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6A – Linguagem e experiência linguística ausente MARIA CARLOTA ROSA UFRJ/DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA LEF140 Prof. Maria Carlota Rosa As “crianças selvagens

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Page 1: 6A Linguagem e experiência linguística ausente · preexistente”da linguagem que Chomsky [....] chama “órgão da linguagem”, isto é, uma rede neural especializada que existe

6A – Linguagem e experiência linguística ausente

MA R I A C A R LOTA ROSA

UF R J / D EPA RTA MEN TO D E L I N G UÍ ST I C A E F I LOLOG I A

LEF140Prof. Maria Carlota Rosa

As “crianças selvagens”

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• Por ambiente entende-se aqui o ambiente linguístico, isto é, a exposição do indivíduo também sua interação numa comunidade linguística.

• A esse convívio com dados linguísticos se dá o nome de experiência linguística.

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O bebê humano parece nascer com um “conhecimentopreexistente” da linguagem que Chomsky [....] chama“órgão da linguagem”, isto é, uma rede neuralespecializada que existe apenas nos humanos, queaguarda a experiência auditiva com um sistema decomunicação baseado em símbolos (quer a linguagemoral ou a de sinais) para deflagrar sua execução.

(Northern & Downs, 2002: 3)

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Mas isso terá de acontecer num período bemespecífico da vida, sob pena de sequelasirreversíveis.

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A certeza de que todas as crianças falam, não importa como

cresçam, está presente na ficção ...Criado por de Edgar RiceBurroughs (1875-1850) einicialmente publicado em1912, o herói órfão JohnClayton, Lord Greystoke, foirebatizado Tarzan por umaespécie de macacosdesconhecida da ciência.

Mowgli (do conto In the Rukh (‘na floresta’), de RudyardKipling (1865-1936).

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Mas na ficção todos os animais são muito falantes (menos o Pluto). Os grilos, ratos, coelhos, patos, cobras, leões, suricatos, javalis, babuínos... das histórias infantis falam, cantam, dançam, podem conhecer expressões em suaíle ... como nos exemplos das obras saídas dos Estúdios de Animação Walt Disney que ilustram esta página. https://www.youtube.com/watch?v=tylPRTYUXmU

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A certeza de que todas as crianças falam, não importa como cresçam, também está presente em experimentos com seres humanos ordenados por governantes

Psamético I (663-610 a.C.);

Frederico II (1194-1250), imperador do Sacro Império Romano;

James IV da Escócia (1473-1513).

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Por trás desses experimentos estava a crença de que, sem a experiência linguística, uma criança falaria a língua original.

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histórias cujo reflexo encontrou eco na classificação dos Primatas do gênero Homo, de Carl von Linné (ou Lineu).

Mas essa certeza conflita com relatos sobre crianças-lobos,

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•Juvenis Ursinus lithuanus. 1661. [‘o jovem-urso da Lituânia’]•Juvenis Lupinus hessensi. 1344.[‘o jovem-lobo de Hessen(Alemanha)’]•Juvenis Ovinus hibernus [....] [‘o jovem-carneiro da Irlanda ( Hibérnia)’]•Juvenis Hannoveranus [‘o jovem de Hanover (Alemanha)’, ou Pedro de Hanover ]•Pueri 2 Pyrenaici. 1719. [‘duas crianças dos Pirineus’]•Johannes Leodicensis [‘João de Liège (Leodicum), Bélgica’]

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O Homo ferus , “tetrapus, mutus, hirsutus” [‘quadrúpede, mudo, hirsuto’],

não era uma espécie diferente do gênero Homo, mas trazia a resposta a perguntas como a de Psamético, porque:

onão falava frígio, nem hebraico, nem grego, nem língua alguma;

opodia ter sua locomoção severamente comprometida -em decorrência de desnutrição, agravada por maus tratos.

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Lineu atentara para um aspecto dodesenvolvimento linguístico que começaria areceber bastante atenção cerca de 300 anosmais tarde: a importância, para a criança, doconvívio humano em ambiente estimulantepara que ela possa ser fluente na sua língua.

Em outras palavras: só a biologia não basta.

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Quando a experiência linguística está ausente na infância

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Os casos privação de experiência linguística:

• derivam de situações em que a criança se viufora de qualquer comunidade, isolada deoutros seres humanos; ou

• são consequência de situações deconfinamento, que poderiam ser definidascomo condições de abuso de incapaz.

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1. AS “CRIANÇAS SELVAGENS”

A denominação crianças selvagens (do inglês wildchildren; também feral children) vem sendo aplicada a crianças encontradas em condições de privação total ou quase total do contacto humano, e, consequentemente, privadas do contacto com uma língua, que cresceram na selva sozinhas ou criadas por animais (Curtiss, Fromkin, Krashen, Rigler & Rigler, 1974: 126).

A denominação tem sido estendida a outros casosextremos de isolamento linguístico, mesmo queurbanos (como em Bear, Connors & Paradiso, 2001:521).

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Exemplos de indivíduos encontrados em situação de isolamento ou de confinamento :

Kaspar Hauser (1828);

“Isabelle”* (1938);

“Anna” (1938);

“Genie” (1970).

*As aspas indicam tratar-se de pseudônimo.

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Kaspar Hauser – 1828, Nuremberg (Alemanha) - 16 anos

• Quando tinha seis meses, a mãe viúva deu-o paraoutra família.

• Cerca de quatro anos mais tarde esta família passariaa mantê-lo isolado e amarrado.

• Ao ser encontrado não falava mais que seis palavras.• Cerca de 15 meses mais tarde era capaz de

enunciados complexos como qualquer adulto.

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“Anna” - 1938, Pensilvânia (EUA)Quase 6 anos

Foi encontrada em situação de privação na casa do avô,também em razão de ser filha ilegítima.

Até os quatro meses - diversos lares e instituições, emtentativas de que fosse adotada. Um dos complicadores para aadoção era seu estado de saúde, uma vez que nessa idade jáapresentava vaginite, impetigo, hérnia umbilical e rash .

Aos cinco meses e meio, sem condições de pagar para mantera menina num lar adotivo particular, a mãe de “Anna” levou-apara a casa do avô. Até ser encontrada, “Anna” viveu presa auma cadeirinha, com os braços amarrados sobre a cabeça. Foialimentada pela mãe, durante todo esse tempo, apenas com leitede vaca. Ao ser encontrada, o estado de desnutrição não lhepermitia andar. Também não falava. Não era capaz de sealimentar, mesmo que o alimento lhe fosse apresentado.

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Na primeira instituição das várias por onde passaria,a princípio pensou-se que era surda e talvez cega, emrazão da completa apatia. Mais tarde se percebeu queela não reagia a vozes [o que Lenneberg (1967: 107)afirma que uma criança de 16 semanas já faz] oupalmas, mas reagia ao som de um relógio.

Em agosto de 1939 “Anna” foi transferida para umlar para crianças retardadas.

Em novembro de 1939 ainda não falava.Em abril de 1940 balbuciava.Em julho de 1941 começava a falar. Antes de morrer

de icterícia, em 6 de agosto de 1942, repetia palavrasisoladas e tentava entabular conversas.

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Nove meses depois da descoberta de “Anna” ...

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“Isabelle” 1938, Ohio (EUA)

6 anos e meio

• A mãe de “Isabelle” sofrera uma lesão no cérebro aosdois anos, perdendo a visão do olho direito; nuncadesenvolveria a linguagem, comunicando-se com suafamília com os gestos que ela criara.

• Não saía desacompanhada e causou espanto suagravidez aos 22 anos, nunca se chegando a saberquem fora o pai (Mason, 1942: 295).

• O avô a encarcerou e também à neta, e assimviveram até que a mãe de “Isabelle” fugiu.

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• A menina havia desenvolvido raquitismo e suaspernas eram tão arqueadas que, de pé, as solas dospés quase se juntavam.

• Ao ser encontrada, não falava.• Pensou-se a princípio que era retardada.• Uma semana depois do resgate “Isabelle” começou a

vocalizar.• Em fevereiro de 1939:

“top it – at’s mine [stop it, that’s mine](Steinberg, Nagata, Aline, 2001: 136)

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In a little over two months after her first vocalization she was putting sentences together. Nine months after that she could identify words and sentences on the printed page, could write well, could add to ten, and could retell a story after hearing it. Seven months beyond this point she had a vocabulary of I,500-2,000 words and was asking complicated questions.

(Davis, 1947: 436)

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Essas perguntas complicadas apresentavam: interrogativas WHuso do auxiliar dosentenças encaixadascondicionais

What did Miss Mason say when you told her I cleaned my classroom?

Why does the paste come out if one upsets the jar?

(Steinberg, Nagata, Aline, 2001: 136)

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“Genie” - 1970 - Califórnia (EUA) 13 anos

Para a identificação de “Genie” como Susan Wiley, ver o artigo “Genie Wiley”, de Will Johnson em

http://countyhistorian.com/cecilweb/index.php/Genie_Wiley

Ao ser encontrada media 1,35m e pesava 28,1kg, o que levou a pensar que fosse bem mais nova. Não ficava de pé, não mastigava, tinha dificuldade para engolir, não controlava intestino ou bexiga. Não tinha controle sobre os órgãos da fala; não só não falava como não emitia qualquer som vocal.

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• aos 14 meses recebera diagnóstico de retardo mental.• A partir dos 20 meses, o pai a fez viver amarrada a um

troninho ou, para dormir, presa numa espécie de saco dedormir que lhe permitia apenas movimentos de mãos e depés.

• A menina foi descoberta quando a mãe fugiu de casa.• O pai suicidou-se pouco depois.

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“Genie”Sete meses depois do resgate jáera capaz de compreender cercade 200 palavras. A compreensãoavançava rapidamente.

A produção vocal, caracterizadacomo “guinchos” de difícilcompreensão, continuava abaixodo normal, com enunciadosagramaticais.

Não há relatos sobre osresultados das tentativas de lheensinar um sistema de sinaisentre a ASL e inglês sinalizado.

Esta Foto de Autor Desconhecido está licenciado em CC BY-SA

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“Genie” aprendeu algum vocabulário, mas os déficits na sintaxe eram evidentes:

➢ Applesauce buy store (04/1972) Curtiss, 1977: 153;179

➢ Very sad, climb mountain (09/1973)Curtiss, 1977: 184

Esta Foto de Autor Desconhecido está licenciado em CC BY-SA

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Por que Kaspar conseguiu resultados tão bonse os de Genie foram tão ruins?

Talvez, simplesmente, Kaspar já houvesseaprendido um pouco da língua, adquirido acompetência lingüística de uma criança de trêsanos, antes de ser confinado, ao passo que Genievivera totalmente isolada desde os vinte mesesde vida. Esse um ano de uso da língua, de fato,pode fazer toda a diferença: verificamos isso emcrianças que ficaram surdas de repente, digamos,aos 36 meses de idade e não aos 24.(Sacks, 1989: 66n)

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Parece que mesmo uma curta exposição à linguagem –um breve momento durante o qual a cortina foi levantada ea comunicação oral estabelecida – é suficiente parapropiciar à criança algum fundamento sobre o qual muitoda linguagem pode se basear posteriormente.(Eric Lenneberg, Apud Northern & Downs, 2002: 4; repetido na p. 119)

Esse breve momento teria possibilitado a Hellen Keller odesenvolvimento lingüístico que conseguiria mais tarde,embora surda e cega em razão de uma meningite aos 19 mesesde idade (Northern & Downs, 2002: 4; Sternberg, 2006: 294).

(Mas por que não teria possibilitado o mesmo a “Genie”?)

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CURTISS, Susan.1977. Genie: A Psycholinguistic study of a modern-day “wild child”. New York/ San Francisco/ London:

Academic Press.

CURTISS, Susan; FROMKIN, Victoria; KRASHEN, Stephen; RIGLER, David & RIGLER, Marilyn. 1974. The linguistic

development of Genie. In: LUST, Barbara C. & FOLEY, Claire. 2004. First language acquisition: The essential readings.

Malden: Blackwell, 2005. p.126-154.

DAVIS, Kingsley. 1947. American Journal of Sociology, 52 (5): 432-437. Mar. 1947

MASON, Marie K. 1942. Learning to Speak After Six and One-half Years of Silence . Journal of Speech Disorders, 7: 295-

304. December 1942.

NORTHERN, Jerry L. & DOWNS, Marion P. 2002. Audição na infância. Trad. Antonio F. D. Paulo; Maria de Fátima

Azevedo. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005.

ROSA, Maria Carlota. 2010. Introdução à (Bio)Linguística. São Paulo: Contexto.

STEINBERG, Danny D.; NAGATA, Hiroshi & ALINE, David P. 2001. Psycholinguistics: language, mind and world. 2nd. ed.

London: Longman.