8.música e história nos anos 60 e 70

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Música e História nos anos 60 e 70 (*) Autora - Janice Theodoro [email protected] [Retorna para o CEVEH] [Artigos] [Exercícios] [Cronologias] [Bibliografia] [Aulas] [Documentos] RESUMO: Os acontecimentos neste conturbado período, como o aumento do poderio atômico, a corrida armamentista, levam a uma nova consciência na qual os beatles liberam as angústias históricas através da música que constituiu-se no sustentáculo básico de sua mensagem. Lenon depois dos anos 70. 1964. Os Beatles se lançam na trilha do rock. Uma certa ironia invade a história imperial dos ingleses. Sucesso pela Europa, Hong Kong, Austrália, Nova Zelândia... Estávamos diante de um momento de ruptura das estruturas musicais? No dia 26 de outubro de 1968, em meio a inúmeras manifestações anti institucionais, os Beatles recebiam da rainha da Inglaterra medalha de honra. Selavam de início, a 1

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Page 1: 8.Música e História nos anos 60 e 70

Música e História nos anos 60 e 70 (*)

Autora - Janice Theodoro [email protected]

 

[Retorna para o CEVEH] [Artigos] [Exercícios] [Cronologias] [Bibliografia] [Aulas]  

[Documentos]

RESUMO: Os acontecimentos neste conturbado período, como o aumento do poderio atômico, a corrida armamentista, levam a uma nova consciência na qual os beatles liberam as angústias históricas através da música que constituiu-se no sustentáculo básico de sua mensagem. Lenon depois dos anos 70.

1964. Os Beatles se lançam na trilha do rock. Uma certa ironia invade a história imperial dos ingleses. Sucesso pela Europa, Hong Kong, Austrália, Nova Zelândia...

Estávamos diante de um momento de ruptura das estruturas musicais? No dia 26 de outubro de 1968, em meio a inúmeras manifestações anti institucionais, os Beatles recebiam da rainha da Inglaterra medalha de honra. Selavam de início, a grande movimentação cultural dos anos 60, da qual foram expoentes.

Quanto às estruturas musicais, mantinham-se bastante fiéis às referências convencionais. Americanos, europeus, australianos, brasileiros, etc., em larga escala, estavam "aptos" a incorporar, por reconhecer com grande facilidade, as músicas produzidas pelo conjunto. As melodias seguiam rumos bem antigos e comportados. Iniciavam, desenvolviam e encontravam conclusão numa seqüência bastante familiar que convidava à repetição. Também era difícil reconhecer, de início, uma nova fase musical. A força aparecia na intensidade

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do som e na forma em que era emitido, caracterizando como apoteose da paz os diversos movimentos da música popular contemporânea. Sem chave de ouro, incluíam em suas composições os acordes básicos da música tonal. Ironizavam, percorrendo caminhos já conhecidos, fazendo arranjos tradicionais e, deixando sempre lugar para uma certa ingenuidade.

(1) A letra e a música, o novo e o velho se estruturavam de forma a expressar a modernidade. Sem medo, nem respeito por ela, instalaram-se no mundo das aparências, da superfície (sem serem, contudo, superficiais), abandonando a busca das profundezas, das essências. O existencialismo ficava para trás. Os movimentos culturais da década de 60 procuravam enfrentar a forma, a expressão cênica, sem querer impor a ela conteúdos ou significações profundas.

Observemos as ambigüidades que constituíram este momento de grande internacionalização da produção cultural:

A harmonia entre as frases não representava um desafio, portanto não estávamos diante de uma revolução musical. Um compositor que estivesse em busca de um projeto musical inovador não reconheceria o repertório dos anos 60 como revolucionário.

O mercado já havia incorporado produtos musicais bastantes sofisticados (Jazz por exemplo), e estes se tornavam indicadores estimulantes dos novos rumos que se poderia tomar para o sucesso. Os Beatles respondem a este desafio escapando à lógica que dava continuidade aos trabalhos na área musical. Foram vender o que parecia invendável, ingênuo.

Brincaram com a "perfeição" não a constituindo como tema básico para a produção de seus discos. Afastaram-se da virtu (necessária para o domínio do instrumento) e aproximaram-se da inocência (tão desacreditada por aqueles que na década anterior haviam consumido largamente James Dean); e, venderam...

Após a separação dos Beatles nos anos 70, Lennon continua o trabalho musical que havia iniciado junto a eles delimitando melhor suas preocupações. Constrói uma narrativa na qual evita a polêmica, o desafio e a conquista. Escolhe como bandeira o amor. Um avanço para os ingleses que, como nos lembra Hobsbawn, encontraram enormes dificuldades em viver sem grandes gestos e condutas imperiais. Afinal, os anos da expansão inglesa foram difíceis para amplos setores da população mas, até hoje, lamentam-se pela perda deste poder e força.

(2)Estes referenciais históricos estão presentes nos versos de uma forma encantada. Procura-se evitar um sentido oculto, pedagógico. Negam-se as idéias que envolvem sentido, direção, trajetória, continuidade, conquista. Assim, Lennon rompe as hierarquias, brinca com a rainha e procura cortar as raízes. Nesta busca, deixa a imperial Londres e parte para a internacional New

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York. Encanta por que alivia os súditos da real carga histórica tornando-os cidadãos iguais a outros espalhados pelo mundo.

Feliz Natal (A Guerra Acabou) é um instantâneo bastante significativo:

Um muito Feliz Natal E um Feliz Ano Novo Esperamos que seja um ano bom Sem medos E então é Natal Para os fracos e os fortes Para os ricos e os pobres O mundo é tão errado Mas Feliz Natal Para brancos e pretos Para amarelos e vermelhos Que parem todos os conflitos (. . .) (Feliz Natal)

As frases repetem a mensagem de Natal na forma mais singela. Assim procuram através da repetição de uma imagem já conhecida, libertar da carga histórica aqueles que a reproduzem, embalando o fraseado em melodias usuais.

"IMAGINE": A MAGIA DA História

Em "Imagine" percebemos claramente que se quer negar uma racionalidade que explica o nosso mundo substituindo-a por conteúdos mágicos. Busca-se o vazio, o nada como se ele pudesse compor um novo sonho:

"Imagine não haver paraíso É fácil você tentar" (Imagine)

O desafio do trabalho, do esforço, perde sentido. Qualquer um podia se iniciar neste gesto musical. Buscava-se o sensível como se o eterno descomprometimento construísse o culto da "criação" e da "liberdade":

"Nenhum inferno embaixo de nós Acima de nós apenas o céu" (Imagine)

A referência à temática cristã (repleta de céus e infernos) vai ser reproduzida de forma a aliviar os conflitos, e não a acentuá-los. Cada vez mais, era difícil digerir a violência na história dos anos 60 e 70. Os avanços tecnológicos, aliados à destruição e não ao bem estar, aprofundavam as dúvidas, as incertezas, os medos. Produzíamos e reproduzíamos, em meio a diversos níveis de consciência, culpas e desculpas. O antídoto às violências (Guerra do Vietnã, entre outras) foi a produção e a valorização da imagem do "homem" simples, alegre, sensível e bom.

(3)A fórmula nos faz recordar a narrativa que precedeu a tirania do relato bíblico. A estrutura do texto lembra as descrições de Homero onde o importante

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era fruir a cena sem aprisionar o ouvinte no desfecho final da história. Em "Imagine" notamos um cuidado para se desfazer as idéias de pecado, culpa, finalismo e verdade, características do pensamento cristão. Criava uma metáfora, típica do século XX, para ironizar a relação contínua entre passado e futuro. Desmanchavam-se as fantasias de progresso.

A EXPRESSÃO DO TEMPO: ALEGRIA

"Não é preciso um relógio para perder tempo Oh não, oh não .. . ( . . .)" (Tudo que fizer você passar a noite)

Os versos de Lennon freqüentemente nos lembram, por exemplo, o sabor do viver e a concepção de tempo contida na Odisséia de Homero. Vale a pena lembrar como Auerbach descreve com prazer e graça, os instantes de alegria de Ulisses, Penélope e Euricléia:

(4)"A alegria pela existência sensível é tudo para eles e a sua mais alta intenção é apresentar-nos esta alegria. Entre lutas e paixões, aventuras e perigos mostram-nos caçadas e banquetes, palácios e choupanas de pastores, competições e lavatórios - para que observemos os heróis na sua maneira bem própria de viver e, com isso, nos alegremos ao vê-los gozando o seu presente, saboroso, bem inserido em costumes, paisagens e necessidades quotidianas. E eles nos encantam e cativam de tal maneira que realmente compartilhamos o seu viver. Enquanto ouvimos ou lemos a sua estória, nos é absolutamente indiferente que saibamos que tudo é só lenda, que tudo é "mentira"

A alegria surge do abandono do ato pedagógico que Lennon tão bem expressa. Em seu disco, "New York City", percebemos do que ele quer se livrar, e, do que muitos o querem, sem o saber: imagens, imagens... Lennon quer nos mostrar que somos prisioneiros de representações. E, estas impedem que desfrutemos do real.

Apareceu um pregador tentando ser professor Cantando, Deus é uma pista falsa tocada devagar NYC...NYC...NYC... O que é que há, Nova Iorque O que é que há, Nova Iorque Bem, pegamos a balsa de Staten Islana Jogando prá lá e prá cá Tocamos no "Fillmore" e no "Apollo" em nome da Liberdade Tentamos nos livrar da nossa imagem Dando uma volta pelo "Village" de bicicleta. (New York City)

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Os textos evitam dar lições de vida, não carregam um sentido oculto, não pretendem relatar verdades históricas e, portanto, escapam do absoluto. Desta forma nos fazem "esquecer" a desagradável tradição culpada, a qual incorporamos através dos textos bíblicos.

(5) A poesia, especialmente dos discos de Lennon, depois de 1971 ("Imagine" foi gravada em julho de 1971 e lançado nos Estados Unidos em 09/09/1971 e, na Inglaterra, em 08/10/1971) procura romper com uma noção moderna de tempo marcada pelo relógio e pelo trabalho. A ruptura com o cotidiano burguês torna-se o argumento central de sua narrativa. Ironiza-se a idéia de que é necessário limitar o presente para se obter um futuro tranqüilo e seguro.

"Imagine tanta gente Vivendo para o dia de hoje". (Imagine)

Com efeito, as letras, o estilo dos Beatles e de Lennon expressaram renovação, modernidade. Um certo olhar irônico para o convencional. Contudo, o mistério e o encantamento constituíram-se através da música. Foi ela que permitiu a história produzir os mesmos reflexos e as mesmas respostas em nível internacional. Difundia-se e homogeneizava-se, cada vez mais, os movimentos da contracultura. Países ricos e países pobres cantavam a mesma música independentemente de se compreender o que se dizia ao entoá-las.    

A GUITARRA MÁGICA

O baixo, a guitarra e a bateria mudaram pouco e enfeitiçaram muito. A magia deste momento estava contida numa forma conhecida de se manter o equilíbrio entre música e letra fazendo sobressair o papel do conjunto musical como o portador "messiânico" de uma mensagem.

A estrutura harmônica do primeiro verso de "Imagine", por exemplo, garante na memória de seus reprodutores uma progressão habitual. Cria-se um confronto entre verso e música. A letra seduz e transforma o tempo apenas em presente; a música reproduz o passado e nos identifica com ele. Lennon fragmenta o tempo no verso, mas nos embala com uma orquestração que nos envolve pelo estilo antigo. O baixo e a bateria obedecem a partitura construindo uma nova expressão cênica do conjunto musical. Estes elementos em conjunto se compõem de acordo com uma harmonia j  conhecida pelo mundo moderno. Analisando a estrutura musical percebemos claramente que não houve ruptura. Então, como compreender o espantoso sucesso, a repetição internacionalizada e internalizada por milhões e milhões de pessoas? De fato, Lennon e o conjunto foram produzidos. Mas outros também o foram e o resultado nem sempre foi o mesmo. A qualidade raramente é razão de sucesso. Muitas vezes um autor, por romper os códigos das estruturas mentais vigentes, encontra dificuldades para divulgar uma nova linguagem musical. No caso de John Lennon vale a pena lembrar que não se trata de uma obra musical que

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ultrapassa as estruturas mentais do período. Nem tampouco seu trabalho se encaminha em direção da persistência, da perfeição ou do virtuosismo. Quais foram, então, os elementos da extensa difusão e reprodução desta obra? Alguns motivos podemos perceber. Referem-se ao interior da estrutura musical repleta de significados históricos. Até porque as letras cantadas em inglês não podiam ser compreendidas mundialmente. E, apesar disto, a guitarra ia fazendo mágicas em inglês com a História.    

OLHAR, MIRAR, AD-MIRAR, O QUE, QUEM?

O que se passava no final dos anos 60 e início dos anos 70? As consciências estavam em crise. O vazio existencial encontrava suas raízes numa sociedade que crescia em seus potenciais bélicos, requintando e aperfeiçoando seus profissionais em direção a mais alta qualidade. O lançamento em 1958 do primeiro satélite espacial norte-americano e a seqüente corrida pela perfeição armamentista desembocava na intervenção norte-americana no Vietnã em 1962. A margem para os sonhos, aparentemente, se reduzia. O serviço militar e a idéia de nação transformavam-se, mais uma vez, em pesadelo. O projeto humanista, para o qual o desenvolvimento da tecnologia deveria estar a serviço, desmistificava-se dolorosamente. Tornava-se cada vez mais evidente que os "avanços da ciência" beneficiavam poucos indivíduos. Os outros sobreviviam ou não sem poder recorrer a ela. Que ciência era esta? Houve uma ruptura no sistema ideológico?

Liberais, democratas, republicanos, por um instante, se olhavam como personagens históricas e não conseguiam mais se "ad-mirar". Tornava-se muito difícil vender a idéia de qualidade e de perfeição, sabendo que a escalada do sistema capitalista, naquela conjuntura, impunha a destruição de milhares de seres humanos. Era difícil para os jovens digerirem a sociedade que reproduziam sem entrar em crise. Como negá-la sem tocar em qualquer um dos elementos que se constituía em potencial destrutivo? ã medida em que aumentava o poderio atômico cada um, a seu modo, sentia-se responsável, culpado por ser produtor desta cultura. Tratava-se de retornar à natureza, à valorização dos equilíbrios ecológicos, em busca do que se havia perdido na corrida pela perfeição e alta precisão. Desejava-se apenas a paz e o amor, sentimentos ingênuos, infantis, inadequados à fúria que a conquista do universo exigia. Realmente, tornava-se cada vez mais difícil para os jovens conviver com a história que produziam e eram produtos. Cada um a seu modo, se sentia um pouco culpado pelos fluidos atômicos que sucessivamente rondavam as consciências. Neste quadro, toda a produção que se vinculava ao culto do capitalismo (desde as mágicas tecnológicas que levavam o homem à Lua até a produção de venenos que cientificamente destruíam a flora e o homem no Vietnã) foi negada. A poesia nas músicas dos Beatles, e em especial nas de Lennon, redimia a "grande culpa" que a história, a seu modo, havia legado aos jovens. Contudo, não foram os versos que liberaram as angústias históricas, valorizando um certo perfil "improdutivo", "ineficiente", "desajeitado". A música

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constituiu-se no sustentáculo básico para que, de início, a mensagem pudesse encontrar uma ressonância entre os ouvintes. O que seria este sustentáculo? Vale a pena observar que, na música "Imagine" por exemplo, a melodia foi escrita em dó maior. E, dentro deste acorde, incorporou-se as notas estáveis (do, mi, sol, do). Decididamente não se trata de uma opção nova. A escolha de um trajeto musical j  bastante conhecido e reconhecido favoreceu a memorização, a reprodução, e a fixação. O vínculo entre a letra e música se estruturou de tal forma a equilibrar o que conseguíamos ver, o que deveríamos repetir para não ver. Um estranho equilíbrio que desfoca na história, o absurdo do matar, para aqueles que queriam apenas viver em paz. Afinal, o que podíamos mirar na História? a escala de Dó Maior?    

"Imagine não haver países Não é difícil não Nada para matar ou pelo que morrer E nenhuma religião também Imagine toda a gente Vivendo a vida em paz" (Imagine)    

REPETIÇÃO EM ESCALA DE DÓ MAIOR

A repetição é favorecida por uma estrutura melódica bastante conhecida e mundialmente reproduzida. A estabilidade e a segurança que nos sugeriu a escala de Dó Maior, sem nenhum acidente (!), é ligeiramente questionada pelo uso de uma nona (Ré), que de passagem produz uma leve instabilidade. Contudo, sem escapar ao campo tonal de dó. Uma ligeira modernidade. Fuga da repetição mais simples, e um indicador da possibilidade de fixação.

A música, ao contrário do que se pode imaginar, não se lança ao delírio das instabilidades de que é palco a história dos anos 70. Ela expressa uma recusa ao desequilíbrio como se pode notar na segunda frase musical cujo movimento que vai de Si a L  encontra continuidade na terça do acorde seguinte. As estruturas políticas e econômicas expressam, através da guerra do Vietnã, crise de toda a nossa sociedade. A política interna norte-americana no Vietnã e Camboja destroem tudo o que pode, a intervenção do governo inglês na Irlanda mostra novamente a violência de um mundo imperial, a posse de Alejandro Lanusse na Argentina cristaliza uma triste cena latino-americana, o governo militar de Emílio Garrastazu Médici estabelece a censura prévia em livros e periódicos, e é responsável pelo decreto-lei que concede ao presidente da República o direito de editar decretos secretos!... A crise dos projetos culturais se acentua nas grandes metrópoles. A política perde o seu poder de redenção dos problemas da sociedade contemporânea e, enquanto isso, se realiza a primeira transmissão de televisão a cores no Brasil (11/4/72)... O branco se

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difunde cada vez mais. É a bandeira de paz que, cada um a seu modo hasteia na louça branca da casa, na parede, nos móveis, na tela branca do cinema, num instante mágico do "Submarino Amarelo". Esta harmonia, esta sonoridade tão conhecida faz com que o passado retorne e encontre grande repercussão entre o público que se permite senti-lo, mas não suporta compreendê-lo. Na música, a passagem da primeira frase musical para a segunda (através de um grupo cromático) realiza-se por meio de uma velha ligação. Pela repetição de alguns trajetos observamos a permanência do passado. Desde os autores clássicos, este artifício serve para se mudar de tom (L /L  sustenido/Si/Dó). Sob os sólidos e conhecidos alicerces da música tonal só a letra se radicaliza em direção ao anticapitalismo.

"Imagine não haver propriedade Me pergunto se você consegue Nenhuma necessidade de ganância ou força Uma irmandade de homens Imagine toda a gente Compartilhando o mundo todo" (Imagine)

A lógica DESAFINADA

A ingenuidade musical se transforma em um irônico desafio ao sistema capitalista. O aperfeiçoamento constante da tecnologia criava padrões para a avaliação da qualidade musical e dos limites impostos pelo mercado.

Os Beatles desafinaram esta relação lógica. Elaboraram um produto anticapitalista no sentido de não se vincularem, de início, às regras da produção. Mas foram consumidos largamente dentro de padrões empresariais, após um esforço para escapar às coordenadas racionalizadoras da produção. Lennon, mais particularmente, elaborou um produto anti-capitalista no sentido de não utilizar como referencial a perfeição. Ao mesmo tempo, evitou a negação radical dos padrões musicais vigentes. Se trabalhasse com a idéia de antítese - revolução - reforçaria a presença do interlocutor - sociedade capitalista - com a qual pretendia negar o diálogo. Buscavam um mundo onde a guerra permanecesse no esquecimento e se produzisse a paz e o amor. Esta utopia pode ser descrita também em linguagem musical. O acompanhamento de "Imagine" expressa com bastante nitidez este trajeto, através dos acordes de Dó Maior (Dó, Mi, Sol, Dó) e Fá Maior (Fá, Lá, Dó, Fá). De Dó no acompanhamento, chegamos a Sol (quinta), reproduzindo um espaço de extrema estabilidade. Esta escolha, que não representa nenhuma afronta à linguagem musical, encontra ressonância no narrador que mergulha, sem embaraço, num mundo idílico:    

"Você pode me achar um sonhador Mas não sou o único Espero que um dia você se junte a nós

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E o mundo vai viver como uma coisa só" (Imagine)

O desafio na obra de Lennon se constitui pelo reverso. Não nega a música tonal; ao contrário, a incorpora, utilizando um intervalo de quinta (evitado no jazz) que freqüentemente é tido como o mais convencional. Este ajustamento da estrutura melódica dentro de fórmulas bastante conhecidas caminha ao lado de avanços tecnológicos da produção musical. E, juntos, acabam por entoar liricamente um mundo comunitário.

Ao mesmo tempo era difícil neste anos abrir o jornal.

O CETICISMO DO MERCADO

O ceticismo e a perfeição já vinham há muito se alinhando como grandes referências no mercado. Aprendemos, graças à "ciência" e à tecnologia, discriminar bem no processo de produção os produtos bons e vendáveis, e os maus, também vendáveis.

O resultado foi um profundo ceticismo, uma crise existencial... Este ceticismo, típico do século XX, cresceu em meio a esta enorme ironia do mercado que, freqüentemente, soube transformar um produto razoável, de fácil consumo, em lucro, enquanto garantiu ao de alta qualidade um vazio de investimentos. Esta equação deixava também de lado os ingênuos (que acreditavam em paz e amor), os puros, os loucos, os marginais, enfim, aqueles que estavam fora ou à beira da racionalidade da produção. Os Beatles, de início, brincaram, ironizaram e desafiaram o mercado. A brincadeira dos anos 60, envolvendo mudanças no elenco do conjunto, foi empresariada por Brian Epstein. Coube a ele não apenas lançar "love me Do" nas paradas de sucesso, mas produzir um discurso (imagem dos artistas, letra e música), até então marginal. Acompanhou este processo que gerou o movimento "hippie". A propaganda não os poupou, como a nada poupa, incorporando-os. A modernidade da música, do verso, do herói reconstituía-se no limiar do sistema.    

O CULTO DOS ANTI-HERÓIS

Já estávamos distantes de um filme com Casablanca onde o herói (Humphrey Bogart) em plena guerra lutava, com perfeição apaixonada, por reconstituir a ordem democrática. Mas continuávamos, ainda, diante de heróis que perdiam seu "conteúdo" épico para ganhar um perfil l írico. A década de 60 favoreceu a troca de papéis deslocando o célebre herói romântico e revolucionário de seu antigo e majestoso lugar do centro do sistema para a margem. Da periferia do capitalismo olhava-se com um certo desdém para o seu cerne.

As histórias dos manicômios, dos hospícios, das prisões, das mitologias e de tudo o que era marginal passou a ser o instrumento básico para se antever os delírios da ordem estabelecida. Abandonava-se, ao longo deste trajeto musical,

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as obrigações de questionar, de negar e de propor um projeto futuro que definisse o novo como algo anti-tonal ou atonal. Esta postura anti-heróica foi incorporada através de diferentes argumentos. Os céticos, por exemplo, a reconstruíram através da desrazão. Os humanistas cristalizaram as imagens de paz e amor. E tanto uns quanto outros encontraram, em menor ou maior escala, condições para a reprodução acelerada de uma música que mantinha seu antigo perfil. O século XX se expressava através do culto aos anti-heróis. Alguns reclamavam da inconsciência desta "geração"; outros da ciência. Muita racionalidade, muita tecnologia, muita precisão, embora tivessem em lugar honroso dentro do pensamento humanista não eram avanços que podiam ser usufruídos por todos os homens. Um mundo cheio de equívocos mostrava a impossibilidade de se acreditar no "progresso". A ciência se apresentava como socialmente inciente. Os potenciais atômicos consubstanciavam a cultura do absurdo, permitindo que a vida pudesse ser destruída diversas vezes. Destruição cuja repetição é tão lógica que só pode acontecer em sonhos. Como poderemos nos matar depois de mortos? O potencial atômico disponível permite a nossa destruição inúmeras vezes. Através da tecnologia a sociedade capitalista materializou máquinas e outros engenhos científicos que há muito pouco tempo estavam relegados aos prazeres da ficção. Fartura e desperdício são freqüentes nesta sociedade onde muitos não sobrevivem por falta de alimentos. Esta estranha combinação se tornava cada vez mais visível. Era difícil nos anos sessenta se ver como agente produtor destas fantasias: sucessivos inventos tornavam o homem capaz de criar a vida em provetas milagrosas. Estas foram difundidas como mitos de vida por aqueles que a perdiam por não ter meios para usufruir das maravilhas desta ciência. A guerra do Vietnã não permitia ainda à tecnologia se apresentar com todo o seu encanto, embora ela já tivesse feito seu grande aliado: a guitarra elétrica. Com o fim da guerra proliferou o esquecimento. A tecnologia transformou todo o cenário musical, aumentando a intensidade da luz e do som. O grande espetáculo seduzia as massas por não exigir compromissos e por parodiar a própria contemplação aos anti-heróis da nova cena histórica. Como este homem chamado Jonh Lennon se defrontou com a história? Lennon foi um dos grandes atores dos anos 60 e 70. (6)Após inúmeras apresentações, procurou retirar-se de cena, colocando no palco apenas a sua música, sua produção. New York City foi o lugar escolhido para se "livrar da imagem" como se a própria cidade pudesse corroer os mitos. Iniciara o longo rito de passagem com o disco Some time In New York City, onde Nixon e Mao apareciam dançando nus na capa. Desnudavam-se os heróis, e os homens se descobriam por entre as frestas numa "era de incertezas". De todos os desafios, Jonh Lennon escolheu o maior: sacrificar a personagem mitificada pela história. Destruir mitos é muito perigoso porque de fato nos obriga a romper com um passado que nos disciplina, nos organiza e nos integra. E a música nos embala, nos acaricia, nos consola.

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Foi por temer este confronto que, a 8 de dezembro de 1980, mataram o homem para ver renascer o mito, a cena, o espetáculo. Preferia o homem.

1) Este texto serviu de base para um debate realizado no Departamento de História - USP - em outubro de 1981 sobre História e Música nos anos 60 e 70. Participaram do evento Lis de Carvalho (pianista) e GO-GO (músico que trabalho estes anos com o Dick Farney). Agradeço a colaboração de ambos no debate permitindo ao público uma compreensão mais clara dos dilemas da música popular contemporânea. A Jaffet agradeço também por me permitir aproximar História e Música ensinando sempre a beleza das cordas. 2) Paulo Sérgio Rouanet. Édipo e o Anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1981. 3) Eric Auerbach. Mimesis. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971, pp. 1-20. 4) Idem, p.10. 5) Jacques Le Goff. Para um Novo Conceito de Idade Média. Tempo Trabalho e Cultura no Ocidente. Lisboa, Editorial Estampa, p.61. 6) Roland Barthes. Mitologias. São Paulo, Difel, 1975, pp.131-175.

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