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A DIALÉTICA DA IMPIEDADE  Paulo Francis  Eduardo Sterzi* Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo. O Diabo, num conto de Machado de Assis Os paradoxos seguem provocando-nos espanto, como se ignorássemos que, nos jogos sérios do intelecto, precisamente o paradoxo constitui o momentum de refulgência da verdade. Eventuais antagonistas de Paulo Francis, e mesmo alguns comentadores simpáticos aos seus escritos, acusaram o caráter paradoxal de seu percurso político, sua trajetória do trotskismo da juventude para o liberalismo da maturidade. Os mais atentos entre estes observadores devem ter percebido que o paradoxo, antes de ser um dado resultante de uma evolução ou degenerescência diacrônica, esteve sempre vivo no seio de cada uma dessas posições extr emas, e, se o Fr ancis com unista po dia ser escandalosamente elitista em seus gostos e posições, o Francis conservador também mostrou-se eivado de um anarquismo insopitável. É por artes do paradoxo que a mística da convivência com os poderosos, tão flagrante em seus textos, e à qual não faltavam mesmo traços de lacaiagem, praticamente não se diferenciava do desnudamento impiedoso da mecânica do poder. Seus livros mais pessoais, O Afeto que se Encerra e Trinta Anos esta Noite , assim como seus romances, Cabeça de Papel e Cabeça de Negro, são elucubrações, obliquamente apologéticas, sobre a classe dirigente, e também, não em menor medida, fantasias egocêntricas e até paranóicas acerca de sua própria centralidade nesse contexto. Não obstante, todos encerram-se com o desencanto de quem se descobre enfim impotente, ainda que mais sábio pelo reconhecimento dessa impotência. Por força da reflexão, o desencanto transcende a individualidade. Observe-se a transição da primeira pessoa do singular para a equivalente do plural no encerramento de Trinta Anos esta Noite : «O 1964 fez de mim, da minha geração, homens adultos. Vivíamos de ilusões, nos imaginando senhores do Brasil de que gradualmente tomávamos posse. Escapuliu, não é de ninguém, é o que quisermos fazer de nossas vidas». Francis jamais camuflou seu desprezo pelos (para falar como Mallarmé) «reporters par la foule dressés à assigner à chaque chose son caractère commun ». Foi tão pouco jornalista, se pensarmos na devoção ao clichê que se associa comumente a essa profissão, e, no entanto, é impossível conceber sua œuvre (a pomposa voz francesa deve soar aqui com meditada ironia) fora do ambiente jornalístico. Há precursores célebres nessa aparente contradição, como o norte-americano H. L. Mencken e o austríaco Karl Kraus. «Jornalismo é a segunda mais antiga profissão»: a frase de Francis poderia constar sem demérito dos Sprüche und Widersprüche de Kraus. A lógica comercial da imprensa contemporânea, que mal consegue disfarçar o desdém pela inteligência do leitor sob a máscara do facilitamento e da empatia, é a lógica de um bordel destinado ao fracasso, um bordel em que as meretrizes deixam-se seduzir noite e dia pelos clientes. Francis alertou com perspicácia: «O mal da imprensa é que ela não ousa mais desagr adar o leitor ». O cumprimento da urgente tarefa pedagógica da imprensa depende dessa ousadia. O esclarecimento do leitor é sempre um ato de relativa violência. Ninguém aprecia ser confrontado incessantemente com a própria ignorância (e tornar-se ciente da ignorância, como sabemos desde Sócrates, é o passo primeiro rumo à sabedoria).

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A DIALÉTICA DA IMPIEDADE Paulo Francis 

Eduardo Sterzi*

Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.O Diabo, num conto de Machado de Assis

Os paradoxos seguem provocando-nos espanto, como se ignorássemos que, nosjogos sérios do intelecto, precisamente o paradoxo constitui o momentum de refulgênciada verdade. Eventuais antagonistas de Paulo Francis, e mesmo alguns comentadoressimpáticos aos seus escritos, acusaram o caráter paradoxal de seu percurso político, suatrajetória do trotskismo da juventude para o liberalismo da maturidade. Os mais atentosentre estes observadores devem ter percebido que o paradoxo, antes de ser um dadoresultante de uma evolução ou degenerescência diacrônica, esteve sempre vivo no seiode cada uma dessas posições extr emas, e, se o Francis comunista podia serescandalosamente elitista em seus gostos e posições, o Francis conservador também

mostrou-se eivado de um anarquismo insopitável.É por artes do paradoxo que a mística da convivência com os poderosos, tãoflagrante em seus textos, e à qual não faltavam mesmo traços de lacaiagem,praticamente não se diferenciava do desnudamento impiedoso da mecânica do poder.Seus livros mais pessoais, O Afeto que se Encerra e Trinta Anos esta Noite , assim comoseus romances, Cabeça de Papel e Cabeça de Negro, são elucubrações, obliquamenteapologéticas, sobre a classe dirigente, e também, não em menor medida, fantasiasegocêntricas e até paranóicas acerca de sua própria centralidade nesse contexto. Nãoobstante, todos encerram-se com o desencanto de quem se descobre enfim impotente,ainda que mais sábio pelo reconhecimento dessa impotência. Por força da reflexão, odesencanto transcende a individualidade. Observe-se a transição da primeira pessoa dosingular para a equivalente do plural no encerramento de Trinta Anos esta Noite: «O

1964 fez de mim, da minha geração, homens adultos. Vivíamos de ilusões, nosimaginando senhores do Brasil de que gradualmente tomávamos posse. Escapuliu, não éde ninguém, é o que quisermos fazer de nossas vidas».

Francis jamais camuflou seu desprezo pelos (para falar como Mallarmé)«reporters par la foule dressés à assigner à chaque chose son caractère commun». Foitão pouco jornalista, se pensarmos na devoção ao clichê que se associa comumente aessa profissão, e, no entanto, é impossível conceber sua œuvre (a pomposa voz francesadeve soar aqui com meditada ironia) fora do ambiente jornalístico. Há precursorescélebres nessa aparente contradição, como o norte-americano H. L. Mencken e oaustríaco Karl Kraus. «Jornalismo é a segunda mais antiga profissão»: a frase de Francispoderia constar sem demérito dos Sprüche und Widersprüche de Kraus. A lógicacomercial da imprensa contemporânea, que mal consegue disfarçar o desdém pela

inteligência do leitor sob a máscara do facilitamento e da empatia, é a lógica de umbordel destinado ao fracasso, um bordel em que as meretrizes deixam-se seduzir noite edia pelos clientes. Francis alertou com perspicácia: «O mal da imprensa é que ela nãoousa mais desagradar o leitor ». O cumprimento da urgente tarefa pedagógica daimprensa depende dessa ousadia. O esclarecimento do leitor é sempre um ato de relativaviolência. Ninguém aprecia ser confrontado incessantemente com a própria ignorância(e tornar-se ciente da ignorância, como sabemos desde Sócrates, é o passo primeirorumo à sabedoria).

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Maior leitor de Freud entre os jornalistas brasileiros, Francis estava cônscio deque toda atividade intelectual constitui-se pela sublimação de nosso intrínseco instintode agressão, mas sabia também que essa sublimação não corresponde a uma completaanulação, e sim a uma transfiguração e extensão da agressividade. (Datava suaagressividade da separação da mãe, aos sete anos, quando foi enviado para o internato, epersistiu em sua escrita o tom do menino que contém o choro para não parecer maricas.

Não sem ambivalência, elucidava seu sarcasmo como «a irritação do amanterejeitado».) A consciência desse cerne agressivo fez dele, mais do que um jornalista, umcrítico. Porém, enquanto tantos exercem a atividade crítica de modo adjetivo, Francis adesempenhou de modo substantivo. Não foi, a não ser nos seus primeiros anos deimprensa, um crítico teatral, um crítico literário, um crítico cinematográfico... (em todasestas qualificações, o segundo termo é o mais relevante). Foi um crítico tout court .Walter Benjamin, numa das irônicas treze teses acerca da técnica do crítico, delineou oethos perverso dessa estirpe: «Só quem é capaz de aniquilar é capaz de criticar». Issonão significa, é claro, ao contrário do que possa parecer, que o crítico deve sempreaniquilar. O número de elogios, nos textos de Paulo Francis, não era muito inferior aode reprovações. No entanto, pode-se dizer que a possibilidade sempre iminente daaniquilação anima cada sentença, transformando mesmo os encômios em promessas

sibilinas de futuros ataques. «Estamos sempre em guerra. Apenas não percebemosalgumas...», ele escreveu certa feita. (Contudo, inúmeras referências positivas a velhosconhecidos, alguns deles merecedores óbvios de uma certeira impiedade, eramdeterminadas por aquela má cordialidade detectada por Sérgio Buarque de Holanda noVolksgeist brasileiro.)

Davi Arrigucci Jr., anatomizando o estilo desenvolvido por Paulo Francis emseus livros e colunas, identificou-lhe como distintivo «uma frase de tropelia, em que seacumulam coisas», «uma construção que consiste em imitar o aparentemente não-construído». Com agudeza, nota que ele queria conferir à língua literária luso-brasileira«uma capacidade de alusão que ela não tem». O método de Francis era designado porele mesmo como «raciocínio em bloco»: ponderar qualquer tema à luz de todo oconhecimento acumulado, e não só sobre aquele assunto. Havia sempre uma referência

a mais, muitas vezes dissonante, que iluminaria nossa compreensão, ainda que fosse poracentuar a possível complexidade do objeto em exame. Francis invejava GeorgeBernard Shaw, entre outros motivos, por enfileirar mais de 90 citações ou alusões emapenas duas páginas. O objetivo tático dessa ênfase na quantidade parece evidente:esmagar qualquer possibilidade de reação.

O tropo característico de Francis é a hipérbole. A meta da retórica do exagero foibem descrita por La Bruyère: «A hipérbole ultrapassa a verdade, levando assim oespírito a conhecê-la melhor». Arrigucci, sublinhando o «completo paroxismo» –denominação ela mesma hiperbólica para o tônus hiperbólico – que domina Cabeça de

Papel, observou que a onipresença do álcool e da cocaína no livro são índices daexigência ininterrupta de uma «embriaguez completa». Segundo Arrigucci, é essaembriaguez que provê «um estado propício à epifania». Há uma declaração de Francisque nos ajuda a determinarmos o que se revela nesses instantes epifânicos. Ele confessa:«Bebi muitos anos. Para ficar bêbado. Não posso imaginar outra razão. O bebedor socialé coisa de pequeno-burguês». Pode-se supor, portanto, que se revela a possibilidade deum mundo contrário àquele que percebemos quando sóbrios, mas também refratário àsilusões baratas propiciadas pela tímida embriaguez dos filisteus. Para Francis, anostalgia pela cultura aristocrática, desaparecida com a emergência da cultura demassas, não era mais do que um preâmbulo irônico da invocação de uma barbárierenovadora. Não por acaso, em seus romances, uma exegese da dialética entre cultura e

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crítica irrestrita praticada por Francis, como na arte, a aparência constitui a essência.Daí a importância do estilo, tão inconfundível. «Poesia, em última análise, tem apenas averdade que cria»: o axioma proposto por Francis poderia ser utilizado, não semcomplicações, numa avaliação de sua própria escrita. Embora ele mesmo considerasse«discutível» sua tendência de «reagir a pessoas e acontecimentos como se fossem obrasde arte ou cenas de teatro», não saberia agir de outra maneira. Seria abdicar de sua

personalidade, o patrimônio do crítico.A dominância estética de sua prática reflexiva certamente obscurecia algumasnuanças dos assuntos abordados. No entanto, a própria forma, quando se torna essencial,diz mais do que é dito pelas palavras. O aspecto cada vez mais estilhaçado de suaescrita, por exemplo, é eloqüente, mais eloqüente do que qualquer uma de suas prédicasestabanadas, quanto à perda da totalidade do mundo. Se o conto, como ele argumentoucerta vez, correspondia melhor do que o romance à fragmentação de nossa experiência,a crítica quiçá lhe corresponda melhor do que qualquer forma de ficção. Agradar-lhe-iao anacrônico epíteto de «homem de letras», conforme admite em Trinta Anos estaNoite . Esta designação, respeitosa, dá a medida, no entanto, do fracasso de Franciscomo autor de literatura imaginativa, fracasso que talvez não seja tão seu quanto dopróprio tempo que lhe tocou viver.

Em entrevistas e programas de televisão realizados nos meses anteriores à suamorte, ele repisou a blague de que se sentia «tecnicamente morto» em face do mundocontemporâneo. Mesmo uma frase como «Wagner é uma forma de vida alternativa»corteja a desaparição. É arcanamente elegíaca. Em 1994, já concedera que gostaria deser «o fantasma do Metropolitan Museum, escondido durante o dia e saindo à noite paraolhar o que há». Porém, essa figuração irônica da morte encontrava contrapartida numaangústia que transcendia a mera vaidade de existir: «Não posso acreditar que minhalucidez um dia não exista mais, insuficiente como a considero, mas é minha, é o quesou». Reitera-se, assim, o pathos da traição, origem de toda agressividade,brilhantemente registrado por um Manuel Bandeira embebido de Shakespeare (oShakespeare de King Lear  e de Macbeth), em Momento num Café : «a vida é umaagitação feroz e sem finalidade», «a vida é traição».

Só esse misto inextricável de lucidez e embriaguez – lúcida embriaguez, lucidezembriagada –, essa disposição para experimentar a vertigem da auto-extinção, pagandoos custos de tamanha impiedade, franqueou-lhe a visão da verdade. Duvido que osleitores apressados, os típicos leitores de jornais, souberam desfrutar a poesia dodesencanto presente numa consideração como a seguinte, sobre os conflitos raciais naÁfrica do Sul: «Há situações para que simplesmente não existe uma solução clara esentimentalmente satisfatória». Livre da mauvaise conscience que anima a maioria dosintelectuais, Francis podia inferir: «Libertação sexual, feminismo, gay lib e essa fuzarcade drogas são essencialmente consumismo levado a seus extremos lógicos. Afirmamtodos o que o mercado significa, isto é, que tudo é permitido desde que haja freguês».Para ele, parece não ter existido nenhum tabu, nenhum interdito ao pensamento. Nadamelhor pode ser dito sobre quem dedicou a vida ao nobre desígnio do intelecto.Pronunciadas com ênfase dosada, não sem certa ambigüidade, tais palavras compõem adivisa apropriada à hagiografia de um endemoniado.

* Jornalista, mestre em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do RioGrande do Sul (PUCRS) e doutorando em Teoria e História Literária pela UniversidadeEstadual de Campinas (UNICAMP). Este ensaio foi publicado originalmente no Jornal daUniversidade (UFRGS).