800_t2_a35 neogotico 19&20

17

Upload: lmarcellog

Post on 17-Aug-2015

269 views

Category:

Documents


47 download

DESCRIPTION

Arquitetura Neogótica

TRANSCRIPT

1 2 2010 Realizao da Publicao UFRRJ CEFET-Nova Friburgo Organizao Arthur Valle Camila Dazzi Projeto Grfico Camila Dazzi dzaine.net Editorao dzaine.net Editoras EDUR-UFRRJDezenoveVinte Correio eletrnico [email protected] Meio eletrnico A presente publicao rene os textos de comunicaes apresentadas de forma mais sucinta no II Colquio Nacional de Estudos sobre Arte Brasileira do Sculo XIX. Os textos aqui contidos no refletem necessariamente a opinio ou a concordncia dos organizadores, sendo o contedo e a veracidade dos mesmos de inteira e exclusiva responsabilidade deseus autores, inclusive quanto aos direitos autorais de terceiros. Oitocentos-ArteBrasileiradoImprioRepblica-Tomo2./OrganizaoArthurValle,CamilaDazzi.- Rio de Janeiro: EDUR-UFRRJ/DezenoveVinte, 2010. 1 v. ISBN 978-85-85720-95-7 1.ArtesVisuaisnoBrasil.2.SculoXIX.3.HistriadaArte.I.Valle,Arthur.II.Dazzi,Camila.III. UniversidadeFederalRuraldoRiodeJaneiro.IV.CentroFederaldeEducaoTecnolgicaCelsoSuckowda Fonseca.UnidadeDescentralizadadeNovaFriburgo.V.ColquioNacionaldeEstudossobreArteBrasileirado Sculo XIX. CDD 709 437 q Algumas Consideraes sobre o Neogtico no Brasil Maria Lucia Bressan Pinheiro s madasquestesmaisimportantesparaquemestudaosculoXIXdizrespeitoao conceito de estilo e ao fascnio por ele exercido sobre a arte e a arquitetura oitocentistas. Estajseriarazosuficienteparaseuestudo,eoquejustificaaescolhadotemadestetexto-o Neogtico no Brasil. Para alm da classificao rgida de formas associadas a determinados perodos histricosquecaracterizaoconceitonavisooitocentista,serprivilegiadaaquiumaperspectiva mais ampla, capaz de evidenciar as inmeras dimenses da questo. Inicialmente,precisoelencarmesmorapidamente-asmultifacetadasquestes relacionadas ao conhecido apreo do sculo XIX para com manifestaes artsticas do passado as quais,porsuavez,spodemserentendidasnocontextodaDuplarevoluodequefala Hobsbawm, em referncia Revoluo Industrial e Revoluo Francesa1. Podemos assim citar: -aindustrializaoeurbanizaoaceleradasque caracterizam o perodo, e o surgimento de novos programas para atender necessidades de massa;- as inovaes tecnolgicas e as novas possibilidades construtivas; - os avanos arqueolgicos e as novas possibilidades de descoberta da produo material do passadodadecorrentesdestacando,nocasodaarquitetura,asescavaesemPompiae Herculanum; -odelineamentodascinciashumanasemgeral,edahistriaemparticular,enquanto disciplinas em moldes cientficos; - a emergncia de noes estticas alternativas hegemonia do classicismo, como o sublime e o pitoresco, e a nfase da decorrente no contexto fsico e histrico das sociedades; -arelaoentreestasnoeseoromantismo,tambmligadoaosurgimentodaidiade nacionalidade enquanto aglutinadora de grupos sociais com caractersticas culturais comuns. Profa. Dra. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo.1 HOBSBAWM, Eric. Era das Revolues: 1789-1848. Lisboa: Presena, 1982. 438 Dessecontextocomplexoemultifacetado2,cumpremencionaraindaosseguintesaspectos, maisdiretamenteligadosemergnciadoneogticopropriamentedito,isto,otemaoraem questo:

- o recrudescimento do papel da religio (catlica e protestante)3 -aemergnciadeoutrotematipicamenteoitocentista:asprimeiraspreocupaescoma preservaodopatrimniohistrico-tantoemumvisideolgicodebuscadaidentidade nacional, como pela necessidade concreta de restaurar os edifcios medievais o que tambm levou a um enfrentamento das questes tcnico-construtivas da arquitetura medieval. Outraquestoaserdestacadadesdelogoque,dopontodevistaaquiadotado,a compreensodequalquerumdosestiloscaractersticosdosculoXIXneoclssico,neogtico, neoromnico,etc-devedar-se dentro do quadro cultural mais amplo do perodo, no podendo ser examinado de forma isolada, at porque sua coexistncia talvez a mais irrefutvel caracterstica da culturaoitocentista,adespeitodosinmerosesforos em estabelecer precedncias e periodizaes. Nessesentido,emborasejausualaperiodizaodoNeogticoeuropeuentre1830e1850, evidentesuacoexistnciacomoutrosestilosmuitoantes,etambmmuitodepoisdestasduas dcadas.Assim,adotamos o ponto de vista expresso por Patetta, que considera o Neogtico como tambm os demais neos - como uma manifestao do Ecletismo oitocentista, aqui entendido como o complexo de experincias arquitetnicas que vai de 1750 at o fim do sculo XIX isto , da crise 2Oqueaconteceufoiqueosarquitetosoitocentistasdescobriramahistriada arte e a liberdade artstica ao mesmo tempo. Tendo identificado estilos que eram dominantes em sculos passados, eles acreditavam que existia um vnculo orgnicoentreestiloesociedade;raciocinandoporanalogia,elesesperavamqueumestiloapropriadoparaosculo XIXemergisse,semsedarcontadequeasnovascondiesnasquaisaarquiteturaeraentoproduzidaestavam destruindoosprpriosmecanismosque,nossculosanteriores,haviamgarantidoestacoernciaartsticaarbitrria. Nopassado,oprprioestiloseimpunhaaosartistas;hoje,osartistasdevemredescobriroestilo,notouViollet-le-Duc com perspiccia. MIGNOT, Claude.Architecture of the 19th Century in Europe. New York: Rizzoli, 1984, p 10. 3 Na Inglaterra, um dos primeiros a externar o ponto de vista de que o Gtico era a verdadeira arquitetura nacional foi oantiqurioJohnCarter(1748-1817),emTheAncientArchitectureofEngland(London,1795-1814).Aomesmo tempo, Carter externou outra idia que iria ser ainda mais influente no futuro:a noo de um vnculo especfico entre o estilo gtico e a arquitetura religiosa. Como ele escreveu no The Builders Magazine (1774-8), Nada pode ser mais caractersticoemelhoradaptadoparaumlugardedevoodoqueaquelehorrvelestilodeconstruo[gtico]...A arquiteturagregaeromanadeveficarconfinadaamanseseoutrasestruturasdeconfortoeprazer.Assimfoi anunciadopelaprimeiravezoprincpioquesetornariaumadasidiasmaisfundamentaisdaarquiteturadosculo XIX;nomeadamente,ousodediferentesestilosdependendodotipodeedifciooquepoderiaserresumidamente chamado de ecletismo tipolgico. Idem, ibidem, p. 48. 439 doclassicismo,colocadapelarevoluoindustrial,atasorigensdoMovimentoModerno4este, marco de referncia da historiografia do perodo, como se sabe. Emoutraspalavras,aperspectivaaquiadotadaadequeaemergnciadoMovimento Modernoeuropeu,noinciodosculoXX,resultoudeumlongoprocessodeprofunda transformaosocial,iniciadonofinaldosculoXVIII,atravessandotodoosculoXIX,e manifestoemtendnciasarquitetnicasformalmentediversificadas,masqueseguiamumadireo comum: a gradativa superao da, aparentemente, inconcilivel ciso entre o racionalismo iluminista e o pensamento romntico este ltimo, ele prprio uma primeira reao cultural crise advinda da dupla revoluo europia. Desse ponto de vista, mais do que uma cronologia coincidente, avulta a imbricao intrnseca entre Romantismo e Modernismo.Nessa viso, a ascenso do iderio romntico esteve intrinsecamente associada ao colapso do sistemaculturalbaseadonoClassicismo5.Defato,prennciosdoRomantismopodemser identificadosnasnoesestticasdosublimeedopitoresco6,que,precedendodepelomenosum sculooromantismopropriamentedito,surgemapartirdeestudossobreanaturezahumana,sua psicologiaesuassensaes,conduzindorevalorizaodaimaginaoedosentimento.Aobra emblemtica dessa tendncia The Pleasures of Imagination (1712), de John Addison, que, por sua vez,inspira-senasformulaestericasdoempirismoingls,deBerkeleyedeLocke.Addison afirma que a beleza das ordens clssicas no est em suas abstratas propores matemticas, e sim na riqueza de associaes histrico-literrias e tico-religiosas que relacionamos a tais formas7.Htambmcertoconsensosobreopapeldapinturadepaisagemquealcanougrande popularizao a partir do sculo XVIII na emergncia do Romantismo, do qual uma das primeiras manifestaesjustamenteojardimingls,oujardimpitoresco,entendidonoscomoo cenrio fsico, rural ou urbano, onde a obra arquitetnica se insere, mas tambm como seu contexto histrico8. 4PATETTA,Luciano.LArchitetturadellEcletismo: Fonti, Teorie, Modeli 1750-1900. Milano: Gabriele Mazzota, 1975, p. 7. 5Prennciosdestecolapsopodemser identificados j no sculo XVII, em questionamentos eminentemente racionais, dematrizfrancesa,arespeitodoconceitoabsolutodebelezaimperantenoClassicismoparticularmenteas colocaesdePerraultsobreabelezaabsolutaeabelezaarbitrria.VerRYKWERT,Joseph.TheFirstModerns. Cambridge: The MIT Press, 1983.6 Robert Adam, considerado um dos mais famosos arquitetos neoclssicos ingleses, era um entusiasta do pitoresco, que empregouemvriasmansessuburbanaslondrinas,comoKenwood.EmsuaobraWorksinArchitecture,de1774, Adam discorreu sobre o emprego do pitoresco na arquitetura: Movimento deve expressar a subida e descida, o avano eorecesso,entreoutrasvariaesdeformanasdiferentespartesdoedifcio,deformaaacentuaropitorescoda composio.In: Kenwood The Iveagh Bequest. London: English Heritage, 2009, p. 26. 7 PATETTA, Luciano. Historia de la Arquitectura - Antologia Critica. Madrid: Celeste Ediciones, 1997, p. 308. 8Taisidiassoexplicitadasjem1709peloarquitetoinglsJohnVanbrughautordealgumasdaspoucasobras inglesas consideradas barrocas -, que, durante a elaborao de seu projeto para o Palcio de Blenheim, manifestou-se a favor da preservao das runas da Manso Woodstock pr-existentes no prprio parque de Blenheim, dizendo que os 440 Esboa-se, assim, uma nfase tipicamente inglesa no meio-ambiente9, em oposio ao sentido decompletudeeunidadedoBeloclssico,queprescindedaintervenodosujeito.Poderes evocativos,narrativosouliterriossoatribudosarquiteturacomopartedealgomais,como um incidentehistricoounapaisagem,contribuindoparaagnesedanoomodernadequeo reconhecimento de uma obra de arte como tal no depende de seus atributos estticos intrnsecos, e sim da predisposio do sujeito o fruidor da obra - em complexa interao com o objeto, isto , a prpria obra. Nesta profunda transformao da relao entre sujeito e objeto, assume grande importncia a noodeempatia,diferentedacompreensoracionaldomundonaturaldoIluminismo,ejuma manifestaodosubjetivismoromntico,queprimapelaatenoaoparticulareaoespecficode cada ambiente, cultural ou natural.Assim,ocontextoculturaloitocentistasuscitouumalargamentodaprprianoode arquiteturaantesrestritaaoscnonesclssicos10quepassouaincorporarestilosatento ignorados,identificadoscomomanifestaesarquitetnicasgenuinamentecoletivas,materializao deumavontadeantessocialdoquepessoal,deumaexistnciaconjunta,deacordocomoiderio romntico11.EntreestesestilosestoNeogtico,amaislongevaearticuladasistematizaode elementos formais e culturais elaborada no campo da arquitetura no perodo.De fato, o paulatino colapso do sistema cultural clssico, a que j nos referimos, seguido, se nomesmoacompanhado,dagradativaemergnciadeumgostopelaarquiteturamedieval, consideradaumaarquiteturaderazesgenuinamentenacionais,ecomcaractersticaspitorescas- flexibilidade,anti-regularidadeeorganicidade-muitoapreciadasquelaaltura.Assim,vemosa

>.edifcios de tempos distantes inspiram reflexes mais vivas e agradveis sobre as pessoas que viveram neles; sobre ascoisasnotveisquetiveramlugarneles,ouasocasiesextraordinriasdasuaconstruo[doqueahistriapode fazer,semasuaajuda].In:MIDDLETON,Robin&WATKIN,David.Neoclassicaland19thCentury Architecture. Milan/New York: Electa/Rizzoli, 1993, p. 35. 9 Sublinhe-se, aqui, que a transformao e degradao acelerada da natureza que uma das primeiras e mais evidentes conseqnciasdaRevoluoIndustrialcontribuiparaexplicaroporqudaemergnciadetaisidiasnaInglaterra aindaqueelastenhamlogomigradoparaaAlemanha,ondealcanaramsuaprimeiraconfiguraoterica.Ver BORNHEIM,Gerd.FilosofiadoRomantismo.In:GUINSBURG,J.ORomantismo.SoPaulo:Perspectiva,1978, pp.75-111. 10OClassicismosecaracterizavaporesseachatamentodosujeito,queabstraiasingularidadedoindivduo[eque] refletiu-senadisciplinacannicadogostoclssico[...],refratriadominnciadaexperinciasingularindividual subjetiva,transgressoradauniformidadedarazo,eavessa,nodomnioartsticoafirmaodaoriginalidade pessoaleaoentusiasmo,estadosespiritualmenteafins(NUNES,Benedito.AVisoRomntica.In:GUINSBURG, op. cit. p. 57). 11 Arquitetos de slida formao clssica deixaram-se rapidamente seduzir por idias romnticas, como Karl Friedrich Schinkel, que empreendeu o Grand Tour tradicional etapa de aperfeioamento profissional - levando consigo escritos deFichte.In:BETTHAUSEN,Peter.KarlFriedrichSchinkel:auniversalman.In:SNODIN,Michael(org.).Karl Friedrich Schinkel: a universal man. London: Yale University Press / The Victoria and Albert Museum, 1991, p.4. 441 construo,naInglaterra, de Strawberry Hill (1735), a residncia do escritor Horace Walpole, com pretenses arqueolgicas de uma retomada da arquitetura medieval inglesa, logo seguida por Fonthill Abbey(1796),projetadaporJamesWyattparaoescritorWilliamBeckford.Oneogticosurge assim ligado ao movimento romntico na literatura, o que ocorrer um pouco mais tarde tambm na Frana, com Chateaubriand e Victor Hugo.NaFrana,veremosaascensomenosbvia,masnomenossignificativa,doestilogtico porsuasqualidadesestruturais,muitovalorizadaspelopensamentoracionalistaligadoao Iluminismo. Assim, temos a elaborao de projetos como a Capela de Versalhes, de Jules Hardouin MansarteRobert de Cotte, e o Panteo (Igreja de Santa Genoveva), de Jacques Germain Soufflot, como exemplos dessa sutil penetrao do estilo numa arquitetura de formas clssicas. De um ponto de vista mais pragmtico, importante sublinhar que todas estas caractersticas dogticootornavammuitoadequadoparaosnovosprogramasenovasescalasdeedificao demandadospelaburguesiaemascenso,quetambmexigiaoconfortopropiciadopelosavanos tcnicos do perodo. dentro de tal quadro, portanto, que se verifica a ascenso do estilo neogtico no panorama culturaleuropeu-que,deacordocomopontode vista aqui adotado, constitua uma das mltiplas facesdaquelecontroversomomentodahistriadaarquiteturaqueseconvencionouchamarde ecletismo.Cabedestacarque,adespeitodopreconceitomodernocontraopanoramadiversificadodo ecletismoeuropeu,geralmenteencaradocomoumpasticheabsolutamentealeatrio,possvel distinguir alguns parmetros claros a nortear a produo arquitetnica do perodo.Como diz Mignot12, no se pode permitir que esta diversidade, que reflete a abrangncia do museu arquitetnico imaginrio dos arquitetos oitocentistas e de seus clientes, venha a enganar-nos. Acoexistnciadeestilosdiferentesconfusasomenteparans,queno sabemos mais como ler o cdigo.Ajustaposiodesconcertantedevriosestiloseraumdosmeios de expresso disponveis aos arquitetos do sculo XIX.Procuraremos, ento, redescobrir este cdigo, a partir de alguns casos especficos, extraindo elementostantoparaacompreensodossignificadosqueaopopeloNeogticopodiaconter, comoparacorroborarnossaabordagemsobreoEcletismocomoumnicoelongoperodo,j mencionada. 12 MIGNOT, op. cit. p. 100 442 E,noBrasil,quaissoasquestes subjacentes adoo do mais estrangeiro dos estilos- conforme a expresso cunhada por Mrio de Andrade13 em referncia ao Neogtico?Antes de tudo, importante mencionar o conhecido o vis europeizante da cultura brasileira no sculo XIX, no contexto da ampliao exponencial das trocas materiais e simblicas entre Brasil e Europa. Assim,nocausasurpresaaadoodoestiloneogticoparaanovasededaTipografia Nacional,noRiodeJaneiro(jdemolida)[Figura1].Oquesim,chamaaateno,aatualidade dosargumentosinvocadosporseuautor,oEng.AntniodePaulaFreitas,parajustificarsuas decisesprojetuais14.Emmemorialpublicadoem1868naRevistadoInstitutoPolytechnico Brasileiro, Paula Freitas detalhou o programa geral do estabelecimento, e os processos tipogrficos quealiseriamempregados.Sobreaplanta,dissequeoplanodoedifciofoiconcebidodeacordo comoprecedenteprograma,eonossoprimeirocuidado, projetando-o, foi atender o mais possvel scondieshiginicas,compatveiscomoseudestino,esconveninciasdecadaumdesuas sees. Especialdestaquefoiconferidoaosaspectosrelacionadosiluminao,ventilaoe fiscalizaodoprocessodetrabalho,equacionadospeladivisodoedifcioemduaspartes diferentes, com caractersticas formais tambm diferentes uma [parte] para a administrao geral, outraparaasoficinas,armaznsedepsitos:daarazodetermosadotadoparaestaumestilo simples, comum, e para aquela um estilo elegante, sem prejuzo dos fins, a que o edifcio se destina. Este carter est impresso ao edifcio de forma que simples vista se o reconhece, como explicou o prprio Paula Freitas. Assim,aspectoseminentementetcnicoscomooequacionamentodoprogramaeo confortotcnico-mesclam-secomquestesdedecoro:odiferentetratamentodefachadas dispensadosduaspartesdoedifcioum,maiselaborado,paraapartenobredoedifcio,outro maissimplesparaapartefabrilpropriamentedita.Estargidahierarquiadefachadasuma caractersticaprojetualoriundadoClassicismo,quefoiincorporadaaoscnoneseclticosporsua adequaonecessidadedeeconomianaconstruopoisnoeranecessrioornamentartodoo edifcio, apenas aquela parte mais visvel. Quanto ao estilo gtico, em sua verso Tudor, adotado na edificao, Paula Freitas recorreu a associaes histricas e simblicas para justific-lo; diz que 13 Arte Religiosa no Brasil em Minas Gerais. So Paulo, Revista do Brasil, no. 54, jun. 1920, p.109.14ConformepublicadonaRevistadoInstitutoPolytechnicoBrasileiro.RiodeJaneiro:TomoII,jul.de1868,pp. 37-41. 443 Emumadesuasevoluescriou-senaInglaterraoestiloTudor,dondeoriginou-seoElizabeth, com certos caractersticos que lhe valeram o nome especial de estilo gtico ingls. Foi esse estilo que escolhemos para o corpo principal do edifcio da Tipografia Nacional. A circunstncia de ser o estilo gtico o que dominava na poca em que tiveram lugar as primitivas evolues da arte tipogrfica, e a de ser a Inglaterra o pas essencialmente industrial, a que aquela arte tanto deve, justificam essa escolha. Emcontinuao,PaulaFreitasprocuroudemonstrarplenoconhecimentodaevoluodo estilo gtico, em suas diversas fases, afirmandoque em todo o perodo, em que se operaram essas evolues da arte tipogrfica, dominou em arquitetura o estilo gtico, no no seu estado primordial, quevigoroudosculoXIIaosculoXIV,produzindotantosmonumentosnotveis,dondeainda hojetranspiraomritodosarquitetoseartistasdaquelapoca;masnoseuestadosecundrioe tercirio, desenvolvidos, aquele do sculo XIV ao sculo XV, e o ltimo deste ao meado do sculo XVI.Talconhecimentoconstituaumdosatributosprpriosdaprofissodearquitetonaquele momento ainda que, perante nossos olhos atuais, seja evidente a incipincia de seus conhecimentos arespeito.Noentanto,possvelqueeleestivesseperfeitamenteatualizadoemrelaosfontes ento disponveis. PaulaFreitaspreferiaasprimeirasmanifestaesgticasnasquaisidentificavacertas condies de elegncia, e felizes propores considerando mesmo que, em seus ltimos estados, o estilo caminhava para a decadncia. No entanto, em seu entender, algumas das caractersticas que assumiu no sculo XVI trouxeram-lhe algumas vantagens, tais como a de apropri-lo s condies gerais, deixando de constituir quase exclusivamente a arquitetura das igrejas. Comosev,estoexpressosnesteartigoalgunsconceitoscaractersticosdaarquitetura eclticaeuropia,comoaanalogiahistrico-simblicaeahierarquiadefachadas,bemcomoa distinoentreoquearquitetura(emerecetratamentoestilstico),eoquenoarquiteturaa parte mais utilitria do edifcio. Tambm esto presentes aspectos tcnicos de salubridade e questes pragmticas de barateamento da construo. OutroexemploasercomentadooGabinetePortugusdeLeituradoRiodeJaneiro, projetodoarquitetoRafaeldeCastromuitoelogiadonaimprensadoperodo[Figura2].No nmero de maro de 1888 da Revista dos Construtores 15, encontra-se artigo prdigo em elogios ao seu autor, no qual se destaca que [...] no seria coisa fcil para qualquer arquiteto empregar o estilo manuelino, como o seria quanto aos demais estilos, por exemplo o ogival do renascimento, etc. onde se encontram dezenas de construes importantes e cujos caracteres essenciais[...] so conhecidos. 15 Revista dos Constructores. Rio de Janeiro: No. 2, Mar. 1888, pp. 14-15. 444 Quasenadase tem escrito sobre o estilo manuelino, e seu estudo resume-se ao mosteiro de Belm, que [...] incompleto (grifo nosso).Comosev,aoenfatizaraescassezdeedifciosmanuelinosapartirdosquaisestudaras caractersticasdoestilo,oartigoreforaaimportnciadaerudioestilsticacomoatribuiodos arquitetos.Nestapassagem,importanteapontaraindaacomparativamentesupostafacilidadede conhecimentodoestiloogivaldorenascimentoquepareceserogticoperpendicular,isto, nadamaisnadamenosqueoestilogticoinglsemsuaterceirafase,conformeaperiodizaode Paula Freitas citada anteriormente.Emcontinuao,oartigoafirmaquequemconheceamatriapoderavaliardas dificuldadescomquelutariaosr.ArquitetoRafaeldeCastro,para,inspirando-senovelho monumento de Belm, tirar da a grande concepo artstica, que uma verdadeira pgina potica - a fachada do Gabinete Portugus de Leitura do Rio de Janeiro. interessanteverificarqueoconceitodeestiloexplicitadonesteartigovaialmdousode ornamentaoapropriada,poismenciona-setambmaimportnciadascaractersticasessenciais domanuelinoaindaqueelasnosejamindicadas:Nobastariaaornamentaoparadefiniro estilo manuelino, espalhasse o arquiteto as cruzes de Cristo e os emblemas de D. Manuel, as cordas danavegao;seosseuscaracteresessenciaisnofossemcompreendidosetraduzidos,oedifcio no poderia ser considerado, como deve-o ser, um belo monumento manuelino. Curiosamente, no mencionada a mais evidente justificativa para a opo estilstica adotada: abviavinculao entre o estilo portugus da poca do descobrimento e o patrocinador da obra, a colnia portuguesa. O que mais parece chamar a ateno do articulista, como critrio para avaliao do mrito do projeto, o grau de raridade dos modelos estilsticos disponveis o que nos reporta questodosavanosnahistriadaarquiteturarealizadosnoperodo,ecujoconhecimentoera primordial para os arquitetos, como mencionado. Por outro lado, ao contrrio do que vimos no memorial de Paula Freitas, no h meno aos aspectostcnicosdoprojeto,bastanteavanadosparaoBrasilpoca:trata-seprovavelmentedo primeiro edifcio de estrutura de ferro com cobertura de vidro construdo no Rio de Janeiro. oportuno mencionar que o Gabinete Portugus de Leitura constava da listagem de Obras importantesdeConstruoCivilemExecuonoRiodeJaneiro,publicadanaRevistados Construtores, em fevereiro de 188616, na qual predominavam edifcios de cunho classicizante, como aFaculdadedeMedicina,naPraiadaSaudade(atualCia.dePesquisadeRecursosMinerais 16 Revista dos Constructores. Rio de Janeiro: No. 1, fev. 1886, p. 13. 445 CPRM, na Urca), do j mencionado engenheiro Antnio de Paula Freitas17; o Instituto dos Meninos Cegos, a Caixa Econmica e a Praa do Comrcio (atual Centro Cultural Banco do Brasil- CCBB) todosprojetadosporFranciscoJosBethencourtdaSilva[Figura3].Noentanto,almdo Gabinete, figurava nesta listagem outro exemplar emblemtico do Neogtico brasileiro: a Repartio Fiscal da Alfndega, de Antnio Del Vecchio, construdo na Ilha dos Ratos (a famosa Ilha Fiscal). A Ilha Fiscal mereceu artigo especfico publicado alguns meses mais tarde na mesma Revista dosConstrutores18,segundooqualoqueoraseestexecutandosersemdvidaumdos monumentosdemais importncia entre ns, quer se o encare pelo modo por que est sendo feita a caprichosaeesmeradaconstruo,querdebaixodopontodevistadesuaarquiteturaexteriorou interior,emqueoilustradoengenheirobrasileirofoiclssiconaadoodoestiloogivaldas construes dos sculos XIII e XIV [Figura 4]. Sublinhemos aqui a expresso aparentemente paradoxal clssico na adoo do estilo ogival, que, mais uma vez, enfatiza a erudio estilstica do autor do projeto. Mais tarde, o edifcio foi comentado tambm na Revista do Club de Engenharia 19, em artigo muitosemelhanteaodaRevistadosConstrutores;apsadescriominuciosadoprojeto,o articulista diz que o edifcio hdeimpressionaragradavelmente,pelasuabelaarquitetura,aoestrangeiroque,aportandos nossas plagas, poder admirar, no meio das magnificncias naturais da nossa esplndida baa, um mimo de arte de um arquiteto brasileiro. Tendoemvistaofimaquesedestinaeomeioondeelevadoeserobservado,sabiamente escolheu o Dr. Del Vecchio para sua construo o estilo gtico, por ser de todos, aquele que sobre as melhores condies de estabilidade possui uma aparncia mais esguia, mais leve e elegante. Comosev,valorizam-seaquiaspectospitorescosdeadequaodoestiloneogtico paisagem.Trata-se de uma linha de argumentao tambm utilizada bem mais tarde, na dcada de 1920, porLucioCosta,comentandooconventodoCaraa,noqualpassaraumatemporada20.Lucio lamentavaentoasubstituiodabelacapeladoirmoLoureno,comarcadasvoltaesineira sobre a porta por uma igreja neogtica - felizmente sbria, segundo ele e cuja flecha esguia se enquadra bem na paisagem. 17 A listagem se completava com outro edifcio projetado por Paula Freitas: o Lazaretoda Ilha Grande, edifcio muito simples e sem estilo definido.18 Revista dos Constructores. Rio de Janeiro: No. 5, Jun. 1886, pp. 62-63. 19 Revista do Club de Engenharia. Rio de Janeiro: Vol. VI, jun. 1887, pp. 5-7. 20 COSTA, Lucio. Registro de uma Vivncia. So Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 16. 446 Oquesedestacaaquisoosvalorespitorescosdoestiloneogtico;mas,apartirdas palavras de Lucio, chegamos a um tema muito explorado no Brasil nas primeiras dcadas dosculo XX:aeleiodaarquiteturagticacomooestilomaisadequadoparaareformaouconstruo de igrejasque,comomencionadoinicialmente,constituramumdos programasmais frequentemente associadosaoNeogtico desde o sculo XIX. Esta associao se baseava no paralelismo simblico entreaverticalidadedas formas gticas e o desejo de elevao, prprio da devoo humana que, assim,sematerializavanapedra-,ealuzcuidadosamentetrabalhadadosinterioresdascatedrais, simbolizando a graa divina. Defato,essarelaounvocaentrefervorreligiosoearquiteturaembasouaconstruode um sem-nmero de igrejas neogticas pelo Brasil afora, algumas novas, como a Igreja da Imaculada Conceio, em Botafogo (1888-1892), outras resultantes de demolies de templos coloniais como a MatrizdaBoaViagem,emBeloHorizonte(c.1894),aCatedraldeSoPaulo,ajmencionada IgrejadoCaraa(1880)etantasoutras21,queinspiraramasprimeirascrticasarquitetnicasde MriodeAndradeaomaisestrangeirodosestilos,comoeledizia-enfatizandoocarter totalmente alheio do neogtico em relao histria da arquitetura brasileira. Talvez o exemplo mais emblemtico desta atitude seja a substituio da antiga Matriz de So Paulo, demolida em 1911, pela S neogtica de Max Hehl [Figura 5]. interessante analisar alguns artigosarespeitodo novo edifcio, como a exortao Pela Catedral de So Paulo que Guilherme deAlmeidaescreveu,visandomobilizar a populao para a concluso daquele mpeto religioso de pedragticacomosesabe,asobrasdeconstruodaigrejalevarammaisdequatrodcadas. Enumerando as vrias atividades e empreendimentos que as mos paulistas tinham realizado desde osprimeirostempos,opoetadesejavaquesaibamelaselevar-seagora,aladas,emcalmaprece mos postas da Cidade petrificadas para sempre nas torres piedosas que querem subir, que ho de subir at a altura da nossa fora, da nossa vontade, do nosso ideal, da nossa F!Assim,deumpontodevistaplenodeempatiaparacomonovotemplo,Guilhermede Almeida humanizou as pedras da igreja.Tambmescrevendo sobre a catedral22, Altino Arantes assumiu postura anloga: [...] sobre a imposta que ressalta, pressente-se o repontar da primeira abbada. Lateja.Entumesce,distendesuasnervurasnansiaincontrolvelde faz-las crescer, subir... para afinal enclavinh-las no fecho como se foram mos postas para a orao... [Figura 6]. 21Ovnculoentrearquiteturaneogticaeprogramasreligiososseestendeutambmahospitaisdecaridade, nomeadamente as Santas Casas (Santa Casa de So Paulo, do Serro, etc.). 22 Aspectos da Catedral, s.n.t. 447 Por outro lado, a despeito de seu estilo exgeno, a nova Catedral da S apresenta tambm, paradoxalmente, traos nacionalistas, presentes nos ornatos com motivos da fauna (tucano, tatu) e da flora brasileiras (caf, milho, cacau) [Figura 7]. Essaquestodasubstituiodeigrejascoloniaisportemplosneogticosrenderpanopara mangas,nocontextoculturaldadcadade1920,mobilizandoMriodeAndradeemseuinciode carreira,comojindicado.Masissojumaoutrahistria...quetemsuasrazesnosculoXIX, como se procurou indicar, mas que j pertence ao sculo XX.

448 Figura 1 - Sede da Tipografia Nacional, projeto do eng. Antnio de Paula Freitas. Fonte: Revista do Instituto Polytechnico Brasileiro, Rio de Janeiro: Tomo II, jul. de 1868. Figura 2 - O Gabinete Portugus de Leitura do Rio de Janeiro, projeto de Rafael de Castro.Fonte: Revista dos Constructores n. 2, mar. 1886, p. 15. 449

Figura 3 - Exemplos classicizantes arrolados entre as Obras importantes de Construo Civil do Rio de Janeiro: esquerda, antiga sede da Caixa Econmica e Monte do Socorro, atual Procuradoria Geral do Estado, de Jos Bethencourt da Silva; direita: antiga Faculdade de Medicina, atual Cia. de Pesquisa de Recursos Minerais CPRM, de A. Paula Freitas, autor do projeto neogtico para a Tipografia Nacional.Fotos: Maria Lucia Bressan Pinheiro. Figura 4 - Repartio Fiscal da Alfndega, Ilha dos Ratos, projeto de Antnio Del Vecchio(mais conhecida por Ilha Fiscal). Fonte: Revista dos Construtores. No. 5, jun. 1886, p. 65. 450

Figura 5 - Perspectiva do projeto para a nova Catedral de So Paulo; direita, o edifcio em construopor volta da dcada de 1930. Fonte: Aspectos da Catedral, s.n.t. Figura 6 - Abbadas ogivais da nova Catedral de So Paulo.Fonte: Aspectos da Catedral, s.n.t. 451

Figura 7. Ornamentao com motivos da flora e da fauna brasileiras: esquerda, cornija com ramagem de caf encimada por tatu; direita, imposta de nervura com tucanos.Fonte: Aspectos da Catedral, s.n.t.