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229 8. ASPECTOS PARTICULARES DO DIMENSIONAMENTO DE SISTEMAS DE DRENAGEM DE ÁGUAS RESIDUAIS: AVALIAÇÃO E CONTROLO DOS EFEITOS DO GÁS SULFÍDRICO 8.1. Considerações introdutórias Em sistemas de drenagem típicos de grandes aglomerados urbanos, os tempos de percurso das águas residuais são, em regra, de várias horas ou mesmo de várias dezenas de horas, e a alteração da qualidade das águas reflecte-se, nomeadamente, na formação de sulfuretos. Nos trechos iniciais das redes de drenagem é corrente verificarem-se altos valores do potencial redox e elevadas concentrações de oxigénio dissolvido no interior da massa líquida. No entanto, à medida que aumentam os tempos de percurso decrescem, em regra, tais concentrações, devido ao facto do consumo de oxigénio não ser compensado pelo rearejamento natural ocorrido através da interface ar-massa líquida. O oxigénio é consumido, designadamente, em reacções de oxidação da matéria orgânica, sendo os produtos finais compostos orgânicos mais simples, dióxido de carbono e substâncias parcialmente oxidadas. Em termos de qualidade das águas residuais, e no seu conjunto, essas reacções contribuem para uma redução mais ou menos significativa no valor da carência bioquímica de oxigénio (CBO). Num sistema de drenagem, após ter sido atingida a condição de anaerobiose, e desde que satisfeitas certas condições favoráveis, podem resultar das reacções de oxidação bioquímica da matéria orgânica, libertação de dióxido de carbono e de sulfureto de hidrogénio. Diz-se, então, que o escoamento se processa em condições de septicidade, circunstância associada a concentrações positivas de sulfuretos e baixos potenciais redox, representando o potencial redox, em solução aquosa, o balanço entre as substân- cias oxidantes e as redutoras. O sulfureto de hidrogénio e o dióxido de carbono tendem, também, a reduzir o pH da massa líquida. Na atmosfera dos colectores e das câmaras de visita, à medida que se processa o escoamento, a tendência é, em regra, de redução do teor de oxigénio e do aumento das concentrações de dióxido de carbono e de gás sulfídrico no ar. O sulfureto de hidrogénio (também conhecido por ácido sulfídrico ou gás sulfídrico, quando presente sob a forma gasosa) é uma das espécies de sulfuretos dissolvidos e a sua importância para o comportamento dos sistemas deve-se, principalmente, às seguintes causas: a) odor que provoca, que é, de entre os gerados no interior das águas residuais, dos mais intensos e desagradáveis; b) criação de ambientes tóxicos, por vezes mortais, no interior de atmosferas confinadas ou ventiladas deficientemente; c) criação de condições para a ocorrência de corrosão em colectores, câmaras de visita, poços de bombagem, câmaras repartidoras de caudal e órgãos ou equipamentos de estações de tratamento; d) contribuição para a ocorrência, em circunstâncias excepcionais, de atmosferas explosivas;

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8. ASPECTOS PARTICULARES DO DIMENSIONAMENTO DE SISTEMAS DE DRENAGEM DE ÁGUAS RESIDUAIS: AVALIAÇÃO E CONTROLO DOS EFEITOS DO GÁS SULFÍDRICO

8.1. Considerações introdutórias

Em sistemas de drenagem típicos de grandes aglomerados urbanos, os tempos de percurso das águas residuais são, em regra, de várias horas ou mesmo de várias dezenas de horas, e a alteração da qualidade das águas reflecte-se, nomeadamente, na formação de sulfuretos.

Nos trechos iniciais das redes de drenagem é corrente verificarem-se altos valores do potencial redox e elevadas concentrações de oxigénio dissolvido no interior da massa líquida. No entanto, à medida que aumentam os tempos de percurso decrescem, em regra, tais concentrações, devido ao facto do consumo de oxigénio não ser compensado pelo rearejamento natural ocorrido através da interface ar-massa líquida.

O oxigénio é consumido, designadamente, em reacções de oxidação da matéria orgânica, sendo os produtos finais compostos orgânicos mais simples, dióxido de carbono e substâncias parcialmente oxidadas. Em termos de qualidade das águas residuais, e no seu conjunto, essas reacções contribuem para uma redução mais ou menos significativa no valor da carência bioquímica de oxigénio (CBO).

Num sistema de drenagem, após ter sido atingida a condição de anaerobiose, e desde que satisfeitas certas condições favoráveis, podem resultar das reacções de oxidação bioquímica da matéria orgânica, libertação de dióxido de carbono e de sulfureto de hidrogénio. Diz-se, então, que o escoamento se processa em condições de septicidade, circunstância associada a concentrações positivas de sulfuretos e baixos potenciais redox, representando o potencial redox, em solução aquosa, o balanço entre as substân-cias oxidantes e as redutoras. O sulfureto de hidrogénio e o dióxido de carbono tendem, também, a reduzir o pH da massa líquida.

Na atmosfera dos colectores e das câmaras de visita, à medida que se processa o escoamento, a tendência é, em regra, de redução do teor de oxigénio e do aumento das concentrações de dióxido de carbono e de gás sulfídrico no ar.

O sulfureto de hidrogénio (também conhecido por ácido sulfídrico ou gás sulfídrico, quando presente sob a forma gasosa) é uma das espécies de sulfuretos dissolvidos e a sua importância para o comportamento dos sistemas deve-se, principalmente, às seguintes causas:

a) odor que provoca, que é, de entre os gerados no interior das águas residuais, dos mais intensos e desagradáveis;

b) criação de ambientes tóxicos, por vezes mortais, no interior de atmosferas confinadas ou ventiladas deficientemente;

c) criação de condições para a ocorrência de corrosão em colectores, câmaras de visita, poços de bombagem, câmaras repartidoras de caudal e órgãos ou equipamentos de estações de tratamento;

d) contribuição para a ocorrência, em circunstâncias excepcionais, de atmosferas explosivas;

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e) contribuição para o mau ou irregular funcionamento de estações de tratamento.

O sulfureto de hidrogénio é moderadamente volátil e a sua libertação da massa líquida torna-se significativa quando as condições de turbulência são elevadas. O gás sulfídrico, mesmo em concentrações muito baixas, ataca directamente componentes metálicas, eléctricas e electrónicas das instalações dos sistemas de drenagem e tratamento, tem um odor característico a “ovos podres”, e é explosivo em concentrações entre 4,3 e 45,5%. Quando combinado com a humidade e oxigénio atmosférico pode ser oxidado, a ácido sulfúrico, cujos efeitos, em termos de corrosão, são responsáveis por grande parte das rupturas e colapsos totais ou parciais de colectores e emissários gravíticos de águas residuais.

Os problemas e dificuldades criados pela presença de sulfuretos, nomeadamente do sulfureto de hidrogénio, em sistemas de drenagem e tratamento de águas residuais, assumiram especial relevo, sobretudo a partir do 2º quartel do século XX, altura em que começaram a adquirir particular significado a complexidade e extensão dos sistemas e se acentuou, nos países desenvolvidos, o sentido do direito público ao bem estar e à protecção individual, contra toda e qualquer agressão à qualidade de vida ambiental.

Em Portugal, existem extensas regiões onde a temperatura média de verão é bastante alta e onde, frequentemente, se escoa, nos sistemas de drenagem, água residual com elevada concentração de matéria orgânica. Estas circunstâncias, associadas à reduzida energia gravítica disponível para se processar o escoamento (zonas planas ou com pe-quenos desníveis topográficos) e a tempos de retenção elevados no interior do sistema, tornam provável a ocorrência de septicidade.

Num inquérito efectuado na década de 80 aos Municípios do Continente e das Regiões Autónomas da Madeira e Açores, é realçado o facto do efeito do gás sulfídrico evocado com maior frequência ser o de manifestação de odores desagradáveis, nomeadamente nos meios receptores (35% de respostas positivas), poços de bombagem de instalações elevatórias (18%) e obras de entrada e de tratamento de lamas das estações de tratamento (16%). Apenas em cinco por cento dos Municípios inquiridos é referenciada a existência de corrosão significativa em colectores de sistemas de drenagem.

Os prejuízos económicos e sociais provocados pela presença de gás sulfídrico em sistemas de drenagem e tratamento são praticamente incalculáveis, sendo de realçar a cifra apresentada em Environmental Protection Agency 1985, reportada a 1984, e referente apenas a custos de reconstrução e reabilitação de sistemas em exploração nos Estados Unidos da América, devidos a deterioração, maioritariamente atribuída ao gás sulfídrico: cerca de quinhentos milhões de contos. Esse valor reflecte bem a importância económica do tema e as preocupações que devem envolver os estudos de concepção e dimensionamento de sistemas e instalações de drenagem, designadamente de elevada extensão, com vista a prevenir e controlar os riscos e efeitos da septicidade.

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8.2. Origem, natureza e propriedades do sulfureto de hidrogénio

Nestas folhas, à semelhança do que ocorre em outros textos da especialidade, aplica-se o termo sulfuretos com o significado de sulfuretos inorgânicos. O sulfureto de hidrogénio é uma das espécies de sulfuretos inorgânicos dissolvidos. Num colector de águas residuais, a presença de sulfuretos pode ter várias origens, entre as quais se salientam as seguintes:

a) descarga de certas águas residuais industriais, provenientes, por exemplo, da indústria de curtumes, da indústria petroquímica, da indústria de pasta de papel ou do processamento de matéria animal;

b) infiltração de águas provenientes de aquíferos, onde a concentração de sulfuretos seja relevante;

c) descarga de águas residuais domésticas, já sépticas, provenientes, por exemplo, de tanques e poços de bombagem de instalações hoteleiras, onde a massa líquida permaneça várias horas;

d) formação no interior do sistema, a partir de substâncias, orgânicas e inorgânicas, que contenham enxofre.

A origem principal encontra-se associada, em regra, à formação no interior do sistema municipal. Todos os compostos sulfurosos, orgânicos e inorgânicos, podem contribuir, potencialmente, para a formação de sulfuretos.

As águas residuais domésticas e industriais contêm, em regra, um ou mais compostos de enxofre. Das mais de trinta espécies de compostos de enxofre que existem, só seis são termodinamicamente estáveis, em solução aquosa e a temperatura e pressão atmosférica normal. São elas o ião sulfato (SO42-), o ião bisulfato (HSO4-), o enxofre elementar (So), o ião sulfureto (S2-), o ião hidrogenosulfureto (HS-) e o sulfureto de hidrogénio (H2S). Outros compostos inorgânicos, como o ião tiossulfato (S2O32-), também existem na natureza, mas não são considerados termodinamicamente estáveis. O tiossulfato pode encontrar-se presente em sistemas de drenagem, nomeadamente como resultado da oxidação, em condições aeróbias, do ião hidrogenosulfureto. O sulfito também se pode encontrar presente em colectores, como resultado da descarga de certos efluentes industriais.

O enxofre inorgânico é incorporado no material celular orgânico, e integra-se, dessa forma, no ciclo do enxofre. A decomposição da matéria orgânica pode dar origem a sulfuretos.

Os sulfuretos totais inorgânicos podem ser divididos em sulfuretos solúveis (S2-, HS- e H2S) e não solúveis em água (FeS, ZnS, ..., etc.). A concentração de sulfuretos não solúveis é função do pH e da concentração de determinados elementos metálicos, como o ferro, o zinco, o cobre ou o chumbo, usualmente presentes, embora em baixas concentrações, em águas residuais domésticas. Esses elementos metálicos reagem com o ião sulfureto, originando partículas em suspensão que podem precipitar.

Os sulfuretos inorgânicos solúveis em água, ou seja, os sulfuretos inorgânicos totais dissolvidos, podem apresentar-se sob a forma de sulfureto de hidrogénio (H2S), ião

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hidrogenosulfureto (HS-) ou ião sulfureto (S2-). O sulfureto de hidrogénio dissocia-se em água, de acordo com as seguintes reacções:

H2S k1 HS- + H+ (8.1)

HS- k2 S2- + H+ (8.2)

sendo as concentrações de H2S, HS- e S= função do pH da solução aquosa, tal como indicam as seguintes expressões:

log ([HS-]/[H2S]) = pH - pk1 (8.3)

log ([S2-]/[HS-]) = pH - pk2 (8.4)

sendo,

[H2S], [HS-] - actividades, respectivamente, do sulfureto de hidrogénio e do ião hidrogenosulfureto

[S2-] - actividade do ião sulfureto (moles/l);

pk1, pk2 - cologaritmos, respectivamente, das constantes de ionização das reacções correspondentes às expressões (8.4) e (8.5).

O valor da constante k1 depende, embora talvez sem muito significado prático, da temperatura e da força iónica da solução. No entanto, tendo em conta o grau de incerteza e imprecisão normalmente associado aos estudos de comportamento sanitário de sistemas de drenagem, é, em regra, considerado razoável admitir o valor do parâmetro pk1 como constante, e igual a 7.

Para o valor da constante de ionização k2, é vulgar referenciar-se o valor 10-14.

Na Figura 8.1 é apresentada a distribuição das concentrações de equilíbrio das espécies H2S, HS- e S2-, em função do pH da massa líquida, admitindo pk1 = 7 e pk2 = 14. Nestas folhas, quando se alude a concentração de H2S, HS- ou dos sulfuretos totais, é entendido que se referencia a concentração de enxofre, presente em combinação com os outros elementos. A concentração real de cada espécie pode ser facilmente deduzida, multiplicando o valor referenciado, pela razão dos pesos moleculares do composto e do enxofre.

Como se pode constatar pela Figura 8.1, no intervalo comum de pH das águas residuais domésticas, entre 6,5 e 8,5, a concentração de ião sulfato é praticamente nula, sendo predominantes as concentrações de sulfureto de hidrogénio e ião hidrogenosulfureto. Para pH igual a 7, as concentrações de sulfureto de hidrogénio e hidrogenosulfureto são praticamente idênticas, aumentando a predominância daquele composto à medida que se reduz o pH da massa líquida.

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Figura 8.1 - Distribuição das concentrações de equilíbrio das espécies H2S, HS e S2-, em função do pH da

massa líquida, admitindo pk1 = 7 e pk2 = 14.

A distinção entre as diversas espécies de sulfuretos torna-se particularmente importante, devido ao facto de apenas o sulfureto de hidrogénio ser volátil, ou seja, só o sulfureto de hidrogénio ter potencialidade para se libertar da massa líquida e criar, na atmosfera dos sistemas de drenagem e de tratamento, efeitos indesejáveis. Quando o sulfureto de hidrogénio se liberta da massa líquida, o equilíbrio representado pela expressão (8.4) é reposto, na prática, quase instantaneamente, de forma que as concentrações de H2S e HS- resultantes se repartem, em equilíbrio, na solução. Quando aparece sob a forma gasosa, é corrente designar o sulfureto de hidrogénio como gás sulfídrico.

O gás sulfídrico é incolor, 1,19 vezes aproximadamente mais denso que o ar e tem um odor característico a “ovos podres”. A exposição humana a relativamente pequenas concentrações desse gás tóxico, da ordem de algumas dezenas de p.p.m. (neste trabalho, é entendido o termo p.p.m. como referente a concentração em partes por milhão em volume), pode provocar dores de cabeça, náuseas e irritações de garganta e vista. Concentrações mais elevadas de algumas centenas de p.p.m., podem conduzir a paralisia do sistema respiratório e à morte. O gás sulfídrico no ar pode tornar-se explosivo em concentrações entre 4,3 e 45,5%. O sulfureto de hidrogénio é moderadamente solúvel em água, decrescendo a solubilidade com o aumento da temperatura. Para temperaturas de 15 e 25°C, as solubilidades são, respectivamente, de 4150 e 3175 mg/l.

8.3. Formação, libertação e oxidação do sulfureto de hidrogénio

8.3.1. Considerações de âmbito geral

Em redes de drenagem de águas residuais constituídas por colectores de pequeno diâmetro, com serviço de percurso, e em que as condições de escoamento asseguram auto-limpeza e ventilação, não é usual o estabelecimento de condições de septicidade. Essas condições verificam-se, no entanto, e em regra, em emissários, interceptores ou sistemas de drenagem de longa extensão, mesmo quando se verificam os critérios hidráulicos de auto-limpeza e de limitação de altura do escoamento. Em países ou regiões frias, o estabelecimento de condições de septicidade e a manifestação dos seus efeitos, em sistemas de drenagem de águas residuais, não é, em regra, tão grave, como a que ocorre em regiões de temperaturas médias elevadas. No entanto, existem sistemas,

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implantados em regiões frias (como em certas áreas dos Estados Unidos da América, da França, do Reino Unido ou da Dinamarca), onde já foram referenciados efeitos especialmente graves, provocados pela ocorrência de septicidade em colectores de águas residuais domésticas, nomeadamente devidos à presença de gás sulfídrico. Nesses casos, a ocorrência de septicidade deve-se, fundamentalmente, ao facto do escoamento de águas residuais se processar sob pressão, em condutas elevatórias, trechos de sifões invertidos ou colectores sub-dimensionados, não havendo pois lugar a rearejamento.

A condição de septicidade está associada à formação de sulfuretos. A formação de sulfuretos depende de diversos factores ou parâmetros, entre os quais se incluem a disponibilidade de matéria orgânica e de sulfatos, a temperatura, o pH, a velocidade média do escoamento, o tempo de percurso, a concentração de oxigénio dissolvido e o potencial redox da massa líquida. No caso de sistemas de drenagem constituídos integralmente por colectores com escoamento com superfície livre, a concentração de sulfuretos na massa líquida não atinge valores muito elevados, devido ao facto do oxigénio absorvido na interface ar-massa líquida contribuir, directa ou indirectamente, para a oxidação de substâncias de menor potencial redox, entre as quais se incluem os sulfuretos, e devido ao facto de uma parcela dos sulfuretos se poder libertar para a atmosfera do sistema, sob a forma de gás sulfídrico. Naquelas condições, o escoamento processa-se em anaerobiose, mas com concentrações de sulfuretos inferiores, em regra, a 2 mg/l. Na Figura 8.2 é ilustrada a condição de septicidade num colector de águas residuais com escoamento com superfície livre.

Figura 8.2 - Formação de sulfuretos em colectores de águas residuais - condições anaeróbias.

A libertação do gás sulfídrico da massa líquida depende, designadamente, da concentração de sulfureto de hidrogénio em solução, da temperatura e das condições de turbulência, sendo superior no caso da existência de quedas, particularmente quedas bruscas (ou seja, quedas verticais, efectuadas sem transição) e inferior em trechos rectos, com baixas velocidades de escoamento. Em determinadas condições, ocorre dissolução do gás sulfídrico na humidade condensada das superfícies expostas, e a reacção de oxidação a ácido sulfúrico pode verificar-se, no caso de serem satisfeitas

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condições térmicas e de disponibilidade de nutrientes, necessárias ao desenvolvimento das bactérias intervenientes no processo. O ácido sulfúrico é formado de acordo com a seguinte reacção:

H2S + O2 bactérias

H2SO4 (8.5)

No caso do revestimento das superfícies ser inerte ao ataque do ácido sulfúrico, como acontece quando se aplicam tintas à base de resinas epoxídicas especiais, ou se cobrem as superfícies com membranas ou placas protectoras de materiais resistentes, como PVC ou grés, o ácido sulfúrico diluído desliza sob acção gravítica, indo finalmente incorporar a massa líquida.

Na Figura 8.3 são apresentadas as várias fases correspondentes à formação, libertação e oxidação do sulfureto de hidrogénio em colectores de águas residuais.

Figura 8.3 - Representação esquemática da formação, libertação e oxidação do sulfureto de hidrogénio num colector de águas residuais.

Para que a concentração de sulfuretos na massa líquida se mantenha positiva ao longo de um sistema de drenagem, torna-se necessário que a taxa de formação seja, em princípio, igual ou superior à taxa de remoção dos sulfuretos da solução. A formação de sulfuretos em colectores pode resultar das seguintes reacções:

a) decomposição de compostos orgânicos contendo enxofre, nomeadamente alguns aminoácidos;

b) redução do ião sulfato ou, menos frequentemente, redução de outras substâncias inorgânicas, como dos iões tiossulfato e sulfito ou do enxofre elementar.

Para o decréscimo das concentrações de sulfuretos dissolvidos contribuem os seguintes factores:

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c) reacções de oxidação, em condições aeróbias, donde podem resultar, teoricamente, enxofre elementar, tiossulfato ou sulfato;

d) precipitação, por reacção com elementos metálicos usualmente presentes em águas residuais, como o ião ferro (II) e o zinco;

e) libertação de gás sulfídrico para a atmosfera, a qual ocorre, com mais significado, em meio ácido, e quando as condições de turbulência são elevadas.

8.3.2. Natureza das reacções

A contribuição dominante para a formação de sulfuretos de hidrogénio provém da redução bioquímica do ião sulfato, levada a cabo na ausência de oxigénio, e que pode ser traduzida, simplificadamente, da seguinte forma:

SO42- + matéria orgânica

bactérias S2- + H2O + CO2 (8.6)

S2- + 2H+ H2S (8.7)

Na oxidação bioquímica da matéria orgânica, as bactérias removem átomos de hidrogénio das moléculas orgânicas, adquirindo, no processo, energia. Após uma série de reacções bioquímicas, os átomos de hidrogénio são transferidas para um receptor. Tal receptor pode ser um composto orgânico ou inorgânico.

Em condições aeróbias, o oxigénio livre é o receptor final do hidrogénio, sendo a água o produto final da reacção.

Nas reacções que se apresentam no Quadro 8.1, e que ocorrem, ou podem ocorrer, em colectores de águas residuais, são identificados possíveis receptores de hidrogénio e os correspondentes produtos de reacção.

QUADRO 8.1 - Identificação de reacções em colectores de águas residuais (adaptado de ENVIRONMENTAL PROTECTION AGENCY 1985)

Número de ordem

Receptor de hidrogénio

Número de átomos de hidrogénio intervenientes

Produtos de reacção

(1) O2 + 4H+ 2H2O (2) 2NO3- + 12H+ N2 + 6H2O (3) SO42- + 10H+ H2S + 4H2O (4) corpos orgânicos

oxidados + x H+ compostos orgânicos

reduzidos (5) CO2 + 8H+ CH4 + 2H2O

As reacções identificadas com os números de ordem (1), (2) e (5) originam produtos que não provocam impacte, do ponto de vista dos odores. As reacções (3) e (4) originam compostos de odor desagradável, respectivamente sulfureto de hidrogénio e, frequentemente, mercaptanos.

As reacções (2) e (5) são anaeróbias, isto é, desenvolvem-se na ausência de oxigénio livre, utilizando os microrganismos intervenientes os receptores de hidrogénio, pela ordem seguida na apresentação das reacções do Quadro 8.1, isto é, primeiro o oxigénio, depois os nitratos e, finalmente, na ausência dos primeiros, os sulfatos.

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Em águas residuais, a disponibilidade de enxofre orgânico e ião sulfato encontra-se naturalmente assegurada. Em estudos experimentais realizados num interceptor da cidade de Bruxelas, reportam capitações de ião sulfato, por habitante e por dia, de 16 g. Metcalf & Eddy 1979 referenciam contribuições, de origem doméstica, correspondentes a concentrações na massa líquida entre 15 e 30 mg/l (valores médios correspondentes a sistemas de drenagem em exploração nos Estados Unidos da América).

No caso de infiltração de água do mar em redes de drenagem de águas residuais, as concentrações de ião sulfato podem ser de várias centenas de mg/l.

8.3.3. Expressões de cálculo da concentração de sulfuretos

Várias expressões empíricas têm sido propostas no sentido de estimar a formação de sulfuretos, ou parâmetros com ela relacionados, tanto em condutas com escoamento sob pressão, como em colectores com escoamento com superfície livre.

O cálculo da formação de sulfuretos em condutas sob pressão não é especialmente complexo, devido ao facto de, em regra, não ocorrerem nem reacções de oxidação, nem de libertação de gás sulfídrico para o ar. Ou seja, o aumento da concentração de sulfuretos no interior da massa líquida pode ser directamente calculado, a partir da estimativa da taxa de formação de sulfuretos.

No que concerne ao escoamento com superfície livre, as reacções e transformações que intervêm no balanço de sulfuretos na massa líquida são mais complexas. A partir de meados deste século, começaram a ser propostas formulações empíricas qualitativas, de complexidade crescente, preparadas por forma a caracterizar grandezas ou parâmetros, depois relacionados com estados ou condições mais ou menos favoráveis à formação de sulfuretos. Mais tarde, na década de setenta, e devido principalmente ao trabalho profundo e exaustivo levado a cabo por Thistlethwayte, na Austrália, e Pomeroy, nos Estados Unidos da América, conseguiu evoluir-se, embora com sucesso mais ou menos limitado, no sentido da estimativa da concentração de sulfuretos em sistemas de drenagem, a partir do conhecimento de dados de base referentes a características hidráulicas do escoamento (velocidade, raio hidráulico, tempo de percurso) e de qualidade da água residual (CBO5, CQO e concentração de ião sulfato).

Escoamento sob pressão

De entre as expressões de cálculo da concentração de sulfuretos em condutas sob pressão, a mais divulgada é, sem dúvida, a expressão proposta por Pomeroy. Pomeroy 1959 propõe uma expressão de cálculo de formação de sulfuretos, em condutas com escoamento de águas residuais sob pressão, que pode ser apresentada sob a seguinte forma:

d[S]/dt = Kp CBO5 (1,57 + 4/D) 1,07(T-20) (8.8)

sendo,

d[S]/dt - taxa de formação de sulfuretos expressa em termos da variação da concentração na massa líquida (mg/(l.h));

Kp - constante empírica, admitida, em regra, como igual a 0,001 (m/h);

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CBO5 - carência bioquímica de oxigénio aos cinco dias e a 20°C (mg/l);

D - diâmetro da conduta (m);

T - temperatura da massa líquida (°C).

A expressão (8.8) é também proposta por Environmental Protection Agency 1985 e American Society of Civil Engineers 1989. Na segunda parcela do segundo membro da expressão apresentada, o inverso do raio hidráulico (4/D) figura a multiplicar o termo correspondente à taxa de formação de sulfuretos no interior do filme biológico (g/(m2.h)), com vista a expressar essa taxa em termos da concentração na massa líquida, (sendo as unidades g/(m3.h) ou mg/(l.h)).

A expressão (8.8) foi calibrada com base na análise de resultados experimentais obtidos em quarenta e duas condutas e pressupõe as seguintes condições:

a) condições favoráveis à formação de sulfuretos, nomeadamente em termos de potencial redox, desde a secção inicial da conduta;

b) independência entre a taxa de formação de sulfuretos e a velocidade média do escoamento e a concentração do ião sulfato;

c) proporcionalidade directa entre a CBO5 e a taxa de formação de sulfuretos;

d) desenvolvimento do filme biológico ao longo de todo o perímetro molhado.

Na publicação original, Pomeroy 1959 constata que o valor do parâmetro empírico Kp parece variar significativamente com o tempo de retenção na conduta, sendo progressivamente superior para maiores tempos de retenção. Contudo, a expressão (4.8) tem sido correntemente divulgada admitindo o valor Kp igual a 0,001 m/h. Outros investigadores atribuem a variação desse parâmetro à existência de oxigénio dissolvido na secção inicial das condutas, e ao consequente atraso na formação de sulfuretos.

Escoamento com superfície livre

A primeira expressão empírica formulada com vista a prevenir a formação de sulfuretos em colectores de águas residuais, com escoamento com superfície livre, foi apresentada por POMEROY e BOWLUS 1946. Essa expressão, cuja aplicação é condicionada a alturas relativas do escoamento inferiores ou iguais a 0,5, permite estimar a velocidade crítica do escoamento, abaixo da qual existem condições potenciais para formação de sulfuretos. Essa expressão pode ser apresentada sob a seguinte forma:

Vcs = 0,042 [(CBO5 1,07(T-20))]1/2 (8.9)

sendo Vcs a velocidade crítica do escoamento, ou seja, a velocidade abaixo da qual as condições para formação de sulfuretos são potencialmente favoráveis (m/s). Na expressão (4.14) a CBO5 é dada em mg/l e T é dado em °C.

Davy 1950 postula que, para que a concentração de sulfuretos no interior da massa líquida seja praticamente nula, torna-se necessário que a taxa de oxidação seja pelo menos igual à taxa de formação. A oxidação dos sulfuretos é assegurada pela disponibilidade de oxigénio que depende da turbulência do escoamento, ou seja, do

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número de Reynolds. Combinando argumentos lógicos com os resultados experimentais obtidos em treze colectores da cidade de Melbourne, na Austrália, aquele autor define uma expressão que relaciona o valor crítico do número de Reynolds, a partir do qual a formação de sulfuretos se torna improvável, com a CBO5 e a largura e secção do escoamento. Essa expressão foi posteriormente modificada, por forma a tornar mais expedita a sua aplicação, e pode ser apresentada sob a seguinte forma:

Zp = (0,305 CBO5 1,07(T-20)) / (Q1/3 J1/2 f) (8.10)

sendo,

Zp - parâmetro empírico de Pomeroy (-);

Q - caudal (m3/s);

J - perda de carga unitária (m/m).

O parâmetro f pode ser obtido a partir da seguinte expressão:

f = 1,4 b/p (Q/Qsc)0,064 (8.11)

sendo,

b - largura superficial do escoamento (m);

p - perímetro molhado (m);

Qsc - caudal correspondente à secção cheia (m3/s).

Os valores a atribuir às variáveis T, CBO5 e Q devem corresponder a valores médios, respeitantes aos períodos de seis horas de maior afluência ao sistema, nos três meses mais quentes do ano (designados por períodos “adversos”).

O parâmetro Zp relaciona-se com a possível ocorrência de sulfureto de hidrogénio, da seguinte forma:

- para Zp < 5 000 o sulfureto de hidrogénio raramente está presente. Materiais à base de ligas de prata e de cobre e, possivelmente, tintas contendo chumbo podem ser escurecidas;

- para 5 000 < Z ≤ 7 500 as concentrações máximas não excedem algumas décimas de mg/l. É possível a ocorrência de ligeira corrosão em estruturas de betão e alvenaria, especialmente se o escoamento se processar com turbulência significativa;

- para 7 500 < Zp ≤ 10 000 o sulfureto de hidrogénio pode, por vezes, desenvolver-se em quantidade suficiente para causar odores desagradáveis e danos substanciais em estruturas de betão e alvenaria, principalmente se o escoamento se processar com elevada turbulência. É previsível, mesmo em locais onde a turbulência do escoamento não seja significativa, ataque ligeiro do betão e do fibrocimento;

- para 10 000 < Zp ≤ 15 000 podem ocorrer períodos em que os odores desagradáveis se manifestem significativamente, sendo de esperar um rápido ataque das estruturas de betão. Em colectores de betão de 2,5 cm de espessura, pode dizer-se que são fortes as probabilidades de ocorrer ruptura nos primeiros 25 anos de vida;

240

- para Zp > 15 000 o sulfureto de hidrogénio está praticamente sempre presente na massa líquida, variando o período de vida útil de pequenos colectores e betão entre 5 e 10 anos.

A expressão (8.10) teve grande divulgação no mundo científico, e foi, praticamente até meados da década de oitenta, a única que se aplicou, nesse domínio, em países como Portugal ou Brasil. Esta expressão tem, no entanto, importantes limitações, havendo autores que limitam a sua aplicação a colectores com diâmetros iguais ou inferiores a 600 mm. No entanto, a maior limitação dessa expressão, segundo alguns autores, é não ter em conta o tempo de percurso e os efeitos da septicidade acumulada em trechos a montante, como os que decorrem, em particular, da presença de condutas sob pressão.

Na Figura 8.4 e na Figura 8.5 apresenta-se, a título ilustrativo, a variação do parâmetro Zp, em função do diâmetro do colector e, respectivamente, da velocidade média do escoamento e da tensão de arrastamento. Para a elaboração dessas figuras foram consideradas as seguintes condições de cálculo:

a) CBO5 igual a 400 mg/l e temperatura de 20°C;

b) coeficiente de Manning, N, igual a 0,013 m-1/3s;

c) altura relativa do escoamento igual a 0,50.

Figura 8.4 - Variação do parâmetro Zp, em função da velocidade e do diâmetro do colector.

241

Figura 8.5 - Variação do parâmetro Zp, em função da tensão de arrastamento e do diâmetro do colector.

Em 1977, Pomeroy e Parkhurst apresentaram uma formulação, válida para o escoamento de águas residuais com superfície livre em condições anaeróbias, e que permite estimar a concentração total de sulfuretos na massa líquida. O estabelecimento dessa formulação corresponde a um grande avanço no que se refere à precisão da formação e efeitos do sulfureto de hidrogénio.

A formulação pode ser sintetizada pelas seguintes expressões:

Sj = Slim - (Slim - Sm) exp (Ct) (8.12)

Slim = M/m CBO5 1,07(T-20) (JV)-0,375 (P/b) (8.13)

Ct = -Lm J0,375 / (3600 dm V0,625) (8.14)

sendo,

Sm, Sj - concentração de sulfuretos totais, respectivamente na secção inicial e final do trecho de cálculo;

Slim - concentração máxima de sulfuretos, para as condições hidráulico-sanitárias no trecho, que só pode ser atingida, teoricamente, se o mesmo tiver uma extensão infinita (mg/l);

M, m - constantes empíricas;

V - velocidade média de escoamento;

P - perímetro molhado (m);

b - largura superficial do escoamento (m);

dm - altura média do escoamento (m);

L - extensão do trecho (m).

Os valores CBO5, T, J e V têm o significado e são apresentados nas unidades já referidas anteriormente neste capítulo.

Para atribuição dos valores às constantes empíricas M e m aqueles autores sugerem, em função das características específicas do sistema a dimensionar, e do grau de segurança pretendido, a adopção de uma das hipóteses a seguir discriminadas:

242

- hipótese moderadamente conservadora: M = 0,32 x 10-3 m/h,

m = 0,96. - hipótese muito conservadora: M = 0,32 x 10-3 m/h,

m = 0,64.

A formulação proposta tem dado provas de ajustamento adequado à realidade, principalmente quando se admitem os valores menos conservadores para as constantes empíricas M e m, anteriormente referidas. Nesta formulação são admitidas, implicitamente, as seguintes hipóteses:

a) condições favoráveis à formação de sulfuretos, nomeadamente em termos de condições hidráulicas, ambientais e de disponibilidade de enxofre;

b) proporcionalidade directa entre a taxa de formação de sulfuretos e a CBO5;

c) proporcionalidade directa entre as taxas de oxidação e de libertação de sulfureto de hidrogénio da solução, e a concentração de sulfuretos.

Em teoria, a hipótese c) é, possivelmente, a mais criticável. A libertação do sulfureto de hidrogénio (gás sulfídrico) para o ar é função da concentração desse composto em solução aquosa, e não da concentração de sulfuretos totais. Isto é, em condições de elevado pH, a concentração de sulfuretos totais pode ser alta e nula a libertação de gás sulfídrico para a atmosfera, ao contrário do ocorrido em meio ácido, onde a libertação do gás sulfídrico pode ser elevada, pelo facto dos sulfuretos dissolvidos se apresentarem quase inteiramente sob a forma de sulfureto de hidrogénio. As consequências práticas desta incorrecção teórica parecem ser reduzidas, em grande parte, devido ao facto da fracção de sulfuretos que escapa para a atmosfera ser, em regra, diminuta, quando comparada com a que é oxidada pelo oxigénio proveniente do rearejamento superficial.

No entanto, em termos práticos, é a primeira hipótese referida que mais condiciona o rigor da aplicação do modelo de cálculo. Esta situação é claramente exemplificada pelo facto de, aplicando o modelo, serem determinadas concentrações positivas de sulfuretos, quaisquer que sejam as características hidráulicas do escoamento, o que, na realidade, não ocorre. Basta, para isso, por exemplo, que as condições de velocidade e turbulência sejam favoráveis à persistência de valores positivos de oxigénio dissolvido na solução.

Quando o escoamento se processa em condições de septicidade, a aplicação das expressões (8.12) a (8.14) fornece valores adequados, tal como ilustram vários estudos experimentais, a maior parte dos quais realizados nos Estados Unidos da América, em sistemas de drenagem de águas residuais de grande dimensão.

8.3.4. Libertação de gás sulfídrico e ventilação

Em atmosferas de sistemas de drenagem constituídos por colectores com escoamento com superfície livre em condições aeróbias, as concentrações dos principais elementos do ar, nomeadamente do azoto e do oxigénio, são, em regra, muito semelhantes às da atmosfera livre exterior. Nessas condições, a concentração de gás sulfídrico e de compostos orgânicos voláteis, como mercaptanos, é nula, e a concentração de dióxido de carbono poderá ser da ordem de 300 p.p.m..

243

O gás sulfídrico é moderadamente solúvel em água bastante mais, por exemplo, que o dióxido de carbono, o oxigénio ou o azoto, e segue a lei de Henry com razoável ajustamento. Em 1903, William Henry postulou que, a temperatura constante, a massa de gás dissolvida num determinado volume é directamente proporcional, em equilíbrio, à pressão parcial do gás no ar. Essa lei pode ser apresentada sob a seguinte forma:

xg = KHe Pg (8.15)

sendo,

xg - fracção do gás em equilíbrio (-);

KHe - constante de Henry (atm-1);

Pg - pressão parcial do gás no ar (atm).

Num sistema de drenagem de águas residuais, a concentração de equilíbrio de gás sulfídrico no ar só é atingida passadas várias horas, e, ainda assim, apenas se não houver ventilação, fugas de gás para o exterior e reacção com as paredes dos colectores (condensação, oxidação e corrosão). A constante de Henry depende da temperatura, da concentração da substância volátil em solução e, embora em menor grau, da composição química da água. Na Figura 8.6 é apresentada a variação da concentração de equilíbrio do gás sulfídrico no ar, em função da temperatura e da concentração desse composto no interior da massa líquida.

Figura 8.6 - Variação da concentração de equilíbrio do gás sulfídrico no ar, em função da temperatura e da concentração em solução (adaptada de ENVIRONMENTAL PROTECTION AGENCY 1985).

Libertação de gás sulfídrico para o ar

A libertação do gás sulfídrico para a atmosfera dos sistemas de drenagem depende do grau de septicidade da massa líquida, das condições de temperatura e de turbulência do escoamento, da composição da água residual e da própria concentração de gás sulfídrico na atmosfera dos colectores. No caso do teor de gás sulfídrico na atmosfera atingir a concentração de equilíbrio, a massa de gás sulfídrico libertada da massa líquida torna-se, obviamente, nula.

244

Por outro lado, a velocidade à qual o gás sulfídrico se escapa da solução, para dadas condições ambientais, é proporcional à concentração de sulfureto de hidrogénio no interior da massa líquida. Assim, a pH = 7,0, o gás sulfídrico escapará a aproximadamente metade da velocidade correspondente à libertação do mesmo gás numa solução fortemente ácida, com idêntica concentração de sulfuretos dissolvidos. Quando parte do gás sulfídrico se escapa para o ar, os sulfuretos dissolvidos na massa líquida repartem-se e equilibram-se, quase instantaneamente, na proporção decorrente das condições de temperatura e pH.

Em regra, a concentração de gás sulfídrico é muito inferior à concentração de equilíbrio, ascendendo, usualmente, apenas a valores entre 2 e 20%. Em zonas de queda, sujeitas a uma turbulência acrescida, a libertação de gás sulfídrico para a atmosfera pode ser bastante superior à verificada em trechos rectilíneos. Nessas condições, podem ocorrer concentrações especialmente elevadas de gás sulfídrico, em trechos localizados, possivelmente com uma extensão inferior a dez a vinte diâmetros. Nesses trechos localizados a concentração de gás sulfídrico poderá elevar-se, em certas circunstâncias, a mais de 20% da concentração de equilíbrio.

Em Environmental Protection Agency 1985 é apresentada uma expressão, proposta por Pomeroy, que permite estimar a taxa de libertação do gás sulfídrico da massa líquida para a atmosfera de colectores. Esta expressão pode ser apresentada da seguinte forma:

Fi = 1,917 x 10-4 CA θ(T-20) (JV)(3/8) H2SL (1-q) (8.16) sendo,

Fi - taxa de libertação do gás sulfídrico (g/(m2.s)); CA - factor de turbulência, dado por (1+0,17 V2/(gdm)) (-); θ - parâmetro representativo do efeito da temperatura e que pode

ser considerado igual a 1,016; T - temperatura da massa líquida (°C); J - perda de carga unitária (m/m); V - velocidade média do escoamento (m/s); H2SL - concentração de sulfureto de hidrogénio na massa líquida

(mg/l); q - razão entre a concentração de gás sulfídrico no ar e a

concentração de equilíbrio (ch/ceq); g - aceleração da gravidade (m/s2); dm - altura média do escoamento (m).

Para aplicar a expressão (8.16) torna-se necessário conhecer o parâmetro “q” e, por isso, a concentração de equilíbrio, a qual pode ser determinada a partir da lei de Henry. A taxa de libertação do gás sulfídrico para o ar (g/(m2.s)) pode ser expressa em termos de taxa de variação de concentração de sulfuretos dissolvidos em solução (mg/(l.h)) tendo em conta a largura superficial e a secção do escoamento. Na Figura 8.7 é apresentada a variação da taxa de libertação de gás sulfídrico, expressa em termos de variação da concentração na massa líquida, em colectores de águas residuais com escoamento a meia secção. Para os cálculos foi admitida uma concentração de 1 mg/l de sulfureto de hidrogénio em solução, um coeficiente de Manning igual a 0,013 m-1/3s, e a aplicação da expressão (8.16).

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Figura 8.7 - Libertação do gás sulfídrico em águas residuais sépticas em função do declive do colector

(h/D = 0,50; N = 0,013 m-1/3s; H2SL = 1 mg/l) (adaptada de Matos 1992).

Ventilação em sistemas de drenagem

A ventilação em sistemas de drenagem de águas residuais deve ser promovida tendo em conta a manutenção de atmosferas respiráveis nas câmaras de visita e nos colectores e a redução dos riscos de desenvolvimento de atmosferas tóxicas ou explosivas. Por vezes, recorre-se a ventilação forçada, em trechos limitados, para controlo de odores por diluição, para controlo da corrosão por redução da humidade relativa do ar, ou, simplesmente, para se restabelecerem níveis de concentração de oxigénio adequados e diluir a concentração de substâncias tóxicas ou explosivas.

Em diversos países, como nos Estados Unidos da América, e em várias cidades de Portugal, a ventilação dos sistemas de drenagem municipais é garantida pela ligação aos ramais de ventilação domiciliários. Noutros países, como no Reino Unido e na Austrália, são concebidos, com frequência, sistemas de ventilação específicos ligados aos colectores municipais e a ventilação ocorre por trechos separados por membranas flexíveis, que impedem a continuidade da corrente de ar ao longo dos colectores e a dirige para os postes de ventilação. Por vezes são previstas, também, ranhuras de ventilação nas tampas das câmaras de visita.

O grau de ventilação natural que ocorre em colectores é difícil de prever, tendo em conta, nomeadamente, a contínua variação dos diversos parâmetros que o influenciam. Por vezes, as flutuações dos valores desses parâmetros (caso da temperatura, velocidade do vento e velocidade e altura do escoamento), mesmo em curtos intervalos de tempo, é suficiente para alterar não só a velocidade da corrente de ar no interior dos colectores, como a própria direcção do movimento.

Em dias ventosos, a variação da pressão barométrica é mais significativa, e as correntes do ar nos colectores são mais notadas. Pelo contrário, em dias calmos, o ar é movimentado devido, quase exclusivamente, à acção de arraste provocada pela massa líquida e devido às flutuações do nível de água.

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Em determinadas condições, pode ocorrer tendência a uma inversão do sentido do escoamento do ar, ou seja, pode verificar-se um movimento global ascendente do ar, no sentido contrário ao do escoamento do líquido. Essa tendência pode tomar proporções mais significativas, em sistemas de drenagem implantados com grandes desníveis, e em que, simultaneamente, as alturas e velocidades médias do escoamento sejam reduzidas.

8.3.5. Oxidação sobre as paredes dos colectores

O gás sulfídrico da atmosfera dos colectores acaba por dissolver-se na humidade condensada sobre as paredes, desde que as condições de humidade sejam favoráveis, originando sulfureto de hidrogénio em solução. A transferência do gás para as paredes dá-se por penetração e difusão molecular, através da película laminar gasosa que envolve a fronteira sólida do escoamento do ar. Em condições usuais do escoamento, a espessura da película laminar pode ser de alguns milímetros e oferece uma maior ou menor resistência à transferência de massa. Além do gás sulfídrico, outros gases, como o dióxido de carbono ou o oxigénio, também penetram através da película laminar, enquanto ocorrem reacções de carbonatação do betão e de oxidação do sulfureto de hidrogénio a tiossulfato e a ácido sulfúrico.

Sobre a superfície dos colectores novos de betão, a humidade condensada apresenta-se muito alcalina, com valores de pH entre 11 e 13. O humedecimento do betão e fenómenos subsequentes de carbonatação e de fixação do sulfureto de hidrogénio, acabam por fazer baixar o pH a valores entre 7 e 8. Enquanto prosseguem as transformações puramente químicas, começa a ter lugar a proliferação de microrganismos capazes de oxidar lentamente o tiossulfato, sem consequências significativas no pH global. Para pH inferior a 9, existem bactérias que proliferam e oxidam o tiossulfato a enxofre elementar e a ácido sulfúrico. Essas reacções bioquímicas prosseguem até se atingirem valores de pH da ordem de 5. Nessas condições, desenvolve-se a espécie Thiobacillus concretivorus, que origina elevadas concentrações de ácido sulfúrico, e o pH pode descer abaixo de 1.

O encadeamento dos processos conducentes à redução do pH da superfície do betão é apresentado, esquematicamente, na Figura 8.8.

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Figura 8.8 - Representação esquemática do encadeamento dos processos conducentes à redução do pH da

superfície de betão.

8.4. Efeitos do gás sulfídrico

8.4.1. Considerações introdutórias

Os efeitos principais do gás sulfídrico são, sem dúvida, o odor, a toxicidade e a corrosão.

Em sistemas de águas residuais, o odor e toxicidade manifestam-se, sobretudo, em volumes confinados com reduzida ventilação, como os que são usuais em câmaras de visita, poços de bombagem de instalações elevatórias, câmaras repartidoras de caudal e obras de entrada de estações de tratamento. A corrosão manifesta-se, sobretudo, ao nível dos próprios colectores e câmaras de visita.

Várias definições têm sido dadas para a concentração ou limite absoluto de percepção de gases odoríferos (em terminologia anglo-saxónica absolut threshold concentration), sendo vulgar aquela a que corresponde a concentração mínima do gás odorífero, detectada por 50% dos indivíduos consultados num painel de odor. O valor limite de concentração (em terminologia anglo-saxónica threshold limit value - TLV) corresponde a concentração média máxima à qual trabalhadores podem ser expostos, sem perigo de consequências gravosas, oito horas por dia, cinco vezes por semana e cinquenta semanas por ano.

Em atmosferas de sistemas de drenagem, compostas por vários compostos odoríferos, o odor global é, em regra, bastante superior ao correspondente à concentração de cada gás considerado isoladamente. Nesse caso, é usual recorrer-se ao conceito de unidade de odor. A unidade de odor (ou unidade padrão de odor) é a quantidade de ar viciado que, quando diluído na unidade de volume de ar isento de gases odoríferos, atinge o limite de percepção.

248

Quando, no interior dos sistemas de drenagem, a concentração de gás sulfídrico atinge valores muito altos, podem ocorrer acidentes que, em alguns casos, podem conduzir à morte.

A longo prazo, o efeito mais relevante do gás sulfídrico é a corrosão. Esse gás ataca directamente elementos metálicos e, indirectamente, após dar origem à formação de ácido sulfídrico, diversos materiais, entre os quais se realçam o betão, o fibrocimento e o ferro fundido.

8.4.2. Odor

No Quadro 8.2 são referenciados níveis de odor, em função da concentração de gás sulfídrico. A percepção do odor varia de indivíduo para indivíduo, e o mesmo indivíduo pode reagir de forma diversa, em função da condição física e psicológica, ou do tempo de exposição. Acima de 160 a 250 p.p.m., é perdida a percepção do odor e os efeitos de toxicidade passam a ser, então, ainda mais graves.

Diversos autores referenciam o valor 1 p.p.m., como limite de reconhecimento do gás sulfídrico a 100%.

QUADRO 8.2 - Impacte de odor associado ao gás sulfídrico Concentração de gás sulfídrico (p.p.m.)

Odor

< 0,00021 Limite de percepção. 0,00047 Limite de reconhecimento. 0,5 a 30 Odor forte e ofensivo. 10 a 50 Odor forte. Efeitos tóxicos.

Em sistemas de águas residuais, os efeitos do odor são, em regra, notados localmente, nas proximidades de estações de tratamento ou de postes de ventilação colocados junto de instalações elevatórias e das câmaras de montante de sifões invertidos. O transporte e dispersão do odor depende de vários factores, entre os quais assumem relevância os seguintes:

a) posicionamento do centro emissor;

b) velocidade e direcção do vento; c) estrutura turbulenta da atmosfera.

As concentrações mais desfavoráveis são as que se associam a baixas velocidades do vento e elevada estabilidade da camada inferior da estratosfera (com gradiente térmico positivo e ocorrência de inversão térmica).

Os modelos de cálculo de diluição e dispersão, nos campos próximo e afastado do local de emissão, podem ser muito complexos, especialmente se estruturadas para ter em conta os efeitos aerodinâmicos provocados por topografia e acidentes sobre o solo, e a sua discussão e análise não é tratada no âmbito destas folhas.

O controlo de odores pode levar à necessidade de confinamento das áreas onde são libertados, nomeadamente obras de entrada, decantadores primários e espessadores de estações de tratamento, e ao tratamento do ar colectado, antes da rejeição final. Em

249

Portugal, podem ser referenciados os casos das instalações elevatórias da Barcarena (Oeiras) e do Gorgulho (Funchal), em que o ar é tratado por filtros de carvão activado, e as galerias da estação de tratamento preliminar do sistema de drenagem de águas residuais da Costa do Estoril, em que o ar “viciado” é diluído e oxidado em torres de ozono (oxidação húmida).

8.4.3. Toxicidade

O espectro de toxicidade do gás sulfídrico, para exposição humana, é apresentado no Quadro 8.3.

QUADRO 8.3 - Espectro de toxicidade do gás sulfídrico Concentração de gás sulfídrico (p.p.m.)

Efeito

< 30 Odor mais ou menos ofensivo, desde que a concentração seja superior a 0,00021 p.p.m..

10 a 50 Dores de cabeça, náuseas e irritação da vista, nariz e garganta 50 a 300 Lesão da vista e aparelho respiratório.

300 a 500 Ameaça mortal (edema pulmonar). > 700 Morte imediata.

O gás sulfídrico é tóxico e tem sido causa de vários acidentes mortais. É mais denso que o ar, ao contrário do metano, e, por isso, concentra-se muitas vezes nos volumes inferiores das câmaras de visita dos sistemas de drenagem. Pode, no entanto, devido a correntes de convexão e a diferenças de temperatura entre o ar e o gás sulfídrico libertado, suceder precisamente o contrário. Na câmara de parafusos da obra de entrada da estação de tratamento de águas residuais de Alcanena, foi medido, no Outono de 1989, junto à superfície do líquido, teores de 50 p.p.m., bastante inferiores aos medidos, na mesma altura, junto à cobertura da câmara (entre 80 e 100 p.p.m.). A toxicidade do gás sulfídrico tem sido comparada à do ácido cianídrico e têm sido referenciados casos de acidentes mortais, por exposição humana a concentrações superiores a 300 p.p.m.. Nos Estados Unidos da América, Pomeroy e Bowlus 1946 referenciam dois casos, ocorridos na mesma altura e no mesmo local, enquanto Keating 1978 referencia que, apenas no estado do Texas e entre 1974 e 1978, ocorreram vinte e quatro mortes atribuídas a inalação do gás sulfídrico.

Para exposição em atmosfera confinadas, instituições americanas, como a Occupational Safety and Health Administration (OSHA), o National Institute for Occupational Safety and Health (NIOSH) e a American Conference on Governamental Industrial Hygienists (ACGIH) advogam critérios distintos. A primeira admite exposição de duração de quinze minutos, em ambientes com teores médios de gás sulfídrico até 20 p.p.m. (considerando, também, como aceitáveis, exposições a concentrações médias de gás sulfídrico de 50 p.p.m., durante dez minutos.). O NIOSH adopta valores distintos para a duração da exposição (apenas dez minutos), e para a concentração média (10 p.p.m.), admitindo, no entanto, concentrações máximas instantâneas de 50 p.p.m.. A ACGIH admite 10 p.p.m., como máximo valor médio para a duração de um turno de trabalho, e 15 p.p.m., como máximo valor médio para inalação em quinze minutos (AMERICAN SOCIETY OF CIVIL ENGINEERS 1989).

8.4.4. Corrosão

250

A corrosão é um fenómeno natural, que consiste na deterioração de um material ou na alteração das suas propriedades, por acção do meio a que está exposto. A deterioração pode ocorrer por razões físicas, químicas, electroquímicas e bioquímicas, e pode ser de vários tipos, incluindo a corrosão selectiva, bimetálica, sob tensão, fadiga, erosão-cavitação, e devido a acção microbiana. No âmbito destas folhas é analisada a corrosão provocada pela presença de gás sulfídrico, e que é de origem microbiana.

Processo de corrosão

No caso do betão armado, as características do meio produzido pela hidratação do cimento, em particular a sua elevada toxicidade (pH > 11), fazem com que o aço se encontre no estado de passivação. Tal estado, em que a corrosão é pouco provável, considera-se resultante da formação de uma camada muito fina de óxido, directamente decorrente de uma reacção electroquímica anódica, camada essa que protege o aço de corrosão ulterior. O estado de passivação pode ser destruído por abaixamento do pH, presença de iões agressivos, particularmente de cloretos, e outros factores, como tensões aplicadas.

O abaixamento do pH pode decorrer da penetração de compostos ácidos, como o dióxido de carbono (CO2) ou o gás sulfídrico (H2S). Quando se trata de betão pré-esforçado, a acção do gás sulfídrico pode ter importância directa, devido à sua intervenção no processo de fragilização pelo hidrogénio, o qual ocorre quando se forma hidrogénio, sob a forma atómica, à superfície do metal, e nele penetra provocando uma redução da tenacidade.

Na carbonatação, o dióxido de carbono reage com o hidróxido de cálcio, originando carbonato de cálcio que é mais insolúvel que aquele. A profundidade da carbonatação, em betão de boa qualidade, não atinge, em regra, mais do que 4 ou 5 milímetros. Em betões porosos, a profundidade de carbonatação pode ser muito mais elevada. Todos os ácidos atacam o betão, nomeadamente o ácido sulfúrico, não se verificando corrosão se o betão estiver absolutamente seco ou completamente saturado.

Em regra, a corrosão inicia-se pontualmente e depois espalha-se, de forma concêntrica, ocupando áreas circulares progressivamente maiores, que se fundem formando bandas contínuas. Com o tempo, a camada superficial de betão transforma-se numa massa amorfa sem resistência efectiva. A película exterior, negro-acinzentada devido à incorporação de impurezas de origem orgânica, tem o aspecto de uma crosta. Sobre essa crosta existe como que uma pasta, efeito directo da corrosão, em regra muito ácida. Sob este estrato superficial o betão permanece, em regra, inalterado.

A corrosão da superfície interna de um colector não é uniforme, dependendo tal facto de numerosos factores, que incluem migração do ácido sulfúrico através da superfície, correntes de ar e eventual exposição à acção da água. As paredes do colector estão, em regra, mais frias que as águas residuais, principalmente durante o período estival. O ar arrefecido pelo contacto com a superfície sólida eleva-se, sendo substituído por ar levemente mais aquecido, e que se evapora do centro da massa líquida. Como resultado, a máxima intensidade de transferência de gás sulfídrico para as paredes do colector pode ocorrer junto da coroa do mesmo. O ácido que resulta da oxidação do sulfureto de hidrogénio tem tendência, depois, a deslizar, sob a acção gravítica, ao longo da superfície interna do colector, chegando mesmo a incorporar-se na massa líquida. Estes

251

efeitos são visíveis pelos sulcos irregulares deixados ao longo da superfície não molhada das paredes dos colectores.

A corrosão na zona adjacente à massa líquida é, também, em regra, bastante pronunciada, devendo-se tal circunstância ao processo de lavagem descontínuo induzido pelas flutuações do nível da água. Nessa situação, removem-se os produtos da decomposição originados pela corrosão, voltando a expor-se ao ácido as superfícies ainda não atacadas.

Na Figura 8.9 apresenta-se, esquematicamente, a secção transversal de um colector de águas residuais, elucidando-se a distribuição da profundidade da corrosão ao longo do perímetro não molhado do mesmo.

Figura 8.9 - Distribuição da corrosão num colector de águas residuais.

Modelo de cálculo

A aglutinação dos componentes inertes com que se fabrica o betão, brita e areia, deve-se à presa e endurecimento resultantes da hidratação dos constituintes do cimento, silicatos e aluminatos anidridos. A hidratação dá-se com formação de hidróxido de cálcio, que é a matriz do cimento hidráulico, e, nomeadamente, hidróxido de cálcio, a componente vulnerável do betão.

Com efeito, os componentes sólidos hidratados do cimento endurecido só são estáveis na presença de soluções saturadas de hidróxido de cálcio (vulgarmente designada cal), e qualquer causa, como a presença de ácidos, que elimine esse composto, provoca a decomposição daqueles, formando também sílica, no caso dos silicatos de cálcio, e alumina, no caso dos aluminatos de cálcio, que não têm propriedades ligantes.

A taxa média de corrosão em colectores de betão (ou fibrocimento) pode ser deduzida teoricamente. O seu valor depende, designadamente, da velocidade de formação do ácido sulfúrico e da reserva alcalina do material (tipo e teor de cimento, e natureza dos inertes).

Sabe-se que são necessários 32 gramas de enxofre para formar o ácido sulfúrico suficiente para reagir completamente com 100 gramas de material alcalino, expresso em

252

carbonato de cálcio (CaCO3). De acordo com essa premissa, é possível deduzir a seguinte expressão de cálculo:

CR = 11,5 Ka Fi1 /Al (8.17)

sendo,

CR - taxa média de corrosão do betão (ou fibrocimento) (mm/ano);

Ka - parâmetro empírico, que traduz a fracção do ácido formado que

reage com as paredes do colector (-);

Fi1 - fluxo de gás sulfídrico para as paredes do colector (g/(m2.h));

Al - alcalinidade do material, expressa em percentagem de carbonato de

cálcio (-).

O fluxo de gás sulfídrico para as paredes do colector pode ser estimado a partir da expressão (8.16), que permite calcular a taxa de libertação do gás sulfídrico da massa líquida, multiplicando essa taxa pelo quociente entre a largura superficial do escoamento e o perímetro não molhado do colector. A expressão de cálculo é a seguinte:

Fi1 = Fi (b/p1) (8.18)

sendo,

Fi - taxa de libertação de gás sulfídrico do interior da massa líquida, e

que pode ser dada pela expressão empírica (4.16), adaptando as

unidades a (g/(m2/h));

(b/p1) - quociente entre a largura superficial do escoamento e o perímetro

não molhado do colector (-).

O parâmetro Ka aproxima-se da unidade se for lenta a taxa de formação de ácido sulfúrico, e toma valores entre 0,3 e 0,4, se as condições forem favoráveis e a formação for rápida (por exemplo, no caso de elevadas temperaturas das águas residuais em relação à temperatura ambiente). Em colectores onde a formação do ácido seja lenta, dá-se a neutralização à superfície do colector, e é praticamente nula a fracção que desliza para o interior da massa líquida.

O valor do parâmetro Al pode tomar valores entre 0,18 e 0,23, no caso de betão construído com inertes graníticos, ou ascender a 0,9, no caso daqueles inertes serem calcários (visto dispor-se de maior reserva alcalina). No caso do fibrocimento, é comum serem admitidos, para dimensionamento, valores entre 0,4 e 0,5.

A corrosão das paredes dos colectores não se processa de forma uniforme. Em trechos rectilíneos, sem quedas e turbulência significativa, a razão entre as corrosões máxima e média pode ser, aproximadamente, de um e meio. Em trechos especiais, junto de locais onde a turbulência é significativa (como em quedas, junções de colectores e transições de secção bem dimensionadas), a corrosão máxima pode ser duas a cinco vezes superior à corrosão média, estimada em condições de regime uniforme em trecho rectilíneo.

253

A expressão (8.17) permite estimar a corrosão média que se verifica num determinado intervalo de tempo, e pode ser adaptada, por forma a se tornar mais prática para efeitos de dimensionamento. Admitindo um factor de segurança de dois e especificando o intervalo de tempo, t, correspondente à acção da corrosão (que é, em regra, considerado igual ao horizonte de projecto da obra) é possível deduzir as seguintes expressões:

t = Ec/(2 CR) = Al Ec/(23 Ka Fi1) (8.19)

Al Ec = 23 Ka Fi1 t (8.20)

sendo,

t - período de exploração do colector de betão ou fibrocimento (anos);

Ec - espessura máxima de colector, ou espessura crítica, que se admite poder vir a ser deteriorada, sem colapso da infra-estrutura (mm).

Nas expressões (8.19) e (8.20), os símbolos Al, Ka, Fi1 e CR têm o significado e são expressos nas unidades já previamente definidas.

8.4.5. Critérios de projecto

Existem, fundamentalmente, dois princípios no que respeita ao controlo de sulfureto de hidrogénio em sistemas de drenagem de águas residuais, e que, por vezes, se complementam.

O primeiro é essencialmente preventivo, e traduz a preocupação em limitar a concentração de sulfureto de hidrogénio no interior da massa líquida, a valores baixos, por forma a que a presença de gás sulfídrico na atmosfera circundante não tenha efeitos significativos, e não obrigue à aplicação de medidas e procedimentos correctivos. Na prática, o estabelecimento desse princípio condiciona, de certa forma, a concepção do sistema. São privilegiados emissários gravíticos implantados com bons declives, não são admitidas condutas sob pressão de elevada extensão, e é limitada a extensão do emissário principal, criando, para isso, se necessário, vários sub-sistemas.

O segundo princípio é essencialmente correctivo, e condiciona a concepção e dimensionamento do sistema, tendo em conta o facto de se poderem vir a atingir concentrações elevadas de gás sulfídrico. São previstos equipamentos de desodorização, antes da rejeição do ar viciado para o ambiente exterior, é protegida especialmente a superfície exposta à acção da corrosão, e são redobrados os cuidados com a inspecção, a limpeza e a exploração dos sistemas.

No caso de grandes sistemas, é muito usual a aplicação complementar dos dois princípios definidos. Isto é, dimensionam-se as redes de drenagem e os emissários secundários, por forma ao escoamento se processar sem problemas especiais, do ponto de vista de comportamento sanitário, e concebe-se o interceptor ou emissário principal final prevendo a possibilidade de septicidade.

Thistlethwayte 1972 admite que em sistemas com concentrações médias de sulfuretos inferiores a 1,5 mg/l, referidas ao período adverso (ou seja, ao período correspondente às seis horas de maior caudal dos três meses mais quentes do ano) não ocorrem, em regra, problemas especiais devidos ao gás sulfídrico. É de admitir que este critério possa

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ser adequado do ponto de vista de corrosão. Em termos de odores, àquelas concentrações poderão corresponder, em determinadas condições, impactes ambientais mais ou menos significativos. Para averiguar quantitativamente os efeitos da corrosão, deve ser aplicada a expressão (8.17), admitindo as condições do escoamento correspondentes a concentrações médias anuais de sulfuretos.

No que respeita à qualidade do ar na atmosfera dos colectores existem dois procedimentos muito comuns:

a) conceber e dimensionar os equipamentos de desodorização, ou de controlo de septicidade da massa líquida, após o sistema estar construído e em exploração, e poder quantificar-se, no campo, os parâmetros de projecto. Este procedimento tem inconvenientes óbvios, do ponto de vista de reacção pública da comunidade afectada durante o período inicial de exploração, em que os efeitos, nomeadamente de odor, se fazem sentir, mas é, sem dúvida, o procedimento mais comum;

b) conceber e especificar os órgãos e equipamentos de desodorização, do lado da segurança, admitindo que a concentração de gás sulfídrico na atmosfera é, na condição do sistema, a máxima potencialmente possível, isto é, admitindo que aquela concentração iguala a concentração de equilíbrio, dada pela lei de Henry, em função da concentração de sulfureto de hidrogénio em solução previamente calculada. Nesse caso, a ordem de grandeza dos erros de sobredimensionamento variam, muitas vezes e em relação aos valores reais, entre cinco e vinte vezes.

8.5. Regras e procedimentos de controlo dos efeitos do gás sulfídrico

8.5.1. Considerações introdutórias

Nos sistemas de drenagem de águas residuais podem ocorrer outros compostos, para além do sulfureto de hidrogénio, tais como alguns mercaptanos, susceptíveis de provocarem odor desagradável. No entanto, o consenso geral é de que a presença desses compostos se relaciona com a dos sulfuretos, de tal modo que as medidas preventivas e correctivas conducentes a controlar a formação e efeitos do sulfureto de hidrogénio também inibem a produção e efeitos de outros compostos odoríferos.

Tem pois sentido, segundo tal perspectiva, controlar a libertação de odor e a corrosão em sistemas de drenagem de água residual, limitando a valores admissíveis a concentração de sulfuretos na água residual.

A criação de atmosferas tóxicas, a libertação de odor indesejável e a ocorrência de corrosão em sistemas de drenagem de água residual podem ser minimizadas, atenuadas ou mesmo completamente anuladas, implementando os seguintes procedimentos:

1) cumprimento de regras específicas da manutenção e exploração dos sistemas de drenagem, nomeadamente no que diz respeito ao funcionamento de instalações elevatórias, e à limpeza periódica das condutas sob pressão e dos colectores gravíticos com escoamento com superfície livre;

2) tratamento químico da água residual escoada em condições de septicidade;

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3) alterações estruturais, mais ou menos significativas, na concepção e funcionamento dos sistemas, incluindo, nomeadamente, redução da extensão das condutas sob pressão e do número de instalações elevatórias ou sifões invertidos, remodelação de colectores gravíticos de modo a terem maiores declives, utilização de tubagens protegidas da corrosão, construção de postos de ventilação, etc..

Nas secções 8.5.2 e 8.5.3 dá-se especial ênfase aos aspectos constantes dos pontos 1) e 2) acabados de referir.

As situações críticas dos sistemas de drenagem, no que respeita ao comportamento hidráulico-sanitário, são, em regra, motivadas por:

- colectores com atmosfera mal ventilada, como a que se pode desenvolver a montante de sifões invertidos, instalações elevatórias ou secções das redes de drenagem onde as obstruções sejam mais frequentes;

- caixas de visita (e colectores vizinhos), onde sejam rejeitados efluentes industriais com elevadas temperaturas;

- caixas de visita (e colectores vizinhos), onde aflua águas residual transportada sob pressão;

- colectores onde o escoamento se processe com elevada turbulência, devido à ocorrência de quedas bruscas ou de mudanças súbitas de direcção da corrente líquida;

- poços de bombagem, câmaras repartidoras de caudal, descarregadores ou outros espaços cobertos, porventura mal ventilados, em contacto com a massa líquida.

8.5.2. Regras de exploração de natureza mecânica

Embora constitua matéria própria de exploração de sistemas, considera-se pertinente incluir aqui algumas considerações relativas à exploração das redes de drenagem, a ter em mente na fase de projecto.

Existe uma série de acções e medidas, de carácter preventivo e de fácil implementação prática, que permitem atenuar, pelo menos em parte, os efeitos da formação de sulfuretos em sistemas de drenagem de água residual. Nestas acções e medidas consideram-se incluídas operações de limpeza e lavagem, de natureza essencialmente mecânica, que podem ser levadas a cabo por dispositivos especiais, concebidos para o efeito, e que são posicionados tangencialmente ao longo da superfície interna dos colectores, por ordem a promoverem a sua limpeza. Efeito semelhante pode ser conseguido, através da descarga de caudais adequados pelos colectores, nomeadamente nos casos de redes de drenagem com baixos declives. As velocidades de escoamento assim produzidas devem garantir auto-limpeza, promovendo não só o arrastamento de areias e partículas diversas depositadas na meia cana inferior dos colectores, mas também o desprendimento, pelo menos parcial, da porção activa do filme biológico desenvolvido nas respectivas paredes.

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Além de se reduzirem as fontes de formação de sulfuretos, devido ao aumento da velocidade do escoamento e da turbulência, incrementam-se as trocas de oxigénio na interface ar-massa líquida, com benefícios óbvios.

A limpeza deve ser regular e preventiva, isto é, deve ser efectuada ciclicamente, de modo a evitarem-se entupimentos e obstruções totais ou parciais das secções de escoamento.

Na Figura 8.10 apresentam-se os efeitos da operação de limpeza de um colector, na evolução da concentração total de sulfuretos na água residual escoada.

Figura 8.10 - Efeito de uma operação de limpeza, num colector de água residual, na concentração total de sulfuretos (adaptada de Thistlethayte 1972).

A prática, de certo modo bastante utilizada em Portugal, de, em certas condições, implantar câmaras de corrente de varrer em redes de drenagem, em especial nos trechos de cabeceira, não conduz, em regra, aos efeitos de desejados. Este facto está, não raras vezes, associado à falta de cuidados especiais de conservação e manutenção de equipamentos, muitas vezes automáticos.

No que respeita ao comportamento dos poços de bombagem das instalações elevatórias, é corrente verificarem-se decréscimos progressivos da concentração de oxigénio dissolvido, à medida que o tempo de retenção hidráulica da massa líquida aumenta. É corrente verificarem-se decréscimos de 1 mg/(l.h) (1 miligrama de O2 por litro de água residual e por hora de retenção no poço de bombagem). Devido a esta circunstância, torna-se, em regra, especialmente recomendável, segundo esse ponto de vista, diminuir o volume útil dos poços de bombagem, o que deve estar presente na concepção dos equipamentos e na definição dos regimes de funcionamento dos grupos elevatórios.

8.5.3. Procedimentos de natureza química

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O controlo da formação e dos efeitos do sulfureto de hidrogénio, em redes de drenagem de água residual, pode ser conseguido recorrendo a certos procedimentos, entre os quais se incluem os seguintes:

- injecção ou adição de ar, oxigénio puro e certos agentes químicos (como cloro, permanganato de potássio e peróxido de hidrogénio) à massa líquida; estes compostos actuam, por um lado, oxidando os sulfuretos dissolvidos e, por outro, inibindo a actividade das bactérias anaeróbias redutoras do ião sulfato;

- adição de nitratos (como o de sódio) à massa líquida; os nitratos, na ausência de oxigénio livre, oxidam os sulfuretos dissolvidos mas não inibem a actividade das bactérias redutoras do ião sulfato;

- adição de determinados tipos de reagentes metálicos, como compostos de cobre, de zinco e de ferro, que entram em reacção com os sulfuretos, originando compostos insolúveis em água, que precipitam;

- adição de bases fortes, que actuam elevando o pH da massa líquida, induzindo, assim, a presença de sulfuretos dissolvidos, apenas sob a forma de ião sulfureto (S2-) e de ião hidrogenosulfureto (HS-); por outro lado, a adição de bases pode inibir a actividade das bactérias anaeróbias redutoras do ião sulfato.

Injecção de ar

A injecção de ar (a concentração de oxigénio no ar, à temperatura de 20°C e à pressão atmosférica normal, é de aproximadamente 20,9%, em volume) na água residual que se escoe em condições de septicidade, origina oxidação dos sulfuretos dissolvidos. Se fornecido em quantidade suficiente, evita a formação de sulfuretos a jusante. Entre os vários métodos de arejamento, incluem-se os seguintes:

- injecção directa de ar comprimido nas condutas de compressão;

- recurso a dispositivos de Venturi, que actuam originando depressões que provocam a entrada de ar e o seu emulsionamento na massa líquida;

- recurso à dissolução do ar em tubagem em U, concebidas por forma a funcionarem como sifão invertido em condições de pressão e turbulência favoráveis à dissolução do oxigénio gasoso.

A injecção directa de ar comprimido, recorrendo a dois ou mais compressores, constitui, possivelmente, o método mais comum de injecção de ar em condutas de compressão. Os volumes de ar requeridos dependem das taxas de consumo de oxigénio no interior da massa líquida, do tempo de retenção hidráulica, da temperatura, da pressão na secção de injecção, do perfil longitudinal da conduta e dos graus de controlo e segurança pretendidos. Uma regra prática simples sugere, para controlo dos sulfuretos, a injecção de volumes de ar de 0,75 a 2,25 m3 por m3 de água residual.

Em regra, o dimensionamento de sistema de injecção de ar deve ser precedido de programas de amostragem, tendo em vista definir os valores e a variabilidade temporal das taxas de consumo de oxigénio livre no interior da massa líquida e do filme biológico que reveste as paredes das condutas.

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A injecção de ar na massa líquida, para ser eficiente, deve efectuar-se em condições de pressão e de turbulência favoráveis. É corrente considerarem-se essas condições satisfeitas quando a pressão hidráulica é superior a 0,15 Mpa e a velocidade média do escoamento excede 0,6 m/s.

São citados alguns casos concretos, na literatura técnica da especialidade, de libertação de ar em válvulas colocadas nos sistemas elevatórios, que ascende a 30% dos volumes injectados.

Injecção de oxigénio puro

A injecção de oxigénio puro em condutas de compressão ou em colectores com escoamento com superfície livre, como meio de controlar a presença de sulfuretos na massa líquida, tem sido amplamente utilizada, nomeadamente na Grã-Bretanha, Austrália, Estados Unidos da América e Brasil.

Segundo Environmental Protection Agency 1985 existem em funcionamento, só na Grã-Bretanha e Austrália, mais de uma centena de instalações de injecção de oxigénio em sistemas de drenagem de água residual.

O recurso à injecção de oxigénio puro tem, em relação à injecção de ar, as seguintes vantagens:

- dispensa de compressores de ar;

- maior eficiência dos grupos electrobomba, que se traduz por economia, por vezes significativa, nos encargos de energia de bombagem;

- garantia de maior solubilidade; para as mesmas condições de pressão e temperatura, o oxigénio é cerca de cinco vezes mais solúvel na água do que o ar;

- menor necessidade de caudal a injectar, o que traduz, nomeadamente, em redução das taxas de formação de bolsas de gás, que não chegam a dissolver-se;

- maior eficiência do processo de “tratamento”, criando condições para a presença de oxigénio dissolvido residual, após a oxidação total dos sulfuretos dissolvidos inicialmente presentes.

A fim de serem garantidas boas condições de dissolução na massa líquida, a injecção de oxigénio é efectuada, em regra, recorrendo a difusores constituídos por material flexível microperfurado, por onde sai o gás para o fluído em movimento. O oxigénio é armazenado, sob a forma líquida, num tanque protegido, em regra cilíndrico, no interior do qual a pressão é suficiente para garantir a sua injecção nos locais pretendidos, sem encargo adicional de energia.

A oxidação dos sulfuretos exige, em regra, um mínimo de 1 g de oxigénio por cada grama de sulfureto dissolvido presente. A manutenção do escoamento da massa líquida em condições aeróbias exige a injecção de caudal suficientemente elevado para satisfazer as necessidades vitais dos microrganismos presentes no interior das condutas de compressão.

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Em determinadas circunstâncias, pode justificar-se a utilização de equipamentos específicos, como bicones (dispositivos com uma forma cónica, concebidos de modo a promoverem condições de turbulência e de contacto entre o oxigénio gasoso e a água residual, que possibilitam a sua dissolução), para se garantir adequada eficiência de “tratamento”. Estas circunstâncias podem estar associadas a condições insuficientes de velocidade de escoamento, de pressão ou do tempo de contacto oxigénio-massa líquida, que inviabilizam o método de arejamento por injecção directa.

Adição de cloro

Uma outra técnica alternativa para o controlo sanitário em sistemas de drenagem de água residual consiste em adicionar hipoclorito ou cloro, sob a forma gasosa, à massa líquida. Em regra, o hipoclorito é usado em aplicações ocasionais ou quando as ne-cessidades não são significativas (menores que 2,3 kg/dia).

Se for adicionado cloro em excesso à água residual contendo sulfuretos dissolvidos, ocorre a seguinte reacção:

HS- + 4Cl2 + 4H2O → SO42- + 9H+ + 8Cl- (8.21)

de acordo com a qual, a oxidação completa de 1 g de sulfuretos exige 8,87 g de cloro.

Se o cloro for adicionado lentamente a uma solução contendo sulfuretos e mantida em grande agitação, pode ocorrer a seguinte reacção

HS- + Cl2 → S + H+ + 2Cl- (8.22)

segundo a qual, a oxidação de 1 g de sulfuretos exige 2,22 g de cloro.

A água residual inclui, em regra, vários compostos que reagem com o cloro. Devido a este facto, em aplicações práticas, as taxas de adição de cloro normalmente variam entre 10 e 15 g por grama de sulfuretos dissolvidos a oxidar.

A adição de cloro deve ser efectuada em locais de elevada turbulência, sendo os sistemas dimensionados de acordo com as necessidades estimadas pelos resultados de uma campanha de análises previamente realizada.

Adição de peróxido de hidrogénio

O peróxido de hidrogénio oxida o ácido sulfúrico, de acordo com as seguintes reacções:

para pH < 8,5 H2O2 + H2S → S + 2H2O (8.23)

para pH ≥ 8,5 4H2O2 + S2- → SO42- + 2H2O (8.24)

Quando o pH do meio é inferior a 8,5, a oxidação dá-se com o consumo de 1 g de H2O2 por grama de H2S. Na prática, em regra, os volumes de peróxido de hidrogénio adicionados ao líquido são maiores (até 3 g de H2O2 por grama de H2S), dependendo, em parte, da intenção de criar um ambiente aeróbio residual, onde a formação de sulfuretos não tenha lugar. Nessas condições, os volumes a adicionar dependerão da temperatura, da carência bioquímica de oxigénio e das características hidráulicas do escoamento.

260

A reacção de peróxido de hidrogénio com o ácido sulfídrico processa-se rapidamente. Em regra, a reacção completa-se totalmente em 30 a 45 minutos.

A adição de peróxido de hidrogénio, como meio de controlar a presença de sulfuretos em sistemas de drenagem, tem as seguintes vantagens em relação a processos de controlo alternativos:

- pode aplicar-se em condutas de compressão ou em colectores com escoamento com superfície livre;

- os equipamentos e os sistemas de alimentação são relativamente simples e económicos;

- as reacções dão origem a subprodutos que não são tóxicos para o homem; - a decomposição do peróxido de hidrogénio fornecido em excesso dá origem a

oxigénio dissolvido, que pode inibir a posterior formação de sulfuretos no sistema;

- com a aplicação de peróxido de hidrogénio em quantidades adequadas, a produção de sulfuretos é suprimida, num intervalo de tempo entre 3 e 4 horas, após as reacções de oxidação.

Apesar destas vantagens, é importante salientar que os encargos de exploração associados à aplicação de peróxido de hidrogénio poderão ser significativos.

Adição de permanganato de potássio, sais metálicos, nitratos e bases fortes

O permanganato de potássio (KMnO4) é um oxidante forte, reagindo com o ácido sulfúrico, de acordo com as seguintes reacções:

em meio ácido

3H2S + 2KMnO4 → 3S + 2H2O + KOH + 2MnO2 (8.25)

em meio alcalino

3H2S + 8KMnO4 → 3K2SO4 + 2H2O + 2KOH + 8MnO2 (8.26)

Em aplicações práticas, podem ter lugar diversas reacções intermédias, tornando difícil, portanto, a previsão das dosagens adequadas. Em regra, são necessários 6 a 7 g de KMnO4 para oxidar 1 g de H2S. O elevado custo do permanganato de potássio leva a aconselhar a sua utilização, apenas para aplicações esporádicas.

Diversos sais metálicos têm a capacidade de reagir com os sulfuretos dissolvidos, originando compostos que precipitam. Um exemplo típico é o da seguinte reacção:

Fe2+ + HS- → Fe S + H+ (8.27)

O zinco também tem sido utilizado para o controlo de sulfuretos em sistemas de drenagem de água residual, verificando-se, em aplicações práticas, que a remoção de 1 g de sulfuretos dissolvidos exige 10 a 15 g de zinco.

Outros metais, tais como o chumbo e o cobre, podem também ser utilizados com o mesmo objectivo. No entanto, os elevados encargos que lhe estão associados e os

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eventuais efeitos negativos, a jusante, nos processos de tratamento biológico da água residual, podem ser factores que desaconselham a sua utilização.

Na presença de nitratos, as bactérias redutoras ficam inibidas, não se verificando a redução bioquímica dos sulfatos a sulfuretos. Esta circunstância tem levado à utilização, nomeadamente de nitrato de sódio para o controlo de sulfuretos em sistemas de drenagem de água residual. Em regra, são necessários 10 g de nitrato para remover 1 g de sulfuretos. No entanto, é do consenso geral que o uso de nitratos tem uma utilidade bastante limitada no que concerne ao controlo sanitário de sistemas de drenagem de água residual, tendo apenas sentido a sua utilização quando as concentrações de sulfuretos são elevadas.

A adição de bases fortes (como hidróxido de sódio) à água residual séptica eleva o pH da solução, reduzindo a percentagem de ácido sulfídrico, em relação aos iões HS- e S2-. Se a dosagem adicionada for tal que o pH da massa líquida ascenda a mais de 12,6, durante cerca de 30 minutos, pode esperar-se uma redução praticamente total da actividade dos microrganismos redutores, e da produção de sulfuretos no troço tratado. Esse efeito inibidor pode persistir durante alguns dias.

Em regra, a adição contínua de bases fortes em redes de drenagem, de modo a manter a massa líquida com um elevado pH, não é suficientemente eficiente. A renovação contínua da água residual afluente e a formação de dióxido de carbono e de ácidos orgânicos provenientes do metabolismo biológico no interior da massa líquida, tendem a fazer baixar o pH da solução, verificando-se essa tendência para jusante da secção de aplicação.

8.6. Apresentação de exemplos de cálculo

Nesta secção são apresentados três exemplos de cálculo ilustrativos do exposto anteriormente. O primeiro diz respeito à estimativa da formação de sulfuretos numa conduta sob pressão; para o efeito, aplica-se a expressão de Pomeroy (expressão 8.8). O segundo exemplo é relativo à avaliação qualitativa das condições de produção de sulfuretos num colector com escoamento com superfície livre; para tal, aplica-se a divulgada expressão de “Zp” também proposta por Pomeroy (expressão 8.10). O terceiro exemplo de cálculo refere-se à avaliação de sulfuretos totais, sulfureto de hidrogénio na massa líquida e gás sulfídrico no ar. Para tal aplicam-se as expressões (8.12) a (8.14). Para cada um dos exemplos de cálculo são apreciados os resultados obtidos.

EXEMPLO DE CÁLCULO 1

Dados de base

- Diâmetro da conduta sob pressão: D = 150 mm

- Extensão: L = 600 m

- Caudal de cálculo: Q = 0,02 m3/s

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- Carência bioquímica de oxigénio (5 dias a 20°C): CBO5 = 400 mg/l

- Temperatura da massa líquida: T = 20°C

- Concentração nula de sulfuretos na secção inicial da conduta elevatória

Cálculo sanitário

- Velocidade média do escoamento: V = Q/S = (0,02 x 4) / π x 0,152) = 1,13 /s

- Tempo de retenção: tr = L/V = 600/1,13 = 530 s = 0,15 h

- Formação de sulfuretos totais:

Sj = 0,001 CBO5 1,07(T-20) x (4/D + 1,57) tr

= 0,001 x 400 x 1,07(20-20) (4/0,15 + 1,57) x 0,15

= 1,7 mg/l

Comentários

Dado que o valor obtido excede 1,5 mg/l, é de temer alguns problemas sanitários (como manifestação de odor desagradável e ocorrência de corrosão) nas estruturas de drenagem e tratamento que se desenvolvem a jusante. Na própria conduta elevatória sob pressão, estes problemas não se manifestam, visto não haver contacto com a atmosfera e, por isso, condições para a libertação do gás sulfídrico.

A expressão empírica de cálculo utilizada fornece, em regra, resultados conservativos, sendo de esperar que tais problemas apenas possam ocorrer em períodos críticos e localizados no ano, associados a dias de temperatura elevada.

EXEMPLO DE CÁLCULO 2

Dados de base

- Diâmetro do colector: D = 400 mm

- Declive: i = 0,0025 m/m

- Caudal de cálculo: Q = 0,052 m3/s

- Carência bioquímica de oxigénio (5 dias a 20°C): CBO5 = 400 mg/l

- Temperatura da massa líquida: T = 20°C

- Coeficiente de rugosidade de Manning: N = 0,013 m-1/3 s

Cálculos hidráulicos

- Caudal escoado a secção cheia (Qsc):

263

Qsc = 1N S R2/3 J1/2 = π x 0,42 / (4 x 0,013) (0,4/4)2/3 (0,0025)1/2 = 0,104 m3/s

- Largura superficial do escoamento (b): Q/Qsc = 0,5 : b = D = 0,4 m

- Perímetro molhado (p): Q/Qsc = 0,5 : p = π D/2 = 0,63 m

- Parâmetro “f”: f = 1,4 b (Q/Qsc)0,064/p = 1,4 x 0,4 x (0,5)0,064/0,63 = 0,85

Cálculo sanitário

- Parâmetro “Zp”:

Zp = (0,305 CBO5 1,07(T-20)) / (Q1/3 J1/2 f) =

= (0,305 x 400) / (0,0521/3 x 0,00251/2 x 0,85) = 7683

Comentários

Como o valor do parâmetro “Zp” se situa entre 7 500 e 10 000, é de esperar que o sulfureto de hidrogénio se possa desenvolver em quantidade suficiente para causar odor desagradável e corrosão nos colectores e nas caixas de visita, principalmente em zonas de elevada turbulência. Esta expressão, no entanto, apenas permite avaliar, de forma qualitativa, as condições de formação de sulfuretos no trecho em análise e não tem em conta o efeito, que é relevante, do tempo de retenção. Em situações de projecto especialmente críticas ou que requeiram um maior rigor, torna-se recomendável a aplicação das expressões (8.12) a (8.14), tal como se elucida no exemplo de cálculo 3.

EXEMPLO DE CÁLCULO 3

Dados de base

- Diâmetro do colector: D = 400 mm

- Declive: i = 0,0025 m/m

- Caudal de cálculo: Q = 0,052 m3/s

- Carência bioquímica de oxigénio (5 dias a 20°C): CBO5 = 400 mg/l

- Temperatura da massa líquida: T = 20°C

- Coeficiente de rugosidade de Manning: N = 0,013 m-1/3 s

- Extensão: 3600 m

- pH: pH = 7

- Concentração nula de sulfuretos, na secção inicial do trecho de cálculo: Sm = 0

Cálculos hidráulicos

264

- Caudal escoado a secção cheia (Qsc):

Qsc = 0,104 m3/s (cálculo já apresentado no exemplo de cálculo 2)

- Largura superficial do escoamento (b): Q/Qsc = 0,5 : b = D = 0,4 m

- Perímetro molhado (p): Q/Qsc = 0,5 : p = π D/2 = 0,63 m

- Secção molhada (S): Q/Qsc = 0,5 : S = π x 0,42/8 = 0,063 m2

- Altura média do escoamento (dm): dm = S/b = 0,063/0,4 = 0,16 m

- Velocidade média do escoamento (V): V = Q/S = 0,052/0,063 = 0,83 m/s

Cálculo sanitário

Ct = - L m J0,375 / (3600 dm v0,625)

Slim = M/m CBO5 1,07(T-20) (JV)-0,375 (P/b)

Sj = Slim - (Slim - Sm) exp (Ct)

Admite-se a hipótese moderadamente conservadora para as constantes empíricas M e m, ou seja,

M = 0,32 x 10-3 m/h e m = 0,96

Ct = -3600 x 0,96 x 0,00250,375 / (3600 x 0,16 x 0,830,625) = -0,72

Slim = 0,32 x 10-3/0,06 x 400 x (0,0025 x 0,83)-0,375 x (0,63/0,4) = 2,1 mg/l

Sj = 2,1 - (2,1-0) exp (-0,72) = 1,1 mg/l

Admite-se que 0,2 mg/l dos sulfuretos totais são insolúveis, encontrando-se a parcela restante (DS) dissolvida na solução.

DS = 1,1 - 0,2 = 0,9 mg/l

- A concentração de sulfuretos de hidrogénio em equilíbrio na solução pode ser obtida, conhecendo a concentração de sulfuretos dissolvidos e o pH da solução, recorrendo à Figura .

DS = 0,9 mg/l e pH = 7: [H2S] = 0,5 x 0,9 ≅ 0,5 mg/l

- A concentração de gás sulfídrico no ar pode ser estimada, de forma conservativa, admitindo que é igual a 20% da concentração de equilíbrio. A concentração de equilíbrio pode ser avaliada, recorrendo à Figura 8., em função da concentração de sulfureto de hidrogénio em solução e da temperatura da massa líquida.

[H2S] = 0,5 mg/l, T = 20°C → [H2S]eq = 120 p.p.m.

[H2S]ar = 0,2 x [H2S]eq = 0,2 x 120 = 24 p.p.m.

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Comentários

Neste exemplo de cálculo são obtidos os seguintes valores: concentração de sulfuretos totais - 1,1 mg/l, concentração de sulfureto de hidrogénio em solução - 0,5 mg/l, concentração de gás sulfídrico no ar - 24 p.p.m..

Embora não seja de esperar ataque significativo do colector devido a corrosão (e que pode ser quantificada aplicando a expressão (8.17)), a concentração prevista de gás sulfídrico no ar é muito superior ao limite de percepção, podendo produzir efeitos tóxicos (dores de cabeça, náuseas, irritação da vista, nariz e garganta) quando ocorra exposição humana prolongada. Nestas circunstâncias, deve ser evitada a entrada no sistema de pessoal sem protecções especiais, nomeadamente máscaras apropriadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO CAPÍTULO 8

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