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Página | 32 ENTREVISTA: CARLO GINZBURG historiador italiano Carlo Ginzburg indubitavelmente está deixando sua marca na história da História, obras como “Os Andarilhos do bem”, “História Noturna: decifrando o sabá”, “Mitos, emblemas e sinais”, o emblemático “O Queijo e os Vermes” entre outros fazem deste professor um dos intelectuais mais notáveis da Itália e do Mundo. Suas obras já foram traduzidas em quinze línguas diferentes. Seus estudos pioneiros sobre a redução da escala e a consequente relevância de pequenos contextos dentro de outros grandes revolucionaram a forma da análise documental. Ginzburg é leitura obrigatória para todos aqueles que pretendem entender os processos da produção historiográfica. Ao conceder a Gnarus sua primeira entrevista a um referencial da produção historiográfica internacional, faz com que nós passemos a considera-lo uma espécie de padrinho da revista. Esperamos que aproveitem tanto quanto nós. O

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ENTREVISTA:

CARLO

GINZBURG

historiador italiano Carlo Ginzburg indubitavelmente está deixando sua marca na história

da História, obras como “Os Andarilhos do bem”, “História Noturna: decifrando o sabá”,

“Mitos, emblemas e sinais”, o emblemático “O Queijo e os Vermes” entre outros fazem

deste professor um dos intelectuais mais notáveis da Itália e do Mundo. Suas obras já foram traduzidas em

quinze línguas diferentes. Seus estudos pioneiros sobre a redução da escala e a consequente relevância de

pequenos contextos dentro de outros grandes revolucionaram a forma da análise documental. Ginzburg é

leitura obrigatória para todos aqueles que pretendem entender os processos da produção historiográfica.

Ao conceder a Gnarus sua primeira entrevista a um referencial da produção historiográfica

internacional, faz com que nós passemos a considera-lo uma espécie de padrinho da revista.

Esperamos que aproveitem tanto quanto nós.

O

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1 - O que o levou a se interessar pela História?

Esta pergunta foi feita a mim muitas vezes: eu não estoucerto se respondi da mesma forma. Hoje minhaescolha, eu acho, que é influenciada por uma misturade elementos muito diferentes: ambiental (relacionadoà família, social, etc.) e condicionada (casualidade).Mas isso acontece com todos, sempre, para qualquerescolha.

Quando menino, eu lia romances, então comecei a ficarinteressado pela pintura. Por algum tempo, pensava emser pintor e romancista (minha mãe era uma escritora),logo percebi que me tornaria um pintor medíocre ouum romancista medíocre, então eu desisti. Quandocomecei a faculdade, em Pisa, gostaria de me tornarum historiador de arte, mas eu conheci um professorque mesmo sem querer me fez mudar de ideia. Setivesse estudado em uma faculdade há cemquilômetros de distância, em Florença, teria insistidonaquele projeto e minha vida seria diferente (ai está acasualidade, ou talvez não). Poucos meses depois eleveio a Pisa, para um seminário de um professor dehistória na Universidade de Florença - um grandeestudioso, Delio Cantimori. Com ele, passei umasemana inteira lendo e comentando uma página de umhistoriador, Jakob Burckhardt. Que a leitura lenta eununca esqueci. Logo, li “Les Rois Thaumaturges” doMarc Bloch que me fez perceber que havia livros dehistória muito diferentes do que imaginava. Assimnasceu a minha escolha. Mas, retrospectivamente, eupercebi que ser historiador me permitiu me ocupar demuitas coisas, incluindo pinturas, romances, escreversobre a relação entre História e ficção escrita - ostemas que tinham me atraído quando era jovem. Eu meconsidero muito sortudo.

2 - O seu livro ""Il Formaggio and I Vermi" (O Queijo eos Vermes) se tornou um enorme sucesso. Vocêesperava tamanha repercussão? Como foi escrever estelivro?

Absolutamente não, mas devo dizer que, quando euescrevo um livro nunca penso que será um sucesso ouum fracasso. O que tem contribuído para o sucesso de"O queijo e os vermes"? Em primeiro lugar, eu acho quefoi o seu protagonista, o moleiro Menocchio: umafigura verdadeiramente extraordinária. Depois, há asquestões que estão no centro do livro: o desafio àautoridade, a relação entre cultura oral e escrita.Questões que afetam a todos, em qualquer sociedade,ou quase.

3 - No Brasil a História “está na moda”, um grandeaumento do número de publicações deste gênero sãodestinadas ao público em geral. Como o senhor vê estapopularização da História?

Acho que um país como o Brasil, que entrou em umperíodo de mudanças muito profundas e rápidas, isto é,entrou em contato com sua história para entender nãoapenas como a transformação é possível, mas tambémcompreender como na transformação se perde, demaneira irreversível. Eu não acredito que aquelanostalgia está necessariamente associada com oconhecimento histórico, mas ao sentido de alteração e,portanto, a perda, assim como a conquista do novo.

4 - Hoje, qual o lugar da História na sociedade?

É difícil generalizar. Existem alguns fenômenos novos,comuns no Brasil, que usam a História para alcançarreivindicações morais ou materiais, em nome dainjustiça no passado por determinados grupos(descendentes de escravos ou ex-escravos, porexemplo). Poderíamos falar no geral da historiografia

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identitária. Mesmo quando se trata de reivindicaçõesque eu acredito serem politicamente legítimos,ocorrem dois riscos: o primeiro está relacionado com anoção de identidade, e o segundo aos métodosutilizados na tentativa de se afirmar retroativamente.

Quanto ao primeiro ponto: quando falamos de"identidade", em referência a um grupo, um povo, umanação, um continente, nós construímos uma entidadefictícia, que projeta nos presentes ou passados certostraços culturais ou de outros gêneros. Aqueles quefalam de uma "identidade" italiana ou francesa,europeia, brasileira, etc., fazem para excluir este ouaquele grupo, geralmente minorias, usando deargumentos falso-históricos. E aqui chegamos aosegundo ponto: o uso muitas vezes arbitrário daHistória pelo o que eu chamei de "História deidentidade". Como sempre, o discurso sobre o método(os métodos de história, por exemplo) também é maisou menos diretamente um discurso político.

5 - O que o senhor entende por saber acadêmico?

A pesquisa vem das universidades, mas nem sempre édestinada para um público universitário. Ela seespalhou entre um público mais amplo, os resultadosde pesquisas realizadas por especialistas (no âmbito dauniversidade, mas não necessariamente) são legítimose, se bem conduzidos, muito úteis. Mas é possívelpropor uma finalidade diferente, entre um contatosimultâneo entre uma plateia de especialistas e umpúblico amplo. Isso é o que eu tentei fazer desde o meuprimeiro livro (I Benandanti). Não digo que sempre tiveêxito nisso. Trata-se de envolver o leitor, nãonecessariamente o leitor especialista, no processo deinvestigação. “O Queijo e os Vermes” pode ser vistocomo uma experiência neste sentido.

6 - É possível ser um historiador e trabalhar um temasem estar preocupado com a reflexão teórica?

Super possível, e na minha opinião, totalmentelegítimo. A maioria dos historiadores não fazemperguntas de caráter teórico. Por outro lado, a grandemaioria dos que escrevem sobre a teoria da Histórianunca esteve envolvido na pesquisa histórica empírica.Esta divergência é comum, mas há exceções. Cito omais brilhante: Marc Bloch, o grande historiador doséculo XX. Aqueles que leram “La Société féodale eApologie pour l’histoire” ou “Métier d’historien” (suasreflexões metodológicas postumamente) iráimediatamente entender o que eu quero dizer.

7 - O senhor considera que a metodologia da Micro-história revolucionou a pesquisa historiográfica?

"Revolução" é uma palavra muito enfática. Eu diria quea Micro-história fez perguntas, apresentou asdificuldades, abriu uma frente (em pesquisa e naHistória) a qual nenhum historiador de hoje podeescapar.

8 - Qual conselho o senhor daria para um estudanteiniciante no curso de História?

Muitos anos atrás, um amigo me fez esta pergunta, eudisse impulsivamente "Leia muitos romances". Hoje, nafrente da moda (em baixa, eu penso: Não é mesmo?)que afirma a impossibilidade de distinguir estritamenteentre narrativas históricas e histórias de ficção, eu nãoresponderia da mesma forma, por medo de ser malinterpretado. Eu diria: "leia muitos romances e algunslivros de História" e eu acrescentaria: "a realidade, nopresente e no passado, nunca é transparente, é opaca.Precisamos aprender a decifrá-la. Algumas romances ealguns livros de História nos ajudam a fazer isso".