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7 DESIGUALDADES RACIAIS NO BRASIL E A “LUTA POR RECONHECIMENTO”, POR UMA NOVA COMPREENSÃO DA LIBERDADE 7.1 Reconhecimento Adequado para a População Negra: Identidade Étnica e Identidade Nacional Conforme já dito no capítulo 3, não se trata aqui de, com base nesse debate do multiculturalismo, reivindicar um reconhecimento das diferenças de modo de vida ou visões de mundo entre negros e brancos no Brasil. Repetindo o afirmado, em perspectivas gerais, negros e brancos no país vivem em integração de horizontes culturais ou partilham de uma mesma visão de mundo abrangente, apesar das marcadas diferenças sociais reais provocadas pelo racismo, que os diferencia em termos de perspectivas sociais concretas. O que podemos interpretar com base no pensamento de Taylor, é que a dupla dimensão do reconhecimento que inclui a idéia de identidade pessoal e a de identidade socialmente derivada, explicaria como pode a sociedade brasileira produzir alguns ícones ou personalidades negras e ao mesmo tempo percebermos um racismo perene contra as pessoas negras, coletivamente consideradas, na sociedade. Jacques d’Adesky explica que a passagem da identidade individual para a identidade coletiva, é feita pela noção de pertencimento e pelo processo de identificação. Ele escreve que a identificação está ligada ao sentimento de pertencimento que, por sua vez, é um fator da identidade coletiva. A identidade coletiva é perceber o “mesmo” nos “outros”. Neste sentido, “o grupo torna-se uma coletividade cuja estruturação e unificação permitem um acesso a um nível mais seguro de existência. De agregado, o grupo passa a um estado mais consciente de si próprio.” 1 Com base no filósofo hegeliano Alexandre Kojève, d’Adesky afirma que o homem para se reconhecer enquanto tal, procura impor aos outros a idéia que tem 1 D’ADESKY,J. “Pluralismo Étnico e Multiculturalismo”

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7 DESIGUALDADES RACIAIS NO BRASIL E A “LUTA POR RECONHECIMENTO”, POR UMA NOVA COMPREENSÃO DA LIBERDADE

7.1 Reconhecimento Adequado para a População Negra: Identidade Étnica e Identidade Nacional

Conforme já dito no capítulo 3, não se trata aqui de, com base nesse debate

do multiculturalismo, reivindicar um reconhecimento das diferenças de modo de

vida ou visões de mundo entre negros e brancos no Brasil. Repetindo o afirmado,

em perspectivas gerais, negros e brancos no país vivem em integração de

horizontes culturais ou partilham de uma mesma visão de mundo abrangente,

apesar das marcadas diferenças sociais reais provocadas pelo racismo, que os

diferencia em termos de perspectivas sociais concretas.

O que podemos interpretar com base no pensamento de Taylor, é que a

dupla dimensão do reconhecimento que inclui a idéia de identidade pessoal e a de

identidade socialmente derivada, explicaria como pode a sociedade brasileira

produzir alguns ícones ou personalidades negras e ao mesmo tempo percebermos

um racismo perene contra as pessoas negras, coletivamente consideradas, na

sociedade.

Jacques d’Adesky explica que a passagem da identidade individual para a

identidade coletiva, é feita pela noção de pertencimento e pelo processo de

identificação. Ele escreve que a identificação está ligada ao sentimento de

pertencimento que, por sua vez, é um fator da identidade coletiva. A identidade

coletiva é perceber o “mesmo” nos “outros”. Neste sentido, “o grupo torna-se

uma coletividade cuja estruturação e unificação permitem um acesso a um nível

mais seguro de existência. De agregado, o grupo passa a um estado mais

consciente de si próprio.”1

Com base no filósofo hegeliano Alexandre Kojève, d’Adesky afirma que o

homem para se reconhecer enquanto tal, procura impor aos outros a idéia que tem 1 D’ADESKY,J. “Pluralismo Étnico e Multiculturalismo”

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de si mesmo tentando fazer-se reconhecer pelos outros, por todos os outros. E

para além disso, ele deve transformar o mundo (natural e social) onde ele não é

reconhecido, num mundo em que esse reconhecimento se realiza e a essa

transformação de mundo hostil em um projeto, ou de acordo com esse projeto, é o

que Hegel chama de “ação” ou “atividade”2. Entendemos desta forma o que

Honneth designou por luta por reconhecimento.

Ressaltando esse contexto da interação, aparecem as noções como

aculturação ou perda de identidade, que colocam em relevo a ordem das relações

antagônicas e as dinâmicas interculturais que podem existir entre pessoas que,

num mesmo território, pertençam a comunidades com status diferentes. É que,

segundo d’Adesky, a cultura, ao representar no indivíduo um conjunto de

elementos de todas as ordens, pode ser vivida em harmonia ou em conflito e na

medida em que uma dada cultura abrangente é formada por diversos conjuntos

diferentes (diversos grupos), podem aparecer tensões capazes de gerar um

processo de degradação destas culturas específicas ou um processo de opressão.

Nestes casos, escreve d’Adesky, os antagonismos culturais, geralmente

acompanhados por disparidades econômicas e no nível político, podem suscitar

nas comunidades marginalizadas a tomada de consciência e propiciar as

reivindicações étnicas, pois como já dito, “identidade é a rejeição daquilo que os

outros desejam que você seja.” O discurso do direito à diferença pode ser um

instrumento capaz de interpretar essa situação e de agir contra ela denunciando a

tendência homogeneizante da coletividade abrangente.

Segundo José Murilo de Carvalho3, após rompermos nossos laços com

Portugal, uma identidade coletiva para o Brasil será perseguida desde a Primeira

República, mas somente na década de 1930 é que as pessoas negras serão

consideradas como elementos fundadores da sociedade brasileira. Segundo

d’Adesky, a identidade nacional brasileira continua sendo a primeira referência de

identificação, mas, as distorções raciais ao serem reinterpretadas, podem fazer

com que as pessoas negras brasileiras minimizem o seu pertencimento brasileiro

como forma de protesto em relação às desigualdades e como denúncia de

opressão, mas “não podem negar esse pertencimento (...) sustentado por quase

cinco séculos de coexistência no mesmo espaço geopolítico (...) e de

2 KOJÈVE, Alexandre. (apud: D’ADESKY,J. “Pluralismo Étnico e Multiculturalismo”) 3 CARVALHO, J.M. “Entre a liberdade dos antigos e a dos modernos: a República no Brasil”

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entrelaçamento dos patrimônios culturais” e, continua ele “ é natural que ele [o

negro brasileiro] procure reforçar a solidariedade cultural que o liga à África

para melhor afirmar a sua identidade étnica e a herança cultural que a simboliza,

como fonte primeira e fundamental de sua identidade cultural brasileira.”4. Para

que fique bem claro: é preciso separar a identidade coletiva (ser brasileiro) e a

reivindicação de uma identidade étnica (ser negro). Jacques d’Adesky explica que

apesar de servir como suporte para a identidade étnica, a identidade coletiva situa-

se num nível inferior de intensidade, pois ela não é suficiente para compreender os

diversos aspectos de uma realidade complexa que inclui a raça, a religião, a

língua, o território e principalmente a história como elementos de solidariedade

do grupo.5 A identidade coletiva estabelece um elo entre os elementos que

caracterizam a identificação da sociedade abrangente (somos todos brasileiros)

com os elementos que caracterizam a reivindicação de uma identidade étnica (de

uma negritude, como ser afro-brasileiro), jogando com as percepções, o

imaginário e os conceitos antropológicos e culturais.6

Para articular esses conceitos na realidade política brasileira, devemos

voltar ao conceito de d’Adesky de “dupla negação”. A dupla negação é baseada

(i) em uma denegação específica da dignidade da raça negra, que tem como

expressão a exaltação do tipo ideal de ser humano como sendo o tipo branco e

(ii) numa denegação cultural, na qual é desvalorizada a dignidade da herança

cultural e histórica negra tanto por seus valores intrínsecos quanto o seu valor para

a formação da cultura brasileira. Assim, apesar do racismo brasileiro não ser

essencialista, ou seja, não negar o tipo negro em sua humanidade, exige para a sua

aceitação social que ele embranqueça, que compartilhe da depreciação coletiva da

imagem do negro, ou seja, dos credos e das práticas de desvalorização

generalizada das suas especificidades, as quais o identificam coletivamente com

outras pessoas negras. É nesse sentido que, falar em identidade como desejo de

reconhecimento, está baseado na busca de valorização social das especificidades

(da dignidade intrínseca da raça e da herança cultural), porque a idéia que um

indivíduo faz de si mesmo é, em parte, intermediada pelo reconhecimento obtido

dos outros. O reconhecimento imperfeito (ou incompleto) tem conseqüências

4D’ADESKY,J. “Pluralismo Étnico e Multiculturalismo”, pág 44 5 D’ADESKY,J. “Pluralismo Étnico e Multiculturalismo” 6 D’ADESKY,J. “Pluralismo Étnico e Multiculturalismo”

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negativas para a formação da identidade e o conceito de dupla negação explica a

perversidade do racismo brasileiro que se impõe como entrave e opressão à

população negra.

A reivindicação da identidade étnica não é, nunca foi e nem será causa do

racismo, mas conseqüência dele. Ela veio depois. Após a tomada de consciência

política pela população negra e a constatação de que as práticas sociais

implementadas corroboravam com iniqüidades e injustiças e que o

compartilhamento de uma identidade coletiva abrangente, no caso ser brasileiro,

era insuficiente para explicar as desigualdades fundadas em elementos como a

raça.

Nesse sentido, a adoção de ações afirmativas no Brasil, se pensarmos no

mecanismo das cotas, por exemplo, apesar de poder ser justificada sob a

perspectiva liberal de criação de uma classe média negra, baseada no postulado de

que a igualdade de todos não tem sido efetivada para a população negra, tem

também um forte caráter de reconhecimento uma vez que, medidas diferentes das

cotas, como a lei 10.639, que incluiu o ensino da História da África e da

contribuição dos afrodescendentes para a História do Brasil, se propõem a mudar

a mentalidade das próximas gerações e suas percepções da realidade7; formar

novas visões de mundo e, dentro do conceito da dupla negação, atuar contra os

efeitos da denegação de tipo cultural.

Neste caso, seguindo a lógica de Taylor, não há que se falar em

temporalidade para a vigência da medida, pois não há como se prever algum

tempo para a correção de uma fraude histórica cometida contra toda a população

brasileira que teve, em virtude do racismo das suas elites, negada a várias

gerações a oportunidade de se conhecer melhor por meio da identificação das suas

influências e suas raízes históricas, informando-se mais sobre a cultura negra e

suas especificidades que tanto contribuíram para a formação da cultura nacional.

O racismo brasileiro nos impôs um mito: o de que vivíamos numa democracia

racial. E nos impôs um tabu, o de que apenas discutir o fato seria o mesmo que

agir contra esse nosso maior “patrimônio”. Ora, não é possível aceitar mais essa

argumentação, pois que patrimônio é esse que não agüenta e nem admite um

simples questionamento? Isto é o mesmo que aceitar, ainda que implicitamente,

7 O debate sobre as políticas de ação afirmativa com base na teoria da redistribuição, será abordado posteriormente.

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que esse “patrimônio” é construído em bases pouco sólidas. Nesse sentido até

Jessé Souza concorda que a discussão aberta do tema nas escolas e na mídia, por

campanhas específicas, poderia fazer com que os brasileiros fossem confrontados

com os seus mecanismos implícitos de exclusão racial. Segundo ele, o melhor

exemplo neste ponto talvez seja o da Alemanha Federal, a qual que a partir do

enfrentamento corajoso e público do seu passado recente, logrou formar uma das

juventudes mais democráticas e liberais da Europa atual.8

Como oposição à reivindicação de identidade étnica, sempre aparece a

discussão sobre o tema “quem é negro no Brasil ?”. Essa pergunta é feita

indisfarçavelmente sob o pretexto de que há um continuum de cores no país, pois

a mistura racial torna impossível discernir os pardos, os mulatos, os pretos, etc. e

se não há como identificar o público-alvo, as políticas afirmativas não devem ser

aplicadas. A acusação é invariavelmente a mesma; a de que a divisão binária

branco/negro é uma importação de estrangeirismos norte-americanos e não

refletem a realidade do Brasil.

Segundo d’Adesky, há ambigüidade e indeterminação no conceito de raça,

pois o termo “negro” é uma categoria tão convencional e abrangente, desde os

“pardos” até “pretos”, quanto o termo “branco” que igualmente agrupa cores

diferentes já que os brancos não são verdadeiramente brancos.9 Além disso,

lembra ele, a multiplicação das categorias relacionadas à cor da pele, formato do

rosto e textura dos cabelos é um acontecimento somente comum em sociedades

multirraciais e que o anseio das pessoas em agrupar os outros em grupos raciais

ou de cor, seria apenas um exercício banal se não escondesse, às vezes, um desejo

de hierarquizar os outros numa escala racial e cromática. 10

O que está verdadeiramente em jogo nessa discussão é o racismo que

impinge um menosprezo em relação às pessoas classificadas segundo critérios de

inferioridade racial. É como se atributos intelectuais ou morais fossem

diretamente relacionados às características físicas. Segundo d’Adesky, é um falso

problema encarar as diversas tonalidades abarcadas pelo termo “negro” como

sendo excludentes, pois todas elas sofrem efeitos da discriminação racial.

Podemos ainda lembrar que, segundo a classificação da ONU, a população negra

8 SOUZA, J. “Democracia racial e multiculturalismo” 9 D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento” 10 D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”

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integra os chamados grupos vulneráveis, pois a estatística de piores condições de

vida, representada pelos menores índices de escolaridade, de expectativa de vida,

e de oportunidades de participação na vida econômica, política e cultural do país,

é praticamente idêntica entre todas essas cores do continuum que formam a

categoria “negro”, como também são quase idênticos os números que as separam

das melhores posições estatísticas nos mesmos índices citados as quais estão,

numa invariável monotonia, ocupadas pelas pessoas brancas.

J.d’Adesky sugere mais uma vez inverter a pergunta sobre quem é negro

no Brasil para quem sofre privações por motivo de raça e cor da pele? Essa

formulação esclarece que as demandas por políticas de ação afirmativa não estão

baseadas numa idéia de essência racial, mas nos fatos de discriminações sociais

por motivos históricos em virtude do racismo, do sexismo, da homofobia, etc.

Assim a reivindicação de uma identidade étnica, ser negro, não é negar o

pertencimento a uma humanidade comum, nem negar a nacionalidade brasileira,

mas é uma referência a uma demanda política no espaço público por

reconhecimento digno das especificidades, as mesmas especificidades (cor,

cabelos, etc.) que são objeto de discriminação. É uma demanda por re-significação

social dos elementos que demonstram uma ascendência africana por parte de

determinada coletividade.

Ele recorda, ainda, que uma demanda identitária pode levar ao risco de

aprisionamento do indivíduo numa identidade fixa e irredutível ao diálogo com o

outro. Mas nesse caso, não é o que acontece. A abordagem positiva do

reconhecimento afasta este risco, pois é uma dimensão de liberdade reconhecer

que são os atos que tornam o indivíduo uma vítima, e que não há uma demanda

por uma essência de vítima. A sociedade é o que construímos. Não há vítimas por

essência, mas vítimas de atos discriminatórios11.

Nesse debate sobre identidade e nacionalismo, é necessário trazer à

colação o importante pensamento de Sheyla Benhabib. Ela define a cidadania

como prática social e delimita três componentes fundamentais: a identidade

coletiva, privilégios de pertencimento político e os direitos, além dos benefícios

sociais.

11 WORMS, FRÉDÉRIC (apud: D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”, pág. 62)

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Identidade coletiva é o fato de se pertencer a uma entidade política e

histórica ou a um Estado; os privilégios de pertencimento são os direitos de

participação política na condução da vida pública, ou os direitos de autogoverno;

e por fim, seguindo a formulação de T.H.Marshall, a possibilidade de envergar os

direitos sociais e aos benefícios do wellfare. Nessa linha, ela reconhece que não

há uma fórmula única aplicável em todos os casos. O desenvolvimento acelerado

da globalização, afirma ela, não gerou a “ordem cosmopolita” como condição para

a paz perpétua, como queria Kant, mas um ponto crítico de conflitos entre direitos

humanos e soberania popular. Acontece que, como lembra Hannah Arendt, os

direitos humanos professados, não são para um ser humano “abstrato” que se

encontra em lugar nenhum, mas para o povo, o próprio povo.

O exercício da cidadania é baseado na disposição de direitos de

participação, na possibilidade real, concreta de participação política. A

reivindicação étnica do movimento negro do Brasil é uma forma de denúncia e de

postura crítica, mas também um modo específico de se inserir, na cultura

nacional, de se apresentar no espaço público. Ressalta d’Adesky que, sem grande

contradição política aparente, pode-se identificar um indivíduo como corso e ao

mesmo tempo como francês, e reivindicar a negritude ou a condição de nissei e

assumir a nacionalidade brasileira. Quem é tutsi é também ruandense, e utilizando

o exemplo de Taylor, quem é de Quebec, é também canadense.12

Para seguir a lógica da dialética hegeliana, filósofo de fundo de todo este

esforço teórico, podemos afirmar que o desejo de reconhecimento se realiza numa

tensão. O racismo nega a identidade, e é a reivindicação étnica quem traz à tona o

próprio “ser”, por meio do que ele chama de “negatividade-negadora”, ou seja,

negar uma identidade nacional (para negar na verdade a homogeneização que ela

propõe). Mas essa segunda negação não é essencial, isto é, não está em oposição

nuclear com uma identidade brasileira abrangente, mas baseada em fatos

históricos discriminatórios e, portanto, ambas as identidades, apesar da

incompatibilidade a priori, são passíveis de uma síntese posterior em nível mais

elevado, após a superação das contradições primeiras, substituindo a dupla

negação por um duplo reconhecimento, ou um reconhecimento completo da

população negra. Com isto toda a sociedade evolui.

12 D’ADESKY,J. “Pluralismo Étnico e Multiculturalismo”pág. 61

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7.1.1 A População Negra Rural, Os Quilombolas.

Quando se trata da população negra rural, a lógica da reivindicação

identitária ganha contornos ainda mais interessantes. Uma das idéias mais

substanciais em prol da conclusão do processo inacabado da abolição e reparação

da dívida histórica do Estado brasileiro com a população negra, foi o

reconhecimento do direito de propriedade sobre as suas terras, aos moradores em

áreas remanescentes dos antigos quilombos. Essa conquista foi fruto de uma

proposta do movimento negro à Assembléia Nacional Constituinte, e convertido

em norma constitucional no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias da Carta de 1988.13 O que a constituição chama, curiosamente, de

remanescentes de quilombos, o Movimento Negro chama de quilombolas.

O INCRA, órgão federal responsável pela regularização fundiária no

Brasil e a Fundação Palmares, órgão federal responsável pelas terras de quilombos

têm, recentemente, encomendado estudos jurídicos sobre o assunto a diversos

especialistas em direito agrário e segundo o estudo do procurador federal do

INCRA Leandro Mittidieri, o direito de propriedade dos quilombolas, é um direito

coletivo, pois conferido em função da qualidade de comunidade dos

remanescentes de quilombos. Afirma ele que

“o título da propriedade somente pode ser coletivo e pro indiviso, ou seja, indivisível, em que a comunhão perdure de fato e de direito; todos os comunheiros permanecem na indivisão, não se localizando [individualmente] no bem, que se mantém indiviso. O direito também é inalienável, indisponível,

13 Segundo estudo do procurador federal Leandro Mittidieri, “o direito de propriedade das populações não integradas na comunhão nacional sobre as terras que tradicionalmente ocupam, já era reconhecido pelo art. 11 da Convenção n. 107/57 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, promulgada pelo Decreto n. 58.824/66, sendo certo que, já à época, uma vez aprovados pelo Poder Legislativo, os tratados e convenções internacionais ingressavam no ordenamento jurídico pátrio com status de lei (art. 74, alínea “d”, da CR/37). Mas este direito apenas foi contemplado com efetividade após sua regulamentação, esta que foi contida ao máximo pelas forças conservadoras da elite brasileira. Primeiramente, adveio o tímido Decreto n. 3.912/01. Posteriormente, foi expedido o Decreto n. 5.051/04, que promulga a Convenção n. 169/89 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, sobre povos indígenas e tribais. E, por fim, veio à lume o Decreto n. 4.887/2003.”: MITTIDIERI, L., in: “Remanescentes De Quilombos, Índios, Meio Ambiente E Segurança Nacional: Ponderação De Interesses Constitucionais” , cópia mimeo.

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imprescritível e impenhorável (art. 17 do Decreto n. 4.887/03), à semelhança do que ocorre com as terras indígenas (art. 231, § 4º, CR).”14

Ora, a norma do art. 68 ADCT, emana do Poder constituinte originário,

que, por definição, é ilimitado originário e primário, não podendo ser, portanto

contestada. Nesse sentido, apesar do seu status jurídico sui generis, no

ordenamento brasileiro, ela permanece contra todas as reivindicações judiciais e

mesmo contra as bases majoritariamente individualistas do direto liberal

brasileiro.

Como já dito no capítulo 3, apesar de estudos mostrarem que quilombo são

muito diferentes entre si, e não implicam, necessariamente, a presença das

religiões de matrizes africanas, por exemplo, um traço distintivo entre eles e faz

com que resistam até hoje, é o usufruto comum da terra. Tal sistema consiste em

não reconhecer a terra nua como um bem econômico, mas sim, somente aquilo

que é erguido sobre ela, ou seja, módulos de trabalho como uma casa, a roça, e

outras benfeitorias. Isto permite que os membros destes povoados permaneçam

unidos, indivisos e convivendo de maneira harmoniosa a ponto de superarem

possíveis diferenças que possa haver entre eles, formando um forte elo de

resistência e capacidade de luta contra grupos que, cada vez mais poderosos e

numerosos, ameaçam-nos pelo uso da violência e da usurpação.15 Segundo relatos

de pesquisadores do tema, o fato dessas terras se acharem situadas em áreas

críticas de tensão social, “desperta nos seus moradores o sentimento e a certeza

de estarem ali por direito, já que tais terras foram-lhes transmitidas pelos seus

antepassados.”16 Neste caso, além dos traços fisionômicos, é o território um

importante fator de identificação coletiva, e o que provê uma identidade aos seus

indivíduos.

Assim, devido à irresistível força do Poder constituinte originário, em caso

de colisão no sistema de direitos do Brasil, entre os direitos individuais de

propriedade (um dos pilares “sagrados” do direito liberal desde Locke) e esses

direitos comunitários dos quilombolas, os últimos devem sempre prevalecer e

14 MITTIDIERI, L. ( g.n.) 15 “Terras de Preto: Quebrando o Mito do Isolamento” – Projeto Vida de Negro, SMDDH 16 “homens e mulheres fazem o que está a seu alcance, mostrando-se resolutos ao lutarem por um direito que é seu: ficarem nas terras de preto, seus quilombos.” Terras de Preto: Quebrando o Mito do Isolamento – Projeto Vida de Negro, SMDDH

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podemos, interpretar que, seguindo a lógica de Taylor, ao menos neste caso

específico, o Estado brasileiro fez uma opção muito próxima a uma posição

substancial de democracia, a defesa e a preservação destas populações

minoritárias, ao proteger um elemento galvanizador da sua identidade, as suas

terras. Podemos aqui interpretar, sem muito risco, que essa opção do Estado

brasileiro, expressa pelo Poder Constituinte Originário e que orienta toda a

interpretação constitucional, é mais do que fruto de deliberações na esfera pública.

Já havia uma concepção compartilhada de bem, ou melhor, o que possibilitou a

deliberação foi uma pré-compreensão do valor positivo de se preservar e proteger,

primeiramente, as populações indígenas e esse fato foi estrategicamente

aproveitado pelo movimento negro. Fazendo uma breve digressão, podemos

entender essa concepção como fruto do período do romantismo no Brasil que, por

aqui, teve uma vertente indigenista a qual em busca de certa autenticidade para o

país, em peças e romances, procurava valorizar o índio como o autêntico nativo

do Brasil, destacando aspectos de coragem e destemor, como sendo ele a

verdadeira expressão nacional. Essa construção mítica tinha por objetivo

demonstrar que essas qualidades de bravismo dos nativos, de alguma maneira

impregnaram a alma do país para fins de ações políticas menos passivas.

7.1.2 Conformidade e Distinção

Analisando a realidade brasileira, entendemos com Jacques d’Adesky que,

para a análise social, não basta aventarmos as imensas distâncias econômicas que

separam brancos e negros no país, como demonstram inúmeros institutos de

pesquisa econômica. Se tomarmos como critério o Atlas do Desenvolvimento

Humano, do PNUD, por exemplo, que leva em conta fatores não-econômicos,

percebemos que é preciso também considerar as condições de vida e as formas de

representação destas desigualdades.

Charles Taylor afirma que o reconhecimento igualitário completo deve ser

dado em função de uma identidade comum (a igual dignidade), mas também com

base na identidade única do grupo, o que o distingue dos demais. É o que Honneth

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afirma ao dizer é necessário o reconhecimento no Estado, na esfera da

solidariedade, quanto às particularidades. Devemos ter em mente que as

identidades são múltiplas e sobrepostas, começando pela identidade universal do

ser humano, que é abstrata, até as identidades nacionais, éticas, etc. Como explica

d’Adesky “existem aquelas [identidades] que consideramos fundamentais para

nós mesmos e lhes atribuímos grande valor(...) e na medida em que elas são

negociáveis com os outros ‘doadores de sentido’, observamos que algumas delas

podem ser ridicularizadas, desprezadas ou objeto de escárnio (...) nessa relação

dialógica podemos concluir que a cidadania passa necessariamente pelo respeito

às múltiplas identidades que nos constituem”17 Ele escreve, com base no

pensamento de Tzvetan Todorov, filósofo, historiador e lingüista francês de

origem búlgara, que as nossas múltiplas identidades geram uma dinâmica

complexa em relação ao reconhecimento, pois nesse sentido, por exemplo, uma

mulher negra estaria em uma situação mais desfavorável do que a de um homem

negro, que não sofreria a segunda discriminação, de gênero.

Todorov apresenta uma tipologia do reconhecimento na qual ele expõe

duas formas opostas de reconhecimento que variam bastante: (i) o reconhecimento

de conformidade e o (ii) reconhecimento de distinção.

Segundo ele, aquele que espera mostrar-se melhor, mais belo ou brilhante,

espera, naturalmente se destacar. Por outro lado, aquele que não deseja ser

excepcional, e sim normal, que se conforma com as normas e costumes

considerados adequados à sua condição, tem igualmente necessidade de

reconhecimento.

Jacques d’Adesky aposta que essas duas formas de reconhecimento são

úteis numa sociedade multirracial como o Brasil, para mostrar as diferenças entre

o ideal de distinção e o ideal de conformidade. Onde existe uma hierarquia racial

implícita que afeta negativamente as pessoas negras, o ideal de distinção é de

difícil acesso para elas. Dados estatísticos já demonstraram a maior dificuldade de

mobilidade social ascendente entre as pessoas negras que, mesmo com

habilidades idênticas, têm maior dificuldade de obtenção de emprego do que as

pessoas brancas. Ele ressalta que a imagem da pessoa negra, mesmo que não seja

determinante para a obtenção de um emprego, influi negativamente na seleção

17D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”, pág 87 / 88

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para certos postos como cargos mais altos de direção ou que tenha que lidar

diretamente com o público, como o de vendedores em lojas de shopping centers.

Podemos entender assim que o ideal de conformidade acaba se tornando a opção

mais viável para a maioria das pessoas negras, que aspiram em primeiro lugar à

igualdade mínima de tratamento. Já para os brancos, diversamente, lhes é possível

ir além, e buscar o sucesso e a distinção como sinais de reconhecimento, sendo-

lhes as oportunidades de escolha, mais extensas. Eles partem da experiência

concreta de uma sociedade que se apresenta com valores republicanos igualitários

e democráticos, permitindo o usufruto completo da liberdade numa trajetória

rumo ao prestígio social (conforme já visto anteriormente), neste caso baseado na

noção de mérito. Esta questão do mérito será retomada logo adiante.

Retomando o conceito de Hegel de liberdade situada, podemos analisar

que as condições sociais concretas não permitem o exercício extenso da liberdade

para as pessoas negras. Ou melhor, o racismo da sociedade brasileira afeta

negativamente as condições internas e externas da liberdade, não permitindo a sua

plenitude universal. São os padrões formais de reconhecimento baseados no amor,

no Direito e na solidariedade, que devem assegurar as condições universais de

liberdade para que as pessoas negras realizem as suas metas individuais. Desta

forma, dentro de uma concepção de luta por reconhecimento, a liberdade almejada

não pode ser encarada simplesmente como a liberdade positiva ou a liberdade

absoluta de Hegel. Mas é uma liberdade anterior a essa. Não é uma demanda por

poder fazer o que quiser, mas por condições sociais que possibilitem antes

perceber o leque de opções, ou melhor, de torná-lo o mais amplo possível. Se

apenas duas opções são oferecidas e a pessoa não é forçada a escolher entre elas,

devemos admitir que haja liberdade. Mas se o leque de opções era originariamente

maior e apenas duas foram oferecidas, a nossa compreensão sobre a existência da

liberdade muda. Desta forma a liberdade situada de Hegel, como exposta no

capítulo 2, requer a consideração da realidade envolvida no universo de escolhas

do agente. É uma liberdade social, na medida em que só pode ser definida

comparativamente ou relacionalmente. Agentes iguais e postos nas mesmas

condições devem poder ter as mesmas possibilidades de escolha.

As reflexões sobre a igualdade e a compreensão da sua dupla dimensão,

como igualdade formal e material, ou substancial, são totalmente pertinentes neste

caso. O laço entre liberdade e igualdade permite colocar em evidência que a

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igualdade que se busca é o que d’Adesky chama de igualdade libertadora,

comumente conhecida como eqüidade18. A eqüidade como um critério mais

rigoroso de igualdade, permite inclusive o tratamento diferenciado com vista à

equiparação de fato entre pessoas ou grupos desprivilegiados, corrigindo a

desigualdade real e promovendo a almejada igualdade. Agora, se estivermos em

um plano posterior, de pós-estabelecimento da igualdade, o que fica evidenciado é

a busca por liberdades, por possibilidades de auto-realização expressiva, visto que

cada um é único em seu modo de ser.

A liberdade encontra-se no campo da ação, da autonomia e da luta contra a

servidão. Permite a condição para a conquista do reconhecimento pelo outro e ao

mesmo tempo a consciência, em si mesmo, deste reconhecimento19. Como diz,

d’Adesky, igualdade e liberdade, não são termos de uma alternativa. O que a

consideração da liberdade permite é revelar que o que está em jogo, além das

igualdades de condições (ou precondições de liberdade), é a liberdade de

realização a que todos têm direito20.

Voltando ao ideal de distinção, conforme aventado anteriormente, ele é

baseado na possibilidade do prestígio social diferencial, que por sua vez é

assentado na noção de mérito diferencial. Conforme já explicado, para as pessoas

brancas a busca pelo prestígio social é uma possibilidade real de exercício da

liberdade, uma vez que a sociedade se lhes apresenta com valores republicanos e

democráticos. Acontece que o mérito que assenta toda essa possibilidade, não

pode ser absolutizado.

Afirma d’Adesky, que o mérito não pode ser considerado como se não

tivesse nenhum laço com a realidade, pois a noção de mérito não tem sentido por

si só. O mérito é também um conceito que só pode ser articulado relacionalmente,

com algo que lhe seja exterior 21. Neste ponto, novamente o conceito de liberdade

situada de Hegel pode informar que, se pensarmos especificamente na

modalidade das cotas universitárias para o acesso ao ensino superior,

recentemente implantadas no Brasil, e que têm como objetivo incluir pessoas

18 D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”. De qualquer forma, a título de mera especulação filosófica, podemos entender que ao falarmos de eqüidade, não estamos mais no campo da igualdade. A eqüidade é relativa a outros referenciais enquanto a igualdade é relativa somente a um único referencial qual seja a unidade que originou a comparação. 19 D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento” 20 D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento” 21 D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”

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negras nas universidades brasileiras, podemos concluir que uma defesa absoluta

do mérito num concurso vestibular universal, por exemplo, pode apenas repetir as

clivagens e desigualdades raciais existentes na sociedade, mantendo a proteção

aos mais favorecidos economicamente em detrimento dos que não tiveram a

mesma oportunidade de adestramento intelectual para a realização daquele tipo de

exame, mas que estão totalmente aptos a cursar o nível superior de educação. É

desnecessário repetir aqui as inúmeras possibilidades que se abrem após a

conclusão de um curso superior, e que isto representa uma dimensão importante

de liberdade.

7.2 A Crítica à Teoria de Nancy Fraser e à Sua Concepção de Reconhecimento

Mesmo correndo o risco de certa imprecisão metodológica, optei por trazer

num mesmo momento, todas as críticas elaboradas à teoria de Nancy Fraser, ao

mesmo tempo em que pretendo demonstrar porque ela não se mostra a maneira

mais adequada de analisar globalmente a realidade das relações raciais brasileiras,

apesar de ser relevante para salientar, que as disparidades que afetam a nossa

sociedade, têm uma importante dimensão econômica.

Os motivos que a levaram a elaborar a sua interpretação “crítica” do

reconhecimento, expostos anteriormente, talvez se devam ao fato de todos os

pensadores citados por ela estarem focados para a realidade dos países

desenvolvidos, e não para um país periférico como o Brasil. Quando ela afirma,

por exemplo, que “antigos conflitos de classe” foram paulatinamente e de forma

“tendenciosa” substituídos por conflitos de status social advindos da dominação

cultural, certamente ela não está pensando em um país como o nosso em que a

absoluta maioria da população é pobre ou extremamente pobre e que só muito

recentemente começou a resolver o problema básico da fome.

De qualquer forma, tomando as relações raciais no Brasil, é igualmente

reconfortante perceber que com base na proposta de Fraser, as conseqüências

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perversas do racismo na dimensão econômica podem ser articuladas de formas tão

contundentes.

Em face de tudo o que já foi elaborado nesta dissertação, podemos, sem

muitas dificuldades e seguindo a concepção de Fraser, entender o racismo como

uma compreensão hierarquizada da realidade multirracial brasileira, que

estabelece certos estamentos, ou uma diferença de status social e que isto se

configura, como uma injustiça na medida em que impede a participação paritária

dos estratos inferiorizados ocupados pelas pessoas negras ao mesmo tempo que

tem conseqüências nas possibilidades de ascensão econômica deste segmento

social.

Por outro lado, adotando a elaboração de Fraser para os nossos próprios

fins, podemos articular esta sua compreensão de status e extrapolar a arena de

participação política, e compreender a sua injustiça devido à privação de liberdade

que ele implica, se novamente tomarmos o conceito de liberdade situada de

Hegel.

Como já dito, liberdade é não só poder realizar as escolhas, mas ter opções

de escolha. Situando a liberdade na sociedade, ela se caracteriza pela possibilidade

de termos as mesmas opções que qualquer outro, pois se a igualdade for efetiva,

não importa quem detém o controle social22. A perda de liberdade se configura

assim, quando a impossibilidade de exercermos o controle social nos leva a

perdemos o domínio da nossa existência, seja no plano simbólico ou concreto. Se

lembrarmos a lei 9.504/97 que instituiu cotas de participação política para as

mulheres no Brasil, percebemos que a falta de mulheres nas representações

parlamentares é uma distorção da realidade, uma vez que elas são a maioria da

população brasileira, segundo dados dos últimos recenseamentos e que a

discriminação de status contra as mulheres, numa sociedade machista e patriarcal,

aparece como a única explicação plausível para esta contradição. Sem maiores

argumentações, isto se configura como um cerceamento intolerável à liberdade no

plano concreto.

Da mesma forma acontece, quando pensamos na produção midiática no

Brasil, e constatamos que a população negra e os grupos indígenas não têm acesso

paritário à mídia. Vários estudos já foram realizados nesta área e concluem que a

22 Se quisermos pensar em termos de igualdade, poderemos entender que, neste sentido, igualdade material não seria uma mesmidade, mas precondições de liberdade.

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presença de pessoas negras e indígenas em filmes, novelas e comerciais são

esmagadoramente estereotipadas e inferiorizadas. O poder de informação e de

influência como formador de opinião, numa sociedade complexa como a atual,

não pode ser considerado secundário, mas antes, uma dimensão fundamental da

liberdade de expressão. No Brasil, os veículos de comunicação são organizações

privadas e enunciam interesses particulares que muitas vezes tolhem a autonomia

de expressão das pessoas negras pela forma mais adequada. Podemos fazer uma

relação com Foucault, um dos filósofos que mais pensou o poder e o controle

enquanto categorias, que no seu livro “A Ordem do Discurso”, afirma que na

nossa sociedade complexa, a disputa de poder, não é mais pela produção do

conteúdo do discurso, mas pela possibilidade de proferi-lo. Neste caso, o

cerceamento seria não apenas concreto, do princípio constitucional, mas

principalmente simbólico, pela auto-representação adequada.

Apesar de articular os temas de reconhecimento e redistribuição, e de

afirmar que as diferenciações entre economia e cultura são analíticas e que, na

prática, estas duas dimensões encontram-se imbricadas, afirmei anteriormente que

Fraser deixa emanar a sua posição de que, em determinadas reivindicações, o

reconhecimento não é cabível ou mesmo desejável. Um exemplo trazido por Jessé

Souza, é de que realmente não teria muito sentido um grupo de trabalhadores

requerer ao seu sindicato que lute por reivindicações de suas particularidades

culturais.23

No que interessa aos objetivos desta dissertação, o que mais chama

atenção na crítica de Fraser é que em quase todos os seus textos ela manifesta

profundas preocupações quanto ao modelo de reconhecimento baseados na

identidade (identity models), como ela o chama. Segundo ela, o seu modelo é

baseado em status, como uma alternativa às reivindicações de identidade dos

diversos movimentos sociais e ela manifesta claramente o seu receio de que

reivindicações desta natureza produzam a essencialização e a reificação do

conceito de identidade, utilizando frases como “a justiça requer o

reconhecimento do que nos diferencia como indivíduos ou grupo ao invés do

reconhecimento da nossa humanidade comum ?” 24 A resposta a essas

23 SOUZA, Jessé. “A construção Social da Subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica”Ed. UFMG e Ed. IUPERJ, 2006 24 FRASER,N. “Recognition without ethics?” Trad.livre

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preocupações de essencialização e reificação dos elementos da identidade, e as

reivindicações identitárias do Movimento Negro, já foram bastante abordadas,

mas ainda sim cabem algumas últimas observações sobre o assunto.

A proposta dela é de que as soluções são várias, uma para cada caso. Ela

adota como exemplo o movimento gay. Este movimento adota uma estratégia

política dupla, de reivindicação identitária e ao mesmo tempo de desestabilização

das identidades sexuais. Em relação ao casamento gay, por exemplo, ela afirma

que as soluções podem ser dar-lhe o mesmo status que ao casamento

heterossexual, ou desinstitucionalizar o casamento tradicional.

Dentro da realidade brasileira, a resposta que podemos aventar para os

seus remédios transformativos (como ela os chama) é a constatação feita no

capítulo 1 de que o Brasil como país subordinado, está adstrito aos interesses

capitalistas internacionais e que apesar do status de legitimidade que alcançaram

programas de redistribuição de renda na sociedade brasileira, seria temerário

afirmar que há condições políticas de uma transformação estrutural do sistema

econômico no país. Em termos de relações raciais, d’Adesky afirma que essas

desconstruções de códigos binários que ela propõe (como das categorias

branco/negro) a fim de evitar a reificação identitária, são mais teóricas do que

práticas , “em razão da existência de numerosas categorias raciais pelas quais se

admite que uma pessoa negra de pele clara [em determinadas circunstâncias]

seja considerada branca, ocorre-nos que o remédio para o desprezo e a

depreciação reside principalmente (...) na mudança cultural ou simbólica, sob a

forma de uma reavaliação positiva das identidades afro-brasileiras e das

heranças históricas e culturais de origem africana.” E neste mesmo sentido,

continua d’Adesky “(...) e como os negros são objetos simultaneamente de

injustiças econômicas e depreciações, seria preciso ao mesmo tempo assegurar

uma redistribuição paritária e uma política de reconhecimento que implique entre

outros, o direito de perceber a si mesmos em termos autodefinidos que os

agradem.”25

A teoria do reconhecimento tal como formulada por Taylor e por Honneth,

tem duas dimensões distintas, uma universal e outra particular. A universal está

ligada à formulação kantiana de igual dignidade de todos os seres e fundamenta o

25 D’ADESKY,J.. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”, pág.111

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direito à igualdade enquanto a particular é norteada pela perspectiva hegeliana do

princípio da autenticidade o qual reconhece que estes mesmos seres iguais em

dignidade, não são atomizados, mas produzidos em situações e condições

históricas específicas, cada uma destas formas originais contribuindo de forma

diferente à reprodução da vida social, e são todas igualmente merecedoras de

respeito. Esta é a base do direito à diferença.

Tomando o exemplo dado por Jessé Souza, parece que Fraser se apega

somente à dimensão particularista (ou específica) da teoria do reconhecimento

baseada na autenticidade. Segundo Jessé Souza, ela não contempla a hipótese de

que a desigualdade entre classes também esteja baseada em princípios que

envolvem o reconhecimento, ou melhor, neste caso o não-reconhecimento26. Estes

princípios adquirem eficácia social a partir de regras opacas que se apresentam

neutras e impessoais, mas que de forma pré-política ou subliminar condenam

classes sociais inteiras ao não-reconhecimento social e à baixo-estima e, a partir

disto, legitimam um acesso não paritário a serviços, bens sociais escassos e

mesmo a direitos políticos e culturais. Enfim, ao poder social econômico e

simbólico. Melhor explicando, na sociedade moderna, algumas diferenciações são

incontornáveis. O que o racionalismo moderno trouxe foi a necessidade de

justificativas não-transcendentais nem metafísicas para as desigualdades, como já

dito anteriormente, a luta pelo fim dos privilégios, que são os benefícios não

justificados. A busca por prestígio social diferencial, por exemplo, não é

condenável em si, pois está baseada na noção de merecimento (mérito) que por

sua vez está assentada em bases de possibilidades igualitárias e universais,

somente dependendo, ao menos em tese, das aptidões individuais (autenticidade).

Para Taylor, o reconhecimento social como consenso historicamente

produzido, aplica-se tanto à noção de dignidade que confere força ao postulado da

igualdade, quanto à noção de autenticidade, demandando respeito à diferença.

Estes princípios não são apenas antagônicos, mas complementares, como as

dimensões das demandas por redistribuição econômica complementam as

reivindicações por reconhecimento cultural e estão englobadas por requerimentos

de reconhecimento social.

26 D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”

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Ao procurar retirar a dimensão ética da demanda por redistribuição,

aventando-lhe apenas um conteúdo material, Fraser não considera, por exemplo,

que um recurso à dimensão da auto-estima foi o que possibilitou o Welfare State.

A intuição hegeliana original de que a sociedade evolui, pode ser afirmada com os

conceitos ampliativos de cidadania de Marshall, quando Honneth escreve que

particularidades que não gozavam de proteção antes, passaram a tê-la. Novamente

é a contribuição de Taylor em “As fontes do self ” importante neste sentido, ao

revelar que em termos culturais, a concepção que temos acerca dos padrões

ocidentais por exemplo, não é natural, nem nos foi dada de forma transcendental,

mas sim produzida materialmente por fatos históricos que a determinou e

qualquer olhar de superioridade ou de valoração moral a partir deste padrão em

direção a outros, é igualmente uma construção histórica e contingente. Neste

sentido, mesmo instituições centrais do capitalismo como a existência de classes

sociais (com as suas enormes disparidades que tanto incomodam à Fraser), são

dependentes de legitimação, dependentes de consenso moral. 27

A “hierarquia moral” entre os valores a que Taylor se refere em sua teoria,

são as concepções valorativas subjacentes às práticas sociais concretas, e o

capitalismo é uma delas, e permitem a afirmação da tese fundamental de que toda

ação humana seja em contextos econômicos, políticos ou culturais específicos, ou

não, está inserida numa moldura que pressupõe escolhas e avaliações morais

como causa última.

Ao retirar do reconhecimento a sua possibilidade de acomodar demandas

de redistribuição econômica, Fraser aparentemente esvazia a teoria de seu poder

transformador e libertário, da sua força baseada em argumentos éticos, e segundo

a crítica elaborada por Jessé Souza e Patrícia Mattos, sem formular na sua teoria

uma explicação concreta suficientemente clara de como ocorrem os

imbricamentos entre as dimensões redistributivas e de reconhecimento28.

27 MATTOS, P. “A Sociologia Política do Reconhecimento” 28 SOUZA, J. SOUZA, Jessé. “A construção Social da Subcidadania” e neste mesmo sentido, MATTOS, P. “A Sociologia Política do Reconhecimento”

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7.3 Multiculturalismo e Relações Raciais: Novamente o Debate Taylor

versus Habermas

Novamente se faz necessária uma pausa para resumidamente abordar a

teoria de Habermas e contrapô-la à de Taylor. O intuito aqui é procurar deixar

claro porque, ao analisar as relações raciais brasileiras, fiz a opção pela teoria de

Taylor apesar das críticas elaboradas por Habermas, uma vez que estas críticas

ocorrem no debate do multiculturalismo e o outro teórico esposado foi Jacques

d’Adesky, um pensador desta mesma corrente intelectual. Ainda para que não

reste dúvida, a opção teórica feita não significa que as formulações habermasianas

não possam ou não devam se aplicar ao tema das relações raciais no Brasil, em

absoluto. Aliás, como espero já ter deixado claro, nem a teoria de Taylor pode ser

aplicada diretamente, não traduzida para a nossa realidade, uma vez que ele

elabora a sua teoria pensando no ambiente multicultural de Quebec, caso concreto

e complexo, muito diferente do nosso em que a constituição professa o

pluriculturalismo. Enquanto isso, Habermas elabora um modelo filosófico,

abstrato, para uma sociedade pós-convencional, a fim de servir como parâmetro

de crítica social. Acontece que Habermas, ao pretender aplicar o seu modelo

filosófico diretamente a questões políticas, parece fazer com que surjam alguns

problemas.

Tratando especificamente do debate sobre o multiculturalismo, Habermas

concorda que as pessoas são individualizadas por meio da coletivização em

sociedade. Mas ele afirma que o modelo individualista de Estado de direito

permite a conciliação entre fins individuais e metas coletivas, sem que o direito

precise se substancializar. Ele concebe uma vida política dual entre um mundo

institucionalizado, que é regido por uma razão instrumental e um mundo da vida

não institucionalizado onde as pessoas são regidas por expectativas de

comportamento. A partir daí, ele afirma que o direito pode ser o médium, o elo

entre essas duas esferas políticas. Na concepção moderna, o direito extrai a sua

legitimidade de um procedimento racional (sempre lembrando que, para ele, a

racionalidade é o potencial comunicativo). O direito seria um procedimento

neutro com o objetivo de permitir a convivência entre as diversas concepções de

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bem (as individuais e as coletivas) concorrentes na esfera pública. A relação entre

direito e democracia é crucial. O que deve estar minimamente garantido

politicamente é a possibilidade de participação plural e igual de todos. O mundo

da vida de Habermas é o pano de fundo cultural que permite a interação entre os

indivíduos. É o contexto cultural e político compartilhado, cenário das interações.

Daí ele critica Taylor, e por via oblíqua Amy Gutman e Steven Rockefeller,

afirmando que a sua política de reconhecimento está baseada num alicerce fraco

porque depende da presunção de igual valor idêntico de todas as culturas. Ele

defende que as culturas podem se autotransformar em contato com outras e que

basear a convivência de grupos em direitos coletivos, é sair da perspectiva liberal,

pois eles estão além da teoria dos direitos liberais, feitos para atender pessoas

individuais.29

A diferença entre eles, é que Habermas joga o valor das minorias para a

prática e para a disputa política, enquanto Taylor não, o coloca dentro do campo

teorético, da sua concepção de democracia; a sua democracia é substancial.

Quando Taylor defende que a democracia canadense proteja a particularidade do

Quebec, ele pretende que isso se perpetue, não que os quebequenses um dia,

sejam absorvidos pela cultura majoritária. Taylor propugna um duplo

reconhecimento, o de um valor intrínseco daquela cultura específica e o respeito à

diversidade como um valor em si, o que impõe uma defesa e proteção da cultura

minoritária. O que Taylor ressalta é que a primazia dos direitos individuais já é

uma concepção de bem substancial e que se for aplicado ao Quebec, por exemplo,

acabaria com a sua especificidade trazendo reflexos aos indivíduos que assim se

identificam (os quebequenses), ferindo os seus direitos humanos.

Para pensar a realidade das relações raciais injustas de uma sociedade

como a brasileira, em certos aspectos até pré-moderna, podemos entender que a

proposta de Taylor parece oferecer um instrumental mais atraente de

interpretação. O mundo da vida de Habermas, ressalta Taylor, não é neutro e o

que permite que se pense assim, é a naturalização das suas práticas como descrita

por ele em “As Fontes do Self”. Apesar do potencial de comunicação visando ao

entendimento, o pano de fundo compartilhado é marcado por um lado, por uma

desvalorização generalizada da imagem das pessoas negras coletivamente, e essa

29 HABERMAS, J. “Comment” in: TAYLOR, C. “ Multiculturalism”

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desvalorização não é traduzida por uma indiferença ou uma neutralidade, mas por

uma concepção substantiva de inferioridade das pessoas negras que se irradia por

todas as dimensões do humano, tanto as sociais quanto as morais. A razão que

rege as interações na sociedade brasileira não é uma razão comunicacional neutra.

Não vou entrar aqui no mérito de esquadrinhar teoricamente se o ser humano

possui este potencial de neutralidade ou não. Mas analisando o caso concreto, a

razão que orienta o nosso processo de socialização é ideologizada por um ideal de

branqueamento que elege a miscigenação como parâmetro de prática desejável.

Ora, mas se o tipo ideal continua sendo o branco (em aspectos físicos e culturais),

então a miscigenação visa no fundo à dissolução das especificidades negras

(físicas e culturais).

Em relação à linguagem, o potencial performativo para Habermas aparece

na sua proposição de mudança de paradigma da filosofia do sujeito para o

paradigma comunicacional. Nesse sentido, a unidade básica da linguagem deixa

de ser a “proposição” e passa a ser o “enunciado” que é a proposição inserida num

contexto interativo. Acontece que a sua teoria não parece levar em consideração

mecanismos que distorcem a interação, neste caso particular o racismo. E nem a

influência disso no processo de constituição dos indivíduos, o que torna o sujeito

um sujeito. É o que ressalta Axel Honneth30. Resumindo um pequeno aspecto de

um imenso debate teórico, há grandes divergências na área da filosofia da

linguagem, quanto à concepção de linguagem. Entre os que entendem a

linguagem como a forma de comunicação corriqueira e, por isso, a suspensão da

comunicação só deve ser feita quando houver um ruído na interação e, por outro

lado, os que compreendem a linguagem como representação ideal, entendendo

que as falhas devem ser, portanto, prioritariamente identificadas e corrigidas.

Independente da posição assumida, a linguagem, como aspecto fundamental da

condição humana, pode carregar os estereótipos e simbolismos das concepções

racistas, pois tem o poder de nos nomear, apontar as diferenças e o que é mais

problemático, de hierarquizá-las. Agora, se o próprio Habermas afirma que o pano

de fundo compartilhado não é tematizado, é intransparente, a razão poderia

produzir argumentações dedutivelmente lógicas a partir de premissas que já

fossem racistas, ainda que isto ocorresse de forma não-reflexiva, não-intencional.

30 HONNETH,A. “A Luta por Reconhecimento”

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7.4 CONCLUSÃO: Liberdade Situada e Dignidade Humana

Recentemente o conceito filosófico de Dignidade da Pessoa Humana, e a

sua tipificação como princípio constitucional, se converteu no metaprincípio

jurídico de interpretação de todo o ordenamento positivado. Existem algumas

teorias que se propõem a dar densidade jurídica ao princípio, entretanto ele

continua ancorado numa concepção filosófica de caráter ontológico, igual

dignidade universal para todos os seres humanos, formulado por Kant. Neste

trabalho o marco referencial foi outro. A opção foi pela concepção de uma

ontológica liberdade do ser humano, conforme formulada por Rousseau.

Na modernidade, devemos a Rousseau a noção da ontológica liberdade do

homem desde o Discurso Sobre as Origens das Desigualdades até a sua posterior

formulação categórica em O Contrato Social. No Discurso, ele afirma que é a

liberdade que distingue os homens dos demais animais e permite que ele coloque

a sua vida em risco apenas para satisfazer os seus desejos. Rousseau diz que

homem e animal são máquinas engenhosas, mas nas operações (nas interações) do

animal, a natureza faz tudo sozinha, enquanto o homem concorre “ele mesmo”

para as suas operações. O animal escolhe ou rejeita algo por puro instinto

enquanto o homem faz escolhas, isto faz com que o animal não possa ( ou não

consiga ) se afastar da norma que lhe é prescrita ( pela natureza) mesmo quando

isto lhe é vantajoso; já o homem na qualidade de agente livre, se afasta desta

prescrição da natureza, muitas vezes com prejuízo seu. Enfim, as escolhas do

homem são atos de liberdade.

Assim, as nossas escolhas estão baseadas na vontade. Desta forma, ao

invés de satisfazer os seus desejos instintivamente, os humanos podem querer

mais do que lhes é aparentemente suficiente (praticando excessos) e deixando que

a vontade livre comande o seu comportamento, deformando os sentidos já

saciados. E se imaginarmos a situação de uma greve-de-fome, por exemplo,

podemos concluir que o homem pode deixar de comer por um imperativo moral31.

31 Lembrando Hegel: não seria este ato também uma busca por certo tipo de prestígio?

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Rousseau então identifica vontade com liberdade e diz que o homem tem

consciência disto e é nesta consciência que se revela a “espiritualidade da sua

alma” porque “o processo de formação das idéias pode ser explicado de algum

modo pela física mecânica e é o mesmo para homens e animais, mas o sentimento

que o homem tem da possibilidade de fazer escolhas, isto não pode ser explicado

pelas leis da mecânica, pois neste processo os atos são puramente espirituais e

não atividades do corpo”32 Assim, para Rousseau, a liberdade é o bem supremo

porque, se é na consciência da liberdade que se revela a “espiritualidade da alma

humana, ela a liberdade, é uma exigência ética fundamental” e renunciar a ela é

renunciar à própria qualidade do ser humano.

Rousseau afirma no Discurso que foi o início da dependência entre os

homens que ocasionou a perda da nossa liberdade original, ou melhor, que foi a

forma como se efetuou o processo de socialização, gerando dependência, que nos

fez perder a liberdade.

Os atuais conhecimentos empíricos demonstram outra coisa. A psicologia

de Mead e de Winicott, apresentadas por Honneth, confirmam a intuição

hegeliana de que somos seres carentes, desejantes e dependentes uns dos outros. E

que a possibilidade de nossa liberdade como auto-realização, isto é, da realização

do que há de mais autêntico em nós, está justamente na possibilidade de nos

percebermos desta forma e de nos responsabilizarmos coletivamente pela auto-

realização, uns dos outros. Esse é exatamente o conceito de liberdade de Hegel. A

liberdade relacionada a uma Sittlichkeit. Como explica Taylor, a “Sittlichkeit

refere-se às nossas obrigações éticas relativas à uma vida mais ampla a qual

temos que dar suporte e prosseguimento”33 . Isto nos permite fazer exigências

maiores à sociedade e ao Estado, para que se criem condições mais favoráveis de

liberdade para todos os indivíduos.

Deixemos de lado o conceito de liberdade negativa. Taylor explica que a

concepção moderna de subjetividade, criou um conceito de liberdade que se

concebe como uma conquista por meio da eliminação de todos os obstáculos

empecilhos ou entraves externos. Ser livre seria ser desimpedido, ou depender

somente de si mesmo. A “virada antropocêntrica” da modernidade concebeu a

32 ROSSEAU, Jean-Jacques. “Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens”. Ed. Europa-América. Portugal, 1976. 33 TAYLOR,C. “Hegel e a sociedade moderna”

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liberdade como uma conquista e fim das amarras de uma ampla ordem cósmica.

Kant definia a liberdade como a obediência a uma lei do “Eu” racional, em

contraste com a dependência da vontade dos outros ou da natureza. Hegel, por

outro lado, intencionava na sua crítica à moralidade kantiana situar o homem na

comunidade sem abandonar a importância da razão.

Essa noção de liberdade é complementada pelo que podemos chamar de

certa concepção de agência, dada pela Teoria do Reconhecimento, conforme já

explicado no capítulo 5. Ao mesmo tempo permite um critério mais exigente de

responsabilidade social e justiça distributiva, como a melhor repartição das

riquezas e dos bens materiais e também, como vimos, os bens simbólicos da

sociedade.

Neste sentido, é que podemos interpretar a Teoria do Reconhecimento

como uma teoria da Liberdade; da liberdade de auto-realização, de emancipação

humana.

O filósofo Habermas afirma que encontrar os direitos humanos e os

direitos de cidadania na idéia de dignidade humana, “não é errado, mas

insuficiente.”34 Ele constrói um modelo em que participantes livres e iguais

chegam a um acordo acerca de quais direitos eles devem reciprocamente se

reconhecer se quiserem legitimamente regular a sua vida em comum por meio do

Direito positivo. Essa é a idéia de autolegislação, na qual autores autônomos da

ordem jurídica permanecem autônomos destinatários do Direito. Segundo ele, o

conceito de dignidade humana é visto como intrínseco ao indivíduo singular,

anterior a qualquer socialização. Ele afirma que a liberdade expressa melhor o fato

de que as constituições devem ser ordens legítimas do que o “discurso vazio”

ontológico sobre a dignidade.

Como já foi explicado, ainda que Habermas não seja o autor diretamente

trabalhado nesta dissertação, a sua formulação permite perceber que a dignidade

ontológica, logo a suposta igualdade, é uma conquista política, a partir da

inspiração filosófica kantiana. Ao passo que a afirmação ontológica da liberdade,

que teve intuição filosófica com Rousseau e Hegel, atualmente recebeu uma

comprovação empírica com Freud, Mead e Winnicott.

34 HABERMA, J. “Remarks on Erhard Denninger's Triad of Diversity, Security, and Solidarity”, Rev. Constellations n.º 7, vol. 4

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No que interessa para um militante do tema, as iniqüidades raciais são tão

profundas que, de qualquer lugar que se observem, as injustiças são claras. Porém

para os fins desta dissertação, ocorre que a Teoria do Reconhecimento fornece um

critério formal o bastante para não criar suspeita de que adere a uma concepção

moral substantiva. E ao mesmo tempo esses critérios têm caráter normativo e

universal.

Por outro lado, se adotarmos uma perspectiva como a de Taylor e

entendermos que a adoção de uma posição substantiva no campo da eticidade não

cria embaraços para uma concepção liberal de democracia, a Teoria do

Reconhecimento fornece, do mesmo modo, um critério para a materialização

desta concepção. Segundo Taylor, sociedade democrática é a que protege e

defende as minorias e esse deve ser, portanto, o critério de interpretação

constitucional e por via oblíqua, de todo o ordenamento positivado.

Nesse sentido, espero ter ficado claro durante toda a exposição que a

relevância da Teoria do Reconhecimento para o campo do Direito, deve-se pela

sua possibilidade de eleger critérios para a reaproximação entre Direito e moral e

resgatar a força do Direito. Por outro lado, a teoria de Jacques d’Adesky, traduz

grande parte deste instrumental teórico para a realidade das nossas injustas

relações raciais, fazendo-nos concluir que a maior parte dos temores quanto às

reivindicações identitárias dos Movimentos Negros, não passam de preconceitos e

ideologias, disfarçados de preocupações patrióticas ou acadêmicas.

Independente da posição moralmente substantiva que se adote, as

disparidades raciais são um entrave ao desenvolvimento do país e superá-las é

uma necessidade urgente. Não disponibilizar as opções para o exercício de

direitos ou fruição de benefícios, é um atentado à liberdade tão grande quanto

criar impedimentos diretos para não acessá-los.

Optar por tratar do tema da reivindicação de justiça por meio do postulado

da liberdade, quando no centro do assunto está a população negra, parece ter uma

conotação especial que rememora as muitas lutas libertárias, as diárias de

resistência individual e as vultosas coletivas pela mudança do sistema de

produção e contra a servidão no nosso recente passado.

Conforme elaborado no capítulo 1, o debate entre liberais e comunitários,

nos lembra que o pluralismo é traço distintivo das sociedades atuais. A

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modernidade, com sua noção de indivíduo, possibilitou a disputa entre várias

“visões de mundo”. Os negros querem ser vistos.

ÒKÈ ODÉ

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