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1 A PRESENÇA DE AFRO-MUÇULMANOS NA BAHIA ESCRAVAGISTA: sócio-história e consequências linguísticas Samantha de Moura Maranhão (UFPI/IFARADÁ) RESUMO - Este estudo, parte de uma pesquisa mais ampla sobre arabismos do português brasileiro, aborda uma via de ingresso deste vocabulário na variedade americana da língua portuguesa raramente discutida na literatura especializada: a presença de escravos islamizados na Bahia nos séculos XVIII e XIX. Tem por objetivo descrever a sócio- história deste grupo social, notadamente no que concerne à sua relação com o Islamismo e com a língua corânica, no seio da sociedade receptora, católica e lusófona. Busca responder à questão: “O uso da língua árabe e a prática do Islamismo por afro- muçulmanos na Bahia escravagista levaram à introdução novos arabismos no português brasileiro?”. As hipóteses testadas são: 1) os escravos muçulmanos na Bahia empregavam efetivamente a língua árabe na sua prática religiosa e 2) o português brasileiro é herdeiro de arabismos africanos nele introduzidos pelo elemento muçulmano importado da África Ocidental na condição de escravo. Fundamenta-se este estudo particularmente em novas leituras dos documentos remanescentes da Revolta Malê de 1835 (DOBRONRAVIN, 2007), em estudo sobre empréstimos árabes a língua africanas (MICHELE, 1968), na sociolingüística do contato intercomunitário (WEINREICH, 1967) e na lexicografia brasileira, aqui representada pela versão eletrônica dos dicionários Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa (1999), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), MICHAËLIS: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (1998), além de Arabismos: uma mini-enciclopédia do mundo árabe (1994), do Dicionário de termos árabes da língua portuguesa (2006) e do Léxico português de origem árabe: subsídios para os estudos de filologia (2007). PALAVRAS-CHAVE - Malês. Arabismos africanos. Arabismos portugueses. Português Brasileiro. Introdução Este estudo aborda a presença de escravos islamizados na Bahia nos séculos XVIII e XIX, com o objetivo de descrever a sócio-história deste grupo, sobretudo no que respeita à sua relação com o Islamismo e com a língua árabe, no seio da sociedade receptora, católica e lusófona. Busca responder à questão: “O uso da língua árabe e a prática do Islamismo por afro-muçulmanos na Bahia escravagista levaram à introdução Professora de Filologia Latina e Portuguesa, doutora em Linguística pela UFC, dedica-se ao estudo dos arabismos portugueses desde 1992. Disponibiliza o blog www.samanthamaranhao.blogspot.com sobre o tema. Contato: [email protected].

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A PRESENÇA DE AFRO-MUÇULMANOS NA BAHIA

ESCRAVAGISTA: sócio-história e consequências linguísticas

Samantha de Moura Maranhão (UFPI/IFARADÁ)�

RESUMO -

Este estudo, parte de uma pesquisa mais ampla sobre arabismos do português brasileiro, aborda uma via de ingresso deste vocabulário na variedade americana da língua portuguesa raramente discutida na literatura especializada: a presença de escravos islamizados na Bahia nos séculos XVIII e XIX. Tem por objetivo descrever a sócio-história deste grupo social, notadamente no que concerne à sua relação com o Islamismo e com a língua corânica, no seio da sociedade receptora, católica e lusófona. Busca responder à questão: “O uso da língua árabe e a prática do Islamismo por afro-muçulmanos na Bahia escravagista levaram à introdução novos arabismos no português brasileiro?”. As hipóteses testadas são: 1) os escravos muçulmanos na Bahia empregavam efetivamente a língua árabe na sua prática religiosa e 2) o português brasileiro é herdeiro de arabismos africanos nele introduzidos pelo elemento muçulmano importado da África Ocidental na condição de escravo. Fundamenta-se este estudo particularmente em novas leituras dos documentos remanescentes da Revolta Malê de 1835 (DOBRONRAVIN, 2007), em estudo sobre empréstimos árabes a língua africanas (MICHELE, 1968), na sociolingüística do contato intercomunitário (WEINREICH, 1967) e na lexicografia brasileira, aqui representada pela versão eletrônica dos dicionários Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa (1999), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), MICHAËLIS: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (1998), além de Arabismos: uma mini-enciclopédia do mundo árabe (1994), do Dicionário de termos árabes da língua portuguesa (2006) e do Léxico português de origem árabe: subsídios para os estudos de filologia (2007). PALAVRAS-CHAVE - Malês. Arabismos africanos. Arabismos portugueses.

Português Brasileiro.

Introdução

Este estudo aborda a presença de escravos islamizados na Bahia nos séculos

XVIII e XIX, com o objetivo de descrever a sócio-história deste grupo, sobretudo no

que respeita à sua relação com o Islamismo e com a língua árabe, no seio da sociedade

receptora, católica e lusófona. Busca responder à questão: “O uso da língua árabe e a

prática do Islamismo por afro-muçulmanos na Bahia escravagista levaram à introdução

�Professora de Filologia Latina e Portuguesa, doutora em Linguística pela UFC, dedica-se ao estudo dos arabismos portugueses desde 1992. Disponibiliza o blog www.samanthamaranhao.blogspot.com sobre o tema. Contato: [email protected].

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novos arabismos no português brasileiro?”. Constituem as hipóteses investigadas: 1) o

elemento afro-muçulmano na Bahia escravagista empregavae efetivamente a língua

árabe na sua prática religiosa e 2) o português brasileiro é herdeiro de arabismos

africanos nele introduzidos por este segmento da sociedade. Fundamenta-se este estudo

particularmente em novas leituras dos documentos remanescentes da Revolta Malê de

1835 (DOBRONRAVIN, 2007), em estudo sobre empréstimos árabes a língua africanas

(MICHELE, 1968), na sociolingüística do contato intercomunitário (WEINREICH,

1967) e na lexicografia brasileira, aqui representada pela versão eletrônica dos

dicionários Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa (1999),

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), MICHAËLIS: Moderno Dicionário

da Língua Portuguesa (1998), além de Arabismos: uma mini-enciclopédia do mundo

árabe (1994), do Dicionário de termos árabes da língua portuguesa (2006) e do Léxico

português de origem árabe: subsídios para os estudos de filologia (2007). Além da

introdução e das considerações finais, subdivide-se este breve estudo em 03 seções,

dedicadas, respectivamente, à presença malê na Bahia escravagista; à presença de

vocábulos árabes nas línguas africanas então faladas na Bahia; à metodologia e, enfim, à

análise dos arabismos portugueses registrados pela lexicografia brasileira como herança

afro-muçulmana.

A importação de mão-de-obra oeste-africana: a jihad de Dan Fodio e a Baía de Benim A literatura brasileira especializada em estudos africanos registra a presença, no

Brasil, de escravos oriundos do oeste africano desde o século XVII. Entretanto, esta

presença se torna regular nas últimas décadas do século XVIII e ao longo do século

XIX, quando africanos islamizados (hauçás, nupes, iorubás, bornos, borgus, etc.),

originários do Sudão Central, região interiorana em relação à Baía do Benim, foram

levados como escravos para a Bahia, em decorrência da jihad promovida, a partir de

1804, pelo xeque Usman dan Fodio, fundador do Califado de Sokoto (LOVEJOY, 2000,

p. 11-12).

Segundo Vianna Filho (2008, p. 151), o número de escravos importados para a

Bahia até 1830 é estimado em cerca de um milhão e cem mil indivíduos, assim

distribuídos: 50,6% de escravos oeste-africanos e 47,5% de escravos bantos.

Tabela 01 – Tráfico Atlântico: sudaneses e bantos entre os séculos XVI e XIX.

Média

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3

Séculos Sudaneses Bantos Anual Total

XVI

XVII

XVIII

XIX

(até 1830)

61.545

402.800

75.480

143.605

252.200

111.450

2.051

6.550

6.231

20.0001

205.150

655.000

186.930

Total durante o

tráfico

539.825

507.255

1.067.080

Fonte: VIANNA FILHO, 2008, p. 151.

Lovejoy (2000, p. 26), com base em material biográfico de 117 cativos

destinados ao trabalho escravo na Bahia, 102 dos quais com indicação do antropônimo,

aponta que 41 (40%) ou tinham nomes muçulmanos ou é quase certo que o fossem;

podendo-se crer, a partir da declaração de naturalidade, que 12 (12%) eram

muçulmanos, aos quais talvez se somem outros 04 (04%); 37 tinham nomes cristãos e

africanos, sem qualquer indício de ligação com o islamismo; 05 tinham nomes cristãos e

03, africanos não-islâmicos. A análise destes dados indica que pelo menos 56% dos

escravos em questão professavam a fé islâmica.

E afirma: Embora não se saiba, dentre os escravos com nomes africanos não-muçulmanos, quantos de fato eram islâmicos; nem quantos, entre detentores de nomes africanos e cristãos, também o fossem, é razoável concluir que pelo menos 56% dos centro-sudaneses eram islamizados. É possível que tal porcentagem fosse ainda mais alta (LOVEJOY, 2000, p. 27).

Manuscritos que os escravos portavam consigo quando da grande rebelião de 1835

continham textos corânicos, orações islâmicas não-corânicas e outros textos, quais

amuletos e exercícios de escrita árabe. Esse material foi assim organizado e classificado

por Reichert (1966, 1967, 1968), ao publicar, nos anos 1960, 03 artigos na Revista

Afro-Ásia, do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, nos

quais os edita, transcreve, traduz e comenta.

Nikolay Dobronravin, professor da Universidade Estadual de São Petersburgo,

analisou manuscritos afro-muçulmanos da Bahia como textos multilingues, 1 O total do século XVI se pauta em 33% do total de importações do século XVIII, 30% dos quais relativos à imigração oeste-africana (VIANNA FILHO, 2008, p. 151).

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árabe/língua(s) africana(s), obtendo melhor resultado na interpretação das passagens

antes obscuras (DOBRONRAVIN, 2004, p.317-318). Um manuscrito localizado em

Havre, escrito com caracteres árabes, contém passagens “fonetizadas” indicativas de

que o seu autor teria o iorubá como língua de uso mais frequente (DOBRONRAVIN,

2004, p. 306, 309). No documento há passagens de difícil identificação, supostamente

um árabe fonetizado (DOBRONRAVIN, 2004, p. 310, 311); outras passagens, por sua

vez, trazem grafia incorreta, talvez em hauçá (DOBRONRAVIN, 2004, p. 311). Esses

documentos, em geral, mostram que os seus autores mais ou menos familiarizados com

a grafia árabe, mas não com a língua (DOBRONRAVIN, 2004, p. 313).

Os manuscritos analisados por Dobronravin diferem dos documentos localizados

no Arquivo Público do Estado da Bahia e editados por Reichert, cujos autores ou

compiladores demonstravam conhecimento mais profundo da língua árabe e

memorização de várias suras, reproduzidas pelos mesmos sem erros ou com poucos

deslizes (DOBRONRAVIN, 2004, p. 313; REICHERT, 1966, 1967, 1968).

Assim, os textos islâmicos multilingues da Bahia registram, além do uso do

árabe, o uso da língua hauçá, corroborando o prestígio desta etnia como

“verdadeiramente muçulmana”, em detrimento da iorubá, cujos falantes são, então, a

maioria dos afro-muçulmanos, e comprovando a importância dos hauçás na islamização

destes (DOBRONRAVIN, 2004, p. 324).

De acordo com Dobronravin (2004, p. 325-326), , no século XIX, o árabe

constituía a principal língua escrita, ao lado do português, entre os afro-muçulmanos,

mas era usada sobretudo no campo religioso (registro de amuletos, orações, suras, etc.),

não consistindo, portanto, língua de comunicação cotidiana.

A criminalização do islamismo e da língua árabe após a revolta malê de 1835,

quando o mero portar qualquer escrito árabe condenaria o seu portador à condição de

réu, sujeito à deportação para a África, à exportação para outra província ou à tortura e à

morte, levou ao desaparecimento de ambos, língua e religião (DOBRONRAVIN, 2004,

p. 326; QUIRING-ZOCHE, 2004, p. 234).

Segundo Dobronravin (2004, p. 325-326),

Naquele tempo [século XIX], o árabe – principal língua escrita nas comunidades africanas, além do português – parece ter sido usado sobretudo para objetivos “mágicos” e religiosos. Não era uma língua instrumental, falada, embora praticamente todo descendente brasileiro de africano muçulmano deva ter aprendido algumas poucas expressões, ou mesmo preces e versos corânicos, em árabe.

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5

Arabismos africanos nas línguas dos malês

Na obra Arabismos entre os Africanos na Bahia (MICHAELE, 1968), o autor,

Faris Antônio Salomão Michaele, aponta a presença de empréstimos árabes nas línguas

oeste-africanas aportadas na Bahia escravagista, bem como a interferência de um

sistema lexical sobre o outro no contato entre línguas, concretamente do hauçá no

iorubá.

Informa Michaele (1968, p. 65) que “[...] o Hauçá tem a seu favor maior

coeficiente de têrmos abstratos, que se aproximam dos existentes nas línguas européias,

justamente por ter sofrido a influência do árabe, como vamos ver, através de rápido

exame do seu vocabulário [...].”.

A seguir, lista o autor vários arabismos hauçás, dentre os quais: lafiya, ‘paz,

saúde’; shidda, ‘seis’; shiru, ‘silêncio’; malan, ‘letrado’; liman, ‘capelão; kullun,

‘sempre’; zafi (dafi), ‘calor’; lalle, ‘é preciso, necessidade’; littafi, ‘livro’; ka-bari

‘túmulo’; karanta, ‘ler’; labari, ‘notícia’; masallachi, ‘mesquita’; duniya, ‘universo’;

yau, ‘hoje’; sama, ‘céu’; shriya (chariaa), ‘justiça’; nam, ‘sim’; tara, ‘nove’; sifiri,

‘zero’; aljifu ‘bolso, algibeira’; sukar, ‘açúcar’, subdu ou assabat, ‘sábado’, etc.

(MICHAELE, 1968, p. 65).

Aponta, então, o autor influências recíprocas entre o hauçá e o iorubá, citando

Jacques Raymundo, em O Negro Brasileiro: “(...) muitas expressões tìpicamente

iorubanas podem ser encontradas no vocabulário hauçá” (RAYMUNDO apud

MICHAELE, p. 1968, p. 66).

E ainda: Os têrmos iorubanos, ocorrentes na nomenclatura ritual dos negros muçulmanos, afigura-se que não são indício preponderante para se pensar logo num amalgamismo religioso jeje-iorubano-muçulmi. O concurso de têrmos iorubanos é natural, dado o número de adeptos do norte da Iorúbia; mas os hauçás, a-par com fulanis, nupês e adamauás, intervêm com outros têrmos, quási todos de origem arábica: açuba, açumi, adiçá (liçá), alicali, alijenu(m), amurê, ladane, lemano (limano), maçalaci, mangariba, muçulmi, sacá, saiá (sala), sará, tirá, etc. Os iorubanos não são em maior número: abadá, alufá, axivaju (assivaju), cola (kola), filá (fulá), idã (idana), malê, otô (atô), sagabano, teçubá (tecebá), etc. (RAYMUNDO apud MICHAELE, p. 1968, p. 66-67, grifo do autor).

Michaele (1968, p. 78-79) ainda apresenta outros arabismos encontrados no

vocabulário geral iorubá, a exemplo de atabaque, cuscús, as negações ma e lai, baba,

imalè, alafim (alafi), etc..

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Michaele (1968, p. 109) aponta a ocorrência de arabismos da língua canuri, já

coletados por Nina Rodrigues: alá, ‘céu’; aradu, ‘trovão’; kanum, ‘fogo, luz’; tinu,

‘dente’; sumo, ‘orelha’; kandiê, ‘fumaça’; alabátara, ‘burro’; kanin, ‘cabra’; ferr-o,

‘cavalo’; talvez ainda abáni (aba-ni),‘pai’ e soba (çoba), ‘amigo’.

Por último, Michaele (1968, p. 124-125) cita a língua tapa, afirmando que “[...] o

seu papel, na Bahia, se limitou também às relações domésticas e coisas do culto

muçulmano [...]”. E exemplifica os arabismos na língua tapa os vocábulos mu-an,

‘água’; nóurr, ‘fumaça’ e malufá, ‘chapéu’.

Observe-se apenas que a arabização das línguas africanas acontecera no Velho

Mundo. Com efeito, segundo Monteïl (1967, p. 18), Os empréstimos vocabulares constituem, com a escrita, a manifestação mais notável da arabização de línguas que, como o hauçá ou o swahili, têm perto de metade de seu léxico constituída por empréstimos tomados à língua árabe (termos referentes à vida religiosa, à divisão do tempo, escritos e talismãs, idéias morais, ensino, leitura e escrita, vestuário e alimentação, vida administrativa, econômica e militar).

Evidencia-se, assim, que a Bahia escravagista era multilíngue e que o árabe era

efetivamente empregado para fins rituais, na prática da fé islâmica por afro-

muçulmanos. O prestígio da língua da Revelação explica a presença de arabismos nas

línguas oeste-africanas de etnias islamizadas.

Metodologia

Considerando-se a obra Léxico Português de Origem Árabe (VARGENS, 2007)

como fonte onde buscar termos afro-muçulmanos, dado resultar de aprofundada

pesquisa de doutoramento e ser de publicação mais recente, cotejou-se o registro do

vocabulário levantado em outros produtos lexicográficos nacionais, especificamente no

Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa (FERREIRA, 1999),

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS, VILLAR, 2001), DICMAXI

Michaëlis Português: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (Ed. Michaëlis, 1998),

Arabismos: uma mini-enciclopédia do mundo árabe (FRANCA, 1994) e no Dicionário

de Termos árabes da Língua Portuguesa (VIEIRA, 2006).

Citam-se, por vezes, outras 02 obras de referência, Falares Africanos na Bahia

(PESSOA DE CASTRO, 2005) e Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana

(LOPES, 2004).

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Os produtos lexicográficos supracitados são identificados, neste estudo, pelas

siglas a seguir:

DEA: Dicionário Eletrônico Aurélio

DEH: Dicionário Eletrônico Houaiss

DELP: Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa

DEM: Dicionário Eletrônico Michaëlis

DER: Dicionário Etimológico Resumido

EBDA: Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana

FABA: Falares Africanos na Bahia

Africanismos não, arabismos africanos!

O LPOA é a obra que documenta o maior número de arabismos legados por

afro-muçulmanos ao português brasileiro. São 25,5 vocábulos, aqui reproduzidas a lexia

que constitui a entrada dos verbetes e, entre parênteses, as variantes registradas pelo

autor : açubá (açuaba, açuba), adixá (adiçá, lixá), aiassari (aiá-sari, ay-á-sári, ay-a-sary),

ailá (ai-lá, ali-alá, ali-lá), alicali (ali-calá, ali-cali, ali-cáli, alikali, alikaly), aligenum (ali-

enu, eligenu), alimangariba (alimangári, aluma-gariba, magáriba, mangariba), aluá

(aruá), alufá, amim (al-amin, al-min), assumi (açáummi, açúmi, assumy), azaca (az-

zaca), barica da subá, bissimilai (bi-si-mi-lai), djema, a expressão híbrida fazer sala,

jihad (jihád, jihêd), lemano (limano, lemane, lamane, almámy, el-imámy, imã),

maçalassi (massalassi, ma-ça-la-si), malê, maneco lassalama, mussurumim, sacá (saká,

sara), salamaleco e tecebá (tessebá, teçubá, tessubá).

O DEH traz dicionarizadas 17 destas formas (69,4%): açubá, adixá, aiaçari (ai-

a-sari), ailá, alicali, aluá (aruá), alufá, amim, assumi (açumi), bismela, jihad, lemano

(lemane), malê, muçurumim (muxurumim), sacá, salá (açalá, azalá, cela, celá) e tecebá

(teçubá, tessubá).

Destes, o DEA registra 16 itens lexicais (65,3%): açubá, adixá, aiassari (ai-a-

sari), ailá (ai-lá), alicali, alimangariba, aluá (aruá), alufá, jihad, lemano (limano, lemane,

lamane), malê, muxurumim (mussurumim), sacá, salá (açalá, azalá, cela, celá),

salamaleco e tecebá (tessubá).

O DEM documenta apenas 11 destes arabismos (44,9%): açumi, ai-a-sari,

alimangariba, aluá, alufá, lemano (limano, lemane), malê, muxurumim, sacá, salá, e

tecebá (teçubá, teçuda).

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8

A obra MEA apresenta 10 dos 25,5 vocábulos levantados pelo LPOA (40,8%):

acubá, aligenum, aluá, alufá, amim, assumi, djihad (jihad), limamo, salat (e aqui cita as

orações malês na Bahia: acubá, ai-lá, ay à-sari, alimangarita, adixá, elevando o número

de itens registrado para 15 ou 61,2%), além de tecebá.

Já o DTA, por sua vez, traz 12 dos arabismos dicionarizados no LPOA ou 49%

deles: açubá, adixá, ai-a-sari (aiassari), alicali, alimangariba, alufá, bismela, jihad,

lemano (limano, lemane, lamane), muxurumim (muçurumim), salá (açalá, azalá, cela,

celá) e salamaleco.

Tabela 02 – Registro de arabismos do PB introduzidos por afro-muçulmanos

Obra

Quantidade de formas registradas

Percentual do total de formas encontrado

Formas e variantes registradas

LPOA

25

100

Açubá(açuaba, açuba), adixá(adiçá, lixa), aiassari (aia-sari, ay-á-sári, ay-a-sary), ailá (ai-lá, ali-alá, ali-lá, alicali(ali-calá, ali-cali, ali-cáli, alikali, alikaly , aligenum (ali-enu,

eligeru), alimagariba (alimangari, aluma-gariba, magáriba, mangariba), aluá

(aruá), alufá, amim (al-amin, al-min), assumi (açáummi, açúmi, assumy), azaca (az-

zaca), barica da suba, bissimilai (bi-si-mi-lai), djema, fazer sala,jihad (jihád,, jihêd),

lemano (limano, lemane, lamane, almámy, el-imámy, imã), maçalassi (massalassi, ma-ça-la-si),male, maneco

lassalama, mussurumim (muçulmi, muçulmin,

muçumirim, muçurumim, muslim, mussurumi) , sacá

(saká, saró), salamaleco, tecebá (tessebá)

DEH

17

68

açubá, adixá, aiaçari (ai-a-sari), ailá, alicali, aluá (aruá), alufá, amim, assumi, bismela, jihad,

lemano (lemane), malê, muçurumim (muxurumim), sacá, salá (açalá, azalá, cela,

celá) e tessebá (tecebá, teçubá, tessubá)

DEA

16

64

açubá, adixá, aiassari (ai-a-sari), ailá (ai-lá), alicali,

alimangariba, aluá (aruá), alufá, jihad, lemano (limano,

lemane, lamane), malê, muxurumim (mussurumim), sacá, salá (açalá, azalá, cela, celá), salamaleco e tecebá

(tessubá)

DTA

13

52

açubá, adixá, ai-a-sari (aiassari), alicali, alimangariba,

aluá, alufá, bismela, jihad, lemano (limano, lemane,

lamane), muxurumim (muçurumim), salá (açalá,

azalá, cela, celá) e salamaleco

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9

DEM

11

44

açumi, ai-a-sari, alimangariba, aluá, alufá, lemano (limano, lemane), malê, muxurumim, sacá, salá, e tecebá (teçubá,

teçuda)

MEA

10 [15]

40 [60]

acubá, aligenum, aluá, alufá, amim, assumi, djihad (jihad), limamo, salat [acubá, ai-lá, ay

à-sari, alimangarita, adixá]

DER

06

24

alicali, aluá, alufá, lemane,

malê, muxurumim

DELP

03

12

aluá, alufá, malê

Se a lexicografia brasileira nem sempre dicionariza os arabismos do português

brasileiro legados por afro-muçulmanos, dentre os itens lexicais dicionarizados no

Léxico Português de Origem Árabe (VARGENS, 2007), a atribuição de origem a esse

vocabulário se mostra ainda mais problemática.

O LPOA traz três acepções para aluá, “1. doce feito de leite, açúcar, amêndoas

trituradas e manteiga; 2. Alféloa. 3. Bebida de milho branco fermentada de infusão com

rapadura e gengibre” (VARGENS, 2007, p. 127). O DEA, o DEH e o DEM, entretanto,

distinguem aluá doce de aluá bebida, creditando àquele origem árabe e a este, africana

(quimbundo, segundo o DEA e o DEH; bundo, para o DEM). Nenhum dos referidos

autores associa a introdução do vocábulo designativo da bebida à presença de afro-

muçulmanos no Brasil. O MEA apresenta apenas a acepção de bebida para aluá,

conciliando as duas propostas de origem, ao apresentar o termo como de origem árabe,

com o quimbundo como língua-ponte. O DTA registra somente a acepção de doce para

aluá. O vocábulo se encontra documentado no Diccionario de Arabismos y Voces

Afines en Iberorromance (CORRIENTE, 2003) exclusivamente com o sentido de

bebida, indicando introdução anterior à presença malê na Bahia, pois já integrava o

sistema lexical do português europeu.

A EBDA corrobora a hipótese de étimos de línguas distintas para as duas

formas: na designação do doce, tem étimo árabe, que, em hauçá, resultou nas formas

eléwa e allewa; para a bebida, aponta o étimo quimbundo uála ‘cerveja’, abonado pela

existência de uma cerveja de milho no Reino do Congo, no século XVIII, designada

pelos nomes vuallo e ovallo. A obra Falares Africanos na Bahia, que registra apenas a

acepção de bebida para o termo, indica-lhe origem africana, banta e hauçá, verificando-

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10

se wala, walwa em quicongo, quimbundo, e umbundo, além de àlewà, ruwa em hauçá

(PESSOA DE CASTRO, 2009, p. 150).

A atribuição de origem a étimos de línguas-ponte se verifica no DEH para os

vocábulos mussurumim, citando Cacciatore, que propõe vir o termo de étimo nupê ou

hauçá, e tecebá, do iorubá, segundo a mesma fonte, mas para o qual o DEH aponta

origem controversa. Afirma o DEH, ainda, resultar alicali da evolução de étimo hauçá e

acertadamente aponta aiaçari e ailá como arabismos africanos. Para lemano apresenta

duas origens encontradas na literatura especializada, árabe, segundo José Pedro

Machado, e hauçá, de acordo com Cacciatore. Afirma o DEH que sacá provavelmente

tem origem africana, embora o étimo seja obscuro, assim como tem origem obscura

assumi. Indica que alufá é provavelmente árabe.

O DEM adota como metodologia de trabalho deixar de indicar origem nos casos

em que esta é incerta ou obscura (MICHAËLIS, 1998, p. VIII), nada dizendo, portanto,

acerca da origem de assumi, sacá e tecebá. Apresenta alufá como de origem iorubá e

“malê” para ai-a-sari e alimangariba, embora esta designação não se refira propriamente

a uma língua, correspondendo antes a uma generalização dos povos africanos

islamizados (REICHERT, 1970, p. 110). Igualmente, o DEM atribui ao bundo a origem

do vocábulo aluá, ainda que o termo constituia um etnônimo, não uma língua.

Importantes línguas faladas pelos bantos são o quicongo, o quimbundo e o umbundo

(PESSOA DE CASTRO, 2009, p. 34-37).

O DEA registra origem iorubá para tecebá e origem africana, possivelmente

árabe, para alufá, mesma trajetória interlingüística proposta pelo DTA para este último.

A análise dos dados apenas expostos evidencia que a Lexicografia brasileira não

considera o influxo lexical árabe em línguas oeste-africanas introduzidas no Brasil pelos

escravos muçulmanos, apontando-lhes, assim, a origem de vocábulos que, com efeito,

nelas constituem empréstimos. Caberia, portanto, uma revisão da literatura sobre

africanismos no português brasileiro, bem como a revisão dos verbetes em que figuram

nos produtos lexicográficos nacionais.

Considerações finais

Considerando-se o objetivo deste breve estudo, de descrever e analisar a

presença de afro-muçulmanos na Bahia escravagista e do emprego, por estes, tanto de

línguas oeste-africanas quanto do árabe, este último restrito, entretanto, ao âmbito

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religioso, e retomando a questão norteadora da investigação, de que estes hábitos

linguísticos resultaram na importação de novos arabismos pelo português brasileiro,

concluiu-se que a documentação remanescente recolhida quando da grande revolta

escrava de 1835 é testemunho da referida prática multilingue então verificada na Bahia.

O desconhecimento deste fato dificulta o reconhecimento da via brasileira de

ingresso de arabismos na língua portuguesa, raramente documentada na literatura

especializada em arabismos. Este desconhecimento se reflete na prática lexicográfica,

que, de um lado, deixa de dicionarizar arabismos afro-muçulmanos e, de outro, se os

registra, nem sempre procede à adequada atribuição de origem, que, conforme reiterado

diversas vezes, termina por incidir sobre as línguas africanas, quando estas são, em

verdade, línguas-ponte, intermediárias, portanto, no processo interlinguístico de

transmissão lexical natural nas situações de contato linguístico-cultural.

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