8. a escolha

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Último capítulo da webserie "A Escolha" escrita por Marcos Sá

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Page 1: 8. A Escolha

A EscolhaA EscolhaA EscolhaA Escolha

Por Marcos Sá

Page 2: 8. A Escolha

8. A Escolha 2000 Havia apenas cinco minutos desde que o George chegara em sua cabana. Ele não

queria que ninguém soubesse onde ele se encontrava, tinha que se esconder da melhor

maneira possível, ou então, seria pego e as coisas ficariam feias para o seu lado. Desde

que havia aceitado aquele trabalho, tinha a garantia de que, se saísse da linha, teria que

abdicar de tudo, mas, depois de sentir aquele gostinho, era difícil dizer não e tentar

voltar a viver normalmente.

Ele queria, simplesmente, continuar sentindo aqui... Em seu pensar, não havia

nenhuma vantagem em voltar a sua vida normal. Nada mais lhe agradaria, ele precisava

sentir, ao menos, uma última vez aquela força que subia em seu coração quando estava

agindo. Porém, seu maior pensamento, naquele momento, era fugir; não poderia ser

encontrado, mas, no fundo, sabia que isso era impossível. Ninguém fugia do seu chefe.

George se deitou no colchão, que estava no chão da cabana, e tentou não pensar

no que poderia lhe acontecer. A imagem do seu último trabalho, aquele que não houvera

cumprido as ordens, ainda surgia em sua mente. Já se passara muito tempo desde que

deixara o trabalho pela metade e quase fora descoberto. As coisas estavam, realmente,

ruins para o seu lado. Quando decidiu confiar em seu ambiente e fechar os olhos,

percebeu que havia algo do lado de fora. O seu corpo se estremeceu e os seus pelos

estavam arrepiados; não precisava, sequer, olhar para ter a certeza de que o que o

esperava, ali, não lhe faria bem algum.

O rapaz se ajoelhou e ficou tentando analisar onde estaria o seu algoz. Ainda de

olhos abertos, acompanhou uma sombra e constatou a presença de um animal. Sabia

como aquela história terminaria.

“Filho da puta, me encontrou...”

De repente, a sombra do animal se dispersou e, como já esperado, uma mão

começou a abrir o zíper da cabana. George ficou parado, tentando não ter um ataque de

nervos; tentando se perguntar o que aconteceria depois que o encontro fosse fatidicado.

A cabana estava, completamente, aberta e, por sua vez, George se afastou ao máximo da

abertura. A sombra da pessoa se aproximou e, então, o rapaz conseguiu enxergá-lo de

verdade.

- George... – a voz era grotesca, parecia que não falava o que, realmente, queria

falar. Era uma voz rasgada, com um tom de dor, de sofrimento.

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O rapaz da cabana nunca havia encarado, tão de perto, o seu patrão daquela

forma. Ele estava com tanto medo que o seu corpo já não respondia, automaticamente,

os seus comandos. Era como se uma força sobrenatural o empurrasse contra a tela da

cabana a fim de mantê-lo distante.

- O que você fez, George? – a voz continuava tentando se comunicar com

bastante dificuldade.

- O que você quer? – George respondeu demonstrando todo o seu medo no

tremor da sua voz.

- Você arruinou tudo e sabe disso...

- Você é um filho da puta... Sabia que eu tinha descoberto.

- Não me interessa... Quando você aceitou fazer isso, sabia que era pra valer e

havia me dito que conseguiria. Eu passei muitos anos te vigiando e, quando finalmente,

eu percebo que é confiável, acabou com tudo. – a voz daquela pessoa acabava com todas

as esperanças do George de que poderia acabar tudo bem.

- Por que logo ele? – George perguntou tentando não demonstrar nenhuma

afeição.

- Por que não?

- Porque você fez de propósito... Você sabia que era alguém importante... A única

pessoa com quem eu me importava.

- Era o seu último teste. – a calma na voz do algoz era algo que perturbava o

rapaz de dentro da cabana.

- Você tinha tudo...

- Você estragou tudo, meu jovem. – a voz parou. – Agora, não há outro jeito. Você

não serve para o trabalho.

Neste momento, a mão penetrou a cabana, e o George conseguiu enxergar, pela

primeira vez, tão de perto, o corpo flagelado da pessoa que conversava com ele. Não

sabia o que pensar, não sabia o que sentir... Seria medo, pavor, pena, dor? Ele não fazia a

mínima ideia, só sabia que deveria dar o fora dali, mas tinha a certeza de que não seria

tão fácil.

- Venha comigo, meu jovem. – não só a mão, mas então, todo o corpo estava

dentro da cabana.

Já não era mais tempo de ficar em estado de choque. A partir dali, se o George

quisesse continuar vivo, deveria correr o mais rápido que pudesse. O rapaz tentou chutar

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aquela coisa horrenda que se aproximou dele. Não conseguiu, o seu chute passou bem

longe do rosto da criatura. Ele se levantou com tanta força que arrebentou tudo o que

estava prendendo aquela cabana no chão. Após se ver livre, começou a correr como se

não tivesse mais o que fazer. Olhou pra trás e percebeu que ninguém estava em seu

calcanhar.

Diminuiu os passos, pois já se sentia seguro o suficiente e, também, não tinha

mais fôlego. O seu coração batia de uma forma tão acelerada que era capaz de morrer ali

mesmo. Se não soubesse do seu grande segredo, pensaria que estava morrendo.

Começou a andar, mais devagar, por entre as árvores e tentou localizar algum lugar

seguro para conseguir se esconder. Sabia que aquela perseguição, uma hora, teria o seu

fim, mas não queria que fosse ali... Não naquele instante.

George encontrou, ao longe, uma casa. Não sabia, exatamente, se era uma

residência, uma loja ou qualquer outro tipo de estabelecimento; só sabia que precisava

entrar e pedir ajuda. Não fazia a mínima ideia de como seria essa ajuda... Não podia,

simplesmente, ligar pra polícia e dizer, claramente, quem o perseguia. Na verdade, tinha

que continuar se escondendo e torcer para que o seu algoz o esquecesse com o tempo. Se

ainda tinha toda aquela força, poderia provar, uma hora ou outra, que estaria apto à

função.

George se aproximou da casa, tentou olhar pela janela e viu que não havia

ninguém. Ele tentou abrir a porta, mas não teve sucesso. Rodeou e procurou por alguma

forma de passagem que lhe assegurasse. Não conseguiu achar nenhuma forma de

adentrar aquela residência. Olhou, mais uma vez, pela janela e percebeu que alguém

morava ali. Havia sofás, televisão, estante, mesas, cadeiras... Ele conseguiu perceber que

não era uma casa comum. Talvez, quem sabe, fosse uma pousada. Não soube decifrar.

O rapaz se afastou da casa e, ao olhar pra janela novamente, viu o reflexo de um

animal atrás dele. Virou-se, rapidamente, e se deparou com um cão preto que o encarava

de uma forma tranqüila. Ele reconheceu o animal do mesmo dia em que havia falhado

em seu teste.

- O que você quer? – ele se encostou na parede da casa. – Saia daqui.

O cão nada fazia. Então, sentou-se e começou a lamber a sua pata dianteira.

- Saia daqui, seu infame...

O cão se levantou, andou à sua direita e caminhou em direção à parte de trás da

casa. George não sabia o que ele estava planejando. Poderia fugir, mas sabia que seria

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pego de qualquer forma. O rapaz se levantou e, vagarosamente, foi andando até o local

onde o cão deveria estar. Apoiou-se à parede e tentou verificar o que estaria acontecendo

ali. Não conseguia mais enxergar o animal. Tentou levar mais da metade do seu corpo

para poder enxergar melhor, mas continuou sem vê-lo. Olhou à sua direita e nada

encontrou, olhou um pouco mais à frente e ficou sem nenhuma resposta também.

Decidiu, então, se virar para correr, mas, ao fazê-lo, deu de cara com o seu algoz.

George, com o susto, tentou se jogar pra trás, mas já era tarde demais. Aquelas

mãos horríveis já estavam em contato com o seu corpo. Aquilo o segurava com uma força

gigantesca. Pela primeira vez, o rosto de George chegou tão perto a ponto de ver as

feridas que estavam não cicatrizadas no pálido rosto daquele ser desprezível.

- Você não me serve mais... – a voz grotesca falou ao ouvido do rapaz.

- O que vai fazer comigo? – George tremia dos pés à cabeça.

- Só o combinado.

- Me deixe tentar mais uma vez...

- Adeus.

Dias de Hoje

- Senhora, precisamos saber se o seu filho está passando por algum problema. Ele

é uma pessoa violenta. É suspeito dos assassinatos e foi visto invadindo a casa da sua

namorada pra tentar matar alguém. O seu próprio filho está falando isso.

- Não há nada. Ele é uma criança normal. Que saibamos, ele não está passando

por problemas nenhum. Muito pelo contrário, as suas notas na escola melhoraram, ele

tem saído bastante de casa com os amigos e nada aqui em casa o tem preocupado. – disse

a mãe de Renan.

- Tem certeza? Isso será importante até mesmo pra saber onde ele está. – o

policial continuou insistindo com a mulher.

- Você sabe de alguma coisa, meu bem? – a mulher perguntou ao seu marido.

- Nada que eu saiba, meu amor. – o homem se virou para os policiais. – Por favor,

me acompanhem... Se vocês não se importam, tem sido um dia cansativo pra gente. A

minha esposa não suporta mais tantas perguntas. Se tivermos qualquer notícia do Renan,

pode ter certeza que o chamaremos.

Page 6: 8. A Escolha

Os policiais saíram da casa, e os pais do Renan e o seu irmão ficaram abalados

com tudo o que estava acontecendo.

- Meu filho, você tem certeza que era o seu irmão? – Antônio perguntou ao seu

filho.

- Sim, pai. Eu percebi que ele estava agindo diferente. Ouvi um barulho, de

madrugada, e saí para ver o que era... Percebi que era o Renan e vi que ele estava saindo

de casa. Decidi segui-lo, pois achei tudo muito esquisito. Ele pegou uma coisa e saiu.

Estava indo em direção à casa da Rita. Eu fiquei assustado, mas continuei seguindo ele.

- E o que aconteceu depois?

- Percebi que ele entrou na casa, pegando uma chave reserva.

- Meu Deus, a Rita deve estar muito abalada com tudo isso... Por que ele queria

ferir ela? – Helena não conseguia entender o que estava se passando com o seu filho mais

velho.

- Ele invadiu a casa e começou a subir as escadas... Foi aí que eu me aproximei pra

tentar falar com ele e recebi uma paulada de alguém... Caí da escada, mas já estava sem

forças, quase desmaiando. Olhei e vi que havia um homem dentro da casa. Deve ser o

cúmplice do Renan.

André estava afoito. Queria contar a história toda, mas sabia que se o fizesse,

teria que acabar contando sobre o seu relacionamento com o irmão da Rita. Não queria

contar aos pais, ao menos não naquelas circunstâncias, o seu caso de amor homossexual.

Ele se sentia culpado, sabia que o irmão não era capaz de fazer nada de mal, mas não

queria aceitar a ideia de que o seu irmão queria matar o melhor amigo por descobrir que

ele era o seu namorado.

- Você sabe de alguma coisa? Ele brigou com a Rita? – Helena perguntava

desesperada.

- Não sei de nada, mãe. Como eu disse, achei que ele estava estranho e decidi

segui-lo.

- Meu Deus, o que tá acontecendo com o meu menininho? – ela se jogou nos

braços do marido e começou a chorar.

- Calma, Helena... Tudo vai ficar bem.

Antônio também estava escondendo o seu segredo e tinha uma pena de remorso

também por pensar que o motivo do enlouquecimento do seu filho era a sua última

descoberta.

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O pai dos garotos passou a noite toda acordado, em seu escritório, pensando em

alguma maneira de encontrar o seu filho. Sabia que seria difícil, mas tinha que pensar

bastante. O homem decidiu abrir o seu cofre, pegar a sua arma e sair, pelo condomínio,

tentando encontrar o garoto.

André não conseguia dormir. Andava de um lado a outro, em seu quarto, na

esperança de encontrar o Henrique. O garoto ouviu um barulho, na parte de baixo da sua

janela, e olhou, rapidamente, para verificar se o seu namorado tinha chegado. Ele

observou, mas não via o Henrique no local onde sempre ficava quando vinha lhe visitar.

Olhou mais adiante e acabou vendo o seu pai saindo de casa, entrando no carro e

colocando alguma coisa no porta-luvas. O garoto não conseguiu visualizar o objeto que o

pai tentava guardar.

Ele desceu as escadas, com muita pressa, para pegar o seu pai no meio do

caminho. Abriu a porta e deu de cara com o Henrique.

- Rick... – ele ficou estupefato. Não queria contar ao seu namorado o que acabara

de ver. E se o comparsa do seu irmão fosse o seu pai?

- Como você tá? – Henrique perguntou e entrou na casa.

- Estou com medo de tudo isso.

- Não fica assim... Vamos encontrar o Renan, e ele vai explicar o que estava

fazendo. – o garoto respirou fundo. – Tenho certeza que ele não teria coragem de me

fazer nenhum mal.

- Eu quero muito pensar nisso, mas pela raiva que eu sentia nos passos dele, sabia

que ele ia lhe ferir.

- O Renan é o meu melhor amigo, ele não faria isso... Com certeza, ia querer me

dar algum tipo de susto... Depois, ia pedir desculpas...

- Ele tinha um comparsa, e o comparsa dele meteu uma porrada na minha cabeça

e me fez desmaiar. Sabe-se lá o que poderia ter feito comigo.

- Vamos pro seu quarto... Quero poder cuidar de você.

Os dois garotos subiram e tentaram não pensar mais no assunto.

...

Renan acordou e sentiu uma forte dor de cabeça. Estava tonto e não fazia a

mínima ideia de onde estava. Foi abrindo os olhos, aos poucos, e se recordando, tão

vagarosamente quanto, da madrugada. Quando se lembrou que fora arrastado, pelo

Page 8: 8. A Escolha

homem de preto, pra fora da casa do Henrique, se levantou apressado e começou a olhar

para todos os lados. O garoto conseguiu identificar o local. Já sabia que estava no mesmo

lugar onde a sua irmã havia sido encontrada morta por ele e Henrique.

- Olha, você já acordou. – o garoto ouviu a voz e se virou, rapidamente, pra sua

direita. Viu o homem de preto se aproximando.

- O que você fez comigo?

- Não fiz nada. Apenas, lhe salvei. – o homem parecia bem calmo.

- O que está fazendo? O que está acontecendo comigo?

- Você está passando por um processo e, a partir de hoje, as coisas irão piorar

para o seu lado.

- Como assim? – ele estava desesperado pra saber a verdade.

- Você se lembra de tudo que aconteceu antes de chegarmos aqui?

- Mais ou menos... Me lembro de estar na casa do Henrique, com uma vontade

incontrolável de fazê-lo sofrer.

- Eu sei bem como é.

- O que está acontecendo?

- Olha, eu vou lhe explicar, mas será bem difícil de você acreditar no começo.

O homem de preto começou a andar em círculos. Não sabia por onde começar,

tinha a certeza de que esse momento chegaria, mas não conseguia pensar em uma

maneira de iniciar aquela história.

- Primeiramente, você deve saber quem eu sou. – o homem começou a parar e a

encarar o menino. – Meu nome é George, eu venho andando por todo esse país em busca

de algo que você entenderá no final. Há muitos anos, eu estava passando por uma crise

muito grande. Os meus pais morreram em um acidente de carro, e a minha e namorada

havia contraído uma doença venérea e ninguém sabia como tratá-la. Eu estava

desesperado, não tinha nenhuma noção do que aconteceria na minha vida. Pra tudo ficar

completo, descobri que o meu pai tinha uma outra família, mas nunca havia mencionado

isso a ninguém. Tentei descobrir, por muitos anos, quem eram essas pessoas... Tudo

tinha sido em vão.

O garoto ficou encarando o homem de preto e, pela primeira vez, notava uma

certa humanidade nele.

- No meio dessa viagem, à procura da família que o meu pai havia construído,

encontrei um homem que disse que poderia me ajudar. Eu me encontrei com ele, no

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local devido, e ele, simplesmente, não apareceu. Nesta mesma noite, eu fui andando pra

casa e me deparei com um homem de rua, que me pediu um minuto da atenção, eu não

quis parar. Obviamente, estava com medo de ser assaltado, mas ele não me deixou

escolhas... Segurou a minha perna e falou algo que eu não pude entender. De repente, eu

me senti mal, mas consegui sair correndo.

- O que tudo isso tem a ver comigo? – o garoto o interrompeu...

- Tenha calma... Você vai entender. – o homem de preto decidiu se sentar

próximo ao garoto. – Desde aquela noite, comecei a perceber que o meu corpo estava

diferente. Comecei a perceber que eu não era mais o que era há alguns dias. Não

conseguia dormir direito, não conseguia pensar com clareza e, pra piorar a situação, eu

apagava e não me lembrava o que tinha feito.

A partir daquele momento, o garoto começou a se interessar mais pela história,

pois começava a perceber que existia muito dele ali.

- Cheguei a uma cidade do interior, pois, depois de alguns dias, o meu instinto

parecia bem aguçado. Eu tinha mais noção de espaço, de lugar, de distância... Eu sabia,

exatamente, onde as coisas e as pessoas estavam. Andei, de uma forma errante, por

vários lugares em busca do meu irmão que, por algum motivo, passei a saber que existia.

Neste meio caminho, encontrei uma pequena cidade e tive que parar por alguns meses,

não sabia o porquê, mas parei. Depois da primeira noite, coisas estranhas começaram a

acontecer, eu comecei a apagar e a acordar em lugares estranhos... O pior de tudo...

Pessoas começaram a morrer. O povo da cidade começou a me culpar, pois, por

coincidência ou não, as mortes começaram depois que eu havia chegado.

- Meu Deus, isso também estava acontecendo comigo...

- Exatamente. – o homem de preto começou a sorrir. – Na minha mente, só havia

uma ideia... Eu tinha que fazer uma pessoa sofrer... Sofrer até morrer. Aí você pode me

perguntar o que me fez perceber que alguma coisa estava errada... Eu podia sentir que eu

não queria aquela pessoa, que estava em minha mente, morta. A minha busca havia

mudado. Voltei pra minha cidade, com muita dificuldade, e tornei a ir ao local onde o

mendigo havia me tocado. Durante dois meses, não consegui encontrá-lo. Foi então que

outra coisa estranha aconteceu. Durante esse tempo em que estava em minha cidade, eu

comecei a controlar a minha concentração... Eu já sabia o momento em que eu iria

apagar, mas não deixava que isso acontecesse. Quando eu menos esperava, quando já

havia perdido as minhas esperanças, o mendigo me reencontrou.

Page 10: 8. A Escolha

Renan estava atônito. Não conseguia nem respirar esperando pelo fim daquela

história. Aquilo tudo poderia lhe parecer loucura, ele poderia estar rindo da cara do

homem de preto, mas tudo que lhe acontecera fazia com que ele respeitasse aquela

história e sentisse, no fundo do seu peito, que nada terminaria bem.

- O mendigo me levou a um lugar escuro, vazio e fedorento. Eu não fazia a

mínima ideia de onde eu estava. Ele veio até mim, sem se aproximar demais, e eu

comecei a perceber que ele falava comigo. Eu não tenho noção de como isso aconteceu,

mas era real. Eu sentia ele me dizendo pra voltar e terminar o meu trabalho... Ele dizia

que a minha vida era lastimável e que a minha única forma de sobreviver era continuar

com o meu trabalho. Eu sabia que era verdade, sabia que aquilo poderia me trazer a

paz... Porque todas as vezes que eu apagava e acordava, sentia que nada de ruim

aconteceria comigo.

- Eu nunca senti isso...

- Porque você ainda tinha pelo que viver. Aos poucos, as suas chances irão acabar.

Eu não tinha escolha. Já não tinha família, amigos, namorada... A única coisa que me

restava era continuar procurando o meu irmão. Decidi, então, ajudar aquele mendigo.

Decidi ajudá-lo a fazer o seu trabalho e prometi a ele que não interromperia o trabalho

mais. Seguiria por toda a rota que me fosse ordenada e faria o que fosse necessário.

- E o que lhe fez parar?

- Em 1992, eu encontrei a pessoa que deveria morrer... Aquela pessoa que estava

em minha mente. Eu estava designado a matá-la...

- E o que houve?

- Quando o olhei, com a sua namorada, percebi quem ele era.

- O seu irmão... – o garoto disse de uma forma trágica.

- Exatamente. Aquela voz em minha cabeça queria que eu matasse o meu irmão.

- E você matou ele?

- Não... Eu não consegui. Me aproximei, percebi que ele sentia a minha presença;

tinha medo. Porém, eu não tive forças para me aproximar, pois ele dizia a sua namorada

que o seu pai poderia defendê-lo. Em um instante, pensei que estava ficando louco... Ele

dizia que o pai dele iria defendê-lo. Por um instante, eu tive a esperança de que o meu

pai estivesse vivo e escondido naquela casa. Deixei os dois escaparem. Quando decidi me

aproximar para dizer a ele a verdade... Que ele deveria ter cuidado, o cão preto se

aproximou e não me deixou outra alternativa que não fosse correr.

- O cão preto... Eu também tenho visto ele.

Page 11: 8. A Escolha

- É... Eu não saberia dizer o que ele é; mas sempre que aparece, significa que

aquilo está por perto.

- E o que houve depois que você deixou eles saírem?

- Eu voltei, dois dias depois, e fui constatar a presença do meu pai. Ao me

aproximar da janela, percebi que ele estava falando de outro homem. Então, fugi para

sempre. Me escondi por quase dois anos e, então, o filho da puta me achou. Eu ainda

tinha todos os sentidos, mas, em um toque, ele retirou de mim. Agora, ele está

procurando por outra pessoa pra fazer o seu serviço.

- Que serviço?

- Ele quer alguém para ficar ao seu lugar e continuar matando as pessoas... É ele

quem assegura a balança. É ele quem faz com que pessoas morram para que outras

possam nascer.

- Você está falando da morte?

Neste momento, sem que eles percebessem, se aproximava mais alguém daquela

mata. Ao ouvir, tarde demais, os passos, olharam e viram o algoz.

- Estão, por um acaso, falando de mim? – George já conhecia aquela voz grotesca,

mas ainda sentia medo do que poderia acontecer. – Meu jovem, eu falei pra você

desaparecer.

- Eu não poderia deixar você arrancar de mim a única coisa que me deixava em

paz. – o homem de preto lhe disse com muita raiva.

- Não adianta... Você provou que não serve pro papel.

- Eu só lhe pedi uma segunda chance.

- Você é humano demais... Em breve, estará morto o suficiente pra não sentir

mais nada.

Enquanto os dois conversavam, o Renan ficava abismado com o que estava

presenciando e sentia o maior medo da sua vida. Não sabia o que fazer. Ficou parando

observando e tentando não enlouquecer.

- Agora, o garoto é capaz... Ele teria matado o seu melhor amigo caso você não

tivesse interferido. – o algoz, vestido com a sua manta marrom, sem mostrar o seu rosto

e andando curvado e lentamente como antes, se aproximou do Renan. – O que me diz,

meu garoto... Esse trabalho é interessante não é?

- Q... Quem é vo... Você?

- Eu sou, exatamente, quem você pensa que eu sou...

Page 12: 8. A Escolha

- Isso não é possível... Isso é loucura.

- Não... Não... Isso é a verdade. Eu já estou há tempo demais nesse serviço... Olha

o que aconteceu comigo.

Neste momento, o algoz começou a retirar o capuz e o seu rosto começou a

aparecer. Era uma imagem horripilante. O Renan sentiu muita vontade de vomitar ao

perceber o que estava a sua frente. Ele sentia que aquilo era o fim, sabia que, no final, ele

teria uma morte trágica. Várias imagens começaram a correr em sua mente. Aquele

rosto, cheio de feridas, de fendas por causa do tempo em que causava dor às pessoas.

- O meu rosto é fruto da dor que tenho que causar às pessoas. Um dia, eu fui tão

belo quanto você. – o algoz foi se aproximando do adolescente e tocou o seu rosto. –

Porém, muitas coisas boas acontecem com você também. Por exemplo, eu não sinto mais

nada. Pode acontecer o que for, eu continuarei pensando a mesma coisa. Não há nada,

neste mundo, que me faça sentir dor, tristeza, alegria... e neste mundo cão... isso é

maravilhoso. Meu garoto, você poderá correr o mundo em um segundo, poderá decidir o

fim de qualquer pessoa... Poderá, enfim, decidir quem morrerá ou não.

- Renan, pense em sua família... Pense em como você ficará se aceitar isso. Você

tem escolha... A escolha não precisa ser feita dessa forma... Você tem uma família... Um

futuro.

- Cale a sua boca, seu infeliz. – pela primeira vez, pôde-se ouvir a ira na voz

daquela coisa. – O seu tempo acabou. – ele se voltou para Renan. – Ande logo, garoto, a

minha presença aqui é terrível... Coisas ruins podem acontecer. Pense logo...

- Não faça isso, Renan... – George tentava convencer o garoto.

- Se você escolher ficar ao meu lado, terá que matar esse pobre e infeliz rapaz...

Ele necessita da morte... Ele não tem mais pelo que viver. – o algoz mexeu em sua roupa

e retirou uma faca. – Tome... Ele é todo seu.

O garoto não sabia o que fazer. Manteve-se parado por muito tempo.

- Anda logo, seu desgraçado. – o algoz aumentou a sua voz. Com isso, o garoto

pegou a faca na sua mão e andou em direção ao homem de preto.

- O que você está fazendo, Renan... Olhe o que você está fazendo. – George

tentava convencer o garoto.

Quando menos esperava, George viu o algoz olhar pra trás com bastante

velocidade e remoer a sua face em um ódio tremendo.

Page 13: 8. A Escolha

- Desgraçado, você me arruinou de novo...

Dois tiros foram escutados. George ficou olhando para o garoto e não conseguiu

se mexer. Passos foram escutados na mata e, então, apareceu o Antônio. George colocou

a mão no peito e sentiu um queimor subir ao seu cérebro. A sua mão estava encharcada

de sangue e, já de joelhos, o homem de preto olhou nos olhos do Renan e suspirou pela

última vez.

Renan olhou pra trás e viu o seu pai. Ele segurava uma pistola e encarava o seu

filho.

- Meu filho, largue essa faca e venha comigo.

- Pai, eu não tenho escolha... A minha vida está destruída... Eu preciso fazer isso.

- Você não precisa fazer nada... Vamos procurar ajuda pra você.

- Pai, você precisa me entender...

- Filho, o que quer que esteja querendo fazer, não faça... A sua vida vale muito.

- Tem certeza, pai?

- Sim... Largue a arma e venha cá.

Renan largou a faca e se ajoelhou. Antônio correu para o seu filho e se ajoelhou

em sua frente e o abraçou.

- Meu filho, nunca mais me assuste desse jeito.

O garoto olhou para o chão, pegou a faca, levantou a sua mão e foi com toda a

força para fazê-la penetrar nas costas do seu pai; mas não esperava que outro barulho de

tiro o alcançasse. O garoto arregalou os olhos e encarou a mata em busca do que teria

feito aquilo. Sem esperar essa verdade, Renan viu Henrique e André chegando. Ele não

acreditou no que havia visto.

- Você... Você me matou? – Renan, com as suas últimas palavras, perguntou ao

irmão.

- Não... Eu o matei.

Um policial chegou por trás do garoto e o afastou do seu pai. André e Henrique

correram em direção a Antônio e o abraçaram. O corpo de Renan estava, ao chão,

segurando a faca que, há poucos instantes, tentara utilizar para matar o seu próprio pai e

selar um acordo macabro com o seu maior algoz.

Page 14: 8. A Escolha

Três meses depois

As pessoas comentavam o que tinha acontecido. Os segredos continuaram se

mantendo e criando novos laços. As vozes continuavam perseguindo as mentes. E a

morte... ainda com a sua mesma vestimenta, procurava um novo substituto, porém, com

a sua ira dobrada, havia prometido acabar com a paz que a humanidade sonhava em

construir... Durante muitos anos, as pessoas continuavam sendo destruídas pelo seu

maior e mais terrível algoz... A falta de fé em si mesmas.