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1 1 Versão 2 (14.06.05) RUMO A UMA “HISTÓRIA VISUAL” Ulpiano T.Bezerra de Meneses Departamento de História – FFLCH/USP O título deste texto já deixa claro não se tratar de um balanço ou sistematização. “Rumos” pressupõe direção de caminhada, eventualmente obstáculos superados ou a superar. Quanto a “História Visual”, vem entre aspas, para indicar que não se trata de mais uma migalha, como diria François Dosse, na atomização pela qual a disciplina vem passando, mas simplesmente de um campo de operação de grande valor estratégico para o conhecimento histórico da sociedade, na sua organização, funcionamento e transformação. Nessa perspectiva, também não tenho a pretensão de definir epistemologicamente o que seja História Visual -- sobretudo porque não identifico especificidade epistemológica suficiente. Aliás, os cortes e segmentos disciplinares costumam fundamentar-se menos em critérios epistemológicos e mais em critérios corporativos, políticos e administrativos: e este não é o caso. Assim, conviria incorporar a visualidade como dimensão possível de ser explorada em qualquer dos segmentos correntes da História. Por fim, não procurei prioritariamente originalidade ou caminhos revolucionários. Antes, considerei oportuno levantar e sistematizar informações e problemas que têm estado no foco de minhas atividades profissionais de pesquisa e docência e que respondem a preocupações motivadas pelo exame do volume crescente de dissertações e teses em História, que enveredam por caminhos tortuosos ou simplistas, no domínio dos fenômenos visuais e, principalmente, no uso de fontes visuais. Com essa motivação, ao invés de tomar estudos substantivos para análise, preferi multiplicar as referências a trabalhos de compromissos teórico-conceituais e metodológicos, que pudessem fornecer um amplo referencial para fins de orientação imediata e abrir campo para a reflexão. QUADROS PARA UMA HISTÓRIA VISUAL Vários especialistas, entre os quais Martin Jay 1 , pretendem que esteja ocorrendo uma verdadeira “virada figurativa” (pictorial turn), depois do linguistic turn que marcou as ciências sociais há algum tempo. Diz ele: “O modelo da ‘leitura de textos’, que serviu eficazmente como metáfora principal para as interpretações pós-objetivistas de muitos diferentes fenômenos, está agora dando lugar a modelos de observação e visualidade, que recusam ser redescritos inteiramente em termos lingüísticos. O figurado está resistindo à subordinação sob a rubrica da discursividade; a imagem está reivindicando seu próprio modo de análise” (p.1). 1 Martin, Jay, “Vision in context: reflections and refractions”, in: Teresa Brennan & Martin Jay, eds., Vision in context. Historical and contemporary perspectives on sight, London, Routledge, 1996, p.1-14. Não creio, porém, que esteja ocorrendo a repetição de algo tão abrangente quanto a virada lingüística. Creio, sim, que os problemas visuais têm despertado interesse crescente, juntamente com outras dimensões sensoriais da vida social. Afinal, é pela mediação dos cinco sentidos e seus suportes que a vida social é viável. De outra forma ela seria um conjunto de automatismos ou meros fenômenos mentais e psíquicos enclausurados. A História, porém, diferentemente da Antropologia e da Sociologia, não definiu uma problemática visual específica que pudesse concentrar sua atenção, mas privilegiou o tratamento da imagem – e mesmo da imagem como documento discursivo, deixando de margem sua múltipla presença na vida social 2 . A meu ver, um dos principais pré-requisitos para que a História, sem arrefecer seus recentes compromissos com as “fontes visuais”, passe também a considerar a dimensão visual presente no todo social, seria a organização paulatina de um quadro de referenciais, informações, problemas e instrumentos conceituais e operacionais (inclusive para cruzamento de dados), relativos a três grandes feixes de questões: o visual, o visível e a visão. Sem essas coordenadas, pouco se sairia do vôo cego, em que às vezes as nuvens permitem entrever somente pequenas paisagens desconexas. Trata-se não de objetos ou objetivos imediatos de pesquisa, mas de uma deposição paulatina e cumulativa, capaz de criar um capital cognitivo, uma espécie de vasto andaime que torne mais seguros e factíveis os projetos individuados. Naturalmente, esse quadro pode, desde já, servir de baliza ou de horizonte, ou ainda de orientação, para definir estratégias. Conviria, pois, examinar o conteúdo, de tais feixes de questões, observando que não se trata de classes estanques, sem interação, mas tão somente de espaços gravitacionais. O visual É preciso procurar identificar os sistemas de comunicação visual, os ambientes visuais das sociedades ou cortes mais amplos em estudo. Assim também as instituições visuais ou os suportes institucionais dos sistemas visuais (p.ex. escola, empresa, administração pública, o museu, o cinema, a comunicação de massa, etc.), as condições técnicas, sociais e culturais de produção, circulação, consumo e ação dos recursos e produtos visuais. Enfim, é necessário circunscrever o que vem sendo chamado de iconosfera, isto é, o conjunto de imagens- guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado momento e com o qual ela interage. Não se pode tomar a iconosfera, obviamente, apenas como o elenco de imagens disponíveis (basta atentar para a Internet e concluir que tal tarefa seria inviável e de pouca serventia); trata-se, sim, de identificar as imagens de referência, recorrentes, catalisadoras, identitárias – ou aquelas que, em linguagem não técnica, são conhecidas como emblemáticas ou ícones e integram aquelas redes de imagens, como as estudadas por Lina Bolzoni 3 no Medievo italiano . A maior parte da bibliografia se concentra aqui, já que neste nicho é que se localizam as questões mais relevantes associadas a imagens. 2 Este texto desenvolve parte do que já expus em 2003, num quadro que procurava situar a História em relação à Antropologia Visual, à Sociologia Visual, à História da Arte e aos Estudos Visuais ( Ulpiano T. Bezerra de Meneses, “Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares”, Revista Brasileira de História, v.23, n.45, São Paulo, ANPUH, 2003, p.11-36). 3 Lina Bolzoni, La rete delle immagini. Predicazione in volgare dalle origini a Bernardino da Siena, Torino, Einaudi, 2002.

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Versão 2 (14.06.05)

RUMO A UMA “HISTÓRIA VISUAL” Ulpiano T.Bezerra de Meneses Departamento de História – FFLCH/USP O título deste texto já deixa claro não se tratar de um balanço ou sistematização. “Rumos” pressupõe direção de caminhada, eventualmente obstáculos superados ou a superar. Quanto a “História Visual”, vem entre aspas, para indicar que não se trata de mais uma migalha, como diria François Dosse, na atomização pela qual a disciplina vem passando, mas simplesmente de um campo de operação de grande valor estratégico para o conhecimento histórico da sociedade, na sua organização, funcionamento e transformação. Nessa perspectiva, também não tenho a pretensão de definir epistemologicamente o que seja História Visual -- sobretudo porque não identifico especificidade epistemológica suficiente. Aliás, os cortes e segmentos disciplinares costumam fundamentar-se menos em critérios epistemológicos e mais em critérios corporativos, políticos e administrativos: e este não é o caso. Assim, conviria incorporar a visualidade como dimensão possível de ser explorada em qualquer dos segmentos correntes da História. Por fim, não procurei prioritariamente originalidade ou caminhos revolucionários. Antes, considerei oportuno levantar e sistematizar informações e problemas que têm estado no foco de minhas atividades profissionais de pesquisa e docência e que respondem a preocupações motivadas pelo exame do volume crescente de dissertações e teses em História, que enveredam por caminhos tortuosos ou simplistas, no domínio dos fenômenos visuais e, principalmente, no uso de fontes visuais. Com essa motivação, ao invés de tomar estudos substantivos para análise, preferi multiplicar as referências a trabalhos de compromissos teórico-conceituais e metodológicos, que pudessem fornecer um amplo referencial para fins de orientação imediata e abrir campo para a reflexão. QUADROS PARA UMA HISTÓRIA VISUAL Vários especialistas, entre os quais Martin Jay1, pretendem que esteja ocorrendo uma verdadeira “virada figurativa” (pictorial turn), depois do linguistic turn que marcou as ciências sociais há algum tempo. Diz ele:

“O modelo da ‘leitura de textos’, que serviu eficazmente como metáfora principal para as interpretações pós-objetivistas de muitos diferentes fenômenos, está agora dando lugar a modelos de observação e visualidade, que recusam ser redescritos inteiramente em termos lingüísticos. O figurado está resistindo à subordinação sob a rubrica da discursividade; a imagem está reivindicando seu próprio modo de análise” (p.1).

1 Martin, Jay, “Vision in context: reflections and refractions”, in: Teresa Brennan & Martin Jay, eds., Vision in context. Historical and contemporary perspectives on sight, London, Routledge, 1996, p.1-14.

Não creio, porém, que esteja ocorrendo a repetição de algo tão abrangente quanto a virada lingüística. Creio, sim, que os problemas visuais têm despertado interesse crescente, juntamente com outras dimensões sensoriais da vida social. Afinal, é pela mediação dos cinco sentidos e seus suportes que a vida social é viável. De outra forma ela seria um conjunto de automatismos ou meros fenômenos mentais e psíquicos enclausurados. A História, porém, diferentemente da Antropologia e da Sociologia, não definiu uma problemática visual específica que pudesse concentrar sua atenção, mas privilegiou o tratamento da imagem – e mesmo da imagem como documento discursivo, deixando de margem sua múltipla presença na vida social2. A meu ver, um dos principais pré-requisitos para que a História, sem arrefecer seus recentes compromissos com as “fontes visuais”, passe também a considerar a dimensão visual presente no todo social, seria a organização paulatina de um quadro de referenciais, informações, problemas e instrumentos conceituais e operacionais (inclusive para cruzamento de dados), relativos a três grandes feixes de questões: o visual, o visível e a visão. Sem essas coordenadas, pouco se sairia do vôo cego, em que às vezes as nuvens permitem entrever somente pequenas paisagens desconexas. Trata-se não de objetos ou objetivos imediatos de pesquisa, mas de uma deposição paulatina e cumulativa, capaz de criar um capital cognitivo, uma espécie de vasto andaime que torne mais seguros e factíveis os projetos individuados. Naturalmente, esse quadro pode, desde já, servir de baliza ou de horizonte, ou ainda de orientação, para definir estratégias. Conviria, pois, examinar o conteúdo, de tais feixes de questões, observando que não se trata de classes estanques, sem interação, mas tão somente de espaços gravitacionais. O visual É preciso procurar identificar os sistemas de comunicação visual, os ambientes visuais das sociedades ou cortes mais amplos em estudo. Assim também as instituições visuais ou os suportes institucionais dos sistemas visuais (p.ex. escola, empresa, administração pública, o museu, o cinema, a comunicação de massa, etc.), as condições técnicas, sociais e culturais de produção, circulação, consumo e ação dos recursos e produtos visuais. Enfim, é necessário circunscrever o que vem sendo chamado de iconosfera, isto é, o conjunto de imagens-guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado momento e com o qual ela interage. Não se pode tomar a iconosfera, obviamente, apenas como o elenco de imagens disponíveis (basta atentar para a Internet e concluir que tal tarefa seria inviável e de pouca serventia); trata-se, sim, de identificar as imagens de referência, recorrentes, catalisadoras, identitárias – ou aquelas que, em linguagem não técnica, são conhecidas como emblemáticas ou ícones e integram aquelas redes de imagens, como as estudadas por Lina Bolzoni3 no Medievo italiano . A maior parte da bibliografia se concentra aqui, já que neste nicho é que se localizam as questões mais relevantes associadas a imagens.

2 Este texto desenvolve parte do que já expus em 2003, num quadro que procurava situar a História em relação à Antropologia Visual, à Sociologia Visual, à História da Arte e aos Estudos Visuais ( Ulpiano T. Bezerra de Meneses, “Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares”, Revista Brasileira de História, v.23, n.45, São Paulo, ANPUH, 2003, p.11-36). 3 Lina Bolzoni, La rete delle immagini. Predicazione in volgare dalle origini a Bernardino da Siena, Torino, Einaudi, 2002.

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O visível O visível (com, naturalmente, sua contrapartida, o invisível) representa o domínio do poder e do controle, o ver / ser visto, dar-se / não se dar a ver, os objetos de observação obrigatória assim como os tabus e segredos, as prescrições culturais e sociais e os critérios normativos de ostensão, ostentação ou discrição – em suma, de visibilidade e invisibilidade. Muito devem os historiadores, neste campo, a sociólogos e antropólogos que, sem compromissos específicos, introduziram ou exploraram o problema da visibilidade/invisibilidade como ingrediente da vida social: a etiqueta como sistema visual (Norbert Elias), as relações em público e a teatralidade das práticas sociais (Erwin Goffman, Victor Turner), as marcas visíveis de identidade, status e crenças (Richard Sennett), a observabilidade da interação social (Georg Simmel), o Panopticum, o controle de loucos, criminosos, pobres, do corpo feminino, da identidade, a dominação patriarcal (Foucault), as expressões visuais da proxemística (Edward Hall) -- e assim por diante. Os “regimes escópicos”, a espetacularização da sociedade e o oculocentrismo são outros temas centrais neste tópico – os dois últimos pertinentes, sobremaneira, à sociedade capitalista. Guy Debord4 (1967) é o primeiro nome que vem à mente quando se fala de sociedade do espetáculo – espetáculo não como uma coleção de imagens, mas como uma relação social entre pessoas mediadas por imagens; em suma, o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna uma imagem. Aqui se tem a possibilidade de examinar a visibilidade/invisibilidade em funcionamento e em alta escala. O oculocentrismo é o privilegiamento epistemológico da visão, cuja hegemonia caracteriza a modernidade. Desemboca na assimilação do conhecimento à visualização (como nos telejornais), à aceitação de que o evento se realiza na imagem ou não tem existência social. Aliás, a imagem acaba por dispensar o evento (é a pseudo-imagem de que fala Daniel Boorstin5 (1992). O oculocentrismo tem suscitado vasta bibliografia de crítica social6. No pólo inverso, tem-se tratado a invisibilidade como conseqüência de um processo de desmaterialização da vida contemporânea, que acarreta a dispensa da visibilidade: o sensoriamento remoto, o diagnóstico médico por imagem, o desaparecimento da apreensão de tempo e espaço como categorias de experiência (veja-se, por exemplo, a inutilidade do olhar no registro dos resultados das competições nos Jogos Olímpicos). Valendo-se de Henri Lefebvre, José de Souza Martins7 retoma o tema da “ditadura do olho” associada ao desaparecimento do corpo: a visualização intensa redunda não numa iluminação, mas no rechaço da experiência e do vivido. Em todo caso, poder e figuração visual são indissociáveis. Introduzindo a coletânea por eles organizada e intitulada Figurando o 4 Guy Debord, , La société du spectacle, Paris, Gallimard, 1967. 5 Daniel J. Boorstin, The image. A guide to pseudo-events in America, New York, Vintage Books, 1992. 6 cf. Georgia Warnke, “Ocularcentrism and social criticism”, in: David Michael Levin, ed., Modernity and the hegemony of vision, Berkeley, University of California Press, 1993, p.287-308. 7 José de Souza Martins, “A peleja da vida cotidiana em nosso imaginário onírico”, in: J.de S.Martins, org., (Des)figurações. A vida cotidiana no imaginário onírico da metrópole, São Paulo, Hucitec, 1996 p. 15-72.

poder: representação visual e relações sociais, Gordon Fyfe e John Law8 assim se manifestaram:

“Uma figuração nunca é apenas uma ilustração É a representação material, o produto aparentemente estabilizado de um processo de trabalho. E é o lugar para a construção e figuração da diferença social. Entender a visualização, assim, é indagar sua proveniência e o trabalho social que ela realiza. Devem-se notar seus princípios de exclusão e inclusão, detectar os papéis que ela torna disponíveis entender o modo como eles são distribuídos e decodificar as hierarquias e diferenças que ela naturaliza” (p.1).

A visão Compreende os instrumentos e técnicas de observação, o observador e seus papéis, os modelos e modalidades do olhar (o olhar de relance, o olhar patriarcal, o olhar reificador, o olhar masculino, o olhar turístico, o olhar erótico, o olhar casto, o olhar reprimido ou condicionado etc.). A pressuposição é a dupla mão de direção entre o olhar e seu objeto: James Elkins9 escreveu um livro intitulado O objeto olha de volta. Sobre a natureza do ver. Alguns estudos de gênero têm procurado aproveitar esse diálogo do olhar como mecanismo de interação e fixação das diferenças. Jonathan Crary10, por sua vez, para entender as transformações da visão em torno da década de 1820, trata do surgimento da figura do observador, acompanhando as mudanças epistêmicas dos modelos clássicos de visualidade para as negociações entre o observador e o mundo, mudanças que vão de uma “forma de conhecimento” para um “objeto de conhecimento”. Tais mudanças levantaram questões sobre o corpo e a operação do poder social (formas institucionais e discursivas do poder) e redefiniram o status do sujeito que observa. Fica patente, assim, que a visão é uma construção histórica, que não há universalidade e estabilidade na experiência de ver e que uma história da visão depende de muito mais do que de alterações nas práticas representacionais. “A visão e seus efeitos são sempre inseparáveis das possibilidades de um sujeito que observa, que é tanto um produto histórico como o lugar de certas práticas, técnicas, instituições e procedimentos de subjetivação” (p. 5). Numa linha diferente, e partindo da fenomenologia, Donald Lowe11, ao esboçar uma história da percepção burguesa, propõe pistas para retraçar a historicidade das estruturas perceptivas: o exame dos meios de comunicação (define quatro padrões fundamentais: cultura oral, quirográfica, tipográfica e eletrônica), as variáveis hierarquias dos sentidos e, enfim, as diferentes ordens epistêmicas (que ordenam o conteúdo da percepção). No campo da história da arte, o equivalente

8 Gordon Fyfe & John Law, “On the invisibility of the visual: editors’ introduction”. in: G.Fyfe & J.Law, eds., Picturing power. Visual depiction and social relations, London, Routledge, 1988, p.1-14. 9 James Elkins, The object stares back: on the nature of seeing, New York, Simon & Schuster, 1996. 10 Jonathan Crary, Techniques of the observer: on vision and modernity in the 19th-century, Cambridge Mass., MIT Press, 1990. 11 Donald Lowe, History of bourgeois perception, Brighton, The Harvester Press, 1982.

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seria a obra de Baxandall12 (1972) sobre o Quattrocento italiano, à procura do “olho da época” (period eye), culturalmente gerado na experiência do cotidiano e capaz de fazer circular formas, informações, valores, competências cognitivas e juízos de valor entre pintores, comitentes e observadores e camadas urbanas da população. Os estudos da visão incluem também os modos apropriados de ver (como aqueles que a fotografia ajudou a fixar). O famoso dito de Paul Klee, de que a arte não reproduz o visível, mas torna visível (o visível que estava fora da consciência) pode enriquecer a problemática histórica, como a da transformação da paisagem, operada em grande parte pela colaboração da imagem, de fato geográfico em fato cultural13. Se quadros como estes já estivessem em montagem, ainda que no nível puramente empírico, acredito que o historiador já teria mais condições e estímulo para passar de uma história ainda marcadamente iconográfica para uma história da visualidade. DOCUMENTO VISUAL E HISTÓRIA As relações do historiador com o mundo visual se concentram, pois, na imagem. É sintomático que a maioria dos trabalhos com preocupação teórico-conceitual ou metodológica (que, aliás, são muitíssimo poucos) girem em torno da problemática da imagem, principalmente a problemática documental.14 Se levarmos em conta as narrativas historiográficas de tipo genealógico, que colocam como

12 Michael Baxandall, O olhar renascente. Pintura e experiência social na Itália, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991 (ed.or.: 1972). 13 cf. Ulpiano T. Bezerra de Meneses, “A paisagem como fato cultural”, in: Eduardo A. Yázigi, org., Turismo e paisagem, São Paulo, Contexto, 2002, p.29-64. 14 Apenas para exemplificar citem-se: Iconographie et histoire des mentalités, Paris, CNRS, 1971; Institut d’Histoire moderne et contemporaine, Les historiens et les sources iconographiques (Table Ronde, 1981), Paris, CNRS, 1981; Image et histoire (Actes du Colloque Paris-Censier, 1986) Paris: Publisud, 1987; Hélène d’Almeida-Topor & Maurice Sève, L’histoiren et l’image: de l’illustration à la preuve (Actes du Colloque de Metz, 1994), Metz: Université de Metz, 1998; Ivan Gaskell, “História das imagens”, in: Peter Burke, org., A escrita da História, São Paulo, EDUNESP, 1992, p.237-272; Francis Haskell, History and its images: art and the interpretation of the past, New Haven, Yale University Press, 1993; Eduardo Neiva (e debatedores), “Imagem, História e Semiótica”, Anais do Museu Paulista. História e cultura material, n.s., v.1, n.1, São Paulo, MP/USP, 1993, p.11-92; , Michel Vovelle, Imagens e imaginário na História. Fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Média até o século 20. São Paulo: Ática, 1997; Ciro F.S. Cardoso & Ana Maria Mauad, “História e imagem: o exemplo da fotografia e do cinema”, in: C.F.S.Cardoso & R.Vainfas, orgs., Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia, Rio de Janeiro, Campus, 1997, p. 401-418, etc. Até mesmo obras mais abrangentes, como Peter Burke, Testemunha ocular. História e Imagem, Bauru, EDUSC, 2004, preferem ater-se ao domínio da imagem. Este partido, por certo, é legítimo e necessário, mas seria bem-vindo um enquadramento mais preciso da História no campo já ocupado pela Antropologia Visual, Sociologia Visual, História da Arte, Estética e Estudos Visuais. Ressalve-se que o cinema e a fotografia mereceram um tratamento mais sistematizado e aprofundado do que outras modalidades de imagem.

ancestrais dos bens e dos males da disciplina a Escola dos Annales (e algumas linhagens imediatamente posteriores, inclusive dissidentes), verificaremos que a ampliação da noção de documento por ela postulado beneficiou os registros visuais – e isso, de forma mais corrente, apenas desde a década de 1960. Eles foram, sem dúvida, alforriados e ganharam direitos de cidadania no campo da disciplina. Mas se as imagens saíram da senzala, nem por isso deixaram de desempenhar funções ancilares e se transferiram para a casa grande. A dificuldade em dar conta da especificidade visual da imagem faz com que, muitas vezes ela seja convertida em tema e tratada como fornecedora de informação redutível a um conteúdo verbal. Ou então considerada como ponte inerte entre as mentes de seus produtores e os observadores, ou mesmo, no geral, entre práticas e representações. Ou, ainda, o que é pior – mas já está suficientemente denunciado – considerada como apta a desempenhar tão somente função ilustrativa. Tal dificuldade, sem dúvida, deriva da formação logocêntrica do historiador e da natureza igualmente centrada na palavra de quase toda sua atividade profissional. Assim, além do ônus de um “analfabetismo visual” (a própria necessidade de recorrer a uma expressão de marca verbal já indica a dimensão do problema...), ele não necessita de experiência de campo e, trabalhando em geral apenas com representações e abstrações, elimina qualquer risco de contaminação com o concreto e o empírico. O historiador não se defronta, por exemplo, com problema crucial de antropólogos e sociólogos, levados a reconhecer no registro visual realizado durante a pesquisa uma parte já do processo de interpretação: quando se usa a fotografia, por exemplo, ou o filme, “vê-se com a câmara, não através dela”, nas palavras de Cheris Wright15. No entanto se o historiador está acostumado a estudar os contextos técnicos e sociais da produção, circulação e consumo do café, ouro, aço, automóveis, edifícios, móveis e utensílios domésticos – porque não estaria habilitado a fazê-lo também com bens simbólicos, obras de arte, imagens? Toma-se, assim, o circuito todo: a produção e os produtos, o artista, comanditários, motivações, mercado, museus, colecionadores, coleções, especialistas, crítica, história, teoria, reproduções, cópias, públicos, etc.etc. Nesse sentido desenvolveu-se uma “História Social da Arte” – que muitos especialistas consideram mais propriamente uma “Sociologia da arte”. (Note-se que o último circuito, o do consumo é, de todos, o mais rarefeito). Paradoxalmente, este padrão não só marginaliza a especificidade visual da imagem, mas também seu caráter de artefato, pois desfazer sua natureza de objeto visual é trabalhá-la como abstração -- como mercadoria. Contudo, se se trata de levar em conta a especificidade visual da imagem, o terreno é muito mais instável e o horizonte muito mais fluido – principalmente se estiver em causa a imagem artística. As reflexões mais articuladas começam já a aparecer, mas ainda há muito chão que deve ser percorrido. Uma proposta que merece atenção é a de Artur

15 Cheris Wright, “The third subject. Perspectives on Visual Anthropology”, Anthropology Today, v.14., n.4, London, RAI, 1998, p.16-22 (p.19). Patrizia Faccioli e Giuseppe Losacco (Manuale di Sociologia Visuale. Milano, Franco Angeli, 2003, p.28-33), ecoando postura corrente, relativa ao uso da fotografia na pesquisa sociológica, prevêem três áreas metodológicas – não coincidentes com aquelas que costumam balizar a pesquisa histórica credora de imagens, salvo, em certos aspectos vinculados ao filme documentário histórico: a Sociologia com as imagens (produção e uso de fontes), a Sociologia sobre as imagens (interpretação e explicação das imagens produzidas no curso de uma atividade social e de montagem das narrativas) e a restituição, a produção dos ensaios visuais.

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Freitas16, que formulou um “eixo, aqui, muito simples, (que) consiste em propor que as fontes visuais, e sobretudo as artísticas, sejam vistas em função de três dimensões: a formal, a semântica e a social...” (p.3). A argumentação é rica e bem fundamentada e procura ressaltar que o conhecimento artístico e o conhecimento histórico não só podem beneficiar-se mutuamente, como também são interdependentes. Parece-me, porém, que esta leitura que permite o uso da imagem artística como objeto histórico marca diferenças, não ontológicas, mas operacionais (de novo é a preeminência do problema documental), constituindo dois diferentes campos disciplinares legítimos: o da História e o da História da Arte. Talvez a diferença possa ser melhor conceituada como sendo apenas ou principalmente de escala. Com efeito, para a História a prioridade será sempre a leitura artística (e num patamar alargado, a leitura visual) da sociedade em sua dinâmica, mais que a leitura histórica da imagem artística. Talvez se devam tirar ainda mais implicações da citação muito pertinente que, ao fim de sua exposição, o autor faz de Baxandall, para quem “não é apenas o ambiente sociocultural que pode aguçar nossa experiência de uma imagem artística, mas, revertendo a equação, que as próprias formas e os estilos visuais também ‘podem apurar a percepção que temos da sociedade’ ” (p.17-18). No campo das relações entre o poder e a visualidade, embora não sejam numerosas as monografias históricas, o historiador também se sente à vontade. A matriz principal continua sendo Foucault, nos estudos sobre o controle dos excluídos. Todavia, é nos estudos de ideologia, imaginário, mentalidades, que se concentra, muito certamente, a exploração de imagens por historiadores. É aqui, também, que se encontram alguns dos melhores estudos no campo, no Brasil e fora dele. Vale salientar três tipos documentais que se têm prestado muito bem a pesquisas da espécie: a caricatura, a fotografia e o cinema. Em compensação, estranhamente, a pintura histórica, apesar das exceções, não recebeu o mesmo tratamento. Seja como for, é preciso também mencionar três aspectos de risco: o primeiro é o de fazer crer que os estudos históricos com imagem não dispõem de outra serventia que o conhecimento deste tripé de ideologia, imaginário e mentalidades (Nikos Hadjinicolau propunha que toda História da arte fosse uma história da ideologia sob forma de imagem!); o segundo é a redução da ideologia a fenômeno mental, psíquico, cognitivo, que pode ser expresso verbalmente sem consideração à forma material/visual que lhe serve de suporte (parece que a proposta de pensamento plástico, por Pierre Francastel teve menos eficácia do que merecia); o terceiro é a exclusão da imagem do jogo da vida social, por se deixar de considerar a ideologia como localizada efetivamente na interação social. Para terminar as reflexões sobre o interesse redutor concentrado nas fontes visuais, diria que as limitações da “história iconográfica” não dizem respeito apenas ao foco de atenção prioritária concedida à documentação, em detrimento dos problemas históricos. Dizem respeito, também, à negligência no uso de outras modalidades de testemunho (verbal, material, visual) que possam responder às questões colocadas pelos problemas históricos em causa. Isto traz à tona a questão das hierarquia das fontes e do valor documental. É muito comum estabelecer-se uma subordinação (valorizando ou desvalorizando as imagens) ou estabelecendo uma complementaridade com outros referenciais. Claro que, se se está estudando algum aspecto da dimensão visual da sociedade, as fontes visuais hão que ter um papel estratégico. Claro, igualmente, que quando se está preocupado com o discurso realista na pintura, por exemplo, valeria a pena procurá-lo também na fotografia de identidade, na fotografia 16Artur Freitas,, “História e imagem artística: por uma abordagem tríplice”, Estudos Históricos, n.34, Rio de Janeiro, FGV, jul.-dez.2004, p.3-21.

médica e antropológica e assim por diante. Mas não é esse o ponto que gostaria de levantar e sim a inadequação de uma expectativa assídua, em que se imagina que as fontes devam forçosamente convergir para um mesmo ponto de fuga, embora diferencialmente. Tal expectativa corresponde a uma visão imprópria do funcionamento da sociedade e da cultura, em que se eliminou o conflito e a incoerência e, portanto, a possibilidade da presença de práticas e representações desencontradas. Sem indagar do papel social das fontes, sua interlocução com as demais fontes será sempre problemática. Também acredito que as ingenuidades das leituras empíricas, à cata de fatos e traços do referente (principalmente na fotografia), derivam deste mesmo campo de equívocos: proceder como se acreditasse que seus acervos documentais (principalmente fotográficos) desempenham os mesmos papéis que as coisas e eventos registrados. Ignora-se, assim, aquele entendimento que Alain Corbin17 confessa ter demorado a aceitar mas que lhe abriu os olhos (ele fala de literatura de ficção, mas nada seria estranho à imagem): a representação pode ser um modelo de prática, mas nunca, verdadeiramente, prova da prática. Daí, portanto, as dificuldades apresentadas pela Iconologia de Panofsky (além de sua matriz idealista), pois pressupõe que haja correspondência entre a imagem como sintoma (a forma simbólica de Cassirer) e o foco homogeneizador do Zeitgeist ( “espírito da época”), Weltanschauung (visão de mundo, em que as formas simbólicas regem o funcionamento da sociedade numa determinada época). Trata-se, em última instância, de uma História das idéias que talvez possam ser hegemônicas no campo das artes e outras manifestações de elite, mas que dificilmente dariam conta da(s) iconosfera(s) de sociedades complexas e do que elas podem revelar. Sem dúvida, nada impede, por exemplo, que práticas e representações, em modo verbal e visual, possam eventualmente corresponder-se. Entretanto, é improvável que por natureza elas devam sempre fazê-lo, como se fossem peças apenas apresentadas em formas múltiplas, mas que, ao final, se encaixarão fatalmente umas nas outras, ordenadamente, como num puzzle. Além disso, o que é múltiplo e também pode ser contraditório são as temporalidades diversas das fontes, num mesmo recorte sincrônico. J.-C. Schmitt18 trata de um caso que pode excelentemente aclarar nosso ponto. Falando da obrigação que o historiador julga ter de buscar coincidência entre suas fontes visuais e verbais, ele cita o trabalho de Millard Meiss, que não encontrou, na pintura de Florença e Siena, depois da Peste Negra, nenhum impacto da tenebrosa epidemia que tanto marcou os cronistas e literatos. Mas a famosa imagem do Triunfo da Morte (cuja representação mais antiga parece ser o afresco de Buffalmacco no Campo Santo em Pisa) é anterior à Peste Negra. Deve-se concluir que os registros de dicibilidade e visibilidade (e seus opostos) não são, realmente, os mesmos. Deve-se concluir, sobretudo, pela exigência de examinar as fontes visuais (e outras, é claro) mais do que como documentos, como ingredientes do próprio jogo social, na sua complexidade e heterogeneidade. OS USOS DA SEMIÓTICA A ausência de uma base teórico-conceitual sólida e suficientemente debatida e, conseqüentemente, de critérios metodológicos pertinentes, tem introduzido soluções de cartilha, que conduzem a camisas de força responsáveis por empobrecer a pesquisa. Entre nós, na produção dos

17 Alain Corbin, Historien du sensible. Entretiens avec Gilles Heuré, Paris, La Découverte, 2000. 18 Jean-Claude Schmitt, “L’historien et les images”, in: Le corps des images. Essais sur la culture visuelle au Moyen Âge. Paris: Gallimard, 2002: p.35-62 (p.58-59).

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cursos de pós-graduação, pode-se perceber que, depois de uma voga das análises iconográficas panofskyanas, é a Semiótica que, agora, vem ocupando a dianteira, como chave-mestra, capaz de abrir todos os acessos para a História “feita com imagens”. Há, porém, muita incerteza e tem-se discutido muito qual o tipo de Semiótica que convém “adotar”, como instrumento genérico de produção de conhecimento histórico. A Semiótica de base saussuriana parece mais reduzida, a peirceana parece abrir mais possibilidades; propõe-se também passar-se de uma Semiótica sígnica, da comunicação, para uma Semiótica das significações, sígnicas e não sígnicas. Introduzem-se métodos de leitura, como o quadrado semiótico greimasiano. Todas estas questões mereceriam discussão mais aprofundada – que, obviamente, não caberia aqui. Meu objetivo definido é tão somente apontar que me parece impróprio tomar a Semiótica como um caminho natural e acabado de produção do conhecimento histórico. Por isso a questão dos modelos de escolha está mal colocada, ao menos antes de definir os problemas históricos específicos que a pesquisa pretenda encaminhar. Nas últimas quatro páginas de seu Tratado geral de Semiótica, Umberto Eco19 faz observações inesperadas para um semiótico e esclarecedoras para os cientistas sociais. Partindo do pressuposto de que o trabalho da produção sígnica constitui uma forma de crítica social (e, definitivamente, uma das formas da práxis) ele se pergunta honestamente onde ficou, no seu livro, o sujeito da Semiótica, o ator da prática semiótica. Trata-se de um “fantasma”, onipresente mas apenas implícito. Explicitá-lo seria a responsabilidade dos historiadores, sociólogos, etc. Com efeito, a Semiótica é, por excelência, uma disciplina que privilegia o sincrônico e a estrutura: como dar conta, assim, do histórico? Veja-se, por exemplo, o trabalho de um dos mais respeitados especialistas em Semiótica Visual, Jean-Marie Floch20.Ele parte da premissa de que um fenômeno semiótico comum percorre os objetos de seu estudo (tela de Kandinsky, casa do arquiteto Georges Baines, uma fotografia de E.Bouybat, dois anúncios publicitários, uma história em quadrinhos, desenhos de Barthes) e procede ao acoplamento de categorias do significante visual – opondo as cores, as formas ou os valores – com certas categorias conceituais, tais como natureza/cultura, identidade/alteridade, vida/morte, etc. O historiador, por certo, sente-se incomodado com o idealismo e cerebralismo que perpassa este encaminhamento, e que, para ser eficaz, exige total convergência de atributos estáveis e imanentes, a fim de produzir tal estrutura. A dinâmica não condiz bem com este quadro. Não é de estranhar, pois, que a Semiótica esteja ocupando um lugar em que há pouco dominava a Iconografia/Iconologia de Panofsky, com a mesma ênfase na estrutura, na imanência, e até mesmo num certo essencialismo, acompanhado, muitas vezes por um subreptício fetichismo no tratamento das imagens. No entanto, os problemas assumem gravidade quando se fala de linguagem das imagens, não num sentido metafórico, mas técnico, confundindo potencial lingüístico com natureza lingüística. Tal redução pelo modelo lingüístico tem sido freqüentemente denunciada: “Em uma palavra, a abordagem semiológica da cultura material é reducionista por que ela não se interessa pela materialidade enquanto tal, em sua relação com a construção do sujeito e à sua objetivação na ação”, diz 19 Umberto Eco, Tratado geral de Semiótica, São Paulo. Perspectiva, 4ª.ed., 1993, p.255-8. 20 Jean-Marie Floch, Petites mythologies de l’oeil et de l’esprit, Pour une sémiotique plastique, Paris, Hadès, 2000.

Jean-Pierre Warnier21. Falando da imagem artística, o mesmo Warnier diz que o próprio dela é que uma parte do humano não possa tomar corpo e expressão senão pelo gesto e pela matéria: “A arte, por excelência, tende à afasia: a expressão material {visual, acrescentaria eu} começa a tornar-se necessária aí onde o discurso não dispõe de nenhuma palavra para dizê-lo” (p.124-5). Se assim não fosse, como entender o mictório de Duchamp, transmutado em “fonte” ao ser entronizado como obra de arte no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque? Consta que a crítica procurou justificativas semióticas para a transgressão instauradora do artista, apontando a sensualidade das curvas, o branco leitoso da superfície e o que mais fosse... É preciso ter-se em conta, também, diante de uma tendência pansemiótica cada vez mais entusiasmada, a existência de situações em que mesmo os sistemas lingüísticos se encontram descompromissados com a produção e comunicação de sentido. Muitas imagens, por exemplo, existem para agir e não para comunicar sentidos, ou envolvem outras conotações e componentes, como no caso do duplo e da imagem de culto (o ícone bizantino, por exemplo, em oposição à imagem devocional). Sem estas considerações, estudos da iconofilia (e as diversas escalas de vínculo subjetivo com a imagem, como a adoração e a veneração) e da iconoclastia se veriam consideravelmente prejudicados. A dissociação dos componentes, mesmo na língua natural, vem sendo estudada cada vez mais, principalmente por antropólogos interessados na eficácia imediata da palavra mágica. Nenhuma análise semiótica – nem fonética, lexicológica etc. – do vocábulo “abracadabra” dará conta de seu conteúdo pragmático, aquele que efetivamente conta. (E, para não nos esquecermos da imagem visual, no vudu é bom preocupar-se menos com os conteúdos semióticos do boneco -- que não representa, mas é o “duplo” do destinatário da magia -- do que procurar rapidamente neutralizar a eficácia interna das ações. Na Índia, na tradição védica (1500-700 a.C.) não é ocorrência excepcional a ausência de fusão entre significante e significado. Os esforços de preservação não cuidam dos sentidos: podem até ocorrer, mas se consideram passatempo individualístico e indigno de consideração. O objeto da preocupação dos brâmanes, porém, é preservar o som para a posteridade, manter sua pureza. Um último exemplo22: a propósito de seu estudo sobre os Songhay do Níger, P. Stoller deixa cristalinamente claro como o poder está nas palavras em si e não no referente que elas convocariam. Há palavras que não são representação de algo, mas instrumentos imediatos de ação, inseparáveis da ação. Stoller completa, com crítica ampla à epistemologia ocidental, em que se concebe/percebe o mundo em termos de espaço mais do que de som – mas a língua pode, em muitos casos, ser apenas uma corporificação de som. Por outro lado, é preciso prever a ocorrência não só das imagens sem referente (fato para o qual os historiadores já estão atentos, seja por causa do foto-jornalismo, seja pelo conhecimento da imagem digital e, mais ainda, virtual), mas também o caso de trajetórias diferentes para a imagem e seu referente – como acontece nos contextos de produção da celebridade. Um exemplo contundente é aquele relatado por Chris Rojek23 a respeito da famosíssima fotografia da II Guerra Mundial, que retrata três marines fincando a bandeira americana numa montanha da ilha de Iwo Jima, após combate feroz de 36 dias contra os 21 Jean-Pierre Warnier, Construire la culture matérielle. L’homme qui pensait avec ses doigts, Paris, PUF, 1999, p.124. 22 Este ultimo exemplo e o seguinte são extraídos de David Howes, ed., The varieties of sensory experience. A sourcebook in the Anthropology of the senses, Toronto, University of Toronto Press, 1991, p. 20 n.5 e 8-10. 23 Chris Rojek, Celebrity, London, Reaktion Books, 2001, p.21.

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japoneses, em 1943, com baixas de 7.000 e 22.000 soldados, respectivamente. O destino da imagem foi tão glorioso que ela foi reproduzida em bronze, no cemitério para os heróis nacionais, em Arlington. Já o destino dos marines foi deplorável e conduziu-os ao total esquecimento: um deles morreu sem nunca querer discutir publicamente sua façanha; outro morreu alcoólatra e o terceiro era um obscuro porteiro por ocasião da pesquisa. A análise semiótica se interessará, obviamente, pela imagem e justificará sua trajetória. A pesquisa histórica, todavia, terá que se interessar por ambas as trajetórias. Em conclusão, pode-se afirmar que a análise semiótica é um precioso instrumento de trabalho para o historiador. Mas não para trazer respostas: essas devem ser produzidas a partir das hipóteses formuladas pela interpretação histórica. O auxílio principal está, sim, na ampliação do leque de questões a levantar e que incluem o conhecimento do potencial semiótico dos documentos mobilizados. Portanto, perguntas, não respostas. De qualquer modo, o alcance da Semiótica decai quando se passa do domínio das imagens para o da cultura ou dos regimes visuais. E, em qualquer caso, a Semiótica não pode neutralizar ou enfraquecer o fato, tão importante para a História, de que a imagem, além de signo, também age, executa o papel de ator social, produz efeitos. SIGNIFICADOS E SISTEMAS DE AÇÃO No território da História da Arte, já começam a ser percorridos os caminhos abertos por Alfred Gell24, prematuramente falecido, na sua tentativa de estabelecer parâmetros para uma Antropologia da arte (incluindo as sociedades complexas, e não apenas uma etno-estética). Em lugar da comunicação simbólica, ele propõe ver a arte como sistema de ação, voltado mais para mudar o mundo do que para codificar proposições simbólicas a seu respeito. Como está o sistema semiótico incorporado na prática social? Esta é uma questão preliminar. É possível, diz ele, ler as mensagens semióticas das imagens, mas elas muitas vezes são diferentes das intenções e efeitos das imagens, como coisas topicamente produzidas e empregadas25. Nessa ordem de idéias, impõe-se a análise de enunciados, até o nível da performance. A abordagem centrada na ação é mais inerentemente antropológica, acredita ele, do que a alternativa semiótica, pois está preocupada com o papel prático mediador dos objetos de arte no processo social, antes que com a interpretação de objetos como se fossem textos. (Claro está que, para ele, sem excluir as ações, o suporte físico é essencial). Um exemplo que cai em cheio nas considerações de Gell é aquele dos Ongee, no sudeste asiático, estudado por Constance Clasen26, em que o odor é o sentido principal; daí o controle de odores, pois o cheiro se associa à identidade pessoal (viver em comunidade equivale a “unir os cheiros”). Em conseqüência, a pintura corporal com argila – sempre muito importante – tem por função esconder cheiros após ingestão de carne, o que poderia enfurecer os espíritos: uma análise semiótica das imagens seria, aqui, um contra-senso.

24 Alfred Gell, Art and agency: an anthropological theory, Oxford, Oxford University Press, 1998. 25 Ver Eric Hirsch, “Techniques of vision: photography, disco and renderings of present perceptions in Highland Papua”, Journal of the RAI, n.s. v.10, n.1, London, RAI, 2004, p.19-39. 26 Constance Clasen, Worlds of sense. Exploring the senses in History and across cultures, London, Routledge, 1993, p. 126-121.

Talvez convenha fazer apelo a um exemplo mais próximo de nós, para esclarecer a abordagem pragmática proposta. Ao introduzir uma coletânea de estudos sobre paisagem e poder, W.J.T. Mitchell postula que se trate o termo “paisagem” como verbo e não como substantivo, transformando-a de objeto a ser visto ou texto a ser lido em um “processo pelo qual se formam as identidades sociais e subjetivas”. Seu modelo de abordagem não pergunta somente o que uma paisagem é ou, significa mas o que ela faz, “como ela funciona em termos de prática cultural. A paisagem, sugerimos, não significa simplesmente ou simboliza relações de poder; ela é um instrumento de poder cultural, talvez mesmo um agente de poder que é (ou freqüentemente se representa assim) independente das intenções humanas”27. Anne Sauvageot, numa obra um tanto indefinida, parte no entanto de uma plataforma explícita e pertinente, para montar sua “sociologia do olhar”, em que procura apreender a construção social do visível, que tende a estabelecer uma certa relação do olho com o mundo. Ela se interessa pelas revoluções do olhar, que subentendem, de um lado, as reorganizações sucessivas do mundo material e, de outro, as mudanças de racionalidade que lhe correspondem. A arte, portanto, seria antes de mais nada um confronto com o mundo material, que ela transforma -- e não prioritariamente com o mundo das significações28. É claro que, a se manter o radicalismo da proposta, se teria, aqui também, o risco de cair num essencialismo anti-histórico na conceituação de arte. O que eu acrescentaria, porém, por ser mais coerente com minhas propostas, é que, ao invés de priorizar a construção social do visível, a autora tivesse preferido a construção visível do social. A IMAGEM COMO ARTEFATO Estas últimas considerações derivam de um dado que raramente entra na percepção do historiador: as imagens não são puros conteúdos em levitação ou meras abstrações mas, antes de mais nada, constituem coisas materiais, objetos físicos, artefatos. Não é de hoje que se propõe tal perspectiva. Em 1935, Heidegger já insistia na necessidade de considerar que as obras de arte “estão naturalmente presentes como coisas”29. Isto, é claro, traz inúmeras exigências heurísticas. (Esta dificuldade confirma o que se disse anteriormente, em relação às suas fontes: raramente o historiador sai a campo, por exemplo, para coletar fotografias, registrando seus contextos de uso; estes, em conseqüência, costumam ter pouco peso em sua investigação). Esta aceitação da imagem como puro sentido acarreta conseqüências que podem ser extremamente comprometedoras. Maurice Daumas30, ao iniciar uma das poucas obras de síntese, neste domínio, uma história das funções da imagem nas sociedades da Europa moderna, aponta essa concepção deformada que temos das imagens como resultante de um “efeito-museu” e demonstra como isso

27 William J.T. Mitchell, ed., Landscape and power, Chicago, The University of Chicago Press, 1994, p.1-2. 28Anne Sauvageot, Voirs et savoirs. Esquisse d’une Sociologie du regard, Paris, PUF, 1994, p.32-33. 29 Martin Heidegger, “The origin of the work of art”, in: David Farrell Krell, ed., Martin Heidegger: basic writings, London, Routledge, 2nd.ed., 1978, p.145 (agradeço a André Melo Araújo por me ter chamado a atenção para este texto). 30 Maurice Daumas, Images et sociétés dans l’Europe moderne, Paris, Armand Collin, 2000, p.97.

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acarreta seqüelas redutoras. Por exemplo, os lugares de concentração das imagens, no século XV, eram bastante diferentes do que ocorrerá no século XVIII: respectivamente igreja, prefeitura, festas e procissões em tempos determinados; mais tarde, com a difusão assegurada pela litografia, espalham-se, inclusive no campo, as gravuras, almanaques, calendários, tornando-se a imagem um bem de consumo acessível a todos e em tempos variados e dilatados. Ora, esse contextos diferenciados contêm implicações que é impossível minimizar. Na Antropologia, estão começando a aparecer recomendações nesta linha, principalmente no domínio da fotografia. Patrick Maynard, G.Batchen, C. Gosden, Y.Knowles e Elizabeth Edwards são alguns dos nomes que cumpre ressaltar. Esta última direcionou seu foco para a fotografia etnográfica, mas depois, ampliou seu horizonte31. A fotografia, diz ela, não pode ser tomada meramente como o instrumento de uma inscrição indexical, mas sim como uma tecnologia para exibição visual experimentada como significante. A materialidade, assim, traduz o abstrato e representacional da ‘fotografia’ em ‘fotografias’ que existem no tempo e no espaço. Utilizando a terminologia da estética de Susanne Langer, que os estudos de cultura material já haviam feito circular, propõe que se pense na imagem visual tanto em termos de formas discursivas, quanto “exibitórias”32. A aceitação de que toda imagem é, antes de mais nada, um objeto tridimensional (e não somente uma abstrata projeção de três dimensões num plano) introduz, automaticamente, dois outros problemas: as coisas, imersas na vida social e suas contingências, também podem contar com uma biografia. A segunda questão é a participação da imagem na “instituição” das pessoas sociais. Estes dois problemas incluem integralmente as imagens. Já na década de 1980 Igor Kopytoff havia levantado a questão da biografia cultural das coisas em relação à “comoditização” como processo, num capítulo de coletânea também sugestivamente intitulada de A vida social das coisas. Commodities em perspectiva cultural33. Embora preocupado prioritariamente com o universo das commodities, Kopytoff fornece um modelo em que as trajetórias e histórias de vida dos artefatos podem ser consideradas em geral – inclusive porque, para ele, a commodity não é uma espécie de coisa, de preferência a outra, mas uma fase na vida de algumas coisas. O mecanismo básico a ser analisado é a oposição dialética entre as tendências de singularização e homogeneização dos artefatos. Finalmente, reconhecer o caráter de coisa material às imagens obriga a também lhes reconhecer o que dizia Roy Wagner, citado por J.Reginaldo Gonçalves34: os objetos, de certo modo nos inventam. As imagens, portanto, participam da nossa “instituição” como pessoas sociais. Completa Gonçalves:

31 Elizabeth Edwards, “Material beings: objecthood and ethnographic photographs”, Visual Studies, v.17, n.1, London, IVSA, 2002, p.67-75; ver também Elizabeth Edwards & Janice Hart, “Introduction: photographs as objects”, in: E.Edwards & J.Hart., eds., Photographs, objects, histories. On the materiality of images, London, Routledge, 2004, p.1-15. 32 Op.cit., p.68-69. 33 Igor Kopytoff, “The cultural biography of things”, in: Arjun Appadurai, ed., The social life of things, Cambridge: Cambridge University Press, 1986, p.64-94. 34 José Reginaldo Santos Gonçalves, “O templo e o fórum. Reflexões sobre museus, antropologia e cultura’, in Helena B. Bomeny et alii, A invenção do patrimônio, Rio de Janeiro, IPHAN, 1995, p. 55-66.

“Desse modo, mais do que simplesmente expressar nossas identidades pessoais e coletivas, os objetos, na verdade, nos constituem enquanto pessoas; na medida em que aprendemos a usá-los, eles nos inventam. Em outras palavras, sem os objetos não existiríamos; pelo menos não existiríamos enquanto pessoas socialmente constituídas sem eles” (p.61). Estas questões nos conduzem diretamente para o problema seguinte, da “recepção” da imagem visual. O termo tem limitações e ambigüidades que estão fora de propósito discutir aqui. Aponte-se apenas que se trata de tentativas – muito promissoras, acredito, mas ainda problemáticas – de adaptar ao campo visual (e principalmente à História da Arte35) aquilo que já há tempos está mais consolidado no campo da História da Literatura, partindo do chamado grupo de Constança, na Alemanha, em torno de nomes como Jauss ou Iser: trata-se da estética e da psicologia da recepção, eventualmente acopladas à história do gosto e do juízo e utilizando categorias como “estética do efeito”, “horizonte de expectativa”, “fortuna crítica”, etc. Naturalmente, há um trabalho de investigação intra-imagem (o “observador implícito”) e extra-imagem (recorde-se a famosa frase de Duchamp: “são os observadores que fazem os quadros”). Sem dúvida, tal perspectiva coloca problemas específicos para a História, sobretudo no campo documental. Tais problemas, porém, estão longe de poder ser considerados intransponíveis: as pistas na documentação corrente começam a aparecer desde que se tenha consciência da problemática. Talvez haja aqui um percurso semelhante àquele que permitiu a passagem da História do texto à História da leitura – hoje especialidade disciplinar consolidada. Seja como for, parece sensato o conselho dado por Gamboni36, para quem a “teoria” da recepção sugere, antes uma problemática, que uma metodologia. Mas, para tornar o horizonte mais seguro é bom lembrar ainda, com Donald Lowe acima mencionado, que, se não temos por ora uma verdadeira história da percepção, já estamos plenamente conscientes da historicidade das estruturas perceptivas. Estes cuidados são importantes par evitar um risco que ronda os estudos históricos nos quais os documentos visuais passam a ter mais relevância do que os problemas históricos (que eles permitiriam identificar, montar e encaminhar): a fetichização. Esta autonomização da imagem, transformando-a em detentora de suas próprias significações, constitui grave deslocamento das práticas e relações sociais (onde se produzem os sentidos e valores) para as coisas (que são condição de vida social, em geral e, em particular, da socialização e operação desses sentidos e valores). CAUTELA FINAL Até agora, falou-se de dimensão visual, de imagem visual, visualidade, visibilidade, visão. É bom saber que pesquisadores militantes do que já se vem denominando “Antropologia dos sentidos”

35 cf. Wolfgang Kemp, “The work of art and its beholder. The methodology of the Aesthetic of Reception”, in Mark A. Cheetham, Michael Ann Holly & Keith Moxey, eds., The subjects of art history. Historical objects in contemporary perspective, Cambridge, Cambridge University Press, 1998, p. 180-196. 36 Dario Gamboni, “Histoire de l’art et ‘reception’: remarques sur l’état d’une problématique”, Histoire de l’art, v.36, n.336, Paris, oct.1996, p.9-14.

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ou da “sensorialidade” têm tecido pesadas críticas à hegemonia da visão e seu peso epistemológico, desde a noção de “visão de mundo” (de caráter espacial, como se fosse um panorama fixo, por oposição a alternativas que levam em conta dimensões temporais e forças em atuação) até, por exemplo, a contestação da TV como mídia essencialmente visual, salientando não só em muitos casos a predominância de suas características aurais, mas, sobretudo, sua natureza como objeto doméstico. É preciso, pois, levar em conta as sinestesias. Pareceu-me, assim, útil fechar estas reflexões com o esboço de um caso que venho estudando e que comprova a necessidade de inserir a visualidade num quadro sensorial mais amplo. A sociedade grega antiga sempre foi considerada modelarmente como uma “sociedade escópica”, sociedade de hegemonia da visão. Aliás, ao pensamento grego se creditaram as raízes do oculocentrismo no Ocidente moderno e contemporâneo na consideração da visão como “o mais nobre dos sentidos”: Descartes não fazia senão repetir Platão. As pistas para tais inferências são numerosas: a ubiqüidade da imagem e seu caráter público (em santuários, necrópoles, ginásios, estádios, pinacotecas, procissões), a inexistência, praticamente de secrecidades (o culto de mistério mais importante, o de Elêusis, chegou a desenvolver política de ampliação de acesso), a relevância do teatro (palavra originada do verbo theáomai, que significa ver), a visão como ato político numa cultura da performance – que requer publicidade visual da competição (Tucídides fala de discurso visto, espectador do discurso e não de ouvinte), a formulação de teorias óticas e a própria concepção do pensamento como imagem, a fertilidade do vocabulário (ícone, ídolo, idéia, teoria, autopsia e dezenas de outras palavras são de ascendência grega direta), a presença no imaginário e no mito (desde a cegueira de Édipo até o mau-olhado), a filosofia (as teorias da mimese, da fantasia, da ilusão etc.etc.). Tudo levaria a crer que “sociedade escópica” seria uma etiqueta tranqüilamente justificada e definitiva. Contudo, um segundo exame revela inúmeras brechas nessa interpretação. Em primeiro lugar, porque ela assume uma homogeneidade problemática. Basta lembrar que se trata de uma sociedade que foi durante muito tempo exclusivamente de comunicação oral e ao longo de sua história posterior sempre teve na oralidade/auralidade um suporte fundamental (mesmo com a difusão da escrita). Em seguida, “visualidade” não pode ser tratada em monobloco, pois ela está sujeita a variações, combinações, recombinações. Jaa Elsner37, por exemplo, distingue dois tipos de visualidade. O primeiro é o da mimese, da semelhança, do observador à parte do mundo observado e, portanto, das imagens, que operam ilusionisticamente. O segundo é o da visualidade centrada no rito e na imagem sacra e que prevê uma relação direta: o observador penetra no campo em que vive a imagem e a relação se consuma como uma “olhada recíproca” (daí a importância do olho e do olhar das esculturas). Mas, há outras “impurezas”, muito comuns nos mitos. Por exemplo, um mito tão explorado para sustentar a hegemonia da visão na Grécia antiga é o de Narciso e sua imagem reflexa, a paixão nele provocada e sua perdição. Ora, personagem esquecida desse mito é a ninfa Eco (encarnação do tom puro), cuja atuação, porém, é fundamental e se perfaz mediada pela voz – não é preciso dizer que ela não foi ouvida por Narciso. Além disso, os temas do reflexo/reflexão precisam ser lidos na ótica da filosofia e do imaginário, de Euclides (séc.III a.C.), até 37 Jaa Elsner, “Between mimesis and divine power. Visuality in the Graeco-Roman world”. in: Robert S.Nelson, ed., Visuality before and beyond the Renaissance. Seeing as others saw, Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 45-69.

Ptolomeu (séc.II A.D.), que colocavam ênfase no aspecto táctil da visão, verdadeira penetração. Assim, inclusive, é que se concebia o olhar erótico, espécie de verdadeiro toque. Se examinarmos com mais atenção a arquitetura, o urbanismo, as artes visuais arcaicas, ou a geometria, verificaremos a atuação do tato interagindo com a visão. A arquitetura é caso sintomático, pois não se trata de construção de espaço, mas de volumes visuais, como já observou William M. Ivins38, que a considera mais próxima da escultura. No entanto, os esquemas compositivos da arquitetura grega (principalmente a do templo) são de matriz essencialmente táctil, que preserva, na fórmula modular, a personalidade dos componentes. Um templo é uma série de unidades modulares que se articulam analiticamente com rigor, como num jogo de montar. No próprio urbanismo, seja nas cidades, seja nos santuários, há ausência manifesta de uma ordem visual organizada e global. A relação entre as partes não é visual, é também táctil. A figuração arcaica (que teve muitas repercussões) é de caráter ostensivamente analítica. A escultura não contempla relações espaciais, mas a identidade das partes, cuja articulação permanece sempre apreensível. Na Geometria, diversamente do que ocorre no Ocidente moderno, no qual o que conta é como as formas aparecem ao espectador, na Grécia antiga era como as formas podiam ser sentidas, como pelo tato39. Resta concluir que, tanto no caso grego, quanto em qualquer outro, não se pode deixar levar pelas aparências e imaginar existir sempre a hegemonia de um sentido, principalmente nas sociedades complexas. Estudar a dimensão visual da sociedade tem que incluir o lugar da visualidade entre os demais sentidos. ------------------------------------------- BIBLIOGRAFIA CITADA -Burke, Peter, Testemunha ocular. História e imagem. Trad.bras., Bauru, EDUSC, 2004. -Boorstin, Daniel J., The image. A guide to pseudo-events in America. New York: Vintage Books, 1992. -Cardoso, Ciro F.S. & Mauad, Ana Maria, História e imagem: o exemplo da fotografia e do cinema. In: Cardoso, C.F.S. & Vainfas, R., orgs., Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997: p. 401-418. -Clasen, Constance, Worlds of sense. Exploring the senses in History and across cultures. London: Routledge, 1993. -Corbin, Alain, Historien du sensible. Entretiens avec Gilles Heuré. Paris, La Découverte, 2000. -Crary, Jonathan, Techniques of the observer: on vision and modernity in the 19th-century. Cambridge: MIT Press, 1990. -d’Almeida-Topor, Hélène & Sève, Maurice, L’historien et l’image: de l’illustration à la prueve. Actes du Colloque de Metz (1994). Metz: Université de Metz, 1998. -Daumas, Marice, Images et sociétés dans l’Europe moderne. Paris, Armand Collin, 2000.

38 William M. Ivins Jr., Art and geometry. A study of space intuitions, New York, Dover, 1946. 39 Para as questões aqui propostas e outras conexas, ver Goldhill, Simon, “Refracting classical vision: changing cultures of viewing”, in: Teresa Brennan & Martin Jay, eds., Vision in context. Historical and contemporary perspectives on sight, London, Routledge, 1996, p.15-28; Wolfgang Welsch, Undoing aesthetics, London, Sage, 1997; Anne Sauvageot, op.cit., p.45-66.

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