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9 Poemetos I É quando a vida vase É quando como quase. Ou não, quem sabe. II Vim pelo caminho difícil, a linha que nunca termina, a linha bate na pedra, a palavra quebra uma esquina, mínima linha vazia, a linha, uma vida inteira, palavra, palavra minha. III O paulo leminski é um cachorro louco que deve ser morto a pau a pedra a fogo a pique senão é bem capaz o filhadaputa de fazer chover em nosso piquenique IV Manchete Chutes de poeta Não levam perigo à meta V apagar-me diluir-me desmanchar-me até que depois de mim de nós de tudo não reste mais que o charme a chuva vem de cima correm como se viesse atrás

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9 Poemetos

IÉ quando a vida vase É quando como quase. Ou não, quem sabe.

IIVim pelo caminho difícil, a linha que nunca termina, a linha bate na pedra, a palavra quebra uma esquina, mínima linha vazia, a linha, uma vida inteira, palavra, palavra minha.

IIIO paulo leminskié um cachorro loucoque deve ser mortoa pau a pedraa fogo a piquesenão é bem capazo filhadaputade fazer choverem nosso piquenique

IVManchete

Chutes de poetaNão levam perigo à meta

Vapagar-mediluir-medesmanchar-meaté que depoisde mimde nósde tudonão reste maisque o charme

a chuva vem de cimacorremcomo se viesse atrás

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A estrela cadenteme caiu ainda quentena palma da mão

A Lua no cinema

A lua foi ao cinema,passava um filme muito engraçado,a história de uma estrelaque não tinha namorado.

Não tinha porque era apenasuma estrela bem pequena,dessas que, quando apagam,ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,ninguém olhava pra ela,e toda a luz que ela tinhacabia numa janela.

A lua ficou tão tristecom aquela história de amor,que até hoje a lua insiste:– Amanheça, por favor!

a noite - enormetudo dorme

menos teu nome

a palmeira estremecepalmas pra elaque ela merece

a vida variao que valia menospassa a valer mais

quando desvaria

brindo um antigo cadernofoi que eu descobriantigamente eu era eterno

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acabou a farraformigas mascamrestos da cigarra

acordei bemol tudo estava sustenido sol fazia só não fazia sentido

Ai daquelesQue se amaram sem nenhuma brigaAqueles que deixaramQue a mágoa novaVirasse a chaga antiga

Ai daqueles que se amaramSem saber que amar é pão feito em casaE que a pedra só não voaPorque não querNão porque não tem asa.

Ali

alisóalise

se aliceali se vissequanto alice viue não disse se aliali se dissessequanta palavraveio e não desce alibem alidentro da alicesó alicecom aliceali se parece

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amei em cheiomeio amei-omeio não amei-o

Amor bastante

quando eu vi vocêtive uma idéia brilhantefoi como se eu olhassede dentro de um diamantee meu olho ganhassemil faces num só instante

basta um instantee você tem amor bastante

ano novoanos buscandoum ânimo novo

apagar-mediluir-medesmanchar-meaté que depoisde mimde nósde tudonão reste maisque o charme

"arte que te..."

arte que te abriga arte que te habitaarte que te falta arte que te imitaarte que te modela arte que te meditaarte que te mora arte que te muraarte que te todo arte que te partearte que te torto Arte eu te tura

as floressão mesmoingratas a gente colhedepois elas morrem

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sem mais nem menoscomo se entre nósnunca tivessehavido vênus

as folhas tantaso outononem sabe a quantas

Asas e azares

Voar com a asa ferida?Abram alas quando eu falo.Que mais foi que fiz na vida?Fiz, pequeno, quando o tempoestava todo ao meu ladoe o que se chama passado,passatempo, pesadelo,só me existia nos livros.Fiz, depois, dono de mim,quando tive que escolherentre um abismo, o começo,e essa história sem fim.Asa ferida, asa ferida,meu espaço, meu herói.A asa arde. Voar, isso não dói.

avesde ramoem ramomeu pensamentode rimaem rimaerra

até umaque dizte amo

bateu na patentebatatatem gente

Bem no fundo

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No fundo, no fundo, bem lá no fundo, a gente gostaria de ver nossos problemas resolvidos por decreto a partir desta data, aquela mágoa sem remédio é considerada nula e sobre ela - silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso, maldito seja que olhas pra trás, lá pra trás não há nada, e nada mais mas problemas não se resolvem, problemas têm família grande, e aos domingos saem todos a passear o problema, sua senhora e outros pequenos probleminhas.

cabelos que me caemem cada ummil anos de haikai

Carta pluma

a uma carta plumasó se responde

com alguma resposta nenhumaalgo assim como se a onda

não acabasse em espumaassim algo como se amar

fosse mais do que a bruma

uma coisa assim complexacomo se um dia de chuva

fosse uma sombrinha abertacomo se, ai, como se,

de quantos sese faz essa história

que se chama eu e você

casa com cachorro brabomeu anjo da guardaabana o rabo

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cinco bares, dez conhaquesatravesso são paulodormindo dentrode um taxi

Confiratudo que respira

conspira

cortinas de seda o vento entra

sem pedir licença

das coisasque eu fiz a metrotodos saberãoquantos quilômetrossãoaquelasem centímetrossentimentos mínimosímpetos infinitos

não?

Datilografando este textoler se lê nos dedos

não nos olhosque os olhos são mais dadosa segredos

de tudo um pouco fica um pouco vai

quem me dera ter tua pica

meu pai

deusalgum

induogum

vishnuprecisa

da tua prece

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tua pressapessoa

só teu pulsoacelera

você padecepadecer

te resta

tudoum belo dia

desaparece

Doce de porra

Doce doce de iguaria raraChute no saco soco na bocaJato de porra na cara

Crime de merda, pudim de pus e suorGole de sangue doce no início amargo no fim

Todas as dores claras

Dois loucos no bairro

dois loucos no bairro

um passa os diaschutando postes para ver se acendem

o outro as noitesapagando palavrascontra um papel branco

todo bairro tem um loucoque o bairro trata bemsó falta mais um pouco

pra eu ser tratado também

Donna mi priegas

se amor é trocaou entrega loucadiscutem os sábiosentre os pequenose os grandes lábios

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no primeiro casoonde começa o acasoe onde acaba o propósitose tudo o que fazemosé menos que amormas ainda não é ódio?

a tese segundaevapora em perguntaque entrega é tão loucaque toda espera é pouca?qual dos cinco mil sentidos

está livre de mal-entendidos?

El dia en que me quieras

Entre os Krause e os Gouveia, as diferenças começaram quando o mais jovem dos Krause (ou foi dos Gouveia?) comprou um aparelho de som.

Desse dia em diante, os Gouveia (ou eram os Krause?) não souberam mais o que era sossego.

Nessa época, minha avó contava, Curitiba, já famosa pela escuridão das suas noites, produzia o melhor silêncio do Brasil. Um pai de família passava anos sem dizer coisa alguma, e ninguém estranhava. Havia professores, muitos deles célebres, que davam, em silêncio, aulas de francês, de latim, de alemão, de polonês, de italiano, de hebraico, de árabe. E, em silêncio, educaram gerações.

Não era de admirar que o aparelho de som comprado pelo jovem Gouveia (ou era Krause?) fosse execrado como uma praga que se abatia sobre aquela rua Duque de Caxias, até então tranqüila como um assobio de passarinho distraído.

- Quando a cidade era mais calma.- O bairro não é mais de respeito.- Caso de policia.Por cima da cerca, fazendo sabão de potassa, Krauses, Gouveias e vizinhas.Quando o luxuriante chuchuzeiro dos Krause (ou era o dos Gouveia?) começou a

secar, alguém, por acaso, associou o evento com as valsas e tangos que explodiram na casa vizinha?

Um mês depois de muito som, o chuchuzeiro estava completamente seco.Uma semana depois, morria a bisavó dos Gouveia (ou não?), uma senhora quase

centenária, dura como couro e surda como uma porta.Seria um absurdo imaginar que a velha tinha morrido por causa do som. E foi o

que eles fizeram.A gravidade da situação exigia uma medida enérgica.Os Krause (ou os Gouveia?) se reuniram em assembléia familiar, só os machos de

mais de quinze anos.- Isto não pode continuar.A mais velha voz ressoou no salão, ecoando entre circunspectos pais de família e

adolescentes que pareciam estar com bicho-carpinteiro.- Procurar as autoridades.- Invadir e quebrar tudo.- Poupar as mulheres e crianças.- Incendiar o casarão.A mais velha voz:- Nossa família passou despercebida da penúria para a abundância e agora vocês

querem estragar tudo com um escândalo que vai se ouvir léguas daqui, e vai durar mil

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anos?Olhou a descendência, e sentenciou:- Vamos combater com as mesmas armas.Foi assim que o jovem Krause (quem sabe Gouveia) pegou o trem e desceu a

serra em direção a Paranaguá para comprar um aparelho de som.

2Mas nem todos os Gouveia (ou eram os Krause?) detestavam o som do vizinho

com ódio tão implacável.A filha mais velha dos Krause, por exemplo, costumava ficar olhando a lua,

quando o som começava. Mesmo que não tivesse lua.A mãe percebeu logo.- Nem pensar.Mas ela pensava. Como é que seria uma pessoa que ouvia aquelas coisas,

àquelas horas, naquela altura? Como é que ele seria?- Bem que a avó avisou. A gente não devia ter vindo.Talvez fosse baixinho, e por isso ouvia o som tão alto, um baixinho bonitinho,

como um filho querido. Quem sabe fosse alto, por isso deixava o som naquela altura. Só sei que não podia ser uma pessoa comum aquele que ouvia

el dia en que me quieras

como se fosse o dono da rua, o rei da vida e senhor do mundo.- Essa gente não tem educação.Como seria? Louro, alto, baixo, moreno, esbelto, gordinho, forte, frágil?- Espere só o seu irmão voltar.

3Em Paranaguá, o irmão mais velho ia na importadora, comprava a máquina e

embarcava serra acima, de volta para Curitiba.- Eles estão com os dias contados.- Dizem que é agulha inglesa, o som cobre uma quadra.- Isso não pode continuar- Como é que ele será?- Isso não pode continuar.- El dia en que me quieras.- A gente não devia ter vindo.- Bem que a avó avisou.- Combater com as mesmas armas.- Uma loucura a gente se encontrar assim.- No trem das sete.- Alguém pode ver a gente.

In “Gozo fabuloso”

en la lucha de clasestodas las armas son buenaspiedrasnoches

poemas

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enchantagem

de tanto não fazer nadaacabo de ser culpado de tudo

esperanças, chegueitarde demais como uma lágrima

de tanto fazer tudoparecer perfeito

você pode ficar loucoou para todos os efeitossuspeitode ser verbo sem sujeito

pense um poucobeba bastantedepois me conte direito

que aconteça o contráriocuste o que custardesejaquem quer que sejatem calendário de tristezascelebrar

tanto evitar o inevitávelin vino veritasme pareceverdade

o pau na vidao vinagrevinho suave

pense e te pareçasenão eu te invento por toda a eternidade

Erra uma vez

nunca cometo o mesmo erroduas vezes

já cometo duas trêsquatro cinco seis

até esse erro aprenderque só o erro tem vez

Escrevo. E pronto

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Escrevo. E prontoEscrevo porque preciso,preciso porque estou tonto.Ninguém tem nada com isso.Escrevo porque amanhece,e as estrelas lá no céu,lembram letras no papel,quando o poema me anoitece.A aranha tece teias.O peixe beija e morde o que vê.

Eu escrevo apenas

guerra sou euguerra é vocêguerra é de quemde guerra for capaz

guerra é assuntoimportante demaispara ser deixadona mão dos generais

Hai

Eis que nasce completoe, ao morrer, morre germe,o desejo, analfabeto,de saber como reger-me ah, saber como me ajeitopara que eu seja quem fui,eis o que nasce perfeitoe, ao crescer, diminui.

Iceberg

Uma poesia ártica,claro, é isso que eu desejo.Uma prática pálida,três versos de gelo.Uma frase-superfícieonde vida-frase algumanão seja mais possível.Frase, não, Nenhuma.Uma lira nula,reduzida ao puro mínimo,um piscar do espírito,a única coisa única. Mas falo. E, ao falar, provoco

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nuvens de equívocos(ou enxame de monólogos?)Sim, inverno, estamos vivos.

inverno na marra inferno não escutar a cigarra

isso sim

de mim se dependervocê não vai esquecero esfriar e o aquecertodo o talvezalgum aquele tem que serque aconteceentre quem se veste e quem tecequando anoitecer

você não vai esquecerah não nunca nemo que vai a que vemeste meu... bem...este nosso tão prazernenhuma nota deste amanhecer

você não vai esquecerse eu não tivesse pavorde mais dizer o que nem dáia dizer táteu esquecedorvocê não esqueceráo que quer que havidohaja ou for

jardim da minha amigatodo mundo felizaté a formiga

Kai

Mínimo templopara um deus pequeno,aqui vos guarda,em vez da dor que peno,meu extremo anjo de vanguarda.

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De que máscarase gaba sua lástima,de que vagase vangloria sua história,saiba quem saiba.

A mim me bastaa sombra que se deixa,o corpo que se afasta.

lembrem de mimcomo de umque ouvia a chuvacomo quem assiste missacomo quem hesita, mestiça,entre a pressa e a preguiça

Ler um poemadá sorte

principalmentese for

algumque

fale da mortecomo

quemfale

deamor

longo o caminhoaté uma florsó de espinho

Manchete

Chutes de poetaNão levam perigo à meta

meiodia três coreseu disse ventoe caíram todas as flores

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Merda e ouro

Merda é veneno. No entanto, não há nada que seja mais bonito que uma bela cagada. Cagam ricos, cagam pobres, cagam reis e cagam fadas. Não há merda que se compare à bosta da pessoa amada.

minha alma breve breveo elemento mais leveda tabela de mendeleiev

moinho de versosmovido a ventoem noites de boêmia

vai vir o diaquando tudo que eu digaseja poesia

motim de mim

XX anos de xis,XX anos de xerox,XX anos de xadrez,

não busquei o sucesso,não busquei o fracasso,

busquei o acaso,esse deus que eu desfaço

na ruasem resistir

me chamamtorno a existir

nada me demoveainda vou ser o paidos irmãos karamazov

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nadando num mar de gentedeixei lá atrásmeu passo à frente

nem toda horaé obranem toda obraé primaalgumas são mãesoutras irmãsalgumasclima

noite alta lua baixapergunte ao sapoo que ele coaxa

nu como um gregoouço um músico negroe me desagrego

nuvens brancaspassamem brancas nuvens

(Curitiba, PR, 1944 - 1989)(Transcrito de Caprichos e há relaxos, p. 86)

o bicho alfabetotem vinte e três patasou quase

por onde ele passanascem palavras

e frases

com frasesse fazem asas

palavraso vento leve

o bicho alfabetopassa

fica o que não se escreve

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O grito do gato preto

edgar poe"the black cat"trad: p leminski1978

mal o revérbero de meus golpesafunda no silêncio,quando me respondevoz vinda de dentro da tumba! -grito, a princípio,curto e entrecortado,soluço de criança,e, então, crescendo, depressa,em longo, alto e sempre berro,anômalo, inumano,dos pés à cabeça - um uivo,um guincho de lamento,meio de horror, meio de triunfo,tal como só do inferno,uníssono das gargantas dos danados em agoniae dos demônios exultando na danação!

(in revista Código nº 4, Brasil, 1980)

O inseto no papel insisteTraço um círculo em volta

Só o círculo existe

O paulo leminskié um cachorro loucoque deve ser mortoa pau a pedraa fogo a piquesenão é bem capazo filho d putade fazer chover

em nosso piquenique

O que passou, passou

Antigamente, se morria1907, digamos, aquilo simé que era morrer.

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Morria gente todo dia,e morria com muito prazer,já que todo mundo sabiaque o Juízo, afinal, viria,e todo mundo ia renascer.Morria-se praticamente de tudo.De doença, de parto, de tosse.E ainda se morria de amor,como se amar morte fosse.Pra morrer, bastava um susto,um lenço no vento, um suspiro e pronto,lá se ia nosso defuntopara a terra dos pés juntos.Dia de anos, casamento, batizado,morrer era um tipo de festa,uma das coisas da vida,como ser ou não ser convidado.O escândalo era de praxe.Mas os danos eram pequenos.Descansou. Partiu. Deus o tenha.Sempre alguém tinha uma fraseque deixava aquilo mais ou menos.Tinha coisas que matavam na certa.Pepino com leite, vento encanado,

praga de velha e amor mal curado.Tinha coisas que têm que morrer,tinha coisas que têm que matar.A honra, a terra e o sanguemandou muita gente praquele lugar.Que mais podia um velho fazer,nos idos de 1916,a não ser pegar pneumonia,e virar fotografia?Ninguém vivia pra sempre.Afinal, a vida é um upa.Não deu pra ir mais além.Quem mandou não ser devotode Santo Inácio de Acapulco,Menino Jesus de Praga?O diabo anda solto.Aqui se faz, aqui se paga.Almoçou e fez a barba,tomou banho e foi no vento.Agora, vamos ao testamento.Hoje, a morte está difícil.Tem recursos, tem asilos, tem remédios.Agora, a morte tem limites.E, em caso de necessidade,a ciência da eternidadeinventou a criônica.Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica.

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objetodo meu mais desesperado desejonão seja aquilopor quem ardo e não vejo

seja a estrela que me beijaoriente que me rejaazul amor beleza

faça qualquer coisamas pelo amor de deusou de nós doisseja

ouro para um tigre

oro tristea poesiadisse o poetaque disseo ouro dos tigres

oro oro orotrês tristes tigresguardando seu ouro ouro ourotris tris triste

augusto! tyger! tyger!burning brightin the forests of Brazilian nightmeu tio o tigre o alegre tigreTORÁ! TORÁ! TORÁ!

torá, em japonês, tigre. torá torá torá, a senha para o ataque a pearl harbour.

(in revista Código nº 8, Brasil, 1983)

Parem

paremeu confessosou poeta cada manhã que nasceme nasceuma rosa na face paremeu confesso

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sou poeta só meu amor é meu deus

eu sou o seu profeta

ParisoNovayorquizomoscoviteio sem sair do barsó não levanto e vou emboraporque tem países

que eu nem chego a madagascar

passa e voltaa cada goleuma revolta

pelos caminhos que andoum dia vai sersó não sei quando

Plena pausa

Lugar onde se fazo que já foi feito,o branco da página,soma de todos os textos,foi-se o tempoquando, escrevendo,era precisouma folha isenta

Nenhuma páginajamais foi limpa.Mesmo a mais Saara,ártica, significa.Nunca houve isso,uma página em branco.No fundo, todas gritam,

pálidas de tanto.

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Poeta itinerante e peregrino,pelas ruas do mundo,

arrasto o meu destinoMundo? Uma aldeia de nome tupi,

um monstro com nome de santo,Curitiba, São Paulo,

com vocês me deito,com algo me levanto.

Vocês aí paradosa mesma vida de sempre,

como vos invejo e vos desprezo,voz de nós, voz dos meus avós,

prazos, prêmios, praças, preços,chove sobre mim

a chuva que eu mereço.Invoco forças poderosas.

Quando vou podertransformar minhas ruínas em rosas ?

Pra que cara feia?Na vida

Ninguém paga meia.

primeiro frio do anofui felizse não me engano

Quando chove

quando chove,eu chovo,faz sol,eu faço,de noiteanoiteço,tem deus,eu rezo,não tem,esqueço,chove de novo,de novo, chovo,assobio no vento,daqui me vejo,lá vou eu,gesto no movimento

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que pode ser aquilo, lonjura, no azul, tranqüila? se nuvem, por que perdura? montanha, como vacila?

Que tudo passepasse a noitepasse a pestepasse o verãopasse o invernopasse a guerrapasse a paz

passe o que nascepasse o que vempasse o que fazpasse o que faz-seque tudo passee passe muito bem.

que tudo se foda,disse ela,

e se fodeu toda

quemquer

fazerbonito

fazfeito

fazquem

fazisto

(in Revista Ímã, ano II, nº III. Vitória, ES, 1986, p. 7)

Se

senemfor

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terra

setransfor

mar

soprando esse bambusó tiroo que lhe deu o vento

Surra

Viver é podreaquele que em mim quis ser limpoaquilo não pode

Viver sujasuja a roupa sujaa louça suja bocasuja sobretudoa maldita dita cujaque não para de dizerque só para pra dizerviver é podre

o ciúme suja o amorcomo o amor de ódio se suja

fuja fuja fujaque lá vem a vidafuja fuja fujaque lá vem a sujalimpa limpa limpanem vem que lá vema dita cuja a dita sujaa dita

(in O Carioca nº 4, p. 25, 1997 - letra inédita musicada pelo compositor Edvaldo Santana)

tarde de ventoaté as árvoresquerem vir pra dentro

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tatami-o ou deite-o

de colchão em colchãochego à conclusãomeu lar é no chão

Tenho andado fraco

tenho andado fraco

levanto a mãoé uma mão de macaco

tenho andado sólembrando que sou pó

tenho andado tantodiabo querendo ser santo

tenho andado cheioo copo pelo meio

tenho andado sem pai

yo no creo en caminospero que los hay

hay

tudo claroainda não era o diaera apenas o raio

tudo dito,nada feito,fito e deito

Um bom poema

um bom poemaleva anoscinco jogando bola,mais cinco estudando sânscrito,seis carregando pedra,

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nove namorando a vizinha,sete levando porrada,quatro andando sozinho,três mudando de cidade,dez trocando de assunto,uma eternidade, eu e você,

caminhando junto

Um homem com uma dor

um homem com uma doré muito mais elegantecaminha assim de ladocomo se chegasse atrasado

andasse mais adiante

velhinha na sombra do poste

não tem quem não goste

(obs.: caminhando sob um sol de 35 graus, ele viu uma velhinha esperando o seu ônibus no meio da calçada, se protegendo na sinuosa sombra de um

poste)

velozcomo a própria vozelo e dueloentre eu e elavirando e revirando nós

Ver

veré dorouvir

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é dorteré dorperderé dor

só doernão é dordelícia

de experimentador

Viver de noite me fez senhor do fogo.A vocês eu deixo o sono.O sonho, não.

Esse eu mesmo carrego

With the man

aquino oestetodo homem tem um preçouma cabeça a prêmioíndio bom é índio mortosem empregoreferênciaou endereçotenho toda a liberdadepra traçar meu enredo

nasci numa cidade pequenacheia de buracos de balasporres de uísquegrandes como o grand cayontiroteios noturnosentre pistoleiros brilhantescomo o ouro da califórniame segue uma estrela

no peito do xerife de denver