. Edward Schillebeeckx e a historicidade do querigma

    Ao tratar do tema da historicidade da ressurreio de Jesus, Schillebeeckx um autor que assume uma postura intermediria entre a corrente liberal e a teologia querigmtica. Ele insiste que a f crist deve ser acessvel razo histrica, que est centrada tambm no Jesus histrico. E faz parte de suas dedues teolgicas a convico da ressurreio pessoal de Jesus que antecede qualquer experincia motivada pela f.

    Tal como W. Kasper, tambm Schillebeeckx critica a postura clssica que quis dar um tom emprico-objetivo ressurreio, usando as aparies e o relato do sepulcro vazio para provar aos crentes e no crentes que Jesus est, de fato, ressuscitado.

    185 W. PANNENBERG, Fundamentos de cristologa, p.123.

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    Schillebeeckx destaca as publicaes, tanto no meio protestante como no meio catlico, que chegam quase ao consenso em identificar a ressurreio de Jesus com a f crist pascal dos discpulos aps a morte do mestre. Esses autores, principalmente R. Bultmann e W. Marxsen deixam dvidas sobre uma questo: afinal, Jesus ressuscitou pessoalmente, e foi ele mesmo que, presente de maneira nova, realizou por sua prpria fora essa renovao na vida dos apstolos?186

    A teologia querigmtica tem o mrito de criticar qualquer tentativa de objetivismo emprico, em que se postula a possibilidade da ressurreio de Jesus fora do ato de f, dispensando a experincia de f.187 Por outro lado, corre-se o risco de assumir um papel to preponderante da f, que ela mesma se torna a fonte da ressurreio de Jesus, independente do prprio Jesus. Alguns telogos-exegetas deixam a impresso de que a ressurreio e f na ressurreio so idnticas: em outras palavras, que a ressurreio no teria atingido em nada a pessoa de Jesus, mas apenas os fiis apstolos.188

    Dessa posio que Schillebeeckx quer se afastar. Ele no est disposto a assumir que a ressurreio seja algo acontecido to somente na conscincia dos apstolos. Tal posio , no seu modo de compreender, bastante estranha teologia do Novo Testamento e tradio crist.

    Para Schillebeeckx, est mais do que demonstrado ser o querigma da ressurreio mais antigo do que os relatos elaborados acerca das aparies e sobre o sepulcro. E este ltimo s tm sentido quando vinculado s primeiras. A ressurreio de Jesus, isto , o que aconteceu com ele pessoalmente aps a sua morte, no se pode identificar com a experincia pascal dos discpulos pela f; mas tambm a experincia pascal dos discpulos no pode ser separada dessa ressurreio.189

    A ressurreio de Jesus um acontecimento trans-histrico ou meta-histrico aberto aos olhos da f. Dessa forma, Schillebeeckx quer encontrar uma via mdia entre o objetivismo e o fidesmo e, assim, afirmar que a ressurreio diz algo sobre Jesus, sobre Deus, sobre os discpulos e sobre ns mesmos. 190

    186 Cf. E. SCHILLEBEECKX, Jesus: a histria de um vivente, p. 650.

    187 Postura da qual se aproxima bastante Pannenberg, por exemplo.

    188 E. SCHILLEBEECKX, op. cit., p. 650.

    189 Ibid., p. 651.

    190 Cf. T. LORENZEN, Resurreccin y discipulado, p. 108.

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    Para expressar o que a ressurreio significa para os discpulos e, por extenso, para a comunidade dos crentes, Schillebeeckx introduz a categoria de converso. por essa categoria que se pode entender a grande virada pela qual passaram os discpulos ao confessarem que Jesus, depois de sua morte, era o Cristo.

    Schillebeeckx convicto em dizer que a ressurreio de Jesus precede toda a experincia de f. Mais ou menos como Kasper, ele tambm quer salvaguardar os aspectos relevantes das duas principais correntes que o influenciaram. Parece complexo e improdutivo dizer que h um non sequitur entre o Jesus pr-pascal e o Cristo ressuscitado.191 Mesmo diante do carter mtico das narrativas bblicas, parece bastante claro que a inteno desses mesmos textos a de mostrar a correlao entre o Crucificado e o Ressuscitado, numa perspectiva de identidade. Por outro lado, no tambm sensato admitir, tal como faz Pannenberg, como evento historicamente verificvel aquilo que os textos narram.

    Para manter bem definida a sua posio, Schillebeeckx identifica a ressurreio de Jesus ligada intrinsecamente com a vinda do Esprito Santo. A ressurreio de Jesus , ao mesmo tempo tambm a vinda do Esprito Santo e a fundao da Igreja: a comunho do ressuscitado com os seus aqui na terra. [...] A ressurreio de Jesus a renovada unio dos seus discpulos, o nascimento real da Igreja.192 Dessa forma, a ressurreio pessoal de Jesus no um gesto obscuro em si mesmo, a sua manifestao como uma presena salutar expressa e

    experimentada na f. Schillebeeckx assume que os apstolos, conhecidos de Jesus antes da sua

    morte, tm algo prprio que nunca poder ser repetido no nvel da experincia. Ainda assim, no existe uma distncia to grande no modo como ns podemos ascender f no Cristo e o modo como os discpulos de Jesus chegaram f. No seu modo de compreender, exatamente dentro da experincia pascal da f que se anuncia o acontecido com o prprio Jesus.

    Para Schillebeeckx, a ressurreio de Jesus : legitimao da ao de Deus na praxe de Jesus; a exaltao e nova criao, ou seja, vitria divina sobre a morte; e a misso do Esprito que funda a Igreja. So esses trs aspectos

    191 Ele mesmo usa a expresso Crucificado ressuscitado cf. E. SCHILLEBEECKX, Jesus: a

    hostria de um vivente, p. 649. 192

    Ibid., p. 652.

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    essenciais da ressurreio de Jesus que um cristo s pode compreender baseando-se na f dentro da experincia eclesial.

    Jesus foi ressuscitado por Deus dentre os mortos, e no pela f dos discpulos. E estes experimentaram a ressurreio num processo de converso como iniciativa da graa do prprio Deus. E essa converso se deu no mbito comum da experincia comunitria, formando o querigma da comunidade. Nesse sentido, no h provas histricas da ressurreio de Jesus, mas sobressai a convico de que ela a fonte inspiradora da f, e no o contrrio. Uma vez determinado esses pressupostos, Schillebeeckx assume que a historicidade da ressurreio constatada no querigma.

    4.5.4. Joseph Moingt e a historicidade na presena do corpo do Ressuscitado

    Moingt um telogo contemporneo que tambm se v obrigado a passar pela questo do Jesus histrico. A pergunta que brota naturalmente, em sua pesquisa, se a f na ressurreio de Jesus tem necessidade, ou no, de uma certeza histrica? Curiosamente, ele no pergunta pela historicidade da ressurreio em si mesma, e sim sobre a necessidade ou no de fundamentar a f nesse evento, a partir dos dados histricos. Isso j deixa ver, mais ou menos, o caminho pelo qual o autor aborda tal questo que, no seu entender, ainda no est suficientemente resolvida.

    Sua voz faz coro com Kasper e Schillebeeckx quando critica a teologia catlica tradicional, mais ainda a partir do Vaticano I, em sustentar que as narrativas evanglicas so suficientes em fornecer uma certeza histrica sobre a ressurreio. Essa postura teolgica gerou um vnculo de necessidade entre certeza da razo e f. Muito pronta a denunciar o orgulho do racionalismo incrdulo, ela nem sempre via bem claramente suas prprias pretenses demonstrabilidade.193 Mesmo que sem querer, a consequncia dessa postura, como j foi visto em Pannenberg, tende em retirar da f aquilo que seu fundamento.

    193 J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 229.

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    Por outro lado, Moingt no aceita todos os pressupostos da teologia de Bultmann, apenas tende a aproveitar alguns aspectos caractersticos dessa mesma teologia quando reflete acerca da ressurreio. Moingt no est muito disposto a debater sobre questes de natureza histrica, e prefere se ocupar das realidades mais evidentes. E a f na ressurreio uma delas. A verdadeira f, a que obtm a salvao, no o consentimento dado a um testemunho humano. Isso seria no mais que simples credulidade. A f mesma de outra ordem:

    A f pascal aquela que proclama que Jesus Cristo o Senhor, para a glria de Deus Pai. (Fl 1, 11); ela no a aprovao ao fato natural, mas ao fato provido de seu sentido pascal, aquele que Deus revela aos apstolos quando os institui testemunhas da ressurreio de seu Filho.194

    Moingt se aproxima bastante da teologia de Moltmann, de quem assume a perspectiva da esperana e a aceitao de que a teologia est em processo. Essa constatao de dinamicidade da teologia aplicada tambm ao tema da ressurreio: a compreenso desse evento est em processo, no s pela incapacidade de se chegar a definies precisas, como tambm pelo fato da prpria ressurreio estar em constante processo. Um processo que precisa

    articular f e razo: Que se trate da f ou da razo, a certeza no pode se reduzir a uma espcie de evidncia experimental que suprimiria a possibilidade de dvida para quem quer que seja; ela julgamento do esprito, atividade sempre em exerccio para formar e conservar suas convices e repelir dvidas contrrias.195

    a partir dessa concepo dinmica de Moltmann que Moingt d um salto qualificativo para colocar a discusso da historicidade da ressurreio noutro nvel, mais voltado para o engajamento. Em outras palavras, Moingt se preocupa mais com as consequncias da ressurreio na vida dos crentes, do que o evento em si mesmo.

    Muitos telogos utilizam a frmula j conhecida de que Jesus ressuscitado no querigma da Igreja. Conforme observa Moingt, seria dizer muito pouco se por esse meio compreendssemos simplesmente que ele criou um dito sobre si mesmo, graas ao qual ele continua a viver na f dos cristos.196

    A tradio crist estabeleceu um vnculo bastante estreito entre identidade do Deus de Jesus Cristo e a f na ressurreio da carne, o que faz pensar sobre a

    194 J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 300.

    195 Ibid., p. 305.

    196 Ibid., p. 330.

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    ressurreio do corpo. Moingt, embora seja do parecer de dispensar a necessidade de um corpo fsico ressuscitado, entende que a teologia paulina do corpo, em 1Cor 15, 35-38, e a reflexo sobre a Igreja como corpo de Cristo so bastante pertinentes para refletir sobre a ressurreio.

    Uma vez cumprida a sua expresso de sustentar a realidade do ser no mundo, o entendimento sobre o sentido do corpo no desprezado, mas apoiado na reflexo paulina, desenvolvido e ampliado, aberto transcendncia de uma forma plena e dirigido a universalidade. Semeado corpo psquico, ressuscita corpo espiritual.

    Ainda refletindo dentro da teologia paulina, Moingt diz que esse corpo ressuscitado referncia de uma unidade. A designao corpo de Cristo, que Paulo d Igreja, no simples metfora. A Igreja, ou a comunidade, o corpo no qual Cristo retoma sua existncia corprea:

    Portanto, podemos dizer que Cristo ressuscita corporalmente, no sentido de que exprime, ao longo da vida, sua existncia histrica, corprea e social em sua palavra, e que exprime essa palavra, no momento de morrer, ao mesmo tempo em Deus, que torna a lhe dar a vida, e na Igreja, qual ele d vida e na qual retoma corpo pelo fato de ser realmente articulada com o corpo social da Igreja.197

    No que se refere historicidade da ressurreio, a reflexo feita por Moingt indireta. Ele admite a identidade do Ressuscitado como aquele que foi crucificado. E tambm concebe a ressurreio como um ato de Deus. Porm, a realidade histrica da ressurreio s pode ser verificada nos seus efeitos que, definitivamente, marcaram a histria. O corpo do Ressuscitado, que ganha forma no corpo eclesial, a maneira pela qual a ressurreio se torna dinmica e histrica.

    4.5.5. Andrs T. Queiruga e a historicidade da ressurreio na revelao de Deus

    Por meio da pesquisa at aqui desenvolvida, podemos afirmar com segurana que Queiruga rejeita qualquer possibilidade de demonstrao, entenda-se no nvel emprico, da ressurreio de Jesus.

    197 J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 332.

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    Queiruga identifica, de forma positiva, a mudana epistemolgica ocorrida na modernidade. Mudana que, inevitavelmente, atingiu a teologia, sobretudo a partir da crtica bblica. Tal mudana exigiu novas formas de interpretar o texto bblico que afetaram, sensivelmente, a compreenso da ressurreio, fazendo surgir situaes conflitantes, bem diferentes da calmaria sobre a qual repousava, at ento, a teologia tradicional, embasada na certeza dos dogmas. Queiruga mais um, dentre os telogos mencionados anteriormente, que faz suas crticas teologia tradicional, no s pelo fato pretender sustentar a ideia de que os textos bblicos pudessem figurar na qualidade de testemunhos histricos, mas tambm pelo posicionamento muitas vezes demasiado crtico em relao a novas tentativas diferenciadas de reflexo.198

    Para Queiruga, essa situao produziu, num primeiro momento, um efeito positivo: o evento pascal passa a ser interpretado de maneira mais insistente como acontecimento na f e para a f. A ambiguidade que surge, denuncia Queiruga, est no fato de radicalizar essa intuio interpretativa evitando o confronto com o dado histrico, criando uma espcie de imunizao da f frente crtica. desse contexto que surge a j conhecida postura de que a ressurreio de Jesus no um acontecimento histrico.

    Aparentemente, Queiruga no est disposto a assumir essa posio na sua totalidade. Se a ressurreio algo real para ns, tem que ser, de algum modo, acessvel em nosso mundo e em nossa histria.199 Contudo, importante frisar isso, a acessibilidade do evento da ressurreio no nosso mundo no se refere ao acontecido em si mesmo, mas aos seus desdobramentos, esses sim, verificveis na histria.

    Em certo sentido, Queiruga devedor da teologia bultmanniana, que o ajuda a enxergar o forte tom mtico presente nos textos bblicos, especialmente os que narram os milagres de Jesus e a sua ressurreio. Por outro lado h, em Queiruga, um otimismo que vai mais alm de Bultmann porque, embora no admita esses textos na condio de provas histricas, ele os entende como construes teolgicas de um evento que se manifesta na histria.

    198 Essa obra que tem servido de base para nossa pesquisa apresenta j no primeiro captulo dois

    casos emblemticos que provam a maneira demasiado crtica, seno apaixonada, usada para defender posies tradicionalmente concebidas diante de novos enfoques. So citados como exemplos Willi Marxsen e Rudolf Pesch. Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreio, p. 21-24. 199

    A. T. QUEIRUGA, Repensar la cristologa, p. 165.

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    Definitivamente a ressurreio de Jesus no pode ser qualificada como fato histrico.200 Entretanto, dizer que um fato no histrico, no significa negar sua realidade. A inteno apontar para outra perspectiva no mundana, no emprica, muito menos verificvel por meio dos sentidos, da cincia ou da histria comum.

    Ento, ele insiste bastante nesse aspecto. E faz sentido dentro da lgica do seu pensamento. Sustentar a historicidade dos testemunhos bblicos, no s da experincia da ressurreio, mas do fato em si mesmo, implica em renunciar o processo de demitificao desenvolvido pela crtica bblica. Alm disso, haveria que conceder um carter de verificabilidade emprica aos relatos das aparies, por exemplo; e j vimos como isso problemtico dentro do esquema teolgico que ele desenvolve. Por tudo o que j dissemos antes, essa uma hiptese sem sentido. Por outro lado, assumir a ressurreio de Jesus nos moldes de Bultmann significa, tambm j sabemos disso, colocar todo o mistrio da f que sustenta a experincia crist, numa linha de testemunho marcadamente subjetiva, desqualificando a ao de Deus.

    Por isso, Queiruga trilha uma via intermediria, mais ou menos como Moingt e Kasper. Um caminho j conhecido pelos telogos catlicos principalmente. Ele insiste em sustentar que a experincia da ressurreio real sem ser emprica. Se a ressurreio no fosse real, Cristo deixaria de ser quem e sua mensagem perderia sentido, seria refutada.

    A ressurreio em si mesma um evento que escapa a qualquer verificao,

    algo bem tpico da mentalidade cientificista, e nem por isso ela alienada da histria, porque seus efeitos so sentidos na histria. Essa percepo se d pelo fato de compreender a ressurreio como a maneira pela qual Deus continua se revelando.

    A revelao de Deus maiutica histrica, no simplesmente um ditado arbitrrio da parte de Deus intervindo no curso do mundo. Esse vislumbre teolgico sobre a revelao uma marca constante na teologia de Queiruga. tambm sobre essa tica que ele enxerga a ressurreio de Jesus: o modo de Deus continuar se revelando, chegando plenitude e salvaguardando sua transcendncia e respeitando nossa imanncia. Por isso, a ressurreio o ato de Deus que faz

    200 Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreio, p. 269.

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    continuar toda a vida de Jesus, uma referncia a sua vida pr-pascal, e essa foi vivida dentro da coerncia histrica como uma vida de revelao de Deus.

    H, ento, um distanciamento daqueles que radicalizam a tese da impossibilidade de acessar o Jesus histrico e assumem que tudo o que se diz de Jesus construdo a partir da comunidade. Obviamente os textos bblicos no so uma biografia de Jesus, e mesmo sendo construdos depois da experincia da Pscoa, certamente trazem a intuio fundamental da personalidade de Jesus. Para Queiruga, muito mais do que a letra do evento narrado, importa o sentido que pretende ser comunicado. Os textos bblicos contam, no limite da linguagem e na ambiguidade dos smbolos, experincias reais com Jesus e nem, por isso, precisam ser fatos no sentido histrico.

    Por ser revelao, que sempre uma iniciativa de Deus, preciso haver acolhimento por parte daquele que recebe essa revelao. Revelao comunicao e, para ser frutfera, supe o entendimento das partes. O que habilita o ser humano, cerceado pela sua realidade imanente, a acolher uma iniciativa de Deus, que transcendente, ainda que se manifeste no mundo, a f. Mesmo que as verdades reveladas tenham suas razes plantadas na histria e sem recusar o apoio da razo, sua fora e segurana vm do seu campo especfico: a f. E isso no significa que a f, acolhedora da ressurreio e de toda a ao reveladora de Deus, seja superior razo. Da mesma forma, tambm no se admite que o ato de acreditar nessas realidades seja uma espcie de renncia razo.201 A f o convite para a abertura gratuita que nem sempre permite entender tudo, mas possibilita aceitar, amar, e se comprometer.

    , ento, possvel concluir que a ressurreio de Jesus, ela em si mesma, no um fato historicamente verificvel. Os testemunhos bblicos tambm no provam a empiricidade da ressurreio. No que se refere ressurreio mesma, estamos dispensados de qualquer referncia que aponte para a materialidade da coisa. Por outro lado, a ressurreio histrica naquilo que atinge e transforma as realidades, quando acolhida como revelao de Deus. Ela se faz presente na histria transformando a vida dos seus discpulos, como uma resposta no nvel da f, autenticada pela vida. A ressurreio histrica porque transforma a histria, no de fora, como uma interveno, mas desde dentro, a partir do interior daqueles que fazem a histria acontecer. E a ressurreio histrica tambm

    201 Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar la cristologa, p. 172.

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    porque, mesmo passados dois mil anos, ela se faz atuante, como o comprimento da expresso bblica: eu estarei no meio de vos at o fim do mundo, (Mt 28, 20). E ns estamos na histria, e no nos sentimos desamparados, mas envoltos pela presena constante de Jesus. nessa perspectiva que Queiruga assume a historicidade da ressurreio.

    4.6. Concluso

    A pesquisa bblica e teolgica tirou a compreenso da ressurreio de Jesus da categoria de milagre. Disso resulta, contra o modelo teolgico tradicional, que o testemunho bblico no se resume a provar, dentro da histria, uma interveno pontual, no nvel emprico, de Deus. Outrossim, a teologia est mais convicta de que a ressurreio aponta para uma realidade de encontro com o prprio Ressuscitado, cuja presena percebida na sensibilidade da f.

    Sabemos que colocar tal questo no nvel da f pode gerar ambiguidades. Afinal, a sntese da teologia querigmtica consiste justamente em determinar que Jesus est ressuscitado no querigma, fruto da f pascal dos discpulos. Notamos o esforo da cristologia recente, nas referncias de alguns autores que apresentamos, na tentativa de harmonizar essa questo.

    Tanto em Queiruga quanto nos demais autores citados, notvel a influncia da teologia de tendncia mais liberal, valorizando o fato histrico da vida de Jesus; da mesma forma possvel identificar as marcas de uma teologia aos moldes de Bultmann, quando assumida a impossibilidade de verificar historicamente o fato da ressurreio. Com exceo de Pannenberg, os autores que estudamos, assumem a historicidade da ressurreio. A ressurreio de Jesus, em si mesma, uma iniciativa de Deus, marcada pela sua ao, o que salvaguarda a dinmica ativa de Deus na ressurreio de Jesus. Na histria se verifica seus efeitos concretos na vida dos discpulos, formando as comunidades eclesiais em torno dessa f revelada. O que diferencia esses telogos em relao a Bultmann? Basicamente, eles assumem, nas suas reflexes, a continuidade e a identidade entre Jesus, na sua vida terrena, e o Cristo, exaltado na ressurreio.

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    Parece que a cristologia recente busca, cada vez mais, o meio termo entre as antigas posies que j rivalizaram bastante entre si. A questo da historicidade da ressurreio no foi abandonada, apenas se encontra num processo de deslocamento, saindo do fato em si, para repousar nos seus desdobramentos no mundo.

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