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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós Graduação do Departamento de História Contra Mídias: a utilização da impiedade por Demóstenes Priscilla Gontijo Leite Belo Horizonte 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Programa de Pós Graduação do Departamento de História

Contra Mídias: a utilização da impiedade por Demóstenes

Priscilla Gontijo Leite

Belo Horizonte 2009

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Priscilla Gontijo Leite

Contra Mídias: a utilização da impiedade por Demóstenes

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Historia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Linha de Pesquisa: História e Culturas Políticas. Orientador: Prof. Dr. José Antonio Dabdab Trabulsi

Belo Horizonte Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de História

2009

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Priscilla Gontijo Leite

Contra Mídias: A utilização da impiedade por Demóstenes

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de História

da UFMG, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História.

Belo Horizonte,_______de_________________________de_________ .

_______________________________________ José Antonio Dabdab Trabulsi (orientador) UFMG

_______________________________________ Jacyntho José Lins Brandão UFMG

_______________________________________ Marcelo Pimenta Marques UFMG

_______________________________________ Norberto Luiz Guarinello USP

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AGRADECIMENTOS

Na longa trajetória para a realização dessa pesquisa, contei com a ajuda de

inúmeras pessoas das quais sou muito grata e palavras não expressariam a gratidão e o

carinho que tenho por elas.

Muito obrigada a todos os meus professores de Antiguidade da área de Letras,

Filosofia e História: Antônio Orlando de Oliveira Dourado Lopes, Jacyntho José Lins

Brandão, José Antonio Dabdab Trabulsi, Marcelo Pimenta Marques, Miriam Campolina

Diniz Peixoto, Olimar Flores Júnior e Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa. Cada um a sua

maneira contribui para o meu conhecimento sobre a Antiguidade, e fez com que eu

percebesse que no estudo de Antiguidade a História, a Filosofia e a Literatura possuem

elos muito fortes e que a imbricação das três resulta em reflexões frutíferas. Gostaria de

agradecer, em particular, os professores Antônio Orlando e Tereza Virgina, que na

graduação sempre me incentivaram e estavam dispostos a me emprestar livros; Marcelo

Pimenta e Jacyntho Lins que participaram da minha banca de qualificação e seus

conselhos me auxiliaram na elaboração dessa pesquisa. Quero agradecer especialmente

ao meu orientador, Dabdab, pelo voto de confiança, por acreditar que essa pesquisa

fosse possível, pela leitura atenta do meu trabalho e pelos bons conselhos ao longo

desses dois anos.

Gostaria também de dedicar o meu muito obrigada

A Vilma, bibliotecária da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH)

da UFMG. Por seu compromisso e empenho para que a biblioteca tenha um acervo mais

completo que atenda as necessidades de todos deve receber agradecimentos todos os

dias. Por seu trabalho dedicado devo o acesso a vários títulos importantes de minha

bibliografia.

A Mônica, minha professora de italiano, sempre disposta a auxiliar qualquer

dúvida de minha tradução.

Aos meus familiares pela companhia, compreensão e auxílio em todos os

momentos. Agradeço especialmente minha mãe, Kátia, meus avós, Zé e Odete, meus

tios Beatriz, Belkis e Marco Aurélio e meu irmão, Eduardo, que além de todo o apoio

emocional também me ofereceram apoio financeiro nos momentos difícieis.

A Vevé, companheiro sempre disposto a ajudar em tudo e que me proporcionou

risos e sorrisos incontáveis nos momentos de cansaço e lamúria.

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Aos meus amigos, Adriana, Ana Carolina, Letícia, Marina Camisasca, Marina

Pelluci, Nelyane, Priscilla, Gustavo e Samuel, por sempre estarem dispostos a me

escutar. Agradeço, em particular, Gustavo que muito me auxíliou no acesso a livros e

artigos.

Muito obrigada a todos que trilharam esse caminho comigo. Foi uma caminhada

árdua, cheia de desafios e problemas, das mais variadas magnitudes, mas acima de tudo

foi um caminho que trilhei feliz. Feliz pela concretização de um sonho, pesquisar na

área de História Antiga, minha grande paixão. Tarefa que eu tentei realizar da melhor

forma possível. Mas, minha felicidade está na possibilidade de compartilhar minha vida

com pessoas tão especiais.

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RESUMO

Contra Mídias: a utilização da impiedade por Demóstenes.

Esta dissertação tem como objetivo investigar o uso do argumento da impiedade

no campo jurídico ateniense, buscando entender qual o impacto causado nos ouvintes,

bem como sua eficácia no desenvolvimento da caracterização de culpa do adversário.

Para isso, a pesquisa se deteve no discurso Contra Mídias, de Demóstenes, buscando

compreender a importância da impiedade para a construção do argumento persuasivo do

orador. Esse discurso trata-se de uma probolē, ação de ofensa a festa, movida por

Demóstenes contra seu inimigo político e pessoal, Mídias. O orador o acusa de agredi-lo

durante as Grandes Dionisíacas do ano de 348 a.C.,enquanto exercia a liturgia da

coregia.

ABSTRACT

Against Meidias: the use of impiety by Demóstenes.

This dissertation aims to investigate the use of the argument of impiety in the

Athenian legal field, seeking to understand the impact it caused on the listeners as well

as its effectiveness in the characterisation development of the opponent’s guilt. For this,

the research focused in the speech Against Meidias of Demosthenes seeking to

understand the impiety importance in the construction of the speaker's persuasive

argument. This speech is a probolē, action against persons who had disturbed a public

festival, moved by Demosthenes against his political and personal enemy, Meidias.

Demosthes acused Meidias of assaulting him during the Dionysia in the year 348 BC,

while he was exercising the liturgy of choregos.

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SUMÁRIO

Introdução 10

Capítulo 1 Demóstenes e Mídias: inimizade e vida política

na Atenas do século IV a. C. 14

1.1 Demóstenes 14

1.2 Contra Mídias: a inimizade e os tribunais 17

1.2.1 Amizade e inimizade na vida política 21

1.2.2 Olinto e a Revolta da Eubéia 26

1.2.3 Probolē levada ao tribunal 30

1.3 Sistema judiciário ateniense 31

1.4 Discussão dos especialistas sobre o Contra Mídias 35

Capítulo 2 Questões metodológicas 43

2.1 Estudo de uma palavra 43

2.1.1 Opção de analisar a impiedade em conjunto

com a piedade 46

2.2 Religião como objeto de estudo 47

2.2.1 Religião grega como objeto de estudo 50

2.2.2 Diferenças entre a piedade grega e cristã 52

2.3 Discursos forenses como fonte histórica 54

2.4 Retórica e oratória 58

Capítulo 3 Formas de expressar o religioso: a piedade e

a impiedade na Grécia Antiga 64

3.1 Religião grega: breve caracterização geral 64

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3.2 Festivais 75

3.3 Oráculos 81

3.4 Piedade e impiedade 83

3.4.1 Palavras que expressam piedade e impiedade 84

3.4.1.1 Hósios e Anósios 84

3.4.1.2 Eusébeia e asébeia 86

3.4.2 Piedade 87

3.4.3 Impiedade 93

3.4.3.1 A impiedade em atos 94

3.4.3.2 Impiedade e punição: processos de impiedade

e o conceito jurídico de impiedade 97

3.4.3.3 Impiedade na vida pública: os processos de

impiedade 101

3.4.3.3.1 Decreto de Diopites 102

3.4.3.3.2 Processos de impiedade contra filósofos 104

Anaxagóras 105

Sócrates 105

Aristóteles 107

Teofrasto 107

Teodoro 109

Estílpon de Mégara 109

3.4.3.3.3Outros processos envolvendo a acusação

de impiedade 110

Diágoras de Melos 110

Demades 110

3.4.3.4 Combate contra a impiedade: As Leis

de Platão 111

3.4.4 Piedade e impiedade: normas para a

relação entre os homens 114

Capítulo 4 A impiedade no discurso Contra Mídias 116

4.1 Lei e democracia: a importância das leis

na retórica do Contra Mídias 116

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4.2 O uso de argumentos religiosos na retórica 139

4.3 Hýbris 143

4.4 A impiedade no discurso 150

Considerações Finais 168

A cidade, a impiedade e a piedade 168

Referências Bibliográficas 172

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10

INTRODUÇÃO

O homem grego antigo se definia a partir de dois eixos. O primeiro,

correspondia a sua ação na pólis1: sua atividade profissional, sua participação na

Assembléia e nos tribunais, seu empenho em fazer parte dos ritos cívicos e religiosos. Já

o segundo, as relações que ele mantinha com os outros membros da cidade e sua

integração em grupos, seja com fins políticos ou com outros objetivos. Dessa forma, sua

identidade se baseava no reconhecimento de seu valor como cidadão dado pelos seus

pares. Cada pessoa estava sujeita ao olhar do outro e sua existência relacionava-se com

esse olhar: “É-se o que os outros vêem” (Vernant, 1994, p. 20).

Como a consideração social do cidadão coincidia com sua identidade, ele

deveria participar ativamente da pólis, em todos os domínios: político, jurídico, social e

religioso. Essas esferas não eram nem bem delimitadas nem claramente divididas. Essa

imbricação de âmbitos da pólis foi expressa por Vernant ao afirmar que “todo

sacerdócio é uma magistratura e toda magistratura comporta um aspecto religioso”

(Vernant, 1973, p. 278). Todos os atos da vida cotidiana continham elementos que

reportavam a uma dimensão religiosa, desde as coisas mais corriqueiras até as mais

solenes, da esfera pública à esfera privada. Todo poder político antes de ser efetivado ou

toda discussão para ser legitimada exigiam uma validade no plano do sagrado, que era

atingida após a prática de um ritual religioso, o sacrifício (Vernant, 2006, p. 60).

A religião era integrada à vida social, política e jurídica. Os assuntos religiosos

eram os que mais demandavam tempo aos cidadãos, grande parte das sessões da

Assembléia era dedicada a eles e a pólis gastava boa parte de sua arrecadação fiscal no

cumprimento dos ritos religiosos. Além disso, parte da legislação e dos processos era

pertinente a questões religiosas. O culto, praticado pela cidade por meio de seus

cidadãos, garantia a boa relação com a esfera divina, e também integrava o ambiente

social, pois sacralizava a ordem mundana e permitia um reforço dos laços sociais,

fazendo com que os habitantes se ajustassem à ordem proposta pela cidade. Assim, a

pólis ancorava, legitimava e mediava toda atividade religiosa, que era imprescindível

1 A transliteração do texto grego foi feita a partir das normas presentes em PRADO, Ana Lia do Amaral

de Almeida. Normas para a transliteração de termos e texto em grego antigo. Clássica, v. 19, n.2, p. 298-299, 2006.

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para a regulamentação da própria dinâmica da cidade (Sourvinou-Inwood, 1991, p.

297).

Uma das formas de inserção da pessoa no sistema religioso e de seu contato com

a esfera sagrada era por meio de sua manifesta participação nos cultos e em todos os

atos religiosos promovidos pela pólis. O sentimento que conduzia essa participação é

definido no vocabulário grego antigo pelo termo eusébeia, que ao longo desta pesquisa

será traduzido por piedade. Um ato contrário à religião, uma afronta ao sagrado ou uma

falta cometida contra os deuses é expressa pela palavra asébeia, que será traduzida por

impiedade. A piedade e a impiedade introjetam na pessoa o sentimento de certas

obrigações a serem realizadas ou evitadas na pólis.

O elo que liga o fiel à divindade era intermediado por uma relação social, que

determinava a posição da pessoa na cidade. A relação com a divindade não ocorria de

maneira pessoal, ela se dava por meio da relação do deus com o grupo humano. Assim,

quando o cidadão era excluído da pólis, era colocado fora de toda uma série de

princípios compartilhados pelos membros da cidade, que eram utilizados para defini-

los. Dessa forma, quando a pessoa deixava de habitar sua cidade, deixava de ser o que

era, pois perdia todos os vínculos que a definia (Vernant, 2006, p. 178). Quando a

pessoa era excluída da pólis, ela também perdia sua ligação com o divino: desligada dos

templos da pólis, também se desligava do mundo divino, perdendo, ao mesmo tempo, o

seu ser social e sua essência religiosa (Vernant, 1973, p. 278).

Os sentimentos religiosos e políticos eram muito misturados. A própria pólis e

suas instituições eram, do mesmo modo que os templos e os deuses, objetos de piedade

(Rudhardt, 1960, p. 104). Dessa maneira, qualquer ato que oferecesse um risco ao

sentimento religioso era punido. Nos tribunais, houve o desenvolvimento de uma

retórica que utilizou os argumentos religiosos para convencer os juízes. Apelo aos

deuses e ao caráter sagrado do juramento, que deveria ser respeitado por todos os

cidadãos, são exemplos do uso de elementos religiosos na retórica judiciária que podem

ser encontrados facilmente em qualquer discurso. O objeto de interesse desta pesquisa é

o uso de argumentos religiosos nos discursos forenses, isto é, aqueles pronunciados nos

tribunais, analisando o impacto que causavam nos ouvintes e sua eficácia para o

convencimento dos mesmos. Dentre os diversos argumentos religiosos utilizados pelos

oradores, a investigação será centrada na utilização da impiedade como objeto de

acusação. Ela foi o elemento principal de diversos processos movidos, especialmente,

contra os filósofos, durante o séculos V a.C. e IV a.C., dos quais praticamente todos

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apresentam fortes conotações políticas. Ao observar essa série de processos contra os

filósofos, em que a maioria recebeu o voto condenatório, percebe-se que a impiedade

foi um argumento eficaz para afastar aqueles que, de alguma forma, eram considerados

prejudiciais à pólis. Para entender essa eficácia, primeiramente deve-se compreender o

significado dessa noção para os gregos e o impacto que ela causava na relação dos

habitantes da cidade. A condução dessa investigação terá como base o discurso de

Demóstenes, Contra Mídias. Ele foi escolhido devido à recorrência do termo asebéia

nele, as tentativas do orador de caracterizar os atos e o caráter de Mídias como ímpio e,

principalmente, por se tratar de um processo que utiliza do argumento da impiedade e

não envolve filósofos. No decorrer das leituras bibliográficas que tratam da impiedade,

percebi que grande maioria trata dos processos contra os filósofos, passando a

impressão que o argumento da impiedade foi utilizado somente contra eles. Mas ele

também foi utilizado contra outros habitantes da cidade e se mostrou muito eficaz. A

opção por esse discurso serve também para demonstrar o uso da impiedade fora de um

contexto que envolva filósofos.

O Contra Mídias constitui o discurso de número 21 do conjunto das obras de

Demóstenes e trata da ação jurídica contra a agressão (um soco no rosto) feita por

Mídias ao orador, enquanto ele era corego no Festival das Grandes Dionisíacas em 348

a.C. (Usher, 2001, p. 226). O ato violento ocorreu em pleno teatro na presença de

todos. Além da violência praticada em um recinto sagrado, durante o tempo da festa, o

orador narra as várias tentativas praticadas por seu inimigo de atrapalhar a execução de

sua coregia. O orador, também, relata as tentativas de Mídias de incriminá-lo por outros

delitos. Os dois eram declarados inimigos pessoais e eram, igualmente, inimigos

políticos, pertencendo a grupos políticos com idéias antagônicas sobre a expansão da

Macedônia.

Demóstenes, no discurso, ao narrar suas desavenças com Mídias, as utiliza para

aumentar a gravidade do crime cometido por seu inimigo e para destacar a

intencionalidade da agressão sofrida. Para o orador, Mídias desejava e intencionava

agredi-lo, mesmo estando presente no recinto sagrado da festa. Por isso, o delito de

Mídias, a ofensa à festa (adikeîn perì tēn heortēn), contém traços de ultraje (hýbris) e de

impiedade (asébeia). O primeiro traço corresponde à agressão feita diante de todos de

forma intencional e ultrajante. O soco dado por Mídias cristaliza toda a sua arrogância e

o seu comportamento desmedido, que é apoiado por sua riqueza e seu prestígio pessoal,

usados por ele para escapar impunemente dos crimes cometidos. O segundo traço

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refere-se às circunstâncias em que ocorreu a violência. Por essa ter sido feita contra um

representante encarregado de realizar uma função imprescindível à festa, durante a festa

e no recinto sagrado, a agressão contém traços de impiedade. Ela também, ao mesmo

tempo, representa o desrespeito e o desdém de Mídias pela pólis. Assim, Demóstenes

utiliza a impiedade e o ultraje para definir tanto o caráter de Mídias quanto a agressão

por ele praticada.

Durante a investigação da noção de impiedade no Contra Mídias para

compreender sua importância na estratégia persuasiva do orador, percebi que o enfoque

na impiedade possibilitava uma nova chave de leitura para o discurso. Os estudos

modernos do Contra Mídias concentram seus esforços no entendimento da função da

hýbris nele e, a partir disso, na Atenas Clássica, já que esse é o registro na literatura

grega no qual essa palavra é mais recorrente. A importância da hýbris para a estratégia

do orador é visível e inegável. Mas essa nova leitura possibilita conhecer com um

detalhamento mais apurado a riqueza dos argumentos utilizados pelo orador para

caracterizar Mídias como um mau cidadão, que prejudica a pólis, e as razões

apresentadas aos juízes para condená-lo.

O percurso investigativo desta pesquisa será dividido em quatro partes. O

primeiro capítulo tratará das desavenças entre Demóstenes e Mídias, da maneira como a

amizade e a inimizade exerciam influência no campo político, do contexto político

ateniense e do funcionamento de seu sistema judiciário. Ele se conclui com a

apresentação da discussão dos especialistas acerca do discurso. O segundo capítulo irá

conter as discussões metodológicas realizadas ao longo da pesquisa. No terceiro, será

realizada, primeiramente, uma breve caracterização da religião grega e, em seguida, a

análise das noções de piedade e impiedade. O último capítulo abordará a impiedade no

Contra Mídias.

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CAPÍTULO 1

Demóstenes e Mídias: inimizade e vida política na Atenas do século IV

a. C.

1.1 Demóstenes

Demóstenes, segundo a tradição, foi o maior orador da Antiguidade (Carlier,

2006, p. 7). Ele atingiu esse posto, por serem seus discursos considerados modelos de

primazia. Ao longo dos séculos, foi utilizado como referência para o estudo da retórica e

da oratória. Foi considerado modelo de orador, não por introduzir novidades estilísticas,

mas pelo seu domínio do ático e dos recursos retóricos necessários ao convencimento, e

pela forma como utilizava os esquemas retóricos tradicionais com inteligência,

deixando sua marca pessoal (Samaranch, 1969, p. 42). Seus discursos são considerados,

ao mesmo tempo, concentrados e flexíveis, lógicos e apaixonados (Pernot, 2000, p. 49).

Seus argumentos são encandeados com tamanha destreza, que deixa uma fote impressão

de espontaneidade.

A vida e a imagem de Demóstenes também se tornaram referências nos estudos

retóricos, pois ele foi considerado modelo de homem público, tanto pelo domínio na

retórica, quanto pela intensa participação na vida política ateniense. Seus discursos

demonstram seu papel de liderança nos assuntos políticos, sendo um fervoroso defensor

de uma ofensiva enérgica e rápida de Atenas frente à expansão macedônica realizada

por Filipe.

Na figura de Demóstenes concentram-se dois interesses, um estilístico e outro

histórico (Pernot, 2000, p. 49; Tood, 1990, p. 165). Devido a esses interesses, seus

discursos foram copiados e recopiados desde o século IV a.C. até o período bizantino, e

a seleção se perpetuou até os dias de hoje. O conjunto de sua obra estava presente em

todas as grandes bibliotecas do mundo antigo: Alexandria, Pérgano, Atenas e

Constantinopla (Carlier, 2006, p. 305).

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Demóstenes nasceu entre 384 a.C. e 380 a.C. (Calier, 2006, p.35; Samaranch,

1969, p. 14; Usher, 2001, p. 171). O desenvolvimento de sua retórica foi intimamente

relacionado com os acontecimentos de sua vida pessoal. Aos sete anos, seu pai morre e

deixa sua fortuna2 aos cuidados dos tutores Áfobo, Demofonte e Terípides. O pai de

Demóstenes, que também se chamava Demóstenes, deixa em testamento sua esposa

casada com seu sobrinho, Áfobo, com o dote de 8.000 dracmas, e sua filha, com apenas

cinco anos na época, casada com seu outro sobrinho, Demofonte, com o dote de 12.000

dracmas3. O restante de seus bens deixa para Demóstenes, que ficaria sob a guarda dos

tutores até alcançar a maioridade. (Carlier, 2006, p. 40; Samaranch, 1969, p. 14).

Quando atinge a maioridade, em 366 a.C., Demóstenes inicia um processo

contra seus tutores, acusando-os de administrar mal o patrimônio, o que provocou sua

perda. Para a preparação do processo, ele se dedica aos estudos das leis atenienses e da

retórica, freqüentando a escola de Iseu, notável por sua eloqüência judiciária4. Com o

término do processo contra os tutores, Demóstenes começa a trabalhar como logógrafo

para reaver sua fortuna. Esse ofício permitiu-lhe constituir um círculo de amizade e uma

familiaridade com os assuntos econômicos, políticos e legislativos. Essa experiência

auxiliou na elaboração de seus discursos para a Assembléia e possibilitou um

conhecimento mais apurado dos afazeres políticos e jurídicos, o que, aliado ao

pertencimento a um influente círculo de amizade, eram elementos primordiais para o

desenvolvimento de uma carreira política na Atenas Clássica (Carlier, 2006, p. 49).

. Nosso conhecimento sobre a vida e a obra de Demóstenes advém de seus

próprios discursos. Ele é o orador grego do qual possuímos o maior número de obras

2 As informações sobre o valor da fortuna do pai de Demóstenes advém dos processos contra os tutores,

presentes nos discursos Contra Áfobo e Contra Onetor. Ela é avaliada em aproximadamente 14 talentos, distribuídos em uma fábrica de facas, com cerca de 30 escravos, e outra de móveis, com 20 trabalhadores, além de uma casa, móveis e objetos preciosos. Para o valor da fortuna de Demóstenes ver a tabela desenvolvida por Carlier em CARLIER, Pierre. Démosthéne. Paris: Fayard, 2006, p. 38.

3 Os tutores para conseguirem o dinheiro relativo ao dote venderam a maioria dos escravos da fábrica de facas, eliminando, dessa forma, o fator mais produtivo e rentável do patrimônio. Eles também declaram a fortuna como sendo de 15 talentos, quantia ligeiramente maior do que realmente era (Carlier, 2006, p. 41). Com isso, a fortuna da família de Demóstenes era maior de sua simoria e ele era responsável por manter o imposto da proeisphorá, num total de 3 talentos. A morte do pai de Demóstenes coincide com o período de organização das financias advindo com a criação da Segunda Confederação Ateniense, em 378/7 a.C. (Carlier, 2006, p. 40). Os atenienses mais ricos foram reorganizados em 100 simorias, correspondendo cada uma a um centésimo do capital, de quem se cobrava a eisphorá, imposto de guerra instituído para cubrir despesas excepcionais. Em 362 a.C., diante das dificuldades de recolher o imposto foi instituída a proeisphorá, nela os três membros mais ricos de cada simoria deveriam pagar antecipadamente o valor integral da eisphorá para evitar o atraso do recolhimento (Mossé, 2004, p. 113).

4 Usher (2001, p. 171) apresenta alguns autores que duvidam da precocidade retórica de Demóstenes e levantam a hipóteses de que os processos contra os tutores foram elaborados por Iseu.

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preservadas. Dos 69 discursos enumerados pelos comentadores antigos, temos 63

(Carlier, 2006, p. 306). Isso faz com que Demóstenes seja o político ateniense que

conhecemos melhor (Carlier, 2006, p. 10). Esse número é excepcional, se comparado

com os de outros oradores. Por exemplo, de Lísias, considerado modelo de bom orador,

devido ao seu estilo elaborado e requintado, temos apenas 35 discursos dos 425 listados

(Carlier, 2006, p. 306). Esse número decai ainda mais quando se consideram outros

oradores. De Isócrates, conhecemos somente 21 discursos, sendo um, A Demônico,

provavelmente não autêntico (Pernot, 2000, p. 47); de Ésquines, temos somente 3

discursos, Contra Timarco, Da Embaixada e Contra Ctesifonte, e todos narram sua

disputa com Demóstenes; de Hiperides, restou apenas um discurso completo, Em

Defesa de Euxenipo, e fragmentos de outros 5, dentre os quais se destacam o Contra

Demóstenes e a Oração Fúnebre, homenagem aos soldados mortos na Guerra de Lâmia;

de Licurgo, conhecemos apenas um, Contra Leócrates.

Essa discrepância entre o número das obras preservadas pode ser explicada pela

grande difusão da obra de Demóstenes e pelo interesse acerca de sua figura desde a

Antiguidade. Ele é o autor que possui o maior número de papiros no Egito depois de

Homero5. Na biblioteca de Alexandria, dos 1596 livros dos quais autores e comentários

são identificáveis, 83 são relativos a Demóstenes, sendo ele o segundo autor mais

encontrado. Em primeiro lugar está Homero, cujos exemplares da Ilíada e da Odisséia

ocupam um pouco menos da metade do número total de exemplares. Do total de livros,

154 são relativos aos oradores atenienses, o que representa aproximadamente três vezes

a mais que os livros de filósofos, sendo 42 obras relacionadas a Platão, 8 a Aristóteles e

4 a Teofrasto (Finley, 1989, p. 218).

O conjunto da obra de Demóstenes é dividido em discursos pronunciados na

Assembléia (do número 1 ao 17); discursos políticos (do 18 ao 26), relativos à ações

públicas, e discursos civis (do 27 ao 59). Essa numeração é tradicionalmente utilizada

pelas edições modernas, que seguem a edição de Veneza de 1504 (Carlier, 2006, p.

306). Além desses discursos, também há outras obras atribuídas a ele cuja autenticidade

é discutida. Uma delas é a Oração Fúnebre, a qual não se tem certeza se foi

pronunciada pelo orador em 338 a.C., para o elogio dos mortos na batalha de Queroneia,

ou se se trata de um discurso escrito posteriormente por outro autor inspirado nas

palavras dele (Carlier, 2006, p. 312). Outra obra é Sobre o Amor, que é um elogio ao

5 De acordo com L. Canfora, em Inventario dei manoscritti greci di Demóstenes, há 310 manuscritos de

Demóstenes (Carlier, 2006, p. 305).

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jovem amado Epícrates. Sua autenticidade é contestada por tratar de temas e por possuir

traços estilísticos diferentes dos outros discursos do orador (Carlier, 2006, p. 312).

Além dessas duas obras, também há os prólogos, que são pequenos discursos para

intervir na Assembléia, e as cartas6, num total de seis, das quais se sabe que a Carta V,

que faz um elogio à educação platônica, é apócrifa, por causa dos erros e da diferença

de estilo (Carlier, 2006, p. 312).

Os discursos de Demóstenes são valiosas fontes para o conhecimento da Atenas

do século IV a.C., sendo esse o período mais bem conhecido da história ateniense

(Carlier, 2006, p. 10). Os discursos contêm elementos que permitem investigar questões

acerca da política, da economia, da sociedade e também elementos da vida privada e da

prática religiosa.

1.2 Contra Mídias: a inimizade e os tribunais

Sobre Mídias temos poucas informações e a maior parte delas é proveniente de

seus inimigos, que o caracterizam sempre de forma negativa (MacDowell, 2002, p. 1).

Mídias pertencia à elite ateniense e deveria possuir uma considerável riqueza. Atuava na

vida política por meio de sua participação no grupo político de Eubulo, e possivelmente

era um bom orador.

As desavenças entre Demóstenes e Mídias são anteriores ao incidente nas

Grandes Dionisíacas. Ao longo do discurso, ele o caracteriza como seu inimigo: “Eu, ao

contrário, fui ultrajado por um inimigo pessoal [...]”7 (Demóstenes, Contra Mídias, 74) 8

e se apresenta aos juízes como desinteressado em prolongar essa inimizade, alegando

que a rixa entre os dois é alimentada pelos atos vis praticados, continuamente, por

Mídias:

6 As cartas são as obras mais difíceis de estabelecer a autenticidade devido a prática escolar de escrever

cartas como se fosse o autor (Carlier, 2006, p. 311). 7 Não há tradução para o português do Contra Mídias. Para o desenvolvimento da pesquisa, utilizei as

traduções propostas por Jean Humbert presente na edição da Belles Lettres (1959); por Francesco Maspero (1994); Francisco de P. Samaranch (1969) e por Douglas M. MacDowell (2002). As citações do discursos utilizadas ao longo do texto são traduções realizadas por mim a partir do texto italiano de Francesco Maspero. O principal motivo para a escolha desse tradutor foi a diferenciação feita por ele dos termos hósios, eusebéia, asébeia e heleos. Qualquer erro de tradução é de minha inteira responsabilidade.

8 “Io, invece, ho subito oltraggi da parte di un nenico personale [...]”

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“Eu, mesmo depois de ter sofrido as injustiças cometidas por ele, não o considero meu inimigo e o deixo em paz; ele, no entanto, não quer me deixar em paz, prejudica-me até mesmo nos processos que lhe são alheios e, subindo à tribuna, procura me privar da tutela que as leis garantem a todos” (Demóstenes, Contra Mídias, 205) 9.

No discurso, Demóstenes narra o início da rixa entre os dois, e a utiliza para

demonstrar que o ato praticado por Mídias foi planejado, o que o torna mais grave e

ultrajante: “Acredito, porém, que alguns de vocês, ó juízes, gostariam de escutar os

motivos pelos quais se fez entre nós essa inimizade” (Demóstenes, Contra Mídias, 77)

10. Após contar o fato que desencadeia a inimizade entre eles, Demóstenes narra os

diversos conflitos que os dois travaram, tendo como palco os tribunais. Segundo Rhodes

(1998, p. 152), as querelas em Atenas eram caracterizadas pelo grande número de

processos, diversos e subseqüentes, que os envolvidos moviam um contra o outro.

Devido à organização do sistema judiciário ateniense, um processo poderia gerar vários

outros contra-processos, relacionados ou não com o processo original. Por exemplo,

poderia ser movida contra a acusação original uma paragraphē, ação que indica que a

acusação não procede, ou então processos de falsos testemunhos contra as testemunhas.

Isso fazia com que as querelas se prolongassem e agravassem (Rhodes, 1998, p. 160).

A inimizade entre os dois começou com o processo movido pelo orador contra

seus tutores. Demóstenes, quando atingiu a maioridade, descontente com a forma como

os tutores administravam seu patrimônio, levou o caso a um árbitro público e obteve um

voto favorável (Carlier, 2006, p. 45). Seu tutor Áfobo não concorda com a posição do

árbitro e conduz o litígio ao tribunal. A data para o julgamento foi marcada e Áfobo

tenta uma manobra para prejudicar financeiramente Demóstenes e impedi-lo de

continuar com o processo (Carlier, 2006, p. 45). Trasíloco, amigo de Áfobo e irmão de

Mídias, foi encarregado da trierarquia, que consistia em equipar uma trirreme e

financiar todos os seus gastos por um ano (Mossé, 2004, p. 279). Era a liturgia mais

onerosa e recaía sobre os cidadãos mais ricos. Incentivado por Áfobo, Trasíloco leva à

Assembléia um processo de antídosis, alegando ser a fortuna de Demóstenes maior que

a sua e, dessa forma, ele estaria mais apto a ser o trierarca:

9 “Io, anche dopo aver subito torti da parte sua, non lo consideto mio nemico e lo lascio in pace; lui,

invece, non vuole lasciare in pace me, mi ostacola perfino nei processi a lui estranei e, salendo alla tribuna, cerca di privarmi della tutela che le leggi garantiscono a tutti.”

10 “Ritengo però che alcuni di voi, o giudici, desiderno ascoltare i motivi per i quali c’era fra noi questa inimicizia.”

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“No momento em que eu, jovem, intentei um processo contra meus tutores pela herança paterna, quando não conhecia ainda Mídias e nem ao menos sabia que ele existia [...] no momento em que o meu processo estava para ser introduzido em juízo, cerca de quatro ou cinco dias antes, irromperam na minha casa o irmão dele e ele próprio para propor-me a antídosis [...]”(Demóstenes, Contra Mídias, 78) 11.

Na antídosis, a pessoa processada tinha três opções: primeira, ela reconhecia que

era mais rica do que a pessoa que estava com a liturgia e, nesse caso, ela mantinha seus

bens e assumia a liturgia; segunda, o processado acreditava que quem estava movendo o

processo era mais rico do que ele e fazia a troca de bens. Com isso, o processado

assumia a liturgia e administrava os bens de quem moveu o processo12. Com a troca de

bens, além do patrimônio todas as ações legais também eram transferidas. Na terceira, o

processado reconhecia que quem fazia a liturgia era mais rico do que ele, mas não

trocava de bens. Nesse caso, o tribunal decidia quem era o homem mais rico e, dessa

forma, mais apto para realizar a liturgia (Rhodes, 1998, p. 150).

No caso de Demóstenes, se ele realizasse a troca de bens, perderia o direito de

processar seus tutores. Diante desse quadro, o orador assume a trierarquia de Trasíloco,

sem trocar de bens com ele, mesmo acreditando que o irmão de Mídias era mais

indicado para exercer essa função. Durante a antídosis, Trasíloco, em companhia de

Mídias, invade a casa de Demóstenes para realizar o inventário, o que era aceitável

nesse tipo de processo. Durante a invasão, eles pronunciaram palavras ofensivas contra

a mãe e a irmã do orador:

“Depois [de invadirem a casa], diante de minha irmã que vivia em nossa casa, porque, naquele tempo, era ainda uma menina, começou a gritar coisas indecentes, as quais são freqüentemente usadas por pessoas de sua laia (eu não poderia, de certo, me deixar induzir a repetir diante de vocês ainda que somente uma de suas injúrias), eles disseram de tudo contra minha mãe, contra mim e contra todos nós” (Demóstenes, Contra Mídias, 79) 13.

11 “Al tempo in cui io, giovanissimo, avevo intentato un processo contro i miei tutori per l’eredità

paterna, quando non conoscevo ancora Midia e non sapevo nemmeno che esistesse [...], nel momento in cui la mia causa stava per essere introdotta in giudizio, circa quattro o cinque giorni prima, fecero irruzione nella mia casa ilfratello di costui e lui stesso per propormi di fare l’antídosis.”

12 Rhodes (1998, p. 150) enumera os autores que consideram a antídosis como troca de bens uma possibilidade autêntica. São eles: Harrison, MacDowell e Gabrielsen. Entretanto ela é rejeitada por Gernet, Mossé e Todd.

13 “Poi, davanti a mia sorella che viveva in casa nostra, perché, in quel tempo, era ancora una bambina, si misero a gridare cose sconce, quali sono soliti usare individui della loro risma (io non potrei di certo lasciarmi indurre a ripetere davanti a voi anche uma sola delle loro ingiurie), ne dissero di tutti o colori contro mia madre, contro di me e contro tutti noi.”

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Esse episódio deixa uma hostilidade entre Demóstenes e Mídias que se prolonga

durante anos e culmina no incidente nas Grandes Dionisíacas. De acordo com

MacDowell (2002, p.3), Trasíloco, o responsável pelo processo de antídosis, sai de cena

e, segundo o registro das fontes, aparentemente Demóstenes não nutre nenhuma

inimizade contra ele. A animosidade volta-se para Mídias e inicia-se uma longa rixa

pessoal, que também se torna política, pois ambos participavam de grupos políticos

adversários.

O orador, no discurso, narra as medidas judiciais que tomou diante das palavras

injuriosas de Mídias dirigidas a ele e à sua família. Também conta as artimanhas

utilizadas por seu inimigo para escapar desse processo. Demóstenes moveu um processo

contra Mídias por injúria, díkē kakegorías. Para resolver o caso, foi nomeado como

árbitro Estráton. Ele era um cidadão de baixa condição financeira e inexperiente nos

assuntos políticos e jurídicos: “Nesse processo [...] foi designado como árbitro Estráton

de Falero, um homem pobre e desempregado [...]”(Demóstenes, Contra Mídias, 83)14.

No dia marcado para resolver a querela, Mídias não compareceu e o árbitro deu o

veredicto favorável a Demóstenes (Demóstenes, Contra Mídias, 84). Para reverter a

situação, Mídias tentou suborná-lo: “Então, a primeira coisa da qual Mídias se mostrou

capaz foi sua tentativa de persuadir Estráton para modificar a sentença em favor do

querelado em vez do querelante e, para que os arcontes alterassem a sentença, Mídias

lhes ofereceu 50 dracmas” (Demóstenes, Contra Mídias, 85)15. Estráton recusa a oferta

de Mídias, que faz uma manobra para que o árbitro seja condenado por atimía, a perda

de todos os direitos civis (Demóstenes, Contra Mídias, 87).

Esses acontecimentos ocorreram entre 364/362 a.C. (MacDowell, 2002, p. 4), e

depois dessa data, o discurso não relata outros incidentes entre os dois até 349 a.C.

Nesse intervalo, Demóstenes e Mídias se tornaram importantes figuras no cenário

político ateniense. O orador se torna cada vez mais conhecido por sua série de discursos

pronunciados na Assembléia e Mídias ocupa diversos cargos públicos.

14 “In questo processo [...] mi era stato assegnato come arbitro Stratone del Falero, un uomo povero e

disoccupato [...]” 15 “Allora, la prima cosa di cui Midia si mostrò capace fu il suo tentativo di persuadere Stratone a

modificare la sentenza in favore del querelato anziché del querelante e far sì che gli arconti alterassero la setenza offrendo loro cinquanta dracme.”

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1.2.1 Amizade e inimizade na vida política

Na literatura grega, o preceito “ajudar os amigos e prejudicar os inimigos”

regulamentava, de maneira geral, os comportamentos na esfera pessoal e política

(Rhodes; Mitchell, 1996, p. 11). Segundo Mitchell (Rhodes; Mitchell, 1996, p. 11), nos

anos do desenvolvimento da democracia, no século V a.C., o poder político residia nos

grupos políticos, que se formavam em torno de líderes como Péricles, Alcibíades ou

Nícias. Nesse período, os grupos políticos se formavam a partir das hetaireîai, grupos

de homens da mesma idade e com interesses comuns, que se encontravam nos

simpósios.

Atenas era uma sociedade extremamente competitiva. A competição alimentava

ainda mais a rivalidade entre os cidadãos. A rivalidade era um fator essencial na

definição da relação entre os habitantes da cidade. Na pólis, pode-se dividir a relação

entre os homens em cinco categorias: primeira, os rivais; segunda, o grupo que é

formado por aqueles que o cidadão admira; terceira, por aqueles por quem ele gostaria

de ser admirado; quarta, por aqueles que ele respeita; e finalmente por aqueles que o

respeitam.

Na vida pública, a rede de amigos desempenhava um importante papel, pois uma

conexão pessoal de amizade ligando o cidadão aos líderes de grupos políticos garantia o

apoio na Assembléia (Rhodes; Mitchell, 1996, p. 11). Aos amigos podia-se recorrer

para o auxílio em processos jurídicos e também pedir conselhos sobre assuntos

financeiros (Rhodes; Mitchell, 1996, p. 13). O grupo de amigos também poderia

oferecer proteção e métodos coercitivos para inibir ações prejudiciais, tais como

processos. Sobre esse último aspecto, Demóstenes alerta os juízes de que muitos

cidadãos, ao sofrerem injustiças de Mídias, não recorreram à justiça, com medo das

represálias que poderiam sofrer da parte dele e de seus amigos: “[...] mas entre aqueles

que sofreram suas injustiças, existem alguns que se calaram, ó juízes, porque tinham

medo dele, da sua arrogância, do seu bando de companheiros (hetaírous), da sua riqueza

e de todos os outros meios que tem à sua disposição; [...]” (Demóstenes, Contra Mídias,

20) 16.

16 “[...] ma fra coloro che hanno subito i suoi torti ve ne sono alcuni che se ne stettero quieti, o giudici,

perché avevano paura di lui. Della sua tracotanza, della sua masnada di compagni, della sua ricchezza e di tutti gli altri mezzi che ha a sua disposizione; [...]”

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A inimizade, assim como a amizade, não ficava restrita à esfera privada e

poderia alcançar a vida pública, influenciando os grupos políticos. Uma inimizade

poderia ser alimentada por desavenças pessoais, como também ser devida à oposição

política, como explicita o orador ao afirmar: “Embora houvesse, ó atenienses, muitos

homens divididos pela recíproca inimizade, devido não apenas a razões privadas, mas

também por motivos políticos [...]” (Demóstenes, Contra Mídias, 62) 17.

No discurso, Demóstenes narra diversos conflitos travados por inimigos, sejam

eles movidos por questões pessoais ou políticas. O primeiro caso relata o embate entre

Ifícrates e Díocles Pítio. O irmão de Ifícrates, Tísias, foi concorrente de Díocles na

coregia (Demóstenes, Contra Mídias, 62). Demóstenes conta que, mesmo Ifícrates

sendo rico e possuindo amigos influentes, não fez nada para atrapalhar a liturgia de seu

inimigo: “[...] [Ifícrates] atendo-se às disposições das leis e respeitando a sua vontade

[do dêmos], suportava ver seu inimigo vitorioso e coroado; como era justo”

(Demóstenes, Contra Mídias, 63)18. O segundo caso trata de Filóstrato de Colono e

Cábrias. O primeiro moveu uma ação jurídica contra o outro. Quando Filóstrato se

tornou corego de um coro de garotos nas Grandes Dionisíacas, Cábrias, mesmo

possuindo vários motivos, não cometeu nenhuma ação violenta e nem atrapalhou sua

coregia (Demóstenes, Contra Mídias, 64). Para finalizar sua lista, o orador diz que

“mesmo podendo citar ainda muitos outros, que por vários motivos tornaram-se

inimigos uns dos outros, nunca escutei nem vi nenhum que tenha chegado a tal ponto de

prepotência para cometer aquilo que ele [Mídias] fez” (Demóstenes, Contra Mídias,

65)19. O intuito de Demóstenes com essa narrativa é demonstrar para os juízes como o

comportamento de Mídias é condenável, e a inimizade entre os dois não pode ser

utilizada como justificativa para sua atitude durante a coregia.

O Contra Mídias evidencia como as redes de amizade são importantes para se

conseguir apoio político e para obter-se a vitória nos tribunais e, por outro lado, como a

inimizade pode impulsionar processos e ser um fator decisivo nas disputas políticas.

Para Mitchell (Rhodes; Mitchell, 1996, p. 13), no discurso percebe-se o uso do éthos

“ajudar amigos e prejudicar inimigos” na retórica de Demóstenes.

17 “Benché ci siano stati, o ateniesi, molti uomini divisi da reciproca inimicizia, non solo in seguito a

ragioni private, ma anche per motivi politici [...]” 18 “[...] [Ificrate] attenendosi alle disposizioni delle leggi e rispettando la vostra volontà, sopportava di

vedere il suo nemico vittorioso e incoronato; come era giusto.” 19 “Pur potendo citare ancora molti altri che per vari motivi divennero nemici gli uni degli altri, non ho

mai sentito né ho visto nessuno che sai giunto a un tal punto di prepotenza da commettere ciò che ha fatto costui.”

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O uso desse elemento no percurso persuasivo do orador indica que, mesmo após

o aumento da complexidade das relações políticas no século IV a.C., que se tornaram

muito sofisticadas para serem resumidas no princípio “ajudar amigos e prejudicar os

inimigos”, esse princípio continuou a ser utilizado para definir o que é justo e injusto

(Rhodes; Mitchell, 1996, p. 13). Ele foi usado nos tribunais e explorado para fins

políticos; por exemplo, era considerado um sinal de mau comportamento negar ajuda

aos amigos nos momentos de necessidade (Rhodes; Mitchell, 1996, p. 14).

A organização das instituições políticas e judiciárias atenienses reforçava a

tendência de oposição política e inimizade pessoal andarem juntas. Dessa maneira, uma

desavença pessoal poderia se tornar desavença política, ou uma oposição política

poderia aumentar uma rixa pessoal, como no caso de Demóstenes e Mídias, ou então,

uma desavença política pode ficar tão acirrada que se tornava discórdia pessoal, como

aconteceu entre Demóstenes e Ésquines.

Além dos processos movidos um contra o outro, a rivalidade entre Demóstenes e

Mídias aumentou por eles pertencerem a grupos políticos com interesses antagônicos.

Mídias pertencia ao grupo político de Eubulo. No discurso, Demóstenes explicita a

relação de amizade entre os dois ao relatar que, durante a probolē na Assembléia,

quando Mídias recebeu o voto condenatório do dêmos, pediu auxílio a Eubulo, que não

fez nada para ajudar seu amigo:

“Recordarei, além disso, ó atenienses, que estava presente Eubulo, aliás estava assentado quando o povo votou contra Mídias, mas apesar de ter sido chamado pelo nome e Mídias lhe implorasse e suplicasse, como vocês bem sabem, permaneceu sentado” (Demóstenes, Contra Mídias, 206)20.

Para o orador, a inação e o silêncio de Eubulo demonstram que ele considera

Mídias culpado, pois, como amigo, deveria pronunciar-se em sua defesa.

Sobre Eubulo, sabe-se que exerceu um importante papel na política de Atenas,

após a perda da dominação de parte do império, devido à revolta dos principais aliados

na Segunda Confederação Ateniense. Com isso, Atenas ficou privada de uma série de

recursos, sendo obrigada a adotar uma política menos agressiva e, dessa forma, menos

onerosa. Eubulo foi um fervoroso defensor dessa política. Para ele, a cidade deveria

20 “Ricorderò inoltre, o ateniesi, che era presente Eubulo, anzi era seduto, quando il popolo votò contro

Midia,ma nonostante fosse chiamato per nome e Midia lo implorasse e suplicasse, come voi ben sapete, rimase seduto.”

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evitar operações arriscadas e onerosas, voltando-se para a defesa dos locais importantes

para o abastecimento de grãos para a cidade (Mossé, 2004, p. 125).

Demóstenes e Eubulo eram inimigos políticos, pois possuíam opiniões diversas

sobre a condução da política externa de Atenas. Eubulo era partidário de uma política

pacifista, que objetivava não entrar em confronto direto com Filipe da Macedônia.

Demóstenes acusava seu adversário de apatia e de não querer arcar com os encargos

necessários para uma política ofensiva. O orador era favorável a uma resposta rápida e

direta para as tentativas de dominação de Filipe, mesmo que, para isso, a cidade

precisasse de uma maior arrecadação fiscal, proveniente das liturgias. Demóstenes, em

seus discursos, em particular no Contra Mídias, realiza uma crítica ao comportamento

dos ricos que tentam se esquivar das liturgias e descuidam de suas obrigações com a

pólis, preocupando-se somente com seus interesses pessoais.

A explicitação da relação entre Mídias e Eubulo faz parte da estratégia

persuasiva do orador para classificar o partido de Eubulo como o partido desses ricos,

que agem sem se preocupar com os interesses da cidade. Com a ligação entre Eubulo e

Mídias, a caracterização negativa de Mídias, feita pelo orador ao longo do discurso,

principalmente no que se refere à forma mesquinha com que ele gasta o dinheiro,

também é associada à imagem de Eubulo, indicando para os cidadãos que o partido dele

não é confiável, pois não se preocupa com os assuntos da cidade.

No decorrer do discurso, Demóstenes cita outros aliados políticos e amigos de

Mídias, além de Eubulo, o que possibilita fazer a reconstrução de parte de sua rede de

amigos. O orador enumera quatro ricos e um banqueiro como amigos de Mídias. Eles

utilizam seu prestígio e sua riqueza para convencer os juízes de sua inocência. Três

deles são caracterizados como trierarcas: “Vim a saber que Filípides, Mnesárquides,

Diotimo de Euônimo, e outras pessoas do gênero, ricos e trierarcas, vão interceder

insistentemente por ele junto a vocês, pretendendo que vocês lhes façam esse favor”

(Demóstenes, Contra Mídias, 208)21.

O último rico citado por Demóstenes é Neoptólemo, que, juntamente com o

banqueiro Blepeu, utilizou seu dinheiro para tentar subornar o orador, para que ele

desistisse do processo:

21 “Sono venuto a sapere che Filippide, Mnesarchide, Diotimo di Euonimo e altre persone del genere,

ricchi e trierarchi, intercederanno insistentemente per lui presso di voi, pretendendo che venga fatto loro questo favore.”

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“Mas agora seria, no entanto, a coisa mais grave que me poderia acontecer, pois, na época em que esses crimes foram cometidos, vocês se mostraram tão irados, tão amargurados, tão chateados que, quando Neoptólemo, Mnesárquides, Filípides ou qualquer outro desses ricaços chegaram até a nós com suas súplicas, vocês começaram a gritar para não absolvê-lo e, quando me abordou o banqueiro Blepeu, vocês gritavam tão alto como se vocês pensassem que eu quisesse aceitar o dinheiro que ele me oferecia [...]” (Demóstenes, Contra Mídias, 215)22.

A rede de relacionamento de Mídias não era apenas caracterizada por pessoas de

boa condição financeira. Demóstenes cita três homens, que se aliaram a Mídias por

causa do dinheiro, fazendo qualquer tipo de serviço, lícito ou não, em troca de

pagamento: “[...] Polieucto, Timócrates e aquela alma imunda de Euctémon. Tais

indivíduos constituem os seus guarda-costas pagos por ele” (Demóstenes, Contra

Mídias, 139)23.

Os exemplos da rede de amizade de Mídias evidenciam que o dinheiro é um

fator importante para atrair aliados e conseguir auxílio nos processos: “[...] mas alguns

indivíduos, ó atenienses, estão muito dispostos a se fazer corromper pelos ricos, a os

ajudar e a testemunhar a favor deles” (Demóstenes, Contra Mídias, 139)24.

Assim, a oposição entre Mídias e Demóstenes, mais do que pessoal, era

fundamentada na divergência de interesses políticos, e se acirrou cada vez mais devido

aos processos que um movia contra o outro. Além desses fatores, a rivalidade foi

alimentada pelos conflitos externos que Atenas atravessava, nos quais os dois

desempenharam papéis importantes.

22 “Ma ora sarebbe invece la cosa più grave che mi possa capitare, dato che al tempo in cui questi crimini

furono commessi voi vi mostraste tutti quanti così irati, così amareggiati, così dispiaciuti che quando Neottolemo, Mnesarchide, Filippide e qualcun altro di questi ricconi imploravano me e voi, vi metteste a urlare di non assolverlo e, quando si accostò a me il banchiere Blepeo, gridavate in modo così forte come se io volessi accettare il denaro che mi offriva [....]”

23 “[...] Polieuto, Timocrate, e quell’anima lercia di Euctemone. Tali individui costituiscono la sua guardia del corpo da lui prezzolata.”

24 “[...] ma alcuni individui o ateniesi, sono dispostissimi a farsi corrompere daí ricchi, ad assisterli e a testimoniare in loro favore.”

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1.2.2 Olinto e a Revolta da Eubeia

No momento do incidente nas Grandes Dionisíacas, Atenas estava envolvida na

revolta da Eubeia, e ainda, tinha que decidir se enviava a ajuda solicitada pelos olíntios,

que estavam sob ameaça de invasão dos macedônicos. Demóstenes e Mídias estavam

envolvidos diretamente nesses conflitos e possuíam opiniões divergentes sobre o

posicionamento da política externa ateniense nas duas regiões. Essa divergência é

apresentada no Contra Mídias e reforça o desacordo político entre eles.

Durante os anos de 351/350 a.C., os atenienses se beneficiaram da conjuntura

externa que favorecia a paz e fez com que os rendimentos da cidade aumentassem.

Demóstenes, nesse período, propôs um replanejamento das finanças, para que mais

verbas fossem dedicadas à área militar, pois ele temia que o avanço de Filipe da

Macedônia ameaçasse Atenas (Carlier, 2006, p. 199).

Em 349 a.C., Atenas recebeu um apelo militar de Olinto, que estava sob ameaça

de Filipe. O rei invade a região, após a recusa dos olíntios de extraditarem dois de seus

meio-irmãos. Demóstenes vê nessa invasão a oportunidade de Atenas fazer uma

ofensiva contra os macedônicos e tenta persuadir os atenienses a ajudar os olíntios,

como mostram os três discursos de nome Olínticas (Carlier, 2006, p. 122-126;

MacDowell, 2002, p. 4). Para o orador, o avanço e o fortalecimento do exército de

Filipe se deve à inércia dos atenienses (Carlier, 2006, p. 122).

Em resposta à invasão de Olinto, os atenienses mandaram tropas e trirremes25

para a região da Calcídica (Carlier, 2006, p. 126). Algumas das embarcações pertenciam

a particulares e Demóstenes participou dessa operação enviando uma trirreme custeada

por ele, além de também auxiliar nas contribuições voluntárias para a expedição na

Eubeia:

“Para a expedição na Eubeia foram promovidas por vocês as primeiras contribuições voluntárias e dessas Mídias não tomou parte, eu sim; era então trierarca, junto com Filino, filho de Nicóstrato. A segunda contribuição voluntária foi feita para Olinto. Mas nem dessa Mídias participou” (Demóstenes, Contra Mídias, 161)26.

25 Atenas envia 2.000 mercenários peltatas, 30 triremes sob o comando de Kares e outras oito,

possivelmente de particulares (MacDowell, 2002, p. 4). 26 “Per la spedizione nell’Eubea furono promosse da voi le prime contribuzioni volontarie e a queste

Midia non prese parte, io sì; ero allora trierarca assieme a Filino, figlio di Nicostrato. Le seconde contribuzioni volontarie furono fatte per Olinto. Ma neanche a queste Midia partecipò.”

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27

Filipe continuou seu avanço sobre o território e os olíntios solicitam mais ajuda

aos atenienses. Atenas recusou esse pedido e não enviou mais tropas, pois sua atenção e

seus esforços estavam concentrados no conflito da Eubeia (MacDowell, 2002, p. 5).

A Eubeia, situada a leste da Ática, estava sob influência ateniense, desde sua

entrada na Confederação Ateniense em 357 a.C, quando os atenienses expulsaram os

tebanos (Carlier, 2006, p. 127). A paz na região era freqüentemente abalada pela disputa

de poder entre as cidades, principalmente entre Cálcis e Erétria. Para manter sua

hegemonia na região, os atenienses apoiavam diferentes grupos oligárquicos ou tiranos

que eram favoráveis à política de Atenas. Um desses tiranos era Plutarco, amigo de

Mídias: “Mídias é hóspede e amigo de Plutarco” (Demóstenes, Contra Mídias, 110).

Em 349/8 a.C., ocorreu uma revolta na Erétria para expulsar Plutarco. Ele pediu ajuda

aos atenienses para restabelecer seu poder (Carlier, 2006, p. 127; MacDowell, 2002, p.

5). Mídias, defendendo os interesses de seu amigo, propôs à Assembléia o envio de

tropas para ajudar o tirano a restabelecer o poder. Sabemos dessa informação por meio

do Contra Mídias, no qual Demóstenes caracteriza seu adversário, além de amigo do

tirano, como “patrocinador do interesse de Plutarco [...]” (Demóstenes, Contra Mídias,

200) 27.

Diante dos dois conflitos, Demóstenes era favorável ao envio de tropas a Olinto,

para conter os avanços de Filipe. Ele defendia que, após libertar a cidade do perigo

macedônico, ainda haveria tempo para enviar tropas para conter a revolta na Eubeia.

Eubulo, Mídias e seus partidários defendiam uma política mais defensiva, apoiando o

envio de tropas à Eubeia, pois acreditavam que essa cidade era mais importante na

manutenção da estabilidade ateniense, por ser mais próxima (Carlier, 2006, p. 128;

MacDowell, 2002, p. 5).

A proposta de Eubulo vence na Assembléia e os atenienses decidem enviar uma

tropa de hoplitas chefiada pelo general Fócion, que também tinha afinidade com o grupo

de Eubulo. Demóstenes e Mídias também participaram dessa expedição, o primeiro

como hoplita e o segundo na cavalaria (Demóstenes, Contra Mídias, 133). Eles

deixaram Atenas antes das Antestérias, janeiro-fevereiro, de 348 a.C. A infantaria

marchou sob o comando de Fócion para Tamínia e a cavalaria para Argoura

(MacDowell, 2002, p. 6). As tropas conseguiram uma vitória na Tamínia, mas logo

27 “Si fa patrocinatore degli interessi di Plutarco [...]”

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28

começaram a enfrentar dificuldades devido a uma revolta generalizada, na região,

contra os atenienses, liderada por Cálias de Cálcis, que almejava o poder, o fim da

dominação ateniense e que a região ficasse sob a hegemonia de Cálcis (Carlier, 2006, p.

127). Após receberem a notícia de que Fócion estava sitiado, os atenienses reuniram-se

na Assembléia para decidir se enviariam mais tropas para auxiliar os combatentes em

Tamínia. Mas os atenienses desistiram do empreendimento: “[...] depois de prolongada

a sessão da Assembléia e de realizados os discursos, não pareceu mais necessário

mandar os cavaleiros para ajuda e, como conseqüência, o projeto da expedição foi

abandonado [...]” (Demóstenes, Contra Mídias, 163)28. Essa desistência se deve ao fato

de, provavelmente, terem recebido a notícia de que as tropas tinham se recuperado e

venceram algumas batalhas (MacDowell, 2002, p. 7). Pouco depois, Demóstenes e

Mídias voltaram para Atenas para exercer a coregia nas Grandes Dionisíacas

(Demóstenes, Contra Mídias, 132, 197).

Demóstenes assume sua coregia voluntariamente, para evitar que sua tribo

ficasse envergonhada diante do dêmos, pois ela não tinha indicado ninguém para

assumir a liturgia. Após se comprometer com a liturgia, foi realizado um sorteio em que

o orador foi escolhido para a coregia:

“Segundo a lei, o arconte deve designar os flautistas aos coros através de sorteio. Assim, há dois anos atrás, durante a reunião da Assembléia, houve uma violenta discussão porque a tribo de Pandíon não pôde designar o corego. Acompanhada das injúrias, a discussão continuou, pois o arconte acusava os representantes da tribo e eles, por sua vez, acusavam o arconte. Nessa ocasião, eu me pus diante de todos sobre a tribuna e prometi que assumiria voluntariamente a coregia; tive, então, depois, a sorte de, após o sorteio, escolher primeiro o meu flautista” (Demóstenes, Contra Mídias, 13-14)29

O orador utiliza-se do fato de ter assumido voluntariamente a coregia para se

caracterizar como bom cidadão, sempre preocupado com sua tribo.

Para explicar o motivo da violência sofrida, Demóstenes elenca a prepotência de

Mídias e afirma que seu ato foi consciente e premeditado. Dessa maneira, o orador já

28 “[...] prolungandosi le sedute dell’assemblea e succedendosi i discorsi, non sembrò più necessario,

ormai, mandare in aiuto i Cavalieri e di conseguenza il progetto fu abbandonato [....]” 29 “Due anni fa la tribù di Pandione non aveva potuto designare il corego e quando si riunì l’assemblea,

nella quale secondo la prescrizione della legge l’arconte deve trarre a sorte e assegnare ai cori i flautisti, ci fu uma violenta discussione, accompagnata da ingiurie, poiché l’arconte accusava i delegati della tribù e costoro a loro volta, accusavano l’arconte; in quelll’occasione mi feci avanti io sulla tribuna e promisi che avrei assunto volontariamente la coregia; ebbi poi la ventura, in seguito all’estrazione a sorte, di scegliere io per primo il mio flautista.”

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29

desqualifica qualquer possível justificativa que poderia ser levantada por Mídias em sua

defesa, como, por exemplo, alegar que estava sem completo domínio de si, por causa do

álcool: “Eu [Demóstenes], ao invés, sofri um ultraje de um inimigo pessoal, que estava

sóbrio, ao nascer do sol, e fazia essas coisas movido pela sua prepotência e não pelo

vinho, diante de muitos estrangeiros e concidadãos [...]” (Demóstenes, Contra Mídias,

74)30.

Após a agressão durante a festa, no momento em que Demóstenes apresenta a

probolē à Assembléia, Mídias, em represália, por meio de Euctémon, o processa por

deserção, acusando-o de ter abandonado suas funções militares e ter retornado para

Atenas para ser corego:

“Deixo de lado o fato de que ele tenha preparado uma denúncia por deserção contra mim, pagando quem a teria feito. Refiro-me, aqui, àquele homem repelente e venal, Euctémon, alma imunda. Mas esse sicofanta, pago por Mídias, denunciou-me apenas para que todos pudessem ler o ato de acusação afixado diante dos epônimos, no qual estava escrito ‘Euctémon de Lusia denunciou Demóstenes de Peania por deserção’” (Demóstenes, Contra Mídias, 103) 31.

Segundo indícios do discurso, o processo não foi levado adiante, possivelmente

por Mídias perceber que tinha pouca chance de ganhar, já que assumir uma liturgia

religiosa poderia ser uma boa justificativa para o abandono dos afazeres militares

(Carlier, 2006, p. 132).

Demóstenes reverte a acusação de deserção e apresenta Mídias como o

verdadeiro desertor, que abandonou de maneira covarde seu posto militar temeroso dos

perigos da expedição:

“Quando veio a notícia de que nossos soldados estavam sitiados em Tamínia, a boulé deliberou que todos os cavaleiros que aqui estavam (e entre eles estava Mídias) partissem para ajudá-los, ele [Mídias], uma vez que temia os riscos dessa expedição, apresentou-se no dia seguinte à tribuna e, antes que os presidentes se assentassem, fez a sua oferta” (Demóstenes, Contra Mídias, 162) 32.

30 “Io, invece, ho subito oltraggi da parte di un nemico personale, non ubriaco, all’alba, e faceva queste

cose spinto dalla sua prepotenza e non dal vino, davanti a molti stranieri e concittadini [...]” 31 “Traslascio il fatto che egli abbia fabbricato contro di me una denuncia per diserzione, assoldando chi

avrebbe dovuto farla, mi riferisco, qui, a quell’uomo reprellente e venale, a Euctemone, anima lercia. Ma questo sicofante, pagato da Midia, mi ha denunciato solo perché tutti potessero legere l’atto d’accusa affisso davanti egli eponimi, in cui era scritto: ‘Euctemone di Lusia ha denunciato Demostene di Peania per diserzione’.”

32 “Quando poi venne la notizia che i nostri soldati erano assediati a Tamine e la boulé delibero che tutti i cavalieri rimasti (e tra questi c’era Midia) partisserò in loro aiuto, egli, poiché temeva i rischi di questa

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30

Com essa caracterização, Demóstenes reforça a imagem de Mídias como um

mau cidadão, que desdenha os assuntos da cidade e se preocupa apenas consigo mesmo.

No discurso, o orador apresenta o empenho de Mídias em enviar tropas atenienses no

conflito da Eubeia como mais voltado para seus interesses particulares do que

propriamente aos da cidade. Como contraponto a Mídias, Demóstenes se apresenta

como preocupado com a pólis, participando de forma ativa nos dois conflitos e

empenhado em defender a hegemonia ateniense.

Os conflitos externos alimentavam a competição entre os grupos políticos de

Demóstenes e Eubulo, que desejavam que a cidade seguisse sua prórpia proposta

política. Esse acirramento aumentou a rivalidade entre Mídias e o orador, que utilizou

os acontecimentos da Eubeia e de Olinto para caracterizar Mídias negativamente e,

dessa maneira, fazer uma crítica à política defendida por Eubulo. No discurso, os

acontecimentos políticos, principalmente a posição da cidade frente a sua política

externa, estão relacionados com a rede de relacionamentos pessoais, demonstrando

como os amigos são influentes na vitória de uma proposta política.

1.2.3 Probolē levada ao tribunal

Após apresentar a probolē à Assembléia, Demóstenes continuou com o processo

no tribunal. Não se sabem os motivos que o conduziram a apresentá-la somente em

347/6 a.C. (MacDowell, 2002, p. 10). Nesse momento, Mídias o atacou durante a

dokimasía (Calier, 2006, p. 137; MacDowell, 2002, p. 10), exame pelo qual passava

todo magistrado antes de assumir o cargo (Mossé, 2004, p. 99). Demóstenes foi membro

da Boulé em 346 a.C. e participou de seus ritos de abertura. Não se sabe qual foi a

acusação feita por Mídias, mas pode-se supor que ela está relacionada com a acusação

formulada por ele do envolvimento de Demóstenes no assassinato de Nicodemo:

“Apesar dele [Mídias] ter realmente me acusado de homicídio e ter atribuído a mim tal delito, ele me deixou celebrar os ritos de abertura da boulé, assim como me deixou sacrificar e consagrar as vítimas

spedizione, si presentò il giorno sucessivo alla tribuna e, prima ancora che i presidenti si sedessero, fece la sua offerta.”

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31

oferecidas em nome de vocês e em nome de toda a cidade, [...]. Mas se ele tivesse um pingo, uma sombra de convicção acerca das acusações que ele maquinava contra mim, ele me teria deixado fazer essas coisas?” (Demóstenes, Contra Mídias, 114-115) 33

Assim, uma hipótese para o motivo que levou Demóstenes a processar Mídias

foi a atuação de seu inimigo na dokimasía. Não se tem conhecimento de nenhuma

desavença entre Demóstenes e Eubulo nessa data e não se tem evidências suficientes

para se estabelecer se o orador teve alguma motivação política para conduzir o processo

nesse período (MacDowell, 2002, p. 12).

1.3 Sistema judiciário ateniense

Julgar e deliberar eram as funções essenciais para o funcionamento da

democracia ateniense. Elas eram exercidas pelos cidadãos corriqueiramente, de tal

maneira, que tinham uma forte presença na vida cotidiana.

Em Atenas, as ações judiciais eram feitas diretamente pelos cidadãos que se

sentiam lesados ou que percebiam que a cidade tinha sofrido algum malefício da parte

de alguém. Entre quem estava conduzindo a causa e os juízes não havia nenhuma classe

profissional intermediária, como hoje se tem os advogados, e também não havia

nenhum órgão público responsável por processar aqueles que estavam prejudicando a

cidade e desrespeitando as leis.

Da mesma forma, a defesa era feita pelo próprio cidadão acusado ou por algum

representante legal, caso ele não fosse cidadão. Os cidadãos que não se sentiam

preparados para discursar perante os juízes poderiam pedir ajuda a um parente ou um

amigo e dividir o tempo do discurso com ele (synegoré) ou pedir para um profissional

(logógrafo) elaborar um discurso, que era decorado e depois pronunciado no tribunal

(Pernot, 2000, p. 43). Como os processos eram deixados para a iniciativa privada, o

tribunal tornou-se também o local de embate de querelas na área política. Dessa

maneira, eram freqüentes os processos de um inimigo político contra outro, movendo

33 “Sebbene, infatti, mi abbia acussato di omicidio e abbia attribuito a me un tale delitto, tuttavia egli mi

ha lasciato celebrare i riti di apertura per la boulé, mi ha lasciato sacrificare e consacrare le vittime offerte in vostro nome e in nome di tutta la città, [...]. Ma se egli avesse avuto un briciolo, un’ombra di convinzione circa le accuse che egli macchinava contro di me, mi avrebbe forse lasciato fare queste cose?”

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32

ações que poderiam, ou não, ser relacionadas com a discussão política, como o caso de

Demóstenes e Mídias (Rhodes, 1998, p. 157).

Em Atenas, também havia aqueles que fizeram da ação de acusar uma atividade

profissional, os sicofantas. Eles moviam ações públicas contra os cidadãos,

especialmente contra ricos, na expectativa de lucrarem, seja por meio da multa (caso o

acusado fosse condenado a pagar uma, o siconfanta poderia receber uma parte, pois em

algumas ações o acusador recebia parte da multa imposta ou da propriedade

confiscada), seja por meio da chantagem para abandonar o processo.

Os tribunais funcionavam uma média de 200 dias por ano34 (Pernot, 2000, p.

43). Os processos nos tribunais, bem como as resoluções dos árbitros, eram numerosos.

O número de juízes e a duração dos julgamentos variavam de acordo com o tipo de

ação. Ds ações privadas, as chamadas díkai, participavam entre 201 e 401 juízes, elas

duravam algumas horas e eram movidas pela parte que se sentia lesada (Pernot, 2000, p.

43; Hansen, 1991, p. 232). Segundo Gernet (2001, p. 82), a formação da consciência da

existência de um delito de caráter privado pressupõe a organização de um sistema

judiciário que saiba diferenciar quais são os delitos de ordem pública e privada. Essa

diferenciação é decorrente do reconhecimento da coletividade como agredida, quando

algum de seus membros sofre determinado delito. Já as ações públicas, graphai, tinham

em torno de 501 ou mais juízes e duravam um dia inteiro ou poderiam se estender mais,

já que havia uma média de três horas para cada discurso (Pernot, 2000, p. 43; Hansen,

1991, p. 232). Elas poderiam ser movidas por qualquer cidadão com plenos direitos

cívicos.

Dos tribunais populares, Helieiai, participava qualquer ateniense com mais de

trinta anos e com posse de seus direitos cívicos (Mossé, 1985, p. 74). Eram sorteados

anualmente 6.000 juízes, 600 por tribo, que faziam o juramento de respeitar as leis. Os

heliastas que se apresentavam no dia, eram divididos por um sistema de sorteio,

extremamente complicado, que tinha como objetivo evitar fraudes e a corrupção dos

juízes (Carlier, 2006, p. 20; Mossé, 1985, p. 75). Cada juiz recebia um misthós de três

óbolos. Essa quantia é inferior a um dia de trabalho remunerado, e, apesar de pequena,

era um complemento à renda, principalmente para os mais idosos, como indica a fala do

velho Filocléon ao narrar todas as vantagens de ser juiz: “Esqueci o melhor da história:

34 Rhodes (1998, p. 145), aceita a perspectiva de Hasen, que sugere que os tribunais funcionam em torno

de 175 a 225 dias por ano. No século IV a.C., um mesmo corpo de juízes poderia decidir sobre até quatro casos privados em um mesmo dia.

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33

quando entro em casa com meu salário, minha grana atrai mil carícias para mim; [...] E

este salário me serve de proteção contra todos os males, e de armadura contra todos os

projéteis; [...]” (Aristófanes, As Vespas, 605-615)

De acordo com Dabdab Trabulsi (2006, p. 163), mesmo sendo prejudicial, do

ponto de vista financeiro, deixar de trabalhar para participar dos tribunais, do ponto de

vista psicológico, significava um ganho para o cidadão, pois ele tinha a satisfação de

exercer uma função vital para a cidade. Dessa forma, a misthosphoría, além de

significar um ganho financeiro para os mais pobres e idosos, proporcionava uma

satisfação aos cidadãos, ao permitir o acesso à participação nos assuntos da pólis.

Nos julgamentos, as duas partes discursavam, respeitando o tempo delimitado.

Posteriormente, os juízes davam suas sentenças, depositando seu voto na urna. No

século V a.C., depositava-se um seixo em uma das duas urnas que ficavam em frente à

tribuna. Já no século IV a.C., cada juiz recebia duas placas de bronze, sendo uma delas

perfurada, o que indicava a condenação. Os juízes deveriam colocar seu veredicto numa

ânfora de bronze e a outra placa numa ânfora de madeira. Depois de votar, o juiz recebia

uma senha marcada com um gama e, então, ganhava seu misthós. Esse mecanismo tinha

o objetivo de evitar que os juízes saíssem antes do julgamento terminar (Mossé, 1985, p.

77).

O gosto pelo ato de julgar e a forma como os atenienses se relacionavam com os

tribunais foi transformada em comédia por Aristófanes, na sua peça As Vespas,

encenada em Atenas pela primeira vez em 422 a.C. (Kury, 2004, p. 7). A história se

passa em torno de Filocléon35, um velho camponês viciado em julgamentos, que vai aos

tribunais todos os dias, e de seu filho Bdelicléon36. Para ele, Filocléon é acometido pela

“paixão pelos tribunais” (Aristófanes, As Vespas, 85-90). Para curar o pai dessa

obsessão, Bdelicléon o prende em casa. Então, o velho passa seu tempo fazendo

veredictos sobre os problemas domésticos, transformando sua casa em um tribunal.

Na peça, Aristófanes apresenta uma crítica à organização dos tribunais,

principalmente aos juízes, questionando a validade de seus julgamentos, já que eles

estariam apenas interessados no pagamento dos misthoí e em condenar os acusados,

como indica a fala de Filocléon ao se lamentar por ter inocentado seu cachorro que

roubara o queijo da cozinha: “Como vou suportar a idéia de ter absolvido um acusado?

35 O nome Filocléon significa “amigo de Cléon” (Kury, 2004, p. 7). 36 O nome Bdelicléon quer dizer “inimigo de Cléon” (Kury, 2004, p. 7).

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34

Que será de mim? Deuses veneráveis! Me perdoem! Fiz isso tudo sem querer; este não é

o meu hábito” (Aristófanes, As Vespas, 999-1002).

Na tentativa de dissuadir Filocléon das vantagens de ser juiz, Aristófanes, por

meio da fala de Bdelicléon, critica a forma de redistribuição de riquezas realizadas por

Atenas, afirmando que o salário dos juízes é apenas uma migalha perto das riquezas que

o Império pode proporcionar aos cidadãos (Hansen, 1991, p. 227):

“Então ouça: você poderia ser tão rico quanto todos os outros colegas seus; mas esses eternos aduladores do povo lhe tiram os meios. Você reina sobre uma porção de cidades, desde o mar Negro até a Sardenha, e sua única satisfação é esse salário miserável; e eles ainda lhe pagam avarentamente e gota a gota, como o óleo na mecha de um lampião; na realidade eles querem que você seja pobre, [...]” (Aristófanes, As Vespas, 695-705)

Na peça, o coro é formado por velhos que ocupam a função de juízes

diariamente. Eles têm uma baixa condição econômica e podem ser facilmente

influenciados. O diálogo entre o Corifeu e o menino indica que o misthòs é um

importante recurso para completar a renda:

“Corifeu: Esta é boa! Com o meu salário miserável, tenho de comprar pão, lenha e carne, e você ainda me pede figos? Menino: Se o arconte não convocar mais o tribunal, onde vamos jantar? Você tem de nos dar uma esperança, senão vamos nos afogar no mar.” (Aristófanes, As Vespas, 300-309)

Segundo Carlier (2006, p. 20), é excessivo pensar que, nos tribunais atenienses,

por serem compostos majotariamente de homens pobres, haveria uma perseguição aos

ricos. O Contra Mídias demonstra que os juízes teriam a propensão de inocentar os mais

ricos, pois eram mais facilmente seduzidos por sua fortuna. O orador apela para que os

juízes julguem um cidadão rico da mesma forma que um pobre e dêem sua sentença

baseada nos atos do acusado e não na sua condição financeira:

“Vocês não devem apresentar contra vocês mesmos a prova de que, quando vocês prendem um cidadão que pertence às classes médias ou ao povo, vocês não demonstram compaixão por ele e nem o absolverão, mas o condenarão à morte ou o privarão dos direitos civis. Se, ao contrário, quem se comporta de maneira ultrajosa for um homem rico, conceder-lhe-ão o perdão. Certamente vocês não deveriam agir assim: não é justo. Ao contrário, vocês deveriam se

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35

mostrar indignados igualmente em relação a todos” (Demóstenes, Contra Mídias, 183) 37.

Assim, características do sistema político e jurídico ateniense fizeram com que a

inimizade pessoal caminhasse lado a lado com as divergências políticas. O alto grau de

envolvimento pessoal no processo judicial também proporcionava uma tendência a

reforçar as hostilidades pessoais.

1.4 Discussão dos especialistas sobre o Contra Mídias

Os especialistas possuem opiniões divergentes sobre três aspectos do Contra

Mídias. O primeiro se refere à definição do tipo de ação jurídica presente no discurso:

ele representa uma probolē, um processo de ultraje (graphē hýbreōs) ou um processo de

impiedade (graphē asebeías). O segundo se relaciona diretamente com o primeiro e diz

respeito à definição da natureza da culpa de Mídias: o orador estaria tentando convencer

os juízes de que seu inimigo cometeu um ultraje (hýbris), uma impiedade (asébeia),

uma ofensa à festa (adikeîn perì tēn heortēn) ou uma combinação desses três delitos?

Por fim, não há um consenso nas questões relativas à enunciação e à circulação do

discurso.

Os estudos modernos sobre o discurso se iniciaram com o artigo de A. Böckh38,

em 1818 (Harris, 1989, p. 119). Nele, o autor concorda com a tradição legada por

Plutarco de que o discurso nunca foi enunciado. Plutarco, ao narrar a vida de

Demóstenes, aponta para um possível acordo entre ele e Mídias (Plutarco, Vida de

Demóstenes, 12) e, com isso, o discurso não teria sido pronunciado no tribunal. Essa

posição perdurou e foi seguida por Dionísio de Halicarnasso, que, em sua Primeira

Carta a Ameu, ao falar dos discursos de Demóstenes, classifica somente o Contra

Mídias como tendo sido escrito (synetáxato), enquanto todos os outros têm como

37 “Non dovete offrire contro voi stessi la prova che, quando arrestate un cittadino che appartiene ai ceti

medi o al popolo, voi non provate pietà per lui, né lo assolvete, ma lo condannate a morte o lo private dei diritti civili, e se invece chi si comporta in modo oltraggioso è um uomo ricco, gli concedete il perdono. Non dovete certamente agire cosi: non è giusto. Moatratevi, invece, sdegnati allo stesso modo verso tutti.”

38 A. Böckh. Von den Zeitverhältnissen der Demosthenischem Rede gegen Meidias. Abhandlungen der Berliner Akademie, v. 5, p. 60-100, 1818.

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36

característica terem sido enunciados (apēngeile, diētheto, dielēlythe) (Harris, 1989, p.

119).

Plutarco se baseia no discurso de Ésquines Contra Ctesifonte, em que se narra

um acordo feito, fora do tribunal, entre o orador e seu inimigo. Nesse acordo, Mídias

teria pago trinta minas para Demóstenes não levar adiante o processo: “Há mais o caso

de Mídias e das punhadas que Demóstenes levou na orquestra quando corego, e a venda,

por trinta minas, tanto da afronta recebida, como da condenação pronunciada pelo povo

contra Mídias no teatro de Dioniso” (Ésquines, Contra Ctesifonte, 52). Essa é a única

referência do século IV a.C. ao acordo realizado, sendo todas as outras baseadas nela.

Ésquines e Demóstenes eram inimigos e possuíam opiniões diferentes acerca da

expansão macedônica, sendo que o primeiro era partidário de uma política favorável a

Filipe. Após a derrota de Atenas na batalha de Queroneia, os ânimos se acirraram.

Ctesifonte, amigo de Demóstenes, mesmo após a perda ateniense, propôs a coroação do

orador pelos vários benefícios feitos à cidade. Ésquines, considerando ilegal a

proposição dessa ação, pois Demóstenes tinha sido um dos grandes incentivadores da

batalha, moveu um processo contra Ctesifonte. Em seu auxílio, Demóstenes escreveu a

Oração da Coroa, em que, ao mesmo tempo que defende o amigo, faz uma exaltação de

seus feitos em prol da pólis. Sabe-se que Demóstenes foi vitorioso nessa disputa e que

Ésquines exilou-se de Atenas por não ter obtido um quinto dos votos.

Os que corroboram a afirmação de Ésquines sobre a venda da probolē alegam

que Demóstenes, no discurso a favor de Ctesifonte, não se defendeu dessa acusação.

Isso seria um indício de sua veracidade, pois o orador não teria meio de refutá-la.

Entretanto, isso é insuficiente como embasamento para essa conclusão, uma vez que

Demóstenes não se defendeu de diversas acusações presentes no Contra Ctesifonte. O

silêncio de Demóstenes não significa necessariamente sua culpa. É mais plausível

acreditar que, dentro do tempo delimitado pelo tribunal, o orador desenvolveu a

estratégia que considerava mais eficaz, deixando algumas acusações sem réplica e

priorizando outros pontos. Outra hipótese possível para o argumento desenvolvido por

Ésquines é que Mídias pagou 30 minas ao orador como penalidade ao término da

probolē (MacDowell, 2002, p. 24). Mas essa hipótese pressupõe o pronunciamento do

Contra Mídias, o voto condenatório a Mídias e que Ésquines tenha contado uma

mentira em seu discurso, aproveitando-se do fato de que os cidadãos não tinham uma

lembrança muito clara do desfecho do caso entre Mídias e Demóstenes, já que o litígio

ocorrera 16 anos antes do Contra Ctesifonte ser pronunciado.

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Para defender a tese de que o Contra Mídias nunca foi enunciado, Böckh aponta

para as inconsistências e imperfeições estilísticas presentes no discurso, que seriam

resultado do estágio inacabado no qual se encontra. Para o autor, o discurso que se

conhece hoje é resultado de uma edição póstuma feita pelos amigos do orador, a partir

dos papéis encontrados após sua morte. Esse também foi o momento em que o discurso

passou a circular (Harris, 1989, p. 119).

A visão de Böckh continuou dominante até ser contestada por H. Berse (Harris,

1989, p. 119). Em 1956, ele publica um artigo39 em que analisa todas as passagens

consideradas inconsistentes por Böckh e conclui que não há indícios internos ao

discurso suficientes para comprovar seu estágio inacabado, ou mesmo se a obra não foi

pronunciado devido ao acordo.

Um dos parágrafos considerados inconsistentes é o 154, no qual Demóstenes

afirma ter 32 anos: “Esse homem [Mídias], ó atenienses, que talvez tenha 50 anos ou

um pouco menos, não fez mais liturgias do que eu, que tenho 32” (Demóstenes, Contra

Mídias, 154)40. Se o orador tivesse 32 anos quando escreveu o discurso, este teria sido

elaborado em torno de 353/2 a.C. Mas, o próprio discurso aponta a data de 347/6 a.C.,

ano do arcontado de Temístocles, como a de sua elaboração. No discurso, também

aparecem referências ao envido de tropas à Eubeia, ocorrida dois anos antes, o que

confere com o período da agressão sofrida por Demóstenes no teatro. Todavia, esse

parágrafo é insuficiente para postular a inconsistência do discurso. Uma interpretação

mais condizente com o contexto do litígio é que Demóstenes propositalmente mentiu

sobre sua idade para obter a simpatia dos juízes. Com essa mentira, a diferença de idade

entre Mídias e Demóstenes é apresentada como maior do que ela realmente é. Essa

diferença se torna mais um elemento para a composição das características opostas entre

os dois. Assim, o orador se representa como um jovem generoso e fiel à tradição da

cidade em oposição a Mídias, representado como um velho que evita, a todo custo,

cumprir seus deveres litúrgicos.

As opiniões mais recentes acerca do Contra Mídias podem ser divididas em

quatro grupos. O primeiro grupo é composto pelos estudiosos que acreditam na

enunciação do discurso mais ou menos na forma como se conhece hoje. Nele, estão

presentes os autores H. Erbse (1956), Harris (1989, p. 136) e Ober (1994, p. 92). O

39 H. Berse. Über die Midiana des Demosthenes, Hermes v. 84, p. 135-151, 1956. 40 “Costui, o ateniesi, che ha forse cinquant’anni o poco meno, non ha sostenuto più liturgie di me che ho

trentadue anni.”

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último também defende a publicação do discurso por Demóstenes após sua enunciação

no tribunal. O segundo grupo é formado por aqueles que defendem o pronunciamento

de uma versão similar à que se possui atualmente, como MacDowell41 (2002, p. 27). O

autor trabalha com a possibilidade de que o discurso que chegou até nós possa ser um

rascunho, que serviria de guia para o pronunciamento realizado na Assembléia e,

posteriormente, no tribunal. Demóstenes, a partir desse rascunho, teria feito as

modificações necessárias para obter a simpatia dos juízes42. O terceiro grupo é

constituído pelos estudiosos que afirmam o não pronunciamento do discurso devido ao

acordo realizado entre Mídias e Demóstenes (Böckh, Wilson, Humbert, Samaranch).

Para Carlier (2006, p. 138), Humbert (1959, p. 6) e Samaranch43 (1969, p. 381), as

condições políticas tensas, devidas ao avanço de Filipe da Macedônia, motivaram o

acordo entre os litigantes e a conseqüente não enunciação do discurso. Ambos também

são partidários da opinião de Böckh, segundo a qual o discurso que se possui hoje é

resultado de uma edição póstuma realizada pelos amigos do orador. Por fim, há aqueles

que aceitam o acordo descrito por Ésquines, mas acreditam que o discurso foi colocado

em circulação por Demóstenes, contendo primeiramente o que ele disse na Assembléia,

acrescido do que ele teria dito se prosseguisse com o processo (Dover44).

Para a análise elaborada neste trabalho, o importante não é estabelecer se o

discurso foi ou não enunciado, já que há mais ausências de evidências sobre o desfecho

do litígio do que informações concretas. Todas as hipóteses apresentadas acima são

plausíveis. Para o desenvolvimento deste trabalho acredita-se ser mais frutífera a

opinião de Fredal (2001, p. 256), que pensa o discurso como uma possível performance

elaborada por Demóstenes. Assim, ele foi escrito pelo orador com o objetivo de

caracterizar Mídias como culpado, utilizando palavras que causariam o maior impacto

nos juízes, de maneira a obter o voto favorável. Isso implica numa seleção consciente

dos termos da acusação, o que leva a acreditar que ele escolheu com cuidado as palavras

para determinar o delito e o caráter de seu inimigo.

Outro ponto de debate entre os especialistas é sobre o tipo de ação jurídica que o

discurso representa. Ele seria uma probolē ou uma graphē? Os especialistas são

41 Em um livro anterior (The Law in Classical Athens), MacDowell (1976, p. 196) defende a tese de que

o discurso se apresenta em uma condição inacabada e que não foi enunciado. 42 Para a capacidade de Demóstenes de falar improvisadamente ver a série de artigos publicados por

Paul Alfred Dorjahn. 43 A nota de apresentação do discurso da edição de Samaranch tem a argumentação extremamente

semelhante à desenvolvida por Jean Humbert para a edição da Belles Lettres. 44 Referência retirada de Harris (1989, p. 120).

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unânimes em concordar que seu início representa uma probolē (E. Harris, Humbert, O.

Rowe, MacDowell e Samaranch).

A probolē, que literalmente significa propor algo à Assembléia (MacDowell,

1976, p. 194), poderia ser realizada por qualquer cidadão ou estrangeiro que desejasse

processar uma ofensa em relação à festa45. A pessoa que desejava processar deveria

notificar os prítanos da ofensa, a fim de que a colocassem na pauta do Conselho e,

posteriormente, da Assembléia. Na Assembléia, as partes envolvidas discursavam e, em

seguida, os cidadãos votavam. Se a maioria fosse contra o acusado, era a chamada

katakheirotonía (levantar a mão para votar contra alguém); se a seu favor, a

apokheirotonía (absolver alguém por voto de mãos levantadas). O voto não tinha um

efeito prático, já que não estipulava nenhuma reparação. Se o acusador acreditasse que

merecia receber uma reparação, deveria prosseguir com o caso, encaminhando-o até o

tribunal dos tesmotetas. No tribunal, o voto recebido na Assembléia poderia influenciar

a opinião dos juízes, mas, por outro lado, não trazia qualquer empecilho legal para as

ações dos envolvidos no processo. Dessa maneira, uma ofensa levada à Assembléia, que

não recebesse o voto favorável dos cidadãos, poderia ser encaminhada ao tribunal. Mas

um voto contrário na Assembléia, possivelmente, inibia o acusador de continuar o

processo. Para Rudhart (1960, p.100), a probolē configura-se como uma condenação

moral que, mesmo sem fornecer efeitos imediatos, dava maior autoridade para o autor

do processo entrar com uma ação posterior no tribunal.

Os festivais na Atenas Clássica estavam protegidos por diferentes leis que

asseguravam seu funcionamento e variavam de acordo com a festividade. Uma das leis

era a probolē. No período da composição do discurso, ela poderia ser utilizada nos

festivais das Grandes Dionisíacas, das Dionisíacas no Pireu, das Lenéias, das Targélias

e nos Mistérios de Elêusis. A probolē relativa a ofensas realizadas nas Grandes

Dionisíacas foi inserida no sistema jurídico ateniense no final do século V a.C., sendo

anterior à lei proposta por Evégoros, citada por Demóstenes no parágrafo 10, a qual

proíbe atos violentos contra devedores nos dias de festa (Gernet, 2001, p. 198). Essa lei

funcionaria como um complemento da lei da probolē, presente no parágrafo 8,

qualificando um determinado tipo de comportamento como passível de ser processado.

Ao longo do século IV a.C, a probolē teve seu alcance ampliado para diversos festivais,

45 No sistema judiciário ateniense há três tipos de probolē: um contra tudo que ofende a boa ordem das

cerimônias religiosas, outro relativo aos sicofantas e o último contra aqueles que induziram voluntariamente o povo ao erro. O Contra Mídias é o único registro sobre a probolē de ofensa à festa.

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como, por exemplo, para os Mistérios de Elêusis, como indica o orador, ao dizer: “a lei

sobre os Mistérios é a mesma que sobre as Dionisíacas; a primeira, porém, é mais

recente que a segunda” (Demóstenes, Contra Mídias, 175)46. Isso explicaria porque os

envolvidos na paródia dos Mistérios de Elêusis, antes da expedição à Sicília, não

sofreram uma probolē (MacDowell 2002, p.14; Gernet, 2001, p. 198). Assim, a festa,

por representar um momento primordial da vida social, já que promove a integração dos

habitantes da pólis e sua ligação com a esfera sagrada, tem uma legislação específica

que assegura o bom convívio entre os habitantes durante esse período. Nessa legislação,

se encontra desenvolvida uma idéia de respeito ao indivíduo, sendo ele beneficiado por

uma proteção temporária (Gernet, 2001, p. 198).

Acerca da duração do procedimento da probolē, as opiniões são divergentes em

considerar somente o ato da fala à Assembléia, ou então atribuir a todo processo no

tribunal, decorrente da ação inicial levada à Assembléia, a nomeação de probolē. Os

defensores dessa última proposta argumentam que alguns tipos de procedimentos

jurídicos em Atenas eram nomeados a partir da ação que os iniciava, sendo esse nome

aplicado a todo o processo, como por exemplo, na apagōgē. Dessa forma, a palavra

probolē é aplicada tanto ao simples ato de propor a ação na Assembléia, quanto a todo o

processo resultante dela (MacDowell, 2002, p. 16; Rowe47, 1994, p. 57; Scafuro, 2004,

p. 113; Humbert, 1959, p. 4; Gernet, 2001, p. 200).

A probolē, sendo um recurso legal que pode iniciar um processo no tribunal,

diferencia-se da graphē, pois o autor da ação deve submeter ao tribunal a proposta de

penalidade somente depois de declarada a culpa do acusado48. Isso justificaria os

diferentes tipos de penalidades propostas por Demóstenes ao longo do discurso. O

orador, em três parágrafos (70, 102 e 118), sugere a aplicação da pena de morte pelo

delito cometido por Mídias. Ele diz: “Portanto, se qualquer um de vocês não nutrir em

relação a Mídias um sentimento de indignação tal que o induza a infligir-lhe

46 “La legge che riguarda i misteri è la medesima di quella che riguarda le Dionisie, la prima però è più

recente della seconda.” 47 Para defender a posição de que todo discurso constitui uma probolē, o autor faz uma análise dos

tempos verbais da palavra probolē, indicando que Demóstenes percebe todo o discurso dessa maneira (Rowe, 1994, p. 56-57).

48 Para uma análise da reparação da vítima no processo da probolē ver: SCAFURO, Adele. The Role of the Prosecutor and Athenian Legal Procedure (Dem. 21.10). Dike, v. 7, p. 113-133, 2004. O autor defende o caráter público da probolē. Ele se opõe a MacDowell, que afirma que a díkē e a probolē podem ser relacionadas, já que a última pode assumir feições de caráter privado, principalmente no que se refere à reparação da vítima. Já para Scafuro, na probolē tem-se uma conjunção entre processo público e compensação pessoal, pois na lei apresentada por Evégoros (Demóstenes, Contra Mídias, 10) a vítima da ofensa é ao mesmo tempo o sujeito que move o processo e quem recebe a reparação.

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merecidamente a pena capital, estará errado” (Demóstenes, Contra Mídias, 70)49. Mais

adiante, ele reafirma: “Vocês devem justamente votar contra ele e infligir-lhe o máximo

da pena” (Demóstenes, Contra Mídias, 102)50. E, por fim, ressalta mais uma vez, a

necessidade da aplicação de uma severa punição: “como não poderia ser considerado

merecedor da pena capital não uma vez, mas sim infinitas vezes?” (Demóstenes, Contra

Mídias, 118)51. Mas, no parágrafo 152, o orador sugere o confisco dos bens como

penalidade: “Essa pena não pode ser senão a morte ou, ao menos, o confisco de todos os

seus bens” (Demóstenes, Contra Mídias, 152)52. Esses parágrafos foram utilizados

como argumentos para demonstrar a inconsistência e o caráter inacabado do discurso.

Entretanto, se considerarmos a não necessidade de proposição da pena na probolē, eles

não apresentam nenhuma inconsistência. Analisando sob a perspectiva da estratégia

persuasiva do orador, as diferentes modalidades de penalidades sugeridas servem para

reforçar a necessidade de punição de Mídias por não agir de forma correta com relação

à pólis.

Outro grupo de especialistas53 (Harris, 1989, p. 125; Rudhartdt, 1964, p. 101)

considera somente a parte enunciada na Assembléia como uma probolē e o restante,

pronunciado no tribunal, como uma graphē hýbreōs. Para Harris, o discurso é uma

graphē hýbreōs, classificada como um agòn timetós. Esse processo era dividido em dois

estágios. No primeiro, quem move a ação tenta convencer os juízes da culpa do

acusado. Então, os juízes votam a favor ou contra o réu. Se ele for considerado culpado,

as partes litigantes apresentam para os juízes a penalidade que consideram adequada e

os juízes decidem, entre duas, aquela que o culpado deveria receber.

Wilson (2004, p. 213) e Ober (1990, p. 90) preferem não entrar na discussão

sobre a formalidade do tipo de ação presente no discurso, mas consideram que ele é

centrado na acusação de hýbris, sendo esse seu principal assunto. Gernet (2001, p. 200)

também considera a hýbris o objeto central do discurso, mas o classifica como uma

probolē. Segundo o autor, por se representar como uma vítima de hýbris, Demóstenes

utiliza-se recorrentemente desse termo para designar o crime intolerável que sofreu. Ele

usa as leis ao longo do discurso, tanto para justificar a legalidade do processo que está 49 “Se dunque qualcuno di voi, o ateniesi, non nutre nei confronti di Midia un sentimento di sdegno tale

che lo spinga a infliggergli meritatamente la pena capitale, costui sbaglia.” 50 “[...] dovreste giustamente votare contro di lui e infliggergli il massimo della pena.” 51 “[...] come non potrebbe essere ritenuto meritevole della pena capitale non una decina, bensì

un’infinità di volte?” 52 “Questa pena non può essere che la morte o, almeno, la confisca di tutti i suoi beni.” 53 MacDowell (2002, p. 16) indica que Harisson, em The law of Athens, Oxford, 1968-71, p. 62-63,

considera o início do discurso uma probolē e o restante uma graphē asebeías.

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conduzindo, quanto para classificar a acusação de ofensa à festa, já que Mídias a

ofendeu por seu comportamento ultrajante.

O debate acerca do papel da hýbris no discurso abre uma outra discussão

baseada na definição sobre qual tipo de acusação e de ofensa Demóstenes apresenta.

Seria a ofensa cometida por Mídias diferente da acusação que o orador apresenta? No

início do discurso, ele mostra que o voto de condenação da probolē foi feito a partir da

acusação de “ofensa à festa” (adikeîn perì tēn heortēn). Se a parte pronunciada no

tribunal fosse considerada uma graphē, modificaria a acusação que o orador faz contra

seu inimigo. De uma ofensa à festa ela passaria a uma acusação de ultraje (hýbris), na

opinião de Harris, ou de impiedade (asébeia), segundo Harrison. Também há

possibilidade de pensar a acusação como uma “ofensa à festa” (adikeîn perì tēn heortēn)

e a classificação dessa ofensa como um ultraje (hýbris), uma impiedade (asébeia), ou

uma terceira ofensa não nomeada especificamente, mas que contém traços de ambos,

fazendo uma combinação entre os dois tipos de ofensa.

A perspectiva adotada para a análise do uso da impiedade por Demóstenes é

considerar o discurso como uma probolē. A acusação de Mídias é uma “ofensa à festa”

(adikeîn perì tēn heortēn), sendo essa também a culpa que o orador está tentando provar

aos juízes54. O adikeîn, na formulação da acusação, tem o sentido de violação

intencional das leis estabelecidas pelos cidadãos. Esse sentido é reforçado com a

apresentação, no discurso, da segunda lei, presente no parágrafo 10, que relaciona o ato

de Mídias com a transgressão de uma lei específica (Rowe, 1994, p. 60).

54 Também MacDowell (2002, p. 16) considera a acusação feita por Demóstenes uma “ofensa à festa”

(adikeîn perì tēn heortēn). Mas o objetivo do discurso não é comprovar que Mídias é culpado por ofensa em relação ao festival, mas sim, demonstrar que ele é culpado de ultraje (hýbris) e de impiedade (asebéia) (MacDowell, 2002, p. 17).

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43

CAPÍTULO 2

Questões metodológicas

Para a condução desta investigação, num primeiro momento, a pesquisa sobre a

bibliografia existente acerca do problema se conduziu por três eixos. O primeiro diz

respeito à religião grega em particular, às noções de piedade e impiedade; o segundo, à

retórica; e o último, ao discurso, proprimente dito. A partir de um aprofundamento na

leitura do Contra Mídias e do material sobre ele, um quarto eixo de leitura se mostrou

importante. Trata-se do direito ático, pois, a todo momento, Demóstenes aponta para a

importância de obedecer a legislação e utiliza diversas leis para construir seu percurso

persuasivo.

Neste capítulo, abordarei alguns questionamentos metodológicos que atravessei

ao longo da pesquisa, enfocando, principalmente, os dois primeiros eixos. Será

demonstrado o ponto de vista adotado, bem como algumas reflexões.

2.1 Estudo de uma palavra

Ao utilizar discursos como fontes históricas, a palavra torna-se objeto de

reflexão do historiador, pois é por meio dela que o orador consegue persuadir. Ao ler os

discursos, indagações como “por que o orador utiliza essa palavra”, “por que ele a

repete tantas vezes” e “por que caracteriza seu adversário com esse vocabulário” são

inevitáveis. Dessa maneira, o uso dos discursos incita uma reflexão sobre a linguagem e

o seu papel no desenvolvimento das relações humanas.

Pensando na importância da palavra para o discurso, a pesquisa concentrou-se na

utilização da impiedade no Contra Mídias. A opção de concentrar a análise nos usos

possíveis de uma palavra em um discurso, refletindo sobre todas as nuances de

significado que ela pode ter em contextos diferentes dentro de uma mesma obra, foi

inspirada pelo livro de Louis Gernet, Recherches sur le développement de la pensée

juridique en Grèce. Nesse livro, o helenista, por meio de um estudo das palavras

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pertinentes ao vocabulário jurídico, reflete acerca da gênese da representação do

indivíduo no direito grego e das transformações ocorridas nas noções de penalidade,

delito e intencionalidade do autor do crime, isto é, se ele foi feito de forma voluntária ou

involuntária.

Segundo o helenista, o estudo dos termos morais e jurídicos pode ser feito de

duas maneiras. A primeira é de forma sistemática, que consiste em dar uma série de

representações sugeridas pela palavra. A segunda é a descritiva, que é o estudo de uma

massa significativa de exemplos, divididos em diversos autores ou grupos de autores,

que se sucedem de maneira mais ou menos contínua. Por meio desses exemplos é

possível constatar as mudanças e permanências dos sentidos da palavra ao longo do

tempo (Gernet, 2001, p. 17). O método descritivo é utilizado pelo autor no capítulo

preliminar, no qual se dedica ao estudo da hýbris. Segundo ele, a partir da sucessão de

testemunhos levantados, a noção de hýbris aparece como uma “filosofia moral popular”

(Gernet, 2001, p. 18).

Nesta pesquisa, o método utilizado foi inspirado no modelo descritivo, mas

aplicado de maneira simplificada, devido ao limite de tempo. Foi selecionada somente

uma obra e, a partir dela, feita a análise da palavra escolhida. Para isso, o primeiro passo

foi selecionar todos os trechos que tinham a ocorrência da asébeia no Contra Mídias.

Posteriormente, foi realizada a análise desses trechos, relacionando-os com o contexto.

O objetivo era investigar a importância retórica deles para a construção da

argumentação persuasiva do orador. Depois, também foram selecionados e analisados

trechos que reforçam a idéia do delito da impiedade, mas que não apresentam o termo

asébeia. Não foi o objetivo desse levantamento elencar as mudanças do uso do

argumento da impiedade ao longo do tempo, já que, para isso, seria necessário um

maior número de obras. O intuito dessa seleção é demonstrar a importância do

argumento da impiedade para o convencimento no contexto de litígio jurídico,

principalmente na retórica do Contra Mídias.

Segundo Gernet (2001, p. 17), para se compreender a função da palavra dentro

de uma sociedade, deve-se entendê-la enquanto tal. A palavra nos indica todo o sistema

mental do grupo humano que a utiliza, nos revelando, dessa forma, o seu pensamento:

sem palavras, sem pensamento (Gernet, 2001, p. 46). Por serem as palavras envoltas por

sentimentos sociais, elas também revelam as obrigações que a pessoa tem para com

grupo a que pertence (Gernet, 2001, p. 42). O uso das palavras para a classificação das

coisas existentes no mundo remete a uma lógica que reflete os aspectos sociais. O modo

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de classificação proposto por uma sociedade demonstra a hierarquia de valores que

existe dentro dela. Dessa forma, quando uma pessoa cataloga em puro ou impuro,

sagrado ou profano, piedoso ou impiedoso, ela opera com categorias sociais.

Segundo o helenista, estudar uma palavra implica em uma análise do sentimento

de solidariedade que uma sociedade nutre num determinado momento histórico (Gernet,

2001, p. 42). Assim, a linguagem é um fato social (Gernet, 2001, p. 6), que expressa o

sistema mental de uma sociedade (Gernet, 2001, p. 257), pois cada vez que uma palavra

é pronunciada produz uma representação de significado comum no interior da pessoa

(Gernet, 2001, p. 9).

O estudo de uma palavra também é aplicado por outros autores, como Zaidman,

que, em seu livro Le commerce des dieux: eusebéia: essai sur la piété en Grece

ancienne, demonstra como é possível analisar os comportamentos sociais esperados

com relação ao sagrado por meio da história do termo eusébeia, piedade (Zaidman,

2001, p. 12).

A palavra revela também a forma como a pessoa se relaciona com as

modalidades de verdades existentes no seu meio social. Essas diferentes modalidades da

verdade explicam as diferentes crenças, que podem até mesmo ser contraditórias,

embora existentes na mesma pessoa (Veyne, 1984, p. 39).

Além das funções essenciais que a palavra ocupa nas relações humanas de

qualquer sociedade, na Grécia Antiga, ela também tinha um papel importante na

democracia. É sobre a palavra que todas as instituições democráticas são fundadas.

Segundo Dabdab Trabulsi (2006, p. 134), a cultura política da participação direta

investe um grande valor na palavra, já que é por meio dela que o cidadão exerce seu

poder de intervir nos assuntos da pólis. Assim, o poder de intervenção ativa

(participação) da palavra é importante no domínio social e político (Dabdab, 2006, p.

130).

A palavra é um instrumento de poder (Dabdab, 2006, p. 129). O poder investido

nela levou a uma série de reflexões sobre sua função, a relação entre ela e a política e,

principalmente, a relação dela com a verdade e, finalmente, como política, palavra e

verdade se relacionam, como evidencia o movimento sofista.

No campo político, e também jurídico, a função da palavra é promover a

decisão, por meio da persuasão. Depois de tomada a decisão, tem-se a ação. Assim, o

objetivo da palavra e da persuasão é a eficácia da ação (Dabdab, 2006, p. 128). A

palavra pode propor transformações no sistema político e na estrutura social que são tão

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radicais que podem constituir uma ameaça para a pólis, do ponto de vista daqueles que

não desejam essa mudança (Finley, 1988, p. 129). Por isso, a cidade criou mecanismos

para inibir a ação dos cidadãos que utilizavam a palavra negativamente. Como medidas

de regulamentação e manutenção da pólis, podemos citar o ostracismo, a graphē

paranomōn e, até mesmo, os processos de impiedade. O primeiro era o afastamento

físico da cidade por um período determinado de tempo. O segundo era um

procedimento jurídico no qual alguém era processado por haver feito uma proposta

ilegal na Assembléia. Já a terceira, como veremos mais adiante, era o procedimento

jurídico movido contra alguém que realizava ações consideradas ímpias. A pólis não se

encarregava de acusar alguém de impiedade e qualquer cidadão poderia fazê-lo,

devendo conduzir o processo como se fosse um caso privado.

Dessa forma, a reflexão acerca de uma palavra é frutífera, pois ela dá acesso aos

modos de pensamento e de relacionamento de um grupo humano. Essa reflexão se

mostra ainda mais proveitosa se aplicada a um contexto no qual a palavra tem um papel

essecial para o grupo, como no caso dos gregos, em que ela era decisiva para a

condução da ação nas instituições democráticas.

2.1.1 Opção de analisar a impiedade em conjunto com a piedade

No início do desenvolvimento da pesquisa sobre a impiedade na Grécia Antiga,

as leituras ressaltaram sua relação com a piedade, pois a condenação da impiedade nos

remete a uma certa concepção de piedade. A piedade indica as atitudes que os homens

têm com relação ao sagrado e as formas como eles expressam suas crenças religiosas. O

estudo dela indica as práticas e os comportamentos existentes na relação entre os

homens e seus deuses. Por essa estreita relação, optei por trabalhar conjuntamente essas

duas noções, pois a concepção de piedade auxilia na difícil tarefa de delimitação dos

atos considerados ímpios, já que não se encontra, na literatura grega, nenhuma definição

clara dos comportamentos considerados ímpios, sendo que diferentes atitudes podem ser

consideradas ímpias.

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2.2 Religião como objeto de estudo

A religião é objeto de reflexão desde a Antiguidade. Diversos filósofos

dedicaram obras inteiras a esse tema. Por exemplo, Platão, tem duas obras dedicadas à

ela: Eutífron, que é discussão acerca do significado do termo hósios, que indica o

comportamento correto devido aos deuses; e Segundo Alcibíades, que trata da maneira

certa de se dirigir aos deuses. O sofista Protágoras escreveu o tratado Sobre os Deuses,

no qual argumenta que é impossível afirmar a existência das divindades. Aristóteles

possui um tratado acerca da piedade, da qual infelizmente restaram poucos fragmentos.

Do discípulo do Estagirita, Teofrasto, restaram apenas fragmentos de uma obra, Sobre a

Piedade, conservados no tratado de Porfírio Sobre a Abstinência. Essas obras, na

maioria dos casos, questionavam a religião tradicional e propunham novas formas de se

relacionar com o divino.

A religião como problema intelectual, tal qual nós lidamos hoje, é uma herança

do século XIX. Nesse período ela se torna objeto central de uma nova disciplina que

está surgindo, a Antropologia, que também se dedica às questões do parentesco e do

mito. A religião também continua sendo investigada pela história, por meio de sua

ramificação, a História das Religiões55.

A palavra religião é derivada da palavra latina religio, que se relaciona com um

sentimento da pessoa diante de qualquer temor de caráter religioso. É um sentimento de

hesitação e não provoca nenhuma ação ou incita a prática do culto (Benveniste, 1995, p.

267). Essa palavra tem relação com a palavra relegere “recoletar, retomar para uma

nova escolha; retornar a uma síntese anterior a fim de recompô-la” (Benveniste, 1995, p.

267). Beneviste demonstra que é uma interpretação historicamente falsa a relação entre

religio e religare, “religar”, inventada pelos cristãos e muito popularizada atualmente.

55 Para mais informações sobre a constituição da História das religiões como disciplina, de suas

propostas teóricas e conceituais e de seus autores mais influentes ver HERMAN, Jacqueline. História das religiões e religiosidades. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

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O que se entende comumente por religião56 começou a ser formulado no século

XVI, quando os europeus entraram em contato com culturas tão diversas localizadas na

América e no Oriente (Smith, 2006, p. 269). Para compreender esse novo mundo que se

abria diante de seus olhos, os europeus começaram a pensar categorias para descrevê-lo.

Uma delas foi a religião, que foi concebida nos moldes europeus, isto é, com traços

cristãos, e servia para descrever a maneira como esses povos se relacionavam com a

esfera divina. Dessa forma, desde esse período até os dias atuais, o conteúdo do termo

religião foi estabelecido por quem estuda uma determinada cultura, pelo outro, e não

por quem vivência o processo religioso (Smith, 2006, p. 269). Seguindo a nomeclatura

antropológica, pode-se dizer, que a religião não é uma categoria nativa, e sim uma

categoria imposta pelo outro.

Ao estudar um sistema religioso, o pesquisador deve estar ciente de que sua

concepção acerca da religião não coincide, necessariamente, com o entendimento das

pessoas da sociedade estudada. Saber fazer essa diferenciação é o primeiro passo para

iniciar o estudo sobre um determinado sistema religioso, qualquer que seja a distância,

no tempo ou no espaço, entre ele e o pesquisador.

A Escola Sociológica Francesa inaugura uma nova forma de pensar o religioso.

Marcel Mauss propõe que a religião é uma dimensão social e define os fatos religiosos

como fenômenos sociais, isto é, para explicá-los é necessário relacioná-los com outros

fatos da dimensão social. Émile Durkheim promove uma nova concepção de religião

que permite assim nomear fenômenos tão complexos e diversos como o politeísmo do

mundo grego, o cristianismo medieval ou o islamismo contemporâneo. Segundo ele, a

esfera religiosa é aquilo que envolve o sentimento do sagrado. O sagrado traduz uma

forma de comunicação, de ligação, uma função simbólica, que une os homens aos

deuses ou os homens aos outros homens, a partir da mediação do sagrado:

“Quando um certo número de coisas sagradas mantém entre si relações de coordenação e de subordinação, de maneira a formar um sistema dotado de uma certa unidade, mas que não participa ele próprio de nenhum outro sistema do mesmo gênero, o conjunto de

56 Nos dicionários da língua portuguesa Michaelis: moderno dicionário da língua portuguesa (1998),

Novo Aurélio XXI: o dicionário da língua portuguesa (1999) e Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001), a religião é definida, de forma geral, como: 1. Serviço ou culto a Deus, ou a uma divindade qualquer, expresso por meio de ritos, preces e observância do que se considera mandamento divino. 2. Sentimento consciente de dependência ou submissão que liga a criatura humana ao Criador. 3. Crença ou doutrina religiosa; sistema dogmático e moral. 4. Veneração às coisas sagradas; crença, devoção, fé, piedade. 5. Tudo que é considerado obrigação moral ou dever sagrado e indeclinável. 6. Ordem ou congregação religiosa. 7. Filos. Reconhecimento prático de nossa dependência de Deus.

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crenças e dos ritos correspondentes constitui uma religião.” (Durkheim, 2003, p. 24)

As coisas sagradas se definem a partir de sua relação com o profano. Assim, o

sagrado e o profano estão numa relação intensa e dinâmica, que se dá de forma

constante. O sagrado é aquilo que é separado e protegido do profano, que deve sempre

ser mantido distante do primeiro. Para o autor, as “crenças religiosas são representações

que exprimem a natureza das cosias sagradas e as relações que elas mantêm, seja entre

si, seja com as coisas profanas” (Durkheim, 2003, p. 24).

De acordo com Durkheim (1914, p. 3), a religião, além de ser um sistema de

idéias, também é um sistema de forças. O homem religioso é o homem que sente em si

um poder incomum, que não é sentido quando está ausente do estado religioso. A vida

religiosa implica na existência de forças muito particulares, já que, quando um homem

vivencia um sistema religioso, ele acredita participar de uma força que o domina, mas

que ao mesmo o apóia e o eleva. A característica fundamental da religião é a influência

dinâmica que ela exerce sobre as consciências. Assim, “explicar a religião é explicar

essa influência” (Durkheim, 1914, p. 4).

A perspectiva de Durkheim será adotada para orientar esta pesquisa. Dessa

maneira, se irá considerar a religião como a relação dinâmica entre o sagrado e o

profano. Mas isso, por si só, não define o conceito de religião. Além da relação entre o

sagrado e o profano, ela se define a partir da maneira como os homens se relacionam

com essas duas categorias e também como, a partir delas, estabelecem relações entre si.

A religião é um aspecto importante em qualquer sociedade por ser um fator capaz de

influenciar as ações dos homens, ainda mais numa sociedade em que a religião tem um

lugar tão central, como na Atenas Clássica. Ao estudar a impiedade, a pesquisa buscará

entender como a religião é capaz de influenciar as consciências dos homens de tal

maneira a se tornar um argumento persuasivo extremamente eficaz no contexto jurídico

ou político. O estudo da impiedade mostra que, por meio da religião, é possível

investigar os diferentes tipos de relações que os homens mantêm entre si.

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2.2.1 Religião grega como objeto de estudo

Antes de estudar a religião grega, deve-se compreender a maneira como os

gregos a entendiam. No vocabulário grego antigo não havia nenhuma palavra que

expressasse o sentido que habitualmente se tem por religião. Alguns termos e

expressões se aproximavam desse sentido. A primeira delas é o vago “as coisas dos

deuses” (ta tōn theōn) (Parker, 2007, p. 1070). Também era utilizada a expressão

“veneração aos deuses”, que designa, ao mesmo tempo, a prática dos cultos (Burket,

1993, p. 517). Para Benveniste (1995, p. 267), o termo que mais se aproxima para

nomear a religião, no grego, é thēskeíē, que é aplicado por Heródoto para a observação

das prescrições aos cultos. Esse termo é desconhecido do ático e reaparece no século I

d.C., para designar a religião como um conjunto de crenças e suas práticas.

Na Grécia Antiga, a esfera religiosa está nas instituições, nos comportamentos e

convicções que formam um conjunto organizado de práticas que se distingue de outras

(Vernant, 1994, p. 13). Em certa medida, tudo tem um elemento religioso, todos os atos

da vida cotidiana. O religioso está incluído no social e esse é penetrado pelo religioso

(Vernant, 2006, p. 8). Por serem as práticas religiosas diferenciadas de outras,

continuaremos adotando o termo religião para designar o conjunto de práticas e

sentimentos que se têm com relação ao sagrado.

Como objeto de reflexão, a religião se mostrou muito frutífera. Mas ao pensar a

religião do outro surge um problema. Como expressá-la? A melhor maneira de pensar

um sistema religioso é a partir de seus próprios termos. Para auxiliar nessa tarefa, pode-

se utilizar de meios comparativos, usando dois, ou mais, sistemas religiosos. De acordo

com Vernant (2006, p. 3), uma das tarefas do historiador da religião, ao analisar a

religião grega, é identificar suas especificidades, por meio de contrastes e analogias com

outros grandes sistemas religiosos, sejam eles politeístas ou monoteístas.

O método comparativo proposto por Vernant nos auxilia na conscientização de

que muitos dos conceitos utilizados para se entender os fenômenos religiosos são

derivados de uma tradição cristã. Para a maioria de nós, herdeiros do cristianismo, o

divino é representado por um Deus transcendental, criador do mundo, eterno, onisciente

e onipresente. Já para os gregos, os deuses não criaram o mundo. Eles foram também

criados, assim como os homens. Os deuses governam o kósmos por meio de uma

conquista de poder, que aconteceu de forma violenta. Urano foi sucedido pelo seu filho

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Crono que, por sua vez, foi destronado por Zeus. Diferentemente do Deus cristão que é

eterno, os deuses gregos são imortais. Eles não são oniscientes ou onipresentes.

Possuem poderes e áreas do conhecimento limitados. Por fim, os deuses poderiam ou

não intervir nos assuntos mundanos.

Os gregos viviam em um mundo povoado por potências divinas, com as quais

entravam em contato sem cessar. As relações com o divino eram renovadas por meio de

gestos e de comportamentos rituais estipulados pela tradição. A religião grega

expressava uma forma de articulação do mundo, estruturando o caos e fazendo-o

inteligível. Ela apresentava uma ordem cósmica garantida pela ordem divina, que

também, de maneira complexa, agrupava a ordem humana (Sourvinou-Inwood, 1991, p.

301).

Para Burkert (1993, p. 35-36), a religião grega se apresenta ao pesquisador sob

dupla forma: do ritual (prática) e do mito (representação). O rito é um programa de

ações que são sagradas, pois toda omissão ou interferência, desencadeia um temor e

implica determinadas sanções. Ele também estabelece a comunicação com o mundo

divino e faz vínculos que fundamentam e asseguram a solidariedade do grupo. Já o mito

é um complexo de narrativas, cuja verdade nunca está garantida.

Por ser a religião intimamente ligada aos aspectos políticos na Grécia Antiga, a

investigação das práticas e representações religiosas se dá em dois níveis que se

relacionam constantemente. O primeiro é o nível do cotidiano: as relações que as

pessoas e os grupos mantêm com a esfera divina. O segundo é o nível da pólis: como a

cidade, por meio de suas instâncias, se dirige aos deuses e tece seus laços com eles

(Zaidman, 2001, p. 10).

A piedade e a impiedade constituem objeto da história das religiões (Zaidman,

2001, p 12), pois essa não se interessa somente pelos ritos e deuses, mas também pelas

práticas dos fieis e os comportamentos que eles promovem nutridos por essas duas

noções. Por elas ditarem comportamentos que devem ser seguidos ou evitados no

interior da pólis, elas são objeto da história cultural (Zaidman, 2001, p. 13).

Essas noções possuem além de uma dimensão religiosa uma dimensão política e

social que são indissociáveis a elas, já que, na Atenas Clássica, o sentimento religioso é

o dominante na pólis (Gernet, 2001, p. 378), e também é o responsável pela constituição

da cidade (Gernet, 2001, p. 428). Além disso, a cidadania é a medida de toda

experiência humana, até mesmo com relação ao mundo divino (Zaidman, 2001, p. 13).

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Dessa maneira, para se estudar a religião grega o primeiro passo é entender, a

partir de seus próprios termos, as noções utilizadas para expressar as relações com o

divino. Palavras importantes do vocabulário religioso grego são hierós, que marca um

objeto pertencente aos deuses ou associado a eles de alguma maneira, hósios, hagnós e

eusébia (Burkert, p. 513; Parker, 2007, p. 1070). A noção mais importante para a nossa

pesquisa é a última. Antes de iniciarmos o estudo da piedade, será feito um breve

paralelo entre a piedade grega e a cristã, com o objetivo de explicitar ao leitor suas

diferenças.

2.2.2 Diferenças entre a piedade grega e cristã

A piedade e a impiedade na Atenas Clássica têm conotações bem diferentes das

quais nós costumeiramente evocamos ao pensar nessas palavras. Para a maioria de nós,

essas noções são imbuídas de preceitos cristãos. Assim, ao se pensar nessas palavras no

contexto grego deve-se remeter a noções e práticas que elas evocam para os gregos, e

como elas demonstram sua experiência social e religiosa.

Na missa católica, escutamos a expressão “Senhor tende piedade de nós”.

Segundo David Konstan (2001, p. 115), essa expressão, que é a tradução de kúrie

heléeson hemâs, aparece em Mateus 20. 30-31. Sua primeira aparição é na tradução dos

Salmos do Antigo Testamento, na frase “Senhor tende piedade de mim” (kúrie heléesón

me). O que é traduzido por piedade nessas expressões corresponde à palavra grega

héleos57, que evoca o sentido de compaixão, misericórdia ou clemência por alguém. Na

literatura grega, encontra-se uma definição para héleos na Retórica de Aristóteles. Na

parte do tratado na qual a compaixão58 aparece, o filósofo discute as diversas emoções

que o orador pode desejar provocar nos seus ouvintes durante o discurso. Para

Aristóteles, a compaixão é “certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou penoso,

e atinge quem não o merece, mal que poderia sofrer a própria pessoa ou um de seus

parentes [...]” (Aristóteles, Retórica, 1385b).

No sentimento de compaixão, a pessoa se imagina na situação do outro,

comovendo-se diante de seu sofrimento imerecido. No cristianismo, espera-se que Deus

57 No dicionário grego-português héleos é traduzido por piedade; clemência; compaixão. 58 A palavra compaixão será utilizada para referir a heleos e a piedade para eusébeia.

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se comova com os sofrimentos humanos e interceda favoravelmente, pois possui uma

infinita capacidade de compaixão, agindo sempre de forma correta e justa. Já os deuses

gregos não sentem compaixão pela condição humana e só o fazem em situações

excepcionais.

Em Homero, encontram-se exemplos da compaixão dos deuses. No canto XIX

da Ilíada, Zeus, ao ver Aquiles em jejum por causa da morte de Pátroclo, compadece-se

dele e envia Atena para oferecer ambrosia ao herói. No canto XXIV, Apolo e outros

deuses se compadecem do cadáver de Heitor ultrajado e esse sentimento novamente

toca alguns deuses quando Príamo suplica que Aquiles lhe devolva o corpo de seu filho,

para que receba as honras fúnebres devidas. Hera defende o direito de Aquiles de

ultrajar o corpo de Heitor, já que ele é filho de uma ninfa, Tétis, enquanto Heitor é filho

de um simples mortal, não merecendo, assim, a mesma consideração. O argumento da

deusa indica o motivo pelo qual os deuses não devem ter compaixão dos homens: eles

se encontram em um nível inferior. Como Aristóteles especifica, a compaixão é o

sentimento que se tem por alguém que é semelhante a nós e que possa sofrer algum mal.

Já que os deuses são superiores aos homens, não deveriam sentir compaixão por eles

(Konstan, 2001, p. 116).

Ainda que os deuses gregos pudessem sentir compaixão ocasionalmente, essa

não era sua característica essencial. Ao contrário, na tradição cristã e, até mesmo, na

judaica e na islâmica, a compaixão é parte integrante de Deus, sendo ela fundamental.

Assim, os gregos antigos, ao contrário dos cristãos, não esperam de seus deuses

compaixão. A misericórdia divina não é uma qualidade na qual os seres humanos

podem confiar. No geral, os personagens homéricos não pedem misericórdia aos deuses,

e, quando o fazem, reconhecem que o resultado de tal pedido é duvidoso (Konstan,

2001, p. 118). Assim, a compaixão dos deuses não é algo que se dá de fato. Os deuses

são indiferentes ao sofrimento humano, porque os homens são inferiores a eles

(Konstan, 2001, p. 119).

O que o cristianismo entende por piedade, um sentimento de comoção ao ver um

semelhante passando por um mal imerecido, se aproxima mais do termo grego héleos. A

noção de eusébeia, quando traduzida por piedade, se refere ao sentimento de respeito e

obrigação do fiel para com a divindade. Esse sentimento de respeito também está

presente na concepção cristã de piedade, mas no cristianismo o sentimento de comoção

se sobrepõe a ele. Percebe-se que essa diferenciação das concepções da noção de

piedade está fortemente relacionada com a concepção da imagem de deus. No

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cristianismo, por entender que Deus se comove com os sofrimentos humanos, o traço

mais marcante da piedade será o da compaixão. Já para gregos, pelo fato dos deuses não

se comoverem com os homens a piedade se relaciona com o cumprimento correto das

práticas religiosas estipuladas pela tradição. No vocabulário grego, o desenvolvimento

de dois termos distintos, eusébeia e héleos, demarca essa diferença, sendo o primeiro

voltado exclusivamente para expressar sentimentos relacionados com a esfera religiosa,

já o segundo pode ser utilizado em outros contextos, principalmente no que se refere à

relação entre os homens.

2.3 Discursos forenses como fonte histórica

Os discursos, sejam eles elaborados para o tribunal ou para a Assembléia, são

uma fonte rica de informações sobre os embates políticos; o funcionamento das cidades;

a relação entre os homens e deles com a cidade; a opinião pública acerca de questões de

cunho privado e público. Além disso, os discursos forenses são uma valiosa fonte para o

conhecimento do direito ático, permitindo uma reflexão mais frutífera do que as

inscrições, pois apresentam a lei aplicada em um determinado caso. Segundo Todd

(1990, p. 159), a importância dos oradores como fontes para a história econômica e

política é central e facilmente demonstrada, pois na grande parte dos discursos é

abundante o número de situações que retratam o cotidiano político, econômico e social

da pólis.

Como todas as fontes, o historiador, antes de iniciar o uso dos discursos em sua

pesquisa, deve indagar-se sobre sua procedência e os motivos que levaram à sua

elaboração e preservação ao longo do tempo. De maneira geral, os oradores áticos

tiveram seus discursos preservados por serem considerados instrumentos de

aprendizagem úteis ao homem público, pois exercitavam o domínio da palavra. O

aspecto estilístico foi o principal fator motivador da preservação dos discursos da

Antiguidade até a Modernidade (Todd, 1990, p. 165).

Do total dos discursos preservados, a maior parte pertence a oradores do

chamado “Cânon dos dez oradores áticos”59. Esse grupo é formado por Antifonte,

59 Segundo Worthington (1994, p. 244), os estudos contemporâneos sobre a retórica e a oratória se

concentram sobre os oradores, havendo poucos estudos recentes sobre o cânon especificamente.

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Andócides, Lísias, Isócrates, Iseu, Demóstenes, Ésquines, Hiperides, Licurgo e

Dimarco. O cânon foi estabelecido entre o III a.C e o II d.C, e os oradores foram

agrupados por estudiosos que os consideravam modelo de primazia estilística

(Worthington, 1994, p. 249). Também foram preservados os discursos de Apolodoro e

Demades, ao qual se atribui o discurso Sobre os doze anos, do qual nos restam somente

fragmentos (Worthington, 1994, p. 244).

Os oradores do cânon viveram em Atenas, durante os séculos V a.C. e IV a.C.,

sendo esse o mesmo período em que a cidade se transformou no centro de oratória e

retórica na Grécia (Worthington, 1994, p. 245). Dos dez oradores, sete eram atenienses

(Antifonte, Andócides, Isócrates, Ésquines, Licurgo, Demóstenes e Hiperides) e o

restante metecos (Lísias, Iseu e Dimarco) que se destacavam por sua habilidade retórica

e ofereciam seus serviços como logógrafos. Por isso, os discursos tratam de situações

pertinentes a acontecimentos e à legislação ateniense60. Os envolvidos nos discursos

pertencem, na maior parte dos casos, à elite61. Assim, ao utilizar os discursos como

fonte histórica, o pesquisador deve estar ciente de que eles retratam apenas a realidade

ateniense, e, dessa forma, as conclusões tiradas a partir deles não podem ser

precipitadamente expandidas a toda a Grécia Antiga (Todd, 1990, p. 168).

Outro questionamento que o historiador deve fazer antes de utilizar uma

determinada fonte é sobre sua finalidade e autoria. No caso dos discursos forenses seu

objetivo era vencer no tribunal. Para isso, os envolvidos no processo utilizavam

diferentes recursos em seus discursos, distorcendo alguns fatos e, até mesmo,

inventando algumas mentiras. Dentro dos limites da plausibilidade e do conhecimento

dos juízes, eles poderiam falar tudo aquilo que julgavam necessário para atingir seu

objetivo, sem medo de serem punidos. Não havia nenhum tipo de processo contra o

orador que contasse uma mentira durante seu discurso (ao contrário da testemunha).

Essa ausência de mecanismos para impossibilitar a mentira permitiu que eventos do

passado fossem utilizados como parte da estratégia persuasiva, mas sem a pretensão de

demonstrar a verdade sobre o ocorrido e sim de apresentá-lo como pretensamente

verdadeiro. Os oradores, por meio do uso dos eventos históricos, não pretendiam ser

narradores do passado, como Heródoto ou Tucídides. Atribuir esse sentido a eles é fazer

uma leitura equivocada de seus discursos, dando–lhes um objetivo que não é o seu. Os

60 De acordo com Todd (1990, p. 168), somente o discurso de Isócrates Aegineticus foi escrito para ser

pronunciado fora de um tribunal ateniense. 61 As exceções são os discursos de Demóstenes Contra Cálicles e Lísias Para o inválido (Todd, 1990, p.

168) .

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exemplos históricos62 presentes nos discursos remetem, na maioria dos casos, a um

passado idealizado, sendo uma referência e um exemplo de conduta.

Por apresentarem dados históricos equivocados, os oradores passaram a ser uma

fonte pouco confiável no final do século XIX e no início do século XX. Para Todd

(1990, p. 160), o declínio do prestígio dos oradores está relacionado com uma questão

educacional: a diminuição da importância dos oradores nos currículos. O autor mostra

que, durante a maior parte do século XIX, os oradores eram matéria de destaque nos

estudos da Antiguidade, principalmente, na Inglaterra e na Alemanha. Nesse período foi

produzida uma grande quantidade de comentários e de traduções, com destaque para

Lísias. A popularidade dos oradores se deve à importância da retórica, que deveria ser

desenvolvida por meio da educação. Se a retórica constituía a forma de educar-se para a

vida pública, os modelos seriam os oradores, com destaque para Demóstenes63. Isso

explica o grande interesse por sua figura, em especial acerca de sua atuação na vida

política de Atenas e de sua querela com Ésquines.

No final do século XIX, os oradores deixaram de ser considerados modelos e

passaram a ser olhados como “advogados desonestos” (Todd, 1990, p.162). A principal

razão para o declínio deles no currículo clássico está na dúvida sobre a validade de seu

uso para a educação, já que se tem uma diminuição geral na percepção da retórica como

forma correta de educar. Paralelamente a esse movimento, os oradores passam a ser

caracterizados como mentirosos e não confiáveis.

Apesar do declínio, os oradores nunca saíram do horizonte de análise dos

classicistas, que continuaram centrados no estudo, principalmente, das características

estilísticas. No século XX, com a mudança de perspectiva da análise das fontes

realizada a partir da escola dos Annales, os discursos forenses configuraram-se

novamente como uma rica fonte histórica. O foco não está mais centrado na veracidade

dos fatos narrados, mas busca-se entender a razão da escolha do argumento na estratégia

persuasiva do orador e o impacto que as palavras enunciadas causariam nos ouvintes.

Além das questões gerais que devem ser colocadas em relação a todas as fontes

(quem a produziu, qual era sua finalidade, por que foi preservada ao longo do tempo),

os discursos demandam questionamentos próprios como: seria o registro escrito igual ao

62 Nos discursos os eventos históricos podem ser divididos em três grupos: relativos à mitologia, a

Písistrato e às Guerras Médicas (Worthington, 1994, p. 110). 63 De acordo com Todd (1990, p. 165), o interesse histórico por Demóstenes também é o resultado de

uma herança Alexandrina, já que nesse período se alimentava um interesse estilístico e histórico por ele, enquanto em outros oradores, como por exemplo Lísias e Andócides, esse interesse era apenas estilístico.

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57

enunciado? Por que o discurso foi publicado? Por quem? Quais eram seus interesses na

publicação? Quanto tempo demorou para ser publicado? Quais eram as características

do público receptor? Quais as modificações feitas pelos oradores frente às

características do público ou do discurso pronunciado por seu adversário? Todas essas

perguntas são difíceis de serem respondidas devido ao pequeno número de informações

que se têm sobre o discurso, pois, na maioria das vezes, restou somente o registro

escrito e poucas referências provenientes de outras fontes sobre o desfecho ou as

condições em que ele foi pronunciado.

Sobre a publicação dos discursos, pode-se levantar as hipóteses de que eles

foram publicados pelo próprio orador ou por quem estava envolvido no processo, caso o

discurso tenha sido encomendado. Há também a possibilidade de alguns discursos

serem publicados para servirem de propaganda política. De acordo com Charles Darwin

Adams, no artigo Are the Political "Speeches" of Demosthenes to Be Regarded as

Political Pamphlets?, alguns discursos, como a Primeira, Segunda e Terceira Filípica e

Primeira, Segunda e Terceira Olintíca, de Demóstenes, serviriam de panfletos políticos

contra a expansão macedônica e foram publicados por grupos partidários das idéias do

orador, com o objetivo de criar um efeito imediato na “opinião pública” ateniense.

Sobre a enunciação dos discursos, sabe-se que alguns não foram pronunciados

no tribunal por serem exercícios retóricos, como o Contra Teomnesto de Lísias. Sobre

as diferenças entre o discurso enunciado e o discurso escrito, tem-se a questão da

improvisação, a possibilidade deles serem alterados várias vezes depois de enunciados,

com o intuito de corrigir aquilo que julgavam errado e, por fim, a hipótese dos discursos

serem alterados ao longo do tempo pelos copistas. Sobre o último aspecto, as edições

comentadas contêm estudos críticos que distinguem o que pode ter sido adicionado

posteriormente pelos copistas. Outras questões são relativas à autoria e à autencidade

dos discursos.

Um dos usos dos discursos forenses é o estudo do direito, já que eles são nossa

melhor fonte para o conhecimento das leis, seja através da citação direta ou indireta a

elas. As leis podem ser utilizadas como fontes históricas, uma vez que refletem a

maneira pela qual uma sociedade regula e percebe suas próprias relações internas

(Todd, 1990, p. 160).

Com relação às leis contidas nos discursos, antes de se generalizar sua aplicação

a toda a Grécia Antiga, deve-se considerar que cada pólis possuía características

próprias, com autonomia política e jurídica, legislando para si própria. A busca por uma

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unidade no direito grego é criticada por Finley no artigo O problema da unidade do

direito grego, presente no livro Uso e Abuso da História. Nele autor alerta para o risco

de generalizações advindo dessa busca pela unidade e dos equívocos surgidos da análise

do sistema jurídico grego com idéias contemporâneas acerca do direito.

Os discursos forenses são escritos a partir das premissas da retórica e têm como

objetivo principal conseguir a confiança dos juízes e persuadi-los para a obtenção de um

voto favorável. Assim, deve-se considerar o uso retórico da lei dentro do discurso. Ao

analisar a relação entre a lei e o discurso, não podemos pensá-las como partes

autônomas e separadas, mas integrantes, pois faz parte da estratégia persuasiva do

orador.

Dessa maneira, os discursos permitem o conhecimento de diversos aspectos da

vida ateniense, além do estudo acerca das leis. Por exemplo, através do uso da

impiedade no discurso Contra Mídias, pode-se refletir acerca da maneira como os

atenienses percebiam essa noção. Como todas as fontes, os discursos devem ser

submetidos à metodologia pertinente e trazem reflexões frutíferas se analisadas com o

devido questionamento. No caso dos discursos, deve-se ter sempre em mente que seu

objetivo é persuadir seus ouvintes e para isso os oradores utilizaram-se de diversos

meios.

2.4 Retórica e oratória

O desenvolvimento da retórica na Grécia Antiga64 está ligado diretamente aos

processos judiciários. O primeiro tratado sobre o método de persuasão com as palavras

de que se tem notícia é a Teoria Retórica de Córax e Tísias, que surge na Sicília por

volta de 465 a.C. Nesse momento, na região, tem-se a passagem da tirania para a

democracia. Com isso, amplia-se o número de processos judiciários, principalmente

envolvendo questões relativas à posse de terra (Barthes, 1975, p. 151). Assim, é no

gênero judiciário que se encontra a origem do desenvolvimento da arte retórica. Ela foi

64 Para mais informações sobre o surgimento e o desenvolvimento da retórica na Atenas Clássica e sua

relação com movimento sofista ver FONSECA, Isis Borges; A retórica na Grécia Antiga. O gênero judiciário. In: Lineide do Lago Salvador Mosca (org.). Retóricas de ontem e de hoje. 2º Edição Humanitas FFLCH/USP: São Paulo, 2001; PERNOT, Laurent. La rhétorique dans l’Antiquité. Paris: Libraire Generale Française, 2000, p. 24 -81.

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levada para Atenas pelos sofistas, onde se desenvolveu em larga escala, já que suas

instituições democráticas eram baseadas no falar bem (Fonseca, 2001, p. 101).

As instituições atenienses, devido ao seu funcionamento, favoreceram a prática

da retórica, e a tornaram uma atividade cotidiana, atingindo todos os membros

participantes da democracia, seja como produtores de discursos persuasivos, seja como

ouvintes, os quais os oradores deveriam convencer. Para os ouvintes, escutar e depois

deliberar ou julgar era uma atividade séria, cercada de ritos religiosos e de cuja ação

dependia o funcionamento da cidade (Pernot, 2000, p. 44). A retórica em Atenas se

desenvolveu como um meio de ação política (Pernot, 2000, p. 53), pois, nessa pólis, o

espaço da comunicação política se dava por meio do discurso. A retórica consegue

levar à ação, sendo esse o seu objetivo. Assim, a retórica, por meio da persuasão, é um

meio de ação política, e a última é a parte mais importante da arte oratória (Pernot,

2000, p. 52).

A persuasão ocupa um lugar de destaque no pensamento grego, e é representada

tanto como um atributo humano, quanto como uma divindade. A persuasão pela palavra

representa poderes ambíguos que podem conduzir à verdade e à justiça, ou à mentira e

à injustiça. Ao mesmo tempo, também indica a recusa do uso da violência e a busca da

boa ordem nas relações sociais, por meio da resolução do conflito com o uso da palavra.

A utilização adequada da palavra é um dos aspectos primordiais da democracia, que

tinha como princípio fundador a isegoría, o direito de todo cidadão tomar a palavra.

Dessa maneira, no processo democrático tem-se a persuasão pela palavra, seguida da

deliberação dos cidadãos reunidos e, por fim, a ação política.

A prática retórica é uma tékhne, uma arte. Ela é a arte da persuasão formada por

um conjunto de regras, passíveis de serem ensinadas, cuja execução permite convencer

os ouvintes. Esse conjunto de regras está teorizado na obra de Aristóteles, a Retórica.

Nela, o filósofo defende que a retórica é uma tékhne, um meio de produzir coisas cuja

origem está no agente criador e não no objeto criado. Segundo Fonseca (2001, p. 106),

em Aristóteles, a retórica é demonstrativa e racional e sua parte essencial é discernir os

argumentos persuasivos adequados. Ela é baseada, sobretudo, no uso das provas e dos

silogismos aproximativos, cujo objetivo é deixá-los inteligíveis ao público (Barthes,

1975, p. 157).

A retórica, além de ser a arte da persuasão, é a arte de ganhar, em outras

palavras, é a técnica que por meio do convencimento demonstra para os ouvintes que o

orador está com a razão (Veyne, 1984, p. 69). Para ganhar, era necessário convencer e

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para isso o orador precisava partir do pensamento compartilhado por seus ouvintes,

mesmo que essas idéias não fossem as dele. Assim, a partir do momento em que se

deseja convencer é preciso pensar nas idéias que são compartilhadas pelo público. O

bom orador conhece e se apóia nessas idéias para persuadir.

Segundo Barthes (1975, p. 179), a retórica possui quatro tipos de operações. A

primeira é relativa ao levantamento das provas; a segunda diz respeito à sua disposição.

Nessa operação, o orador deve convencer, por meio da lógica, e comover, por meio dos

sentimentos (Barthes, 1975, p. 184). A terceira se relaciona com a maneira como a

argumentação é exposta no discurso e a última operação é a encenação do discurso. Na

primeira operação, todas as provas já existem, basta encontrá-las (Barthes, 1975, p.

183). As provas não são fabricadas, o orador utiliza-se do senso comum e dos

sentimentos compartilhados por seus ouvintes para escolher as provas mais

convincentes.

Além de escolher os argumentos mais convincentes, o orador deve apresentar

características (éthos) que agradem ao público, sem que isso corresponda às suas

qualidades verdadeiras. O orador deve apresentar aquilo que o público espera que ele

seja, deve significar justamente aquilo que o outro deseja. A importância dessa

aproximação é ressaltada por Aristóteles ao afirmar que “o orador que parece possuir

todas essas qualidades [prudência, virtude, benevolência] tem a confiança dos ouvintes”

(Aristóteles, Retórica, 1377b). Nesse processo de identificação do orador com seu

público, a retórica faz um ajuste na distância entre as pessoas, fazendo com que o orador

fique mais próximo do público e seu adversário se afaste.

A relação entre retórica, verdade e justiça acontece no instante em que o

discurso é pronunciado. Não há verdades pré-estabelecidas e a persuasão não é

produzida a partir da verdade, mas sim da verossimilhança, sendo que ela tem um papel

essencial, pois o veredicto é determinado pela impressão que o orador causa nos

ouvintes. A persuasão dos ouvintes no tribunal ocorre por meio da apresentação de

provas e da empatia criada entre os juízes e o orador.

Uma das maneiras do orador criar empatia é a manipulação dos sentimentos que

o público sente por ele e/ou por seu adversário. Aristóteles elenca quatorze emoções que

podem ser utilizadas pelo orador. São elas: a calma, a cólera, o amor, o ódio, o temor, a

confiança, a vergonha, a impudência, o favor, a compaixão, a indignação, a inveja, a

emulação e o desprezo. O filósofo as nomeia como paixões, que são “todos aqueles

sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem variar seus julgamentos, e são

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seguidos de tristeza e prazer como a cólera, a piedade (héleos), o temor e todas as outras

paixões análogas, assim como seus contrários” (Aristóteles, Retórica, 1378a). Em sua

obra, ele demonstra como o orador deve utilizá-las adequadamente para criar

características transitórias, nele ou no seu adversário, favoráveis ao convencimento. As

paixões também operam na chave da verossimilhança e, a partir delas, o orador retira os

argumentos retóricos (Aristóteles, Retórica, 1388b).

Para convencer, o orador insiste na identificação entre ele e seu público e as

paixões são os parâmetros para medir essa identificação. A compaixão (héleos)

demonstra uma aproximação entre as partes, devido a um sofrimento imerecido.

Segundo Aristóteles, a compaixão é despertada por um temor de que algo de ruim

aconteça com alguém imerecidamente (Aristóteles, Retórica, 1385b). O filósofo define

o temor como um

“certo desgosto ou preocupação resultantes da suposição de um mal iminente ou danoso ou penoso, pois não se temem todos os males, por exemplo, o de que alguém se torne injusto ou de espírito obtuso, mas sim aqueles males que podem provocar grandes desgostos ou danos” (Aristóteles, Retórica, 1382b).

Esses males são enumerados por ele como “as mortes, os ultrajes corporais, os

maus tratos, a velhice, as doenças, a falta de alimento [...]” (Aristóteles, Retórica,

1386a).

No Contra Mídias, o argumento da compaixão é utilizado para provocar um

sentimento de aversão do público a Mídias, por meio de sua caracterização como uma

pessoa que nunca teve compaixão de ninguém. Em torno da metade do discurso,

Demóstenes alega que seu inimigo, desprovido de meios para demonstrar sua inocência

e para realizar subornos, apelará para o sentimento de compaixão dos juízes por meio da

exposição de seus filhos: “Então o que lhe resta? Por Zeus, lhe resta a compaixão

(heleēsai)! Apresentará, de fato, diante da corte, seus filhos, começará a chorar e pedirá

para ser absolvido por causa dos filhos: esse é o último subterfúgio que lhe resta”

(Demóstenes, Contra Mídias, 99)65. Mais adiante o orador alerta novamente os juízes

para essa artimanha de seu inimigo: “Também estou bem informado de que Mídias vai

se lamentar diante de vocês com seus filhos e dirá muitas palavras cheias de humildade,

65 “Che cosa, dunque, gli resta ancora? Per Zeus, gli resta la pietà! Presenterà, infatti, davanti alla corte, i

suoi figli, si metterà a piangere, e grazie a loro chiederà di essere assolto: questo è l’ultimo sotterfugio che gli rimane.”

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tentando, com suas lágrimas, parecer o máximo possível digno da compaixão de vocês”

(Demóstenes, Contra Mídias, 186)66.

Com isso, o orador espera que os juízes não nutram nenhum sentimento de

compaixão por Mídias. Para reforçar isso, o orador o apresenta como uma pessoa que

nunca teve compaixão por ninguém: “Não, quem não sente compaixão por ninguém não

é justo que a obtenha e nem é justo que obtenham o perdão aqueles que nunca

perdoaram” (Demóstenes, Contra Mídias, 100)67. Para o orador, as ações de seu inimigo

são desprezíveis e merecedoras do ódio e do voto condenatório dos juízes: “Mas a você

[Mídias] não é devida absolutamente nenhuma compaixão, mas sim ódio, aversão e

desprezo: as suas ações são merecedoras desses sentimentos” (Demóstenes, Contra

Mídias, 196) 68.

Para complementar, o orador afirma ser injusto que uma pessoa que nunca

exerceu a compaixão receba o mesmo tratamento de quem sempre a exerceu:

“[...] suponhamos, por exemplo, que eu faça parte daquela categoria dos homens moderados com todos, sensíveis à compaixão e benfeitores de muitos; todos então, com relação a homens desse gênero, deveriam se comportar do mesmo modo, quando se apresenta a ocasião ou a necessidade. Suponhamos, no entanto, que existisse outro homem pertencente à categoria dos violentos que não sinta compaixão por ninguém, que, aliás, trate os outros como se não fossem seres humanos. É justo, então, nesse caso, que ele tenha, da parte de cada um de vocês, um tratamento análogo?” (Demóstenes, Contra Mídias, 101) 69.

No discurso, Demóstenes apresenta a compaixão como um privilégio que

somente os bons cidadãos têm direito de obter:

“Você talvez tenha a pretensão de que esses juízes, depois de que os enlameou publicamente, tenham compaixão de seus filhos e de você [...] Você, que na sua vida é manifestadamente o mais arrogante de

66 “Sono anche ben informato che Midia si lamenterà davanti a voi con i suoi figli e dirá molte parole

piene di umiltà, cercando con le sue lacrime di rendersi il più possibile degno della vostra compassione.”

67 “No, chi non prova pietà per nessuno, non è giusto che la ottenga, ne è giusto che ottengano il perdono coloro che non perdonano mai.”

68 “Ma a te non è dovuta assolutamente nessuna pietà, bensì ódio, avversione e sdegno: le tue azioni sono meritevoli di questi sentimenti.”

69 “[...] supponiamo, ad esempio, che io faccia parte di quella categoria di uomini moderati verso tutti, sensibili alla pietà e benefattori di molti; tutti allora, verso uomini di questo genere, dovrebbero comportarsi allo stesso modo, se si presenta l’ocassione o la necessita. Supponiamo invece che ci sai un altro uomo appartenente alla categoria dei violenti, che no sente pietà per nessuno, che anzi tratta gli altri come se non fossero esseri umani, è giusto, allora, in questo caso, che egli subisca da parte di ciascuno un trattamento analogo.”

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todos, [...] você acredita, por singular privilégio, de encontrar, repente, compaixão da parte daqueles que o julgam?” (Demóstenes, Contra Mídias, 195)70.

Assim, o objetivo do discurso é obter o voto favorável e para isso se utiliza da

persuasão. Os sentimentos, as paixões, despertados para esse fim revelam os tipos de

conduta que os cidadãos esperavam de seus pares e refletem as representações que a

pessoa faz do outro. Em Aristóteles, elas servem para classificar os homens e para o

orador descobrir se o que sentem é util para persuadi-los.

70 “Tu hai forse la pretesa che questi giudici, dopo che tu li hai pubblicamente infangati, abbiano pietà

dei tuoi figli e di te [...] Tu, che nella tua vita sei così manifestamente il più arrogante di tutti, [...] tu credi, per singolare privilegio, di trovare subito compassione da parte di coloro che ti giudicano?”

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CAPÍTULO 3

Formas de expressar o religioso: a piedade e a impiedade na Grécia

Antiga

Uma das princiapis palavras que expressava o sentimento religioso na Grécia

Antiga era a eusébeia, a piedade. Além de indicar o sentimento que une o fiel aos

deuses, ela marcava uma série de obrigações que deveriam ser cumpridas em relação

aos deuses, aos outros homens e à cidade. A ausência ou a deturpação desse sentimento

era expressa pela palavra asébeia, a impiedade. Antes de iniciarmos o percurso para a

compreensão dessas duas noções, a partir do eixo da pólis, isto é, como eram expressas

em atos na relação entre as pessoas, será elaborada uma caracterização dos elementos

fundamentais da religião grega.

3.1 Religião Grega: breve caracterização geral

A religião na Grécia Antiga era politeísta. O conceito de politeísmo, segundo

Burkert, é que várias divindades são adoradas no mesmo local, ao mesmo tempo, pela

mesma comunidade e pela mesma pessoa (1993, p. 421). Os gregos acreditavam e

cultuavam mais de um tipo de poder sobrenatural, do qual se destacavam os deuses, os

daímones e os heróis (Pantel; Zaidman, 2006, p. 176).

Os deuses diferenciavam-se de acordo com a especificidade do domínio de seu

poder. Esse poder abrangia uma multiplicidade de setores, que era expressa pela

pluralidade de epítetos que acompanhavam o nome da divindade. Cada epíteto

ressaltava uma faceta determinada do poder que se desejava invocar. Por exemplo, Zeus

sob o epíteto de Polieús, e aliado a Atena Poliás, tornava-se o patrono de Atenas. Já no

domínio do ôikos, como Zeus Herkeîos, Zeus da Clausura, delimitava o território onde

exercia o título de chefe da família e também protegia a casa dos animais ferozes e dos

ladrões; como Klários, loteador, delimitava as fronteiras de seu domínio no ôikos; como

Xénios, recebia e assegurava a estadia dos hóspedes e dos suplicantes, acolhendo-os no

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altar da família, sem integrá-los inteiramente a ele; como Ctésio, protetor das posses, era

guardião das riquezas da casa. Zeus também poderia ser Chthónios, Katachthónios,

Meilíchios, um Zeus escuro e subterrâneo, presente no interior da terra e que levava aos

mortos riquezas ou vinganças. Com relação aos fenômenos naturais, Zeus era Ómbrios,

Hyétios, Ikmaîos, Zeus da chuva; Oúrios, Euánemos, dos ventos e dos bons ventos;

Astrapaîos, Brontaîos, Keraúnios, do raio, fulminante ou trovejante. Apesar de todos os

variados epítetos que indicavam uma multiplicidade de funções das divindades, as

figuras divinas conservavam uma unidade representativa, uma identidade própria,

proveniente da narrativa mítica que as identificava como um personagem.

A noção de divindade individualizada não impossibilitava pensar em poderes

divinos coletivos, que poderiam ser indissociáveis ou não (Zaidman; Pantel, 2006, p.

177). As Erínias (Tisífone, Megera, Alecto), as Graças (Eufrosina, Aglae e Tália) e as

Parcas (Cloto, Láquesis e Átropos) eram grupos de três divindades chamadas tanto no

seu epíteto coletivo, quanto individualmente. Outros grupos de divindades que

poderiam ser invocados coletivamente eram as musas e as ninfas.

Os deuses eram potências que encarnavam todos os valores importantes para os

gregos: beleza, força, juventude constante e imortalidade. A perfeição dos deuses se

prolongava no mundo dos homens por meio das manifestações de ordem e beleza. A

representação antropomórfica das divindades, registrada na iconografia e na literatura,

não era baseada na crença de que os deuses se assemelhavam aos homens. Eles

assumiam a forma humana, ou de animais, já que essa era a única maneira dos homens

enxergá-los.

As narrativas míticas oferecem exemplos da transfiguração dos deuses para

entrar em contato com os homens. No mito do rapto de Europa, Zeus, encantado com a

beleza da jovem, elabora uma artimanha para seduzi-la e não atrair a fúria de sua

ciumenta esposa Hera. Ele, na forma de um touro branco, emerge do mar até a praia

onde a jovem se encontra. Maravilhada com a mansidão e a graciosidade do animal, ela

sobe em seu dorso. Nesse momento, o touro corre em direção ao mar e a leva até a ilha

de Creta. No mito de nascimento de Dioniso, Zeus novamente se enamora com uma

mortal. Ele se apaixona pela bela Selene e, transfigurado em homem, mantém uma

relação amorosa com a jovem, engravidando-a. Ele promete realizar qualquer desejo de

sua amante. Hera descobre a traição e, de maneira ardilosa, convence Selene a pedir a

Zeus para mostrar sua verdadeira forma. Zeus, ao ouvir seu pedido, tenta dissuadi-la,

mas não consegue. Então, aparece na sua verdadeira forma, uma luz muito intensa, que

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a transforma em cinzas. Zeus consegue salvar o bebê que ela esperava e o coloca em sua

coxa para terminar a gestação. E, assim, nasce Dioniso.

Os gregos não acreditavam que os deuses eram criadores do kósmos, mas parte

integrante dele, da mesma forma que os homens. Cada um, homens e deuses, ocupava o

espaço que lhe era devido no mundo. Elementos da natureza, como montanhas, rios, sol

e a lua, poderiam ser percebidos como divinos, ou mesmo, nomeados como um dos

deuses do politeísmo. Por exemplo, o sol era considerado Apolo e a lua, sua irmã

Ártemis. As divindades não estavam longe dos homens e nem eram inacessíveis. O

convívio com elas ocorria em todos os momentos da vida privada e pública por meio

dos diversos rituais e libações que a pessoa deveria fazer ao longo do dia. Assim, as

práticas cotidianas colocavam a pessoa em contato com os deuses, cujos cultos eram

inseparáveis das atividades individuais e coletivas. O contato com o sagrado era

constante devido à relação de familiaridade com os deuses. Nesse sentido, a pureza não

tinha que ser adquirida ou obtida, ela constituía o estado normal da pessoa.

A crença nos deuses não se dava por intermédio de uma revelação e não tinha

caráter doutrinal (Vegetti, 1994, p. 232; Vernant, 2006, p. 7). Não havia nada a partir do

divino que fundamentasse e regulasse a crença religiosa. Acreditava-se que o mundo

divino era incognoscível e por isso não se pretendia ter um conhecimento dele (Vernant,

2006, p. 6). Dessa forma, crer nos deuses não se colocava em um plano intelectual, o

que possibilitou a liberdade de se desenvolver uma reflexão à margem da religião que

buscava entender o mundo em termos diferentes daqueles propostos pelos mitos. Assim,

tem-se o desenvolvimento da filosofia no âmbito das cidades. Apesar dessa liberdade,

houve conflitos entre a filosofia e a pólis, como demonstram os processos de impiedade

contra os filósofos nos séculos V a.C. e IV a.C., do qual trataremos adiante.

A religião não era organizada em instituições. A adesão a ela se baseava no uso

e no respeito aos costumes ancestrais, os nómoi. O culto não precisava de outra

justificativa além de sua própria existência: “desde que passou a ser praticado, provou

ser necessário” (Vernant, 2006, p. 7). A legitimidade da religião encontrava-se na

tradição e é ela, igualmente, a responsável por sua manutenção de geração em geração.

A religiosidade consistia na observância dos cultos, que demonstravam o

respeito, a veneração e a deferência dos homens pela divindade. Eles também

celebravam e asseguravam uma boa relação entre a esfera humana e a divina. A religião

indicava um modelo de comportamento imposto por um “dever fazer” (Burkert, 1993,

p. 476). Deve-se honrar os deuses, os heróis e os mortos por meio de libações e cultos e,

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da mesma forma, deve-se honrar os pais e a cidade. Esse “dever fazer” oferece o código

básico de conduta que garante a continuidade, ao longo do tempo, do grupo constituído.

A experiência religiosa situa-se em dois planos intimamente relacionados. O

primeiro plano corresponde à ritualidade cotidiana, e o segundo, ao conjunto de relatos

míticos que ordenam o kósmos (Vegetti, 1994, p. 249). A observância do ritual exigia,

em certa medida, a crença nos mitos. Essa experiência era imersa na vida social: o

religioso está em tudo. A religiosidade se expressava diferentemente em cada aspecto da

vida da pessoa. Ela, por sua vez, se definia por sua participação em diferentes grupos:

família, fratria, dêmos e associações, seja ela de qualquer natureza. A relação entre a

pessoa e a religião se dava de forma diferente em cada um desses grupos. Assim, pode-

se dizer que a religiosidade grega era divida em várias facetas, cada uma relacionada

com uma esfera da vida da pessoa: religião agrária, religião familiar ou doméstica,

religião da cidade ou cívica, religião dos mistérios, religião sectária e religião pan-

helênica. Essa divisão não indica uma separação rígida entre essas esferas, já que esses

tipos coexistiam e se relacionavam dentro da mesma pessoa. Ela é mais didática e

auxilia na compreensão do complexo fenômeno da religiosidade grega. Apesar de toda

literatura crítica sobre o uso dessa terminologia71, ela será adotada para explicar em

linhas gerais72 as diferentes formas de vivenciar o religioso, com o intuito de fornecer

um quadro sucinto para situar o leitor, antes de tratar especificamente da piedade e da

impiedade.

A religião agrária possuía os elementos mais antigos da religião grega e

guardava alguns traços da religião pré-helênica (Vian, 1994, p. 504). Os cultos agrários

tinham basicamente dois objetivos: apotropaico e promover a fecundidade, por meio do

culto a Deméter e Dioniso, das plantas, dos animais e dos homens. Eram celebrados em

festas ligadas ao ciclo agrário e às estações do ano, para agradecer e garantir boas

colheitas futuras.

71 Claude Mossé (2004, p. 250) ressalta que a expressão “religião doméstica” deve ser usada de modo

prudente, pois os atos da vida privada estavam ligados à comunidade. 72 Para mais informações sobre os diferentes tipos de religiosidade grega ver: VERNANT, Jean-Pierre.

Mito e religião na Grécia Antiga. Trad. Joana Angélica D’Avila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006. p. 69-88; GERNET, Louis; BOULANGER, André. Le génie grec dans la religion. Paris: Éditions Albin Michel, 1987; ZAIDMAN, Louise Bruit; PANTEL, Pauline Schmitt. Religion in the Ancient Greek City. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 112 -140; VIAN, Francis. La religion grecque à l’époque archaïque et classique. In: Histoire des religions. I. Encyclopédie de la Pléiade. Direction Henri- Charles Puech. Ligugé: Aubin, 1994.

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A religião familiar era centrada no culto a Héstia, o fogo que garantia a

estabilidade e a vida no ôikos, e aos ancestrais mortos. No interior da família se

perpetuava uma vida religiosa rica e ativa, que celebrava rituais importantes nos

nascimentos, casamentos e falecimentos. Esses eventos eram significativos, pois

marcavam períodos de transição e modificação do ôikos, devido à entrada ou saída de

membros que o constituía. Dessa forma, os cultos familiares asseguravam a organização

da família. Por ser ela um núcleo importante para a conservação das tradições,

especialmente as religiosas, as cidades realizavam e incentivam alguns cultos familiares,

seja pelo controle direto, seja pelas fratrias. Assim, a pólis criou medidas para respeitar

o culto aos mortos e se cumprir a obrigação de enterrar os parentes. Em Atenas, havia

leis que regulamentavam o funeral, que deveria ser no dia seguinte à exposição do

morto na casa e não poderia ser posterior ao nascer do sol do terceiro dia da morte.

Fazia-se uma procissão com os homens à frente, seguidos pelas mulheres; nenhuma

mulher que não fosse membro da família poderia participar, exceto aquelas com mais de

sessenta anos. O sacrifício do boi era proibido e havia restrições para certos tipos de

roupas, comidas e bebidas durante o funeral (MacDowell, 1986, p. 109).

A obrigação de enterrar os parentes e fazer os rituais ao morto é a norma que

conduz Antígona, na peça de Sófocles de mesmo nome, e a leva desobedecer à lei

estipulada pelo seu tio, e tirano, Creonte. Ele determina que o corpo de Polinice, irmão

da personagem, ficasse insepulto, já que ele morreu tentando invadir a cidade. Antígona

se encontra no embate entre respeitar as leis da cidade e a tradição. Ela está ciente de

que qualquer caminho que seguir a fará ser louvada por alguns e desprezada por outros,

pois tanto a infração de uma lei, quanto o não sepultamento dos parentes são

condenáveis. A personagem trágica opta em realizar o sepultamento do irmão e justifica

sua escolha no dever de cuidar dos mortos da família, principalmente quando esses são

os únicos parentes. Antígona, por já não ter nenhum irmão e diante da impossibilidade

de ter outros, pois seus pais estão mortos, se coloca na obrigação de fazer as honras

fúnebres a Polinice:

“Se eu fosse mãe e vítima fosse um de meus filhos, se meu marido se corrompesse morto, eu não teria realizado este trabalho contra a determinação dos cidadãos. Obediente a que norma digo isso? Morrendo meu esposo, poderia ter outro, Filhos outro homem, perdendo um poderia dar-me, Mas irmão, visto que pai e mãe foram recolhidos à Morte, Jamais será possível que outro floresça.

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Esta é a lei que me orienta” (Sófocles, Antígona, 905-913)

A religião era integrada à pólis. A maior parte das atividades e das despesas da

cidade destinava-se à religião: construção de templos, organização de festivais,

preparação do calendário religioso e a realização dos sacrifícios e ritos que

acompanhavam os atos públicos. A pólis assumia a responsabilidade e a autoridade de

manter o sistema religioso, mediando as relações entre o humano e o divino. Ela era

responsável por articular um panteão de deuses a serem venerados, escolhendo as

divindades que seriam protetoras e patronas. Estabelecia o sistema de cultos e festas a

serem seguidos de acordo com o calendário sagrado, também estipulado por ela. Todos

os atos importantes da vida cívica incluíam sacrifícios aos deuses protetores da cidade e

as festas em sua honra marcavam o calendário cívico73. Assim, da pólis provinha a base

fundamental na qual a religião grega operava (Sourvinou-Inwood, 1991, p. 295).

A religião cívica era antes de tudo ritualística. O que se exigia dos cidadãos era o

respeito aos ritos. A observância da religião olímpica e de sua ritualidade era sentida

pelos habitantes como associada à própria existência da pólis e de sua ordem política.

Acreditar nos deuses significava não somente um pacto espiritual entre a pessoa e a

divindade, mas uma sensação imediata de pertencimento à comunidade política. Dessa

maneira, um dos requisitos para ser um bom cidadão era participar ativamente dos

cultos da cidade.

A cidade era uma comunidade sacrificial (Burkert, 1993, p. 305). O momento

mais importante do sacrifício era a oferta votiva à divindade, seguido do banquete em

ambiente festivo. Na origem mítica, o sacrifício tem início no ardil de Prometeu para

favorecer os homens. Quando Zeus torna-se senhor dos céus, incumbe ao titã dividir o

que é próprio dos deuses e dos homens. Nesse momento, homens e deuses vivem e

festejam juntos, compartilhando a mesma mesa. Os homens não conheciam a morte, a

velhice, o trabalho, a fadiga e as mulheres. Prometeu rebela-se contra o poder do deus e

tenta enganá-lo, separando as partes comestíveis do boi. Ele as coloca sob o couro e o

estômago, dando ao monte de carne uma aparência repulsiva. Já as partes não

comestíveis põe sob uma gordura apetitosa. As duas pilhas são apresentadas a Zeus, que

compreende a armadilha, e escolhe a pilha coberta de gordura. Ao comerem a carne, os

homens são castigados e, a partir desse momento, terão a necessidade do alimento. Para

73 Segundo Vegetti (1994, p. 235), o calendário grego era um conjunto das regras rituais, e os nomes dos

meses se associavam sempre com as cerimônias do culto que ocorriam no período.

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completar sua vingança, Zeus retira o fogo de origem celeste dos homens e produz a

primeira mulher, Pandora, que traz consigo todos os males ao homem. Em favor dos

humanos, o titã rouba uma faísca do fogo celeste e o entrega para eles. Assim, os

homens tornam-se os únicos na terra a dominarem o fogo, o que possibilita alcançar

avanços técnicos.

O sacrifício possibilitava a comunicação dos homens com o divino. Ele

relembrava o mito de Prometeu e a impossibilidade da comensalidade entre homens e

deuses. A cada um cabe um regime alimentar próprio, demarcando a extrema distância

que separa os imortais dos mortais: para os primeiros, fumos e aromas; para os

segundos a carne, associada à mortalidade. O sacrifício, também, era o momento em

que se tinha a dupla diferenciação do homem, tanto com relação aos deuses, quanto com

relação aos animais, explicitado pelo domínio do fogo (Vernant, 2006, p. 66).

Segundo Burkert (1993, p. 490), um dos fatores que evidenciavam o poder da

pólis de mediar as relações humanas era o controle que ela exercia sobre os cultos. Na

cidade de Atenas, durante o século VI a.C., houve um esforço dos tiranos em integrar o

Dionisismo à cidade. Esse esforço é marcado pela construção de lugares sagrados

dedicados a Dioniso (Dabdab Trabulsi, 2004, p. 96). Também nesse período, ocorreu

um favorecimento dos cultos olímpicos e políades, já que eles reforçavam a unidade da

pólis, contra os particularismos da aristocracia. Para Dabdab Trabulsi (2004, p. 93), as

mudanças no campo religioso permitiam ao tirano intervir nas práticas judiciárias para

torná-las menos favoráveis à aristocracia.

Os cultos realizados na cidade eram importantes para o exercício da piedade.

Neles, a pessoa tinha contato com a esfera sagrada, o que reforçava seu sentimento de

envolvimento com o religioso. Ao mesmo tempo, também reforçava o sentimento de

pertencimento à comunidade política, pois eram neles que a pessoa desenvolvia uma

relação muito estreita com o grupo social. Nesses encontros, eram reafirmados os

comportamentos considerados modelos de boa conduta pela coletividade, dentre eles, a

piedade. Grande parte dos cultos era realizada nos templos, construções que abrigavam

a estátua da divindade cultuada. O importante não era a estrutura arquitetônica do

templo, mas a estátua e o altar, onde se realizavam os sacrifícios. Os templos eram de

propriedade da pólis e abertos a todos os cidadãos. O grupo de pessoa que se reunia

neles para as práticas rituais era o mesmo que o do corpo cívico. Essa identificação

reforçava a coesão da cidade, pois reafirmava os laços que uniam os cidadãos,

expressados pela relação comum deles com a divindade.

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Para Sourvinou-Inwood, a religião era a “faceta da ideologia da pólis” (1991,

p.305) que deveria ser mais respeitada pelos cidadãos. Qualquer sinal de desrespeito a

religião era indicativo de deslealdade à cidade. Para a autora, a pólis era imbuída de

uma mentalidade em que a pessoa era percebida como participante do ritual, que era

considerado uma atividade em nome da cidade. A cidade, por sua vez, era a responsável

por mediar e garantir a execução dos cultos e a participação dos cidadãos neles. Cada

sinal de desacato aos cultos tornava toda a cidade culpada de impiedade (Sourvinou-

Inwood, 1991, p. 399).

O sentimento de pertencimento a uma mesma religião, com uma tradição

mitológica comum, bem como o fato de se expressarem pela mesma língua, terem o

mesmo sangue, uma ancestralidade em comum e o mesmo modo de vida eram critérios

utilizados pelos gregos para se considerarem o mesmo povo, e se distinguirem dos

outros (Sourvinou-Inwood, 1991, p. 300). Cada pólis era um sistema religioso que

integrava um sistema mais complexo, formado por todas as cidades do mundo grego.

A pólis interagia com o sistema religioso de outras cidades e com a dimensão

religiosa pan-helênica (Sourvinou-Inwood, 1991, p. 295). Assim, além dos diferentes

cultos praticado em cada cidade pelos seus cidadãos, havia aqueles em que a

participação era aberta a todos os gregos, os chamados cultos pan-helênicos.

Esses cultos aconteciam em santuários, cuja influência e área de atuação

excediam os limites de sua pólis, como os santuários de Olímpia, Delfos, Dodona e

Delos. Esses santuários tinham uma estrutura arquitetônica elaborada, com várias

construções próximas ao templo, que guardavam os tesouros doados à divindade ou

acomodavam os numerosos visitantes (Zaidman; Pantel, 2006, p. 113). Perto do templo,

também havia espaços dedicados às competições esportivas. As atividades dos

santuários eram abertas somente aos gregos mas, depois da conquista romana, também

passou admitir os não gregos. A aglomeração de gregos de diferentes regiões nesses

locais era facilitada pela trégua sagrada. Durante o período festivo, as hostilidades

militares entre as cidades eram suspensas. As cidades mantinham relações com os

principais santuários pan-helênicos por intermédio de embaixadas sagradas, envio de

tesouros e de representantes para as grandes festas.

Nos santuários de Olímpia, Nemeia, Delfos e Corinto ocorriam os jogos

esportivos em intervalos regulares74, com a participação de atletas de todas as partes da

74 Os jogos em Olímpia ocorriam a cada quatro anos no verão e duravam seis dias. Os jogos em Delfos

também tinham o intervalo de quatro anos e se celebravam no terceiro ano do intervalo dos jogos

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Grécia, para homenagear Zeus (Olímpia e Némea), Apolo (Delfos) e Poseidon

(Corinto). Nas ocasiões dos jogos, também havia concursos de música, poesia e

eloqüência. Outra atividade, que reunia os gregos nos santuários pan-helênicos, era a

consulta aos oráculos. A adivinhação tinha um papel importante na Grécia e recorria-se

a ela para obter uma resposta para questões pessoais ou políticas.

Na religião grega, o domínio dos mortos pertencia ao deus Hades, que não era

cultuado e não possuía templos. Diante da experiência da morte e dos sentimentos de

medo e terror que ela provoca, algumas pessoas necessitavam de uma explicação que os

cultos familiares e cívicos não conseguiam promover. Dessa necessidade, surgiram as

religiões de mistérios (Vegetti, 1994, p. 244). O termo mystērion deriva de mystēs,

iniciado nos mistérios. Ele exprime o secretismo que envolve esses cultos e a obrigação

que tinha seus participantes de manter o silêncio sobre o que acontecia neles.

As religiões de mistérios, seitas e associações religiosas agrupavam-se em torno

de três divindades: Apolo, Dioniso e Deméter. Elas expressavam uma religiosidade que

era marginal à pólis, por seu caráter iniciático e modo de recrutamento aberto a todos,

baseados não no estatuto social, sexo, proveniência de cidade ou idade da pessoa, mas

sim, na sua opção. Com isso, estrangeiros, escravos e mulheres poderiam ter outra

inserção na vida religiosa75. A princípio, esses cultos eram mais abertos do que os

cívicos, já que a esfera dos iniciados potenciais e efetivos superava os limites da

cidadania (Vegetti, 1994, p. 244). Esses cultos se dirigiam mais à pessoa, enquanto tal,

do que ao cidadão, e penetravam num domínio da experiência religiosa mais profunda,

pois buscavam dar respostas às angústias mais íntimas.

Mesmo sendo essas pessoas marginais, a pólis poderia agregá-las, como

aconteceu em Atenas com os Mistérios de Elêusis76, que celebravam Deméter e Core-

Perséfone. A celebração dos Mistérios era de responsabilidade do arconte-rei.

Aconteciam no mesmo período das festas cívicas e eram precedidos de uma trégua

sagrada estipulada pela cidade.

Os Mistérios constituíam um complexo conjunto de cerimônias, divididas em

várias etapas, localizadas em diferentes locais e que ocorriam duas vezes ao ano. Era

aberto a todos, exceto para aqueles que não falavam grego ou estavam marcados por

olímpicos. Em Nemeia e Corinto, os jogos ocorriam na primavera, em intervalos bienais, intercalando-se com os jogos de Delfos e de Olímpia.

75 Os escravos participavam da religião por intermédio dos cultos feitos pela família à qual pertenciam, e em algumas festas, como nas Antestérias, em Atenas. Já os estrangeiros poderiam participar dos sacrifícios por meio de um representante.

76 Os Mistérios de Elêusis serão referidos no texto apenas como Mistérios.

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alguma mácula. Os candidatos à iniciação se preparavam por um ano com vários rituais,

abstinências e retiros. Depois, seguiam para o primeiro estágio, chamado de Pequenos

Mistérios, que ocorria na primavera, no mês de Antestérion (fevereiro-março), em Agra,

próximo à região central de Atenas. Os Pequenos Mistérios eram presididos pelo

arconte-rei e assistidos pelo corpo sacerdotal de Elêusis, composto pelos membros de

duas famílias aristocráticas locais, Eumólpidas e Cerices. O ponto culminante do culto

era o sacrifício às deusas. Seis meses depois, no mês de Boedrómion, celebravam-se os

Grandes Mistérios, que duravam dez dias. Neles havia uma procissão de Atenas até

Elêusis, da qual todos poderiam participar. As etapas que o candidato deveria percorrer

para atingir a iniciação não eram secretas. Somente quando eles chegavam e entravam

no santuário em Elêusis, o segredo absoluto se impunha (Vernant, 2006, p. 73).

Pelas informações que chegaram até nós acerca dos Mistérios, aparentemente,

eles não constituíam uma instrução de natureza dogmática. Não provocavam nenhuma

mudança na aparência física ou na rotina do iniciado. Assim, os Mistérios não geravam

um tipo de homem ou uma conduta estranha à pólis, já que os iniciados não viviam e

nem desejavam viver uma existência diferente da de seus concidadãos. Depois de

participar da iniciação, eles retornavam às suas atividades normais (Vernant, 2006, p.

74). Os Mistérios provocavam um processo de transformação interna, fundado na

experiência emocional do encontro com as divindades. Depois de participar dos

Mistérios, o iniciado sentia-se transformado por dentro, pois passava a acreditar que

possuía um relacionamento mais forte com as deusas, o que lhe proporcionaria mais

sorte do que às outras pessoas, seja nessa vida seja em outra. Para o adepto, cada etapa

dos Mistérios significava um passo em direção à pureza religiosa, o que a diferenciava

dos outros, e lhe daria um além vida feliz.

Os Mistérios evidenciam a tentativa de um contato mais direto, mais íntimo,

entre a pessoa e a divindade. Com esse contato, buscava-se uma condição no além vida

melhor do que as figuras amorfas que vagam pelo Hades, como narra Homero no canto

11 da Odisséia, quando Ulisses vai até o mundo dos mortos em busca dos conselhos do

falecido adivinho Tirésias. Assim, os Mistérios ofereciam uma expectativa de

participação num grupo de eleitos que teria na morte uma condição melhor, sem romper

com os preceitos religiosos tradicionais acerca do Hades. Eles atingem, portanto, uma

esfera da experiência religiosa e dos problemas psicológicos que os cultos cívicos não

são capazes de abarcar, e funcionam como um complemento à religião da cidade, não

provocando nenhum conflito entre o cidadão e o iniciado (Vegetti, 2004, p. 245).

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Dessa expectativa de uma vida mais feliz, que gerou, segundo Vernant (2006, p.

69), um “misticismo grego”, surgiram correntes sectárias, e algumas misturavam

religiosidade e filosofia. Nessas correntes, a regra e a disciplina garantiam a pureza dos

membros, e confirmavam as diferenças deles em relação ao restante da população, que,

para eles, tinham práticas profanas e impuras. Dentre essas correntes, citaremos duas: o

pitagorismo e o orfismo.

O Pitagorismo acreditava na reencarnação da alma, que é um princípio imortal

de origem astral. Ela enfrentava vários ciclos de reencarnação em corpos de condições

superiores ou inferiores, dependendo do nível de purificação atingido na vida anterior.

O movimento pitagorico se dividia em duas correntes. Uma acreditava que no final do

ciclo, a alma voltava para o princípio divino, do qual havia se separado, e a outra, que a

alma reencarnava nas formas de vida mais elevadas do homem, como a do governante

justo e a do sábio. A purificação da alma se daria por meio da ascese e na dedicação ao

estudo dos mais puros objetos do conhecimento (Vegetti, 2004, p. 248).

O orfismo baseava-se em textos escritos considerados sagrados, que indicavam

medidas para manter-se sempre puro, e dessa forma, ter sorte no além vida. Para essa

corrente, a salvação pessoal dependia, essencialmente, da salvação da alma, que

acontecia pelas práticas purificatórias. A purificação era tão importante para o

movimento órfico, que o deus cultuado era Apolo kathartès, o purificador (Vegetti,

2004, p. 247). Como corrente religiosa, era estranha e externa à cidade, por defender um

conjunto de valores diferentes. Por exemplo, nele defendia-se o vegetarianismo e

rejeitavam-se os sacrifícios de sangue, um dos principais elementos da religião cívica,

pois acreditava-se que ele marcava a vida social com a mácula do sangue, que se

estendia à pessoa. A oposição do orfismo à religião tradicional77 era tão intensa que ele

propunha uma origem diferente para os homens. Segundo a corrente, os homens são

originários das cinzas dos titãs castigados por Zeus por terem assassinado e devorado

Dioniso-criança. Por isso, os homens já carregam em si uma impureza, a da teofagia

(Vegetti, 2004, p. 246). Para se livrar dessa mácula inicial, e de outras que poderiam

adquirir ao longo da vida, o homem deveria purificar-se constantemente e seguir um

padrão de conduta que o impedisse de entrar em contato com as impurezas.

A busca individual pela salvação situa-se fora da religião tradicional. Do ponto

de vista psicológico, as religiões dos mistérios e as seitas oferecem respostas mais

77 Considero religião tradicional o conjunto de ritos, comportamentos e mitos estipulados pela religião

agrária, familiar, cívica e pan-helênica.

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explícitas às dúvidas provenientes dos extratos pessoais mais profundos da experiência

religiosa. Ao contrário das religiões de mistérios, que ofereciam uma complementação à

religião oficial, as seitas apresentavam uma alternativa radical a ela.

De uma maneira geral, pode-se dizer que a religião grega se baseava na

participação no culto. Era por meio dele que a pessoa expressava sua adesão ao

sentimento religioso compartilhado pela coletividade, bem como ao conjunto de valores

estipulado pelo grupo ao qual pertencia. No quadro explicativo apresentado acima,

faltaram dois elementos importantes da religião, que também eram meios pelos quais as

pessoas expressavam a piedade: os festivais e os oráculos. A opção de tratá-los

separadamente se deve ao fato de demandarem uma análise mais detalhada, pois foram

utilizados na argumentação de Demóstenes para demonstrar a impiedade de seu

inimigo.

3.2 Festivais

Para Burkert (1993, p. 437), a religião verdadeiramente praticada pelos gregos,

concentrava-se nas festas, que quebravam e ordenavam a rotina do cotidiano. Os

festivais eram um aspecto importante da religião e da vida social, já que asseguravam a

relação entre homens e deuses, por meio da demarcação da diferença entre eles, e a

coesão entre os habitantes da cidade, garantindo a integração social, por ser um

momento de convivência e de auto exaltação da comunidade. O sentimento de

agregação desenvolvido nesses festivais criava um imunidade temporária, como indica a

trégua sagrada e a probolē (Gernet, 2001, p. 198).

As grandes festas cívicas constituem a expressão mais espetacular da religião.

Elas exprimem e exteriorizam a piedade de toda a pólis, pois celebram e reconhecem a

ordem entre homens e deuses. Igualmente, ela evidencia e reforça a coesão dos

habitantes por meio do respeito e do reconhecimento dos benefícios feitos pelos deuses

e, ao mesmo tempo, na esperança de que as manifestações da benevolência divina

estavam por vir (Zaidman, 2001, p. 21).

O momento da festa era especial para a cidade. A pólis saia da ordem humana,

cotidiana, e entrava num outro tempo, no qual estabelecia seu contato com a ordem do

sagrado, que tinha regras próprias. Paralelamente, se definia um espaço sagrado na

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cidade, localizado no lugar onde se realizava o culto, que na maioria dos casos,

coincidia com o local do templo. A entrada num outro tempo, diferente do cotidiano, era

marcado pelo uso de roupas e adornos utilizados somente nas festas.

Portar uma coroa era o signo mais visível e largamente utilizado para demonstrar

a participação no ritual (Zaidman, 2001, p. 24). Tinha a função de identificar os

participantes da festa e era usada pelos coregos e participantes do sacrifício e do

banquete. Seu uso era previsto pela lei, como mostram alguns registros literários, que

indicam a obrigação de usá-la.

Demóstenes, em Contra Mídias, narra a diferenciação do traje no período da

festa. Para preparar as roupas que seriam usadas nas Grandes Dionisíacas, durante a

apresentação do coro, ele contratou os serviços de um ourives para consertar sua coroa e

bordar uma roupa. O ourives é uma das testemunhas do discurso e diz: “Demóstenes,

em favor do qual eu dou esse testemunho, me deu uma coroa de ouro para eu arrumar e

uma roupa para eu enfeitar com bordados dourados, porque ele deveria participar da

festa de Dioniso com esses ornamentos” (Demóstenes, Contra Mídias, 22)78. O

principal interesse do orador com esse testemunho era a narrativa da tentativa de

destruição desses objetos por Mídias, feita durante invasão à casa do ourives à noite. A

própria tentativa furtiva de destruição já indica a importância de usar essa indumentária

na festa. Se ela não fosse importante, Mídias não teria tentado prejudicar Demóstenes

por meio de sua destruição. O orador considerou um dos delitos de seu inimigo ter

desrespeitado as roupas destinadas à festa: “[...] as suas mãos não respeitaram nem a

roupa consagrada, nem o coro, e, por último, nem mesmo a minha pessoa física”

(Demóstenes, Contra Mídias, 69)79.

No discurso, a preocupação com o uso adequado do traje marca a preocupação

de se portar bem durante a festa, que se estende numa conduta correta em relação à

cidade. Mídias oferece o pólo oposto. Seu desdém pela cidade é indicado pela falta de

comprometimento com os ritos religiosos. Demóstenes, para evidenciar essa

característica, conta aos juízes que seu inimigo, mesmo sendo rico, não quis gastar

dinheiro para comprar um cavalo branco para a procissão de Elêusis, pedindo um

emprestado a seu amigo (Demóstenes, Contra Mídias, 158). Esse fato também

78 “Demostene, in favore del quale io faccio questa testimonianza, mi aveva dato uma corona d’oro da

accomodare e uma veste da abbellire com ricami dorati, perché doveva partecipare alla festa di Dioniso con quegli ornamenti.”

79 “[...] le sue mani non hanno rispettato né le vesti consacrate, né il coro, e, in ultimo, neppure la mia persona fisica.”

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77

demonstra que Mídias não está disposto a gastar seu dinheiro em assuntos relacionados

à cidade.

Os festivais e sacrifícios religiosos ocupavam uma parte significativa das

despesas públicas e do tempo dos atenienses. O alto número de festas realizadas fez

com que Atenas, além de ser reconhecida como a cidade dos tribunais, também

adquirisse a reputação de ser uma cidade repleta de festas. O autor de A constituição dos

atenienses, ao fazer sua crítica aos diversos benefícios que o dêmos possui no regime

democrático, elenca, como um deles, a realização de sacrifícios pela cidade: “Assim, a

cidade realiza muitos sacrifícios com despesas públicas e é o povo que desfruta dos

banquetes e que reparte [as porções] dos animais sacrificados” (Pseudo-Xenofonte, A

constituição dos atenienses, II, 9)80. Para o autor, o grande número de festas é

prejudicial, pois leva ao atraso na resolução de outros assuntos da cidade, uma vez que,

quando uma festa era celebrada, as instituições não funcionavam: “Com efeito, como

poderiam fazer aquilo que devem, se celebram tantas festividades como nenhuma outra

cidade grega (durante as quais é impossível atender os assuntos públicos), e que, além

disso, devem julgar tantos casos privados e públicos [...]” (Pseudo-Xenofonte, A

constituição dos atenienses, III, 2)81.

Dentre as numerosas festas atenienses, trataremos somente dos cultos

dionisíacos, pois foi durante as Grandes Dionisíacas que Demóstenes sofreu o ultraje.

Eles serão tratados de forma reduzida, devido aos limites da pesquisa, com o objetivo

apenas de pontuar para o leitor seu funcionamento.

Em Atenas havia quatro festas dedicadas a Dioniso. Os cultos ao deus fazem

parte integrante do calendário cívico. As festividades ocorriam no período de dezembro

a março, do inverno ao começo da primavera, e representavam festas do ciclo vegetal,

relembrando a morte e o renascimento da vida (Dabdab Trabulsi, 2004, p. 192). As

Dionisíacas rurais eram comemoradas nos dêmoi em datas variadas no mês de Poseidon

(dezembro-janeiro). Nelas havia sacrifícios, procissões do falo (faloforia), cantos e

kômoi, cortejo animado com pessoas fantasiadas. Em alguns dêmoi ricos, eram

organizadas apresentações dramáticas. A população participava ativamente, pois eram

80 “Así pues, la ciudad realiza muchos sacrificios a expensas públicas, y es el pueblo el que disfruta los

banquetes y el que se reparte [las porciones] de los animales sacrificados.” 81 “Em efecto ¿ cómo podrían hacerlo aquello que deben, em primer lugar, celebrar tantas festividades

como ninguns outra ciudad griega (durante las cuales es poco menos que imposible atender los asuntos públicos), y que, además, deben juzgar tantos casos privados y públicos [...]”

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abertas aos dependentes do oikos. Nelas reinavam uma atmosfera de liberdade e de

permissividade (Dabdab Trabulsi, 2004, p. 193).

No mês seguinte, Gamélion (janeiro-fevereiro), eram celebradas as Lenéias.

Uma procissão abria as cerimônias. Havia concursos dramáticos e de ditirambos, bem

como sacrifícios. No século V a.C., essa festa foi se apagando devido ao sucesso e

grande adesão da população às Antestérias e às Grandes Dionisíacas (Dabdab Trabulsi,

2004, p. 196).

As Antestérias era a festa mais antigas de Atenas dedicadas a Dioniso. Ela

acontecia nos dias 11 a 13 do mês de Antestérion (fevereiro-março) (Dabdab Trabulsi,

2004, p. 196). No primeiro dia, chamado de pithoigía, os vasos de vinho, que

permaneciam fechados para fermentação, eram abertos. O vinho era levado para o

templo do deus e misturado com água, seguindo a tradição mítica, que narra o

ensinamento dessa mistura aos homens por Dioniso. Depois, havia uma grande

bebedeira com cantos e danças, da qual os escravos estavam autorizados a participar

(Dabdab Trabulsi, 2004, p. 197). As crianças eram coroadas com flores e o deus era

invocado sob os epítetos Euanthés, Dithúrambos, Bacchéus, Brómios. Esse dia também

marcava o contato com o mundo dos mortos. No segundo dia, realizava-se um concurso

de bebedeira no qual os participantes, na presença dos juízes e do arconte-rei, deveriam

beber um vaso cheio de vinho da maneira mais rápida. Nesse dia, havia uma procissão

do deus num carro-naval até o Limnaion, onde a esposa do arconte-rei, basilinna,

auxiliada por 14 damas, realizava a cerimônia. Depois disso, a basilinna se tornava

companheira de Dioniso. O cortejo, agora nupcial, seguia para Boukóleion, antiga

residência do arconte-rei, e lá, acontecia o casamento sagrado, hiéros gamos, entre ela e

o deus (Dabdab Trabulsi, 2004, p. 198). Com essa união, o deus tornava-se senhor de

tudo e os templos dedicados aos outros deuses eram fechados. O terceiro dia de festa era

marcado por um caráter nefasto. Tomavam-se precauções apotropaicas, como passar

resinas nas portas para evitar que os mortos entrassem nas residências. Faziam libações

aos mortos e refeições aos vivos. A última parte da festa era dedicada a Hermes,

condutor dos mortos. Por fim, convidavam os mortos a irem embora (Dabdab Trabulsi,

2004, p. 200).

As Grandes Dionisíacas eram uma criação de Pisístrato e aconteciam nos dias 10

a 15 do mês de Elafebólion (março-abril). Havia cortejos, faloforia e kômos. Iniciava-se

com uma procissão do templo, no caminho de Elêuteras, onde permanecia a estátua de

Dioniso, para o templo na vertente sul da Acrópole e depois para o teatro. Nessa

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procissão, o arconte-epônimo permanecia na frente, seguido pelos efebos com armas,

canéforas e coreutas (Dabdab Trabulsi, 2004, p. 201). No primeiro dia, também eram

realizados o sacrifício de um touro, com a participação de mulheres e crianças, libações,

faloforia sobre uma charrete com imagens fálicas dos dêmos e das colônias e a coroação

de um cidadão benfeitor da cidade. O último ato representa uma clara integração entre a

festa e a pólis (Dabdab Trabulsi, 2004, p. 202). No dia seguinte, iniciavam-se os

concursos que eram presididos pelos sacerdotes do deus. Nos dias 11 e 12, ocorria o

concurso de ditirambos e nos dias 13 e 14, o de tragédia e comédia.

Para o treinamento dos coros apresentados nas Grandes Dionisíacas, o arconte-

epônimo escolhia, entre os cidadãos ricos, o responsável pelo financiamento (Mossé,

2004, p. 78). Essa liturgia era denominada coregia e poderia ser recusada pelo cidadão.

Para o coro de ditirambos eram selecionados dois coregos, uma responsável pelo coro

de homens e o outro para o de rapazes. Além de financiar, era uma das tarefas do corego

escolher o flautista e o coureta.

A disputa entre os coros era acirrada, pois todos queriam a glória de ser

premiados. A competição era ainda mais estimulada pela rivalidade entre as tribos e, até

mesmo, por rixas pessoais, como mostra o discurso de Demóstenes. Outra fonte que

indica a freqüente e intensa disputa ente os coregos é o autor de A constituição dos

Atenienses, que relata que o dêmos deveria ocupar parte de seu tempo com “solucionar

anualmente os conflitos dos coregos [eleitos] para as Dionisíacas, as Targélias, as

Panateneas e as Hefesteas” (Pseudo-Xenofonte, A constituição dos atenienses, III, 4)82.

A festa era um dos elementos mais importantes para a constituição da pólis, pois

assegura sua coesão e seu pacto de união entre a cidade, com os grupos de habitantes

que a compunham, e a divindade. Se a festa dominava uma parcela considerável do

tempo dos atenienses, é na cidade platônica que ela alcançará uma expressão ainda

maior. Em seu último diálogo, As Leis, Platão a considera como um elemento essencial

para cidade. Essa obra é o diálogo entre três homens de meia idade, um lacedemônio,

um cretense e um ateniense, que se encontram no caminho para o templo de Zeus. O

ateniense indaga aos demais se eles atribuem aos deuses ou aos homens a autoria das

leis (Platão, As Leis, Livro I, 624a). Com essa pergunta inicia-se uma reflexão sobre a

política, a cidade e as leis, que culmina na proposição de uma legislação adequada para

a pólis.

82 “[...] y se debe, además de ello, dirimir anualmente los conflictos de los coregos [electos] para las

Dionisias, las Targelias, las Panateneas y las Hefesteas.”

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Dentre as leis propostas, algumas são voltadas para a organização dos festivais.

Assim, a organização dos festivais aparece como uma das tarefas do legislador, que,

para cumprir adequadamente essa função, deve seguir as prescrições dos oráculos:

“Nossa próxima tarefa será, com a ajuda do oráculo de Delfos, organizar e promulgar

por leis os festivais, prescrevendo que sacrifícios e para que divindades será bom e

direito que o Estado faça suas oferendas” (Platão, As Leis, Livro VIII, 828a). A presença

dos oráculos indica que a celebração das festas corresponde a uma vontade divina, pois

foram os deuses, por intermédio de seus emissários, que estipularam sua realização.

Ainda é tarefa do legislador determinar os festivais femininos, “prescrevendo quantos

destes serão exclusivamente femininos e quantos serão abertos também aos homens”

(Platão, As Leis, Livro VIII, 828c) e quais seriam os ritos devidos a cada um dos deuses:

“Ademais, eles [os legisladores] terão que determinar, em conformidade com a lei, os ritos apropriados aos deuses subterrâneos e quantos dos deuses celestes deverão ser invocados e que ritos a eles relacionados não deverão ser misturados [aos ritos dos deuses subterrâneos], e dispor estes no décimo mês, que é consagrado a Plutão” (Platão, As Leis, Livro VIII, 828c).

De acordo com a lei proposta na obra, na cidade deveria haver doze grandes

festas, cada uma dedicada a um deus, que dava nome a uma das doze tribos. Cada deus

deveria ter sacrifícios mensais e, para homenageá-los, seriam realizados “coros e

concursos musicais bem como competições de ginástica, como convém aos próprios

deuses e às diversas estações do ano [....]” (Platão, As Leis, Livro VIII, 828c). Ao todo,

na cidade, deveria haver pelo menos “365 festas, de maneira que haja sempre algum

magistrado realizando sacrifícios para algum deus ou daímon em nome do Estado, do

povo e de sua propriedade” (Platão, As Leis, Livro VIII, 828b). Dessa forma, em

praticamente todos os dias haveria alguma celebração realizada pela cidade para

homenagear os deuses.

O esforço da cidade para controlar a religião por meio do monopólio da

realização das festas é exacerbado em Platão. O filósofo coloca no seu expoente

máximo a realidade que vivencia. O controle total da religião pela cidade platônica tem

cunho educativo, para que as pessoas não se desviassem de suas obrigações para com a

cidade.

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3.3 Oráculos

O fiel, na busca de uma aproximação mais estreita com a divindade, ou com o

intuito de obter respostas para suas dúvidas, seja qual for sua natureza, poderia recorrer

à adivinhação e ao oráculo. A primeira corresponde a observações dos presságios que

eram interpretados pelos adivinhos. Ela se baseia na interpretação dos signos: poderia

ser o vôo de um pássaro, os fenômenos celestes, os sonhos ou as entranhas de um

animal sacrificado (Zaidman, 2001, p. 58). A adivinhação por meio de um sonho é

encontrada no início da comédia As Vespas, de Aristófanes. A peça se inicia com o

diálogo de dois escravos, Sosias e Xantias, que devem vigiar, durante a noite, o velho

Filocléon, para que ele não escapasse de casa e se dirigisse ao tribunal. Na conversa, os

dois relatam seus sonhos e o significado deles:

Xantias Então você adora o mesmo deus que eu, pois agora mesmo um sono pesado está puxando minhas pálpebras para baixo como se fosse um inimigo, e acabo de ter um sonho maravilhoso. Sósias Eu também tive um como nunca tinha tido. Mas me conte primeiro o seu. Xantias Vi uma águia enorme descer na praça pública, pegar com as garras dela um escudo de bronze e levá-lo até o céu; depois vi o mesmo escudo cair das mãos do covarde Cleônimo. Sosias Mas alguém pode perguntar: como o mesmo covarde pode abandonar seu escudo em terra, no céu e no mar? Xantias Coitado de mim! Que desgraças devo esperar depois de um sonho destes? Sosias Não se inquiete; juro que você não tem nada a temer. Xantias É... Mas um homem jogar suas armas fora é uma coisa horrível. Então me conte o seu sonho. [...] Sosias Durante o primeiro sono me pareceu que eu via um bando de carneiros reunidos na Pnix, com togas e bastões, e no meio dos carneiros havia uma baleia enfurecida; os guinchos dela pareciam os de um porco que está sendo grelhado ainda vivo. [...] Sosias A baleia maldita segurava uma balança e em vez da gordura dos carneiros pesava o ... povo. Xantias Estamos perdidos! Eles querem vender nosso couro! Sosias Teoro estava sentando no chão, perto da baleia, e tinha a cabeça de um corvo; e Alcibíades disse, trocando o “r” pelo “l”: “Olhe, Teolo! Ele tem um colvo na cabeça!” [...] Sosias Não é um sinal de mau agouro? Teoro virou corvo! Xantias Nada disto! Ao contrário, é um sinal muito feliz. Sosias Mas como?

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Xantias Você ainda pergunta? Ele deixou de ser gente e passou a ser corvo; não é claro que ele vai embora para se juntar a eles? Sosias Não posso deixar de lhe dar uma gorjeta de dois óbolos, para recompensá-lo pela interpretação inteligente do sonho. (Aristófanes, As Vespas, 10-53)

Já o segundo, os oráculos, ofereciam respostas aos questionamentos formulados.

Eles eram enunciados pelos sacerdotes e sacerdotisas que serviam de intermediários

entre os deuses e os consulentes.

Adivinhações e oráculos faziam parte do sistema de relações entre o mundo dos

homens e dos deuses, e estabeleciam um tipo de comunicação particular (Zaidman,

2001, p. 58). Algumas repostas oraculares, principalmente as relacionadas com conflitos

privados ou políticos, eram poucos evidentes, ambíguas e necessitavam da interpretação

dos sacerdotes para serem compreendidas. Outras, porém, eram bem precisas,

principalmente, aquelas que tratavam da regulamentação do culto. A importância dos

oráculos para os gregos é atestada pelo aumento do número de santuários oraculares do

período arcaico até o fim da Antiguidade.

O uso dos oráculos, assim como as festas, constituía uma manifestação de

piedade, seja individual seja coletiva, já que demonstrava o reconhecimento dos homens

em relação à posição dos deuses; da capacidade destes de interferir nos assuntos

humanos, para trazer benefícios ou malefícios; do respeito devido a eles (Zaidman,

2001, p. 58). Seu uso no seio da pólis se dava de forma complexa, pois funcionavam

como um mecanismo legítimo, que buscava regulamentar comportamentos ou resolver

problemas que pareciam insolúveis. Por essa última característica, foram utilizados

como instrumentos de manobra política.

O uso dos oráculos e da adivinhação pelos governantes da cidade é registrado na

tragédia Antígona. Nela, o adivinho Tirésias avisa Creonte de um mal iminente, devido

à execução de seu decreto, que prevê a morte daqueles que tentarem sepultar o corpo de

Polinice, declarando, assim, a morte de Antígona. Antes de contar para o tirano sobre o

mau agouro, o adivinho narra os métodos utilizados para realizar a previsão. Nele,

encontra-se a observação do comportamento dos pássaros e do aspecto do sacrifício:

“Vais sabê-lo; presta atenção aos sinais de minha arte. Ao ocupar o antigo assento dos auspícios, porto de toda sorte de aves, percebo ruídos de pássaros estranhos, pipilos excitados, confusa algaravia. Compreendi que com suas garras sanguinolentas se dilaceravam,

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o ruído de suas asas me esclarecia. De imediato, assombrado, recorro ao sacrifício no altar ardente. Das minhas oferendas o fogo não brilhou. Nas cinzas umedecidas pingava a gordura derretida das coxas, levantava fumaça, pipocava. A bile pula, parte-se no ar. Os ossos despojados de revestimentos se expuseram. Informações obtive deste menino, Presságio malogrado de ritos obscuros.” (Sófocles, Antígona, 998-1013).

Os oráculos mais importantes da Grécia, e também os citados por Demóstenes

na sua argumentação, eram de Dodona e Delfos. O primeiro era dedicado a Zeus. Nele,

as respostas eram obtidas pelo balanço das folhas de um carvalho sagrado, interpretados

por três sacerdotisas (Mossé, 2004, p. 216). O segundo, a Apolo. A tradição delfica o

colocava no centro do mundo, marcado pela pedra sagrada, chamada omphalos, o

umbigo (Zaidman, 2001, p. 61-62). A palavra do deus era transmitida por intermédio da

Pítia, uma sacerdotisa, que ficava sentada em uma trípode, perto do fosso, de onde se

acreditava que saía o sopro divino, que provocava o transe (Mossé, 2004, p. 216).

Antes de consultar o oráculo, o consulente deveria se purificar e oferecer um sacrifício

ao deus.

Os oráculos ditavam comportamentos religiosos, regulamentavam cultos e

contribuições sagradas. Também ofereciam um guia de conduta, paralelo aos nomoi.

Eles tinham grande autoridade e eram apresentados como árbitros para a conduta

correta, equivalente, e sempre concordante, com os costumes da pólis.

3.4 Piedade e impiedade

Feita essa breve exposição das características gerais da religião grega,

passaremos para a análise do objeto de nosso maior interesse, a piedade e a impiedade.

Essas duas noções, acrescidas da noção do sagrado (hierós), são importantes para a

compreensão do fenômeno religioso na Grécia Antiga.

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3.4.1 Palavras que expressam piedade e impiedade

O primeiro passo para nosso estudo é entender o que a língua portuguesa

expressa com as palavras piedade e impiedade. Numa passagem rápida pelos

dicionários83, encontram-se, de maneira geral, dois sentidos para piedade. O primeiro,

corresponde ao amor e respeito às coisas sagradas e, também, pode ser utilizada para

expressar um sentimento de religiosidade e devoção. O segundo, indica compaixão

pelos sofrimentos alheios ou um sentimento de pena, dó. Como já foi demonstrado no

capítulo anterior, o último sentido corresponde à palavra héleos. Já o primeiro, é o

sentido utilizado para a tradução das palavras hósios e eusébeia. Na nossa língua, a

impiedade é o antônimo de piedade nas duas acepções, e novamente a tradução de

anósios e asébeia por impiedade corresponde ao sentido de desrespeito ao sagrado.

O português, contudo, não consegue expressar todas as nuances que as palavras

eusébeia, hósios, asébeia e anósios possuem, bem como não consegue fazer a

diferenciação entre esses dois grupos.

Para marcar a diferença entre eles, vamos demonstrar as possíveis traduções para

essas palavras, propostas pelo dicionário Grego-Português, coordenado por Daisi

Malhadas, Maria Celeste Consolin Dezotti e Maria Helena de Moura Neves. Em

seguida, evidenciaremos as particularidades de cada grupo.

3.4.1.1 Hósios e Anósios

No Dicionário grego-português, hósios apresenta sete possíveis sentidos: o que é

estabelecido ou permitido pela lei divina ou da natureza; lugar consagrado; pessoa

piedosa, religiosa ou respeitosa; aquilo que é justo, honesto; relativo à divindade, santo,

venerável; puro, para caracterizar os sacerdotes de Delfos; leis divinas.

Hósios indica a situação do homem com relação aos deuses. Essa relação é

expressa pela dupla hósios kaì díkaios e hósios kaì hierós. A primeira significa aquilo

83 Os dicionários consultados foram Michaelis: moderno dicionário da língua portuguesa (1998), Novo

Aurélio XXI: o dicionário da língua portuguesa (1999) e Dicionário Houssaiss da língua portuguesa (2001).

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que foi fixado como regra da conduta humana tanto pelos deuses, quanto pelos homens.

Então, ela designa o que é permitido e recomendado pela esfera humana e divina. Na

segunda dupla, hósios aparece como aquilo que concerne aos homens, dessa forma,

relativo ao profano, e hierós aquilo que pertence aos deuses e, assim, ao sagrado

(Chantraine, 1983, p. 831). Nesse sentido, hósios se distingue fortemente de hierós

(Gernet, 2001, p. 81).

A palavra é também utilizada para qualificar o homem, o ato ou a coisa que

respeita os deveres que impõe o laço social da cidade, principalmente com relação aos

ancestrais e a conduta desempenhada na cidade. Nesse sentido, hósios significa uma

conformidade com os deveres devidos à pólis84 (Moulinier, 1952, p.214).

A palavra e seus derivados se referem a uma idéia de sagrado. Ser hósios é

possuir as qualidades requeridas para a realização dos atos religiosos. O termo pode

expressar a idéia de pureza ou de purificação. Assim, hósios, quando aplicado ao

homem piedoso, tem uma ressonância moral que o distingue da palavra eusebés, que

implica um respeito aos deuses e aos ritos (Chantraine, 1983, p. 831).

Anósios é a ação contraria a hósios, e indica ações ímpias e contrárias à lei

divina. Para o português, essa palavra é traduzida como aquele que age contra a lei

divina, que é ímpio, ou aquele que comete algum sacrilégio; o que é feito contra a lei

divina; profano; não sepultado conforme os ritos, impuro. Ela pode estar correlacionada

com ádikos, o que demonstra uma transgressão das leis humanas e divinas. A palavra é

utilizada para qualificar, sobretudo, os assassinos (Burkert, 1993, p. 515). Mas quem

matasse seguindo uma sentença judicial era hósios.

Demóstenes utiliza-se do termo hósios para demarcar uma atitude negativa que

não condiz com esse sentimento. Para o orador, a tentativa de acusá-lo de homícidio é

um desrespeito ao sentimento religioso que envolve a pólis:

“[...] [Mídias] aliou-se com os parentes do morto que haviam movido contra Aristarco a acusação de assassinato e prometeu que daria a eles dinheiro se me acussassem como autor do delito; não lhe foram obstáculo para tal maquinanação nem os deuses, nem o sentimento religioso (hosían), nem nenhuma outra coisa [...]” (Demóstenes, Contra Mídias, 104)85.

84 Para exemplos do sentido de hósios como o cumprimento dos deveres à cidade ver MOULINIER,

Louis. Le pur et l’impur dans la pensee des grecs: d'Homere a Aristote. Paris: C. Klincksieck, 1952, p. 280 et. seq.

85 “[...] si abboccò con quelli che avevano mosso contro Aristarco l’accusa di assassinio, cioè con i parenti del morto, e promise che avrebbe dato loro del denaro se mi avessero accusato come autore del

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Mais adiante, o orador usa novamente hósios, mas para indicar aos juízes que

absolver Mídias, culpado de tantos delitos, é contrário ao sentimento religioso:

“Não é belo, não é lícito, ó juízes, e nem conforme ao sentimento religioso (hósion), que vocês, descendentes de tão gloriosos antepassados, tendo em suas mãos um safado, um violento, um prepotente, um nada absoluto, o considerem merecedor de perdão, de compaixão ou de graça” (Demóstenes, Contra Mídias, 148)86.

3.4.1.2 Eusébeia e asébeia

Eusébeia é traduzida para o português como respeito e amor aos deuses;

piedade, veneração, respeito filial por alguém; e, num sentido tardio, corresponde a um

temor de deus. Ela é derivada da raiz seb-, que significa sentir um receio respeitoso com

relação aos deuses. Em várias línguas, o sentimento religioso é expresso por meio do

receio e do medo face aos deuses. Segundo Burkert (1993, p. 420), essa raiz remete

etimologicamente à idéia de perigo e de fuga, mas, com o passar do tempo, os sentidos

de reverência e admiração se sobrepuseram. O comportamento de sébesthai, por si só,

não era indicativo de piedade. Ele somente ganhava essa dimensão quando aliado ao

critério de bem, como é indicativo o eu-, tornando-se, assim, eusébeia. O critério de

bem consistia em respeitar a tradição da cidade e, dessa forma, não mudar nada deixado

pelos antepassados e cultuar os deuses ligados à família e à cidade.

A asébeia é a ausência do respeito devido às coisas sagradas. No dicionário ela é

traduzida como impiedade.

Assim, o sentido principal de hósios é de estar concordante com o estipulado

pela esfera humana e divina. Já a eusébeia é o sentimento que conduz a uma atitude

correta em relação com o divino. Na próxima seção, explicaremos melhor as noções de

eusébeia e asébeia, detalhando, principalmente, as ações que elas desencadeavam na

delitto; non gli furono d’ostacolo a tale macchinazione né gli dèi, né il sentimento religioso, né nessun’altra cosa [...]”

86 “Non è bello, non è lecito, o giudici, e neanche conforme al sentimento religioso, che voi, discendenti da così gloriosi antenati avendo in vostro potere un mascalzone, un violento, un prepotente, una nullità assoluta, lo riteniate meritevole di perdono, di pietà o di grazia.”

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pólis. Como já foi dito anteriormente, na pesquisa se optou por utilizar a palavra

piedade e impiedade para se referir à eusébeia e à asébeia, respectivamente. Com

relação a hósios e anósios, será utilizada a nomenclatura grega.

3.4.2 Piedade

De forma sucinta, pode-se dizer que piedade para os gregos representava uma

série de comportamentos, que integram sentimentos relativos à divindade, aos ritos, ao

culto dos ancestrais, ao respeito à família e à pólis. Ela envolvia uma virtude, que

deveria ser compartilhada por todos os habitantes, e indicava respeito, confiança e

submissão (Rudhardt, 1960, p. 103).

Os registros que possuímos sobre a piedade são, na maioria dos casos,

descrições de comportamentos considerados piedosos. De forma semelhante, isso ocorre

com a impiedade. Do conjunto de nossos registros, há os tratados filosóficos. Na maior

parte deles, a reflexão sobre a piedade se dava a partir da contestação dos

comportamentos considerados piedosos pela religião tradicional. Segundo Zaidman

(2001, p. 176), a reflexão sobre a piedade não constitui um domínio separado da

reflexão filosófica, mas é indissociável dela.

Atribui-se a Pitágoras a autoria do primeiro tratado com o tema da piedade e a

Protágoras um tratado acerca da natureza do divino, intitulado Sobre os deuses. Esse

tratado foi interpretado como uma negação da existência dos deuses, pois o filósofo

considerava impossível estabelecer-se uma resposta sobre a existência do divino, já que

esse assunto era muito obscuro e a capacidade cognitiva do homem, bem como a

duração de sua vida, eram limitados. Por isso, o sofista foi acusado de impiedade,

expulso de Atenas e seus livros foram queimados na Ágora (MacDowell, 1986, p. 201;

Bauman, 1990, p. 6787). Platão faz uma reflexão sobre a religião no diálogo Eutífron,

Peri hósion. Nesse diálogo, o personagem Sócrates, que está preso devido à acusação de

impiedade, por Meleto, interroga o jovem Eutífron, que se considera um conhecedor dos

87 Para Bauman (1990, p. 67), o processo de Protágoras contém traços políticos, pois o sofista era

legislador em Túria e discutia freqüentemente com Péricles acerca de assuntos legislativos e jurídicos. Além do envolvimento com o estratego, a imagem de Protágoras também foi associada a Alcibíades, sendo o sofista considerado um de seus cúmplices na fuga. Para o autor, essa ajuda pode ter sido o estopim para fosse movido o processo contra ele.

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assuntos religiosos, sobre o que é hósion e anósion. No seu último diálogo, As Leis, o

filósofo define os atos considerados ímpios e propõe uma legislação severa para puni-

los. De Teofrasto, restaram alguns fragmentos da obra Sobre a piedade, Perì eusébeias.

Nessa obra, Teofrasto demonstra que a verdadeira piedade consiste em sacrifícios e

libações sinceras para os deuses, que devem ser constantes. Ele condena os sacrifícios

sangrentos e muito pomposos, e afirma que eles são resultado do engano dos homens.

A piedade se relacionava com a crença de que a prosperidade da cidade

dependia do “bem querer” dos deuses, que protegiam os homens se eles cumprissem

suas obrigações. Por meio dela, o homem reconhecia seus limites e sua condição

inferiorizada em relação aos deuses. Os preceitos do oráculo de Delfos, “sabes quem tu

és” e “conhece-te a ti mesmo”, possuíam esse sentido: o homem deve ser ciente de sua

posição no kósmos (Vernant, 2006, 48-49).

A noção de piedade se constituiu ao longo do tempo e a partir das

transformações que a pólis sofreu. A própria experiência do cotidiano (que no caso

grego, é intimamente ligada à experiência do político) também interfere na forma de

vivenciar o religioso. Apesar de todas as modificações, percebe-se uma continuidade

dessa noção por meio de um conjunto de práticas e atos que indicam o respeito e a

veneração aos deuses pelos homens (Zaidman, 2001, p. 211). Por essa continuidade, a

piedade nos oferece material substantivo para pensar a relação dos homens com os

deuses, bem como a relação que os homens tiveram entre eles a partir dessa noção e, de

seu pólo negativo, a impiedade.

Nosso interesse será voltado para as ações, gestos e comportamentos orientados

pela piedade. Não buscaremos traçar o grau íntimo de convicção da pessoa que a leva a

agir de forma piedosa. Consideraremos que, se a pessoa agiu de tal maneira era por que

ela era estimulada, de alguma forma, por esse sentimento, ou então, pelo receio de

mostrar a seus pares a ausência dele, atitude condenável socialmente.

A palavra eusébeia aparece pela primeira vez na poesia lírica. Na epopéia não se

tem registros dela. Nela, encontra-se a palavra sébas e seus derivados (Zaidman, 2001,

p. 99). Em Homero, as práticas religiosas atestam um receio respeitoso ao divino, o

reconhecimento de seu poder superior e a esperança de uma intervenção benevolente. A

transgressão dessas práticas ou o esquecimento delas era considerada uma falta.

Com o poeta Teógnis, a eusébeia entra no vocabulário. Nele, também se

encontra o primeiro registro de hósios usado no sentido de piedoso e associado a díkē

(Zaidman, 2001, p. 105). Esse par de palavras indica o respeito a uma obrigação, que se

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deve ter com relação aos pais (fr. 131). O uso dos termos eusébeia e asébeia coincide

com o descontentamento do poeta com as transformações que ocorriam em sua volta.

Teógenes era membro da aristocracia de Mégara. O poder da cidade estava em disputa

não somente entre os clãs aristocratas, mas também entre grupos sociais de composição

diferente. Para o poeta, a díkē88 somente estaria assegurada na cidade se os

aristocráticos autênticos, aqueles que seguem a tradição, estivessem no poder. A justiça

consistiria no instrumento definidor do lugar que cada homem deve ocupar na cidade e

quais as relações que ele deveria manter com os demais.

A justiça, como mediadora da relação entre os homens, precisava de uma

garantia divina, que foi assegurada pela figura de Zeus. O deus encarnou a justiça,

defendendo-a (Zaidman, 2001, p. 110). Nesse contexto, a piedade aparece como um

comportamento concordante com que é justo para os homens. Ela expressava o respeito

aos deuses e a lealdade entre os homens.

Com Píndaro, por volta dos séculos VI a.C. e V a.C., a palavra eusébeia e seus

derivados entram definitivamente no uso da língua (Zaidman, 2001, p. 111). No

conjunto da obra que restou para nós, o uso da piedade está relacionado com a evocação

de práticas cultuais e a qualificação dos homens que cumprem exatamente seus deveres

para com os deuses.

O tema da piedade e da impiedade é recorrente em várias tragédias. No Hipólito,

o personagem trágico de mesmo nome por seu enorme sentimento de piedade à deusa

Ártemis, recusa relacionar-se com qualquer mulher. Essa decisão o conduz ao seu

destino trágico.

Em Antígona a piedade é caracterizada como o ato de honrar os deuses

(Sófocles, Antígona, 872) e a impiedade é a origem de todos os males para os homens

(Sófocles, Antígona, 301). Após todo o desfecho, a lição que o Corifeu apresenta nos

últimos versos é de que agir contra os deuses devido ao orgulho e à arrogância produz

resultados nefastos:

“A prudência é, em muito, a primeira das venturas. Contra os deuses não convém agir. Palavras altivas trazem aos altivos castigo atroz.” (Sófocles, Antígona, 1347-1352)

88 Nesse mesmo período, o tema da díkē também é central em Hesíodo, na obra Os trabalhos e os dias.

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Nessa obra, também, encontra-se a relação entre a piedade e a justiça. Nela, a

justiça ligada à piedade é a divina, que se contrapõe à justiça dos homens, proclamada

pelo tirano. A piedade de Antígona, que a leva desafiar o poder de Creonte, revela o

respeito devido aos mortos, principalmente quando são consangüíneos. Seguindo sua

piedade, a personagem considera que está de acordo com a justiça divina. Essa é sua

justificativa para o ato contra a pólis:

“Não foi, com certeza Zeus que as proclamou, nem a justiça com trono entre os deuses dos mortos as estabeleceu para os homens. Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder se superar as leis não-escritas, perene, dos deuses, visto que és mortal. Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram. Por isso, não pretendo, por temor às decisões de algum homem, expor-me à sentença divina. Sei que vou morrer. Como poderia ignorá-lo? (Sófocles, Antígona, 450-460)

Nas Eumênides, tem-se o desenvolvimento mais nítido da relação religiosa e

cívica presente na noção de piedade (Zaidman, 2001, p. 115). As Erínias mostram sua

indignação na constituição do tribunal por Atena, pois a libertação de um criminoso é

um risco para a justiça. Mais uma vez, a piedade relaciona-se com o agir correto e com

a justiça. As ações contrárias à piedade, não respeitar ou maltratar os pais, os deuses ou

o hóspede, são condenáveis e puníveis pela justiça, como demonstra a fala do coro das

Eumênides em dois momentos da peça:

Verás que se algum mortal delinqüiu por impiedade contra o Deus ou hóspede ou contra os próprios pais tem cada um o peso da justiça. (Ésquilo, Eumênides, 269-271)

Sempre te digo: respeite o altar da Justiça, de olho no lucro não pises com ímpio pé (atheōi podì) que a punição virá. Honrem-se os venerados pais sejam respeitados os aposentos da casa com honra aos hóspedes. (Ésquilo, Eumênides, 538-549)

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A recorrência da piedade e da condenação da impiedade, nas tragédias, é

indicativo de sua importância social. As peças demonstram que ela não é uma expressão

individual de uma qualidade particular, mas sim a manifestação de ações sociais que são

consideradas adequadas na relação entre os homens e os deuses e, igualmente, na

relação entre os homens.

A ligação próxima e intensa entre a piedade e a justiça é encontrada em outro

registro, o da reflexão filosófica. Aristóteles caracteriza a piedade como uma das

obrigações impostas pela justiça e que faz parte dela:

“Em primeiro lugar entre as obrigações que nos impõe a justiça se encontram nossos deveres para com os deuses, depois nosso dever para com as almas, depois os que temos para com a cidade e os pais, [...]; entre essas obrigações se encontra a piedade, que é, ou uma parte da justiça e da retidão, ou um aspecto concomitante a ela. A justiça também é acompanhada da santidade ou religiosidade, da veracidade, da lealdade e do ódio à maldade” (Aristóteles, Das virtudes e dos vícios, 1250b)89.

O que o filósofo considera como os deveres da justiça são em outras fontes as

obrigações relativas à piedade. Essa estreita ligação chega até mesmo a ser confusa, a

ponto de não se conseguir identificar, claramente, a diferença entre os dois

comportamentos. Então, a pessoa era piedosa, porque era justa, ou por ser justa era

piedosa? Agir de forma justa é agir de forma correta, isto é, ter um comportamento

concordante com a moral coletiva e individual. A piedade também se traduz por um agir

corretamente, e daí sua relação com a justiça. Mas esse sentimento se refere a uma ação

correta relativa a uma esfera do convívio social, ou seja, àquela que concerne ao divino

e à família. Por outro lado, a justiça estende esse dever de agir corretamente,

irrestritamente, a todas as esferas da vida do homem. Essa diferença de abrangência nos

domínios da vida humana, bem como o fato de que na piedade o agir corretamente era

envolvido pelos sentimentos de respeito, observância e deferência aos deuses,

caracteriza a diferença entre piedade e justiça.

A piedade envolvia um sentimento de solidariedade, já que indicava quais eram

os comportamentos sociamente admitidos e esperados pela pólis. Assim, ela faz parte

89 “En primer lugar entre las obligaciones que nos impone la justicia se encuentran nuestros deberes para

com los dioses, luegos nuestros deberes para com las almas, después los que tenemos para com la patria y los padres, finalmente los que se refieren a los que se han marchado: entre estas obligaciones se encuntr5a la piedad que es o bien um aspecto concomitante com ella. La justicia va también acompañada, de la santidad o religiosidade, la veracidad, la lealtad y el odio a la maldad.”

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das regras que conduziam a vida na cidade. Por isso, ela constituía numa virtude cívica,

apresentada, na maioria dos casos, como indissociável da justiça. No campo político, foi

utilizada como parâmetro de comparação das qualidades de uma pessoa e, na retórica,

foi usada como argumento para atrair a simpatia dos ouvintes.

A piedade, além de ser definida por um sentimento subjetivo, ou uma convicção

íntima que liga a pessoa aos deuses, se definia a partir dos atos (Zaidman, 2001, p. 214).

Ser piedoso significava agir de forma piedosa. Era agir segundo as regras de conduta,

fazendo os gestos e os atos, considerados pela coletividade como um comportamento

respeitoso e justo para com os deuses e homens. A piedade se definia pela adequação

das práticas da pessoa àquelas esperadas pela cidade.

Esse sentimento era reconhecido por meio do cumprimento de uma série de

obrigações. A pessoa deveria participar dos cultos da cidade, realizar abundantes

oferendas, fazer a devoção aos parentes mortos e às deidades protetoras da família e

financiar os rituais públicos. Dessa forma, uma pessoa somente era piedosa se a

coletividade a considerasse como tal.

A tradição estabelecia os parâmetros para os atos piedosos. Ser piedoso era,

antes de tudo, não alterar a tradição. A relação entre piedade e tradição é utilizada por

Lísias para acusar Nicômaco, um anagrapheús, de fazer algumas modificações nas leis,

que prescrevem os sacrifícios, no processo de transcrição das leis de Sólon90. Na sua

argumentação, ele defende que ser piedoso é seguir os sacrifícios estipulados pela

tradição, e qualquer alteração neles representaria uma quebra na tradição e um desvio na

piedade. Para acusá-lo, o orador afirma que a piedade repousa na tradição: “Portanto,

sobre a piedade, juízes, não é a Nicômaco que se deve pedir lições, mas é a tradição que

se deve consultar” (Lísias, Contra Nicômaco, 18)91. Na visão de Isócrates, a piedade

“não consistia na pompa, mas em nada alterar na herança dos antepassados” (Isócrates,

Areopagítico, 30). Agindo dessa forma, a cidade iria conseguir os benefícios dos

deuses: “por isso, da parte dos deuses nada lhes vinha de violento ou arrasador, mas

tudo era propício ao trabalho dos campos e à obtenção das messes” (Isócrates,

Areopagítico, 30).

90 Em 410 a. C. foram nomeados oficiais, chamados de anagrapheús, para recolherem todas as leis de

Sólon e as reescrevem novamente em pedra com o objetivo de unificar as leis atenienses. O trabalho foi concluído em 403 a. C. A partir dessa data nenhuma lei não escrita poderia ser utilizada e nenhum decreto poderia sobrepuser a lei.

91 “Pourtant, en fait de piété, juges, ce n’est pas à Nicomachos qu’il faut demander les leçons: c’est la tradition qu’il faut consulter.”

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A noção de eusébeia se forjou aos poucos. Durante todo o período clássico, ela

apresentava como característica uma associação com a justiça e servia para designar um

conjunto de comportamentos, que faziam com que um homem ou uma cidade fossem

reconhecidos como respeitosos aos deuses, aos outros homens e às regras morais que

regulam a vida na cidade.

Assim, ser piedoso era estar sempre de prontidão para reconhecer e saudar as

potências divinas por meio dos cultos e rituais, que seguiam todos os atos da vida

privada e pública. Era acreditar na eficácia do sistema simbólico que a cidade

estabeleceu com o propósito de mediar as relações entre homens e deuses, e participar,

da maneira mais ativa, naquilo que a cidade propunha.

3.4.3 Impiedade

A cidade se considerava, ela mesma, sob a proteção divina. Essa proteção

continuaria, desde que ela não abandonasse seus deuses guardiões e patronos. Qualquer

ato considerado um atentado à ordem sagrada era sentido pela pólis como uma ameaça a

sua própria existência. Acreditava-se que uma impiedade impune poderia atrair a fúria

divina sobre toda a comunidade, castigando-a. Por isso, as ofensas aos deuses eram

punidas pela cidade, que as considerava um delito público. Na impiedade tem-se a idéia

de um atentado pessoal ao grupo social (Gernet; Boulanger, 1987, p. 289). Ao agir

dessa forma, a pólis estaria se resguardando dos resultados incalculáveis do castigo dos

deuses.

Mas em que consistiria a impiedade? De uma maneira geral, pode-se denominá-

la como a ausência ou a alteração do sentimento de piedade. Para Aristóteles, a

impiedade é “toda transgressão aos deuses, aos daímones, aos ausentes, aos pais e à

pólis” (Aristóteles, Das virtudes e dos vícios, 1251b)92. Segundo Gernet (2001, p. 71), a

noção de delito de impiedade originalmente se centrou na idéia de atentado à família

(um desrespeito aos pais ou aos mortos), e, como a cidade é a continuidade da família,

numa dimensão mais ampla, a impiedade tornou-se um delito contra a pólis.

92 “Toda transgresión en contra de los dioses o de las almas, o también respecto de los ausentes, de los

padres o de la patria.”

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Semelhantemente à relação existente entre a piedade e a justiça, a impiedade

apresenta-se relacionada com a injustiça, de tal maneira que Aristóteles a classifica

como um tipo de injustiça: “Há três espécies de injustiça e de falta de retidão: a

impiedade, a cobiça ou avareza e a luxúria” (Aristóteles, Das virtudes e dos vícios,

1251b)93. A impiedade era um ato injusto por contrariar todos os preceitos básicos que

regulavam a vida na coletividade, trazendo desequilíbrio para as relações estabelecidas

nas esferas humana e sagrada.

3.4.3.1 A impiedade em atos

Os atos considerados ímpios e levados aos tribunais eram dos mais variados

tipos. Contudo, a motivação, que fazia a cidade reprimi-los, era a mesma: temor do que

poderia provocar, nela, o desequilíbrio na relação entre homens e deuses. As ações, que

visavam à punição da impiedade, representavam uma reação violenta do corpo cívico,

que se sentia ameaçado, por ser a religião uma parte integrante da constituição de sua

identidade (Zaidman; Pantel, 2006, p. 12).

Eram passíveis de punição, e consideradas ímpias, as ações ofensivas contra a

propriedade dos deuses, seus cultos e representações. Como exemplo mais expressivo

desse tipo de delito, tem-se a mutilação das estátuas de Hermes e a profanação dos

Mistérios, em 415 a.C., pouco antes da expedição à Sicília, durante a Guerra do

Peloponeso.

A mutilação das estátuas foi considerada um dos maiores atentados à ordem

sagrada vivida por Atenas e culminou com a perseguição de várias pessoas por meio de

acusações de impiedade. As estátuas de Hermes estavam espalhadas em diversos pontos

da cidade, na frente de edifícios públicos e de casas particulares. Eram pilares de pedra

com a cabeça de Hermes e o falo ereto, cuja função era apotropaica.

Esse acontecimento criou uma atmosfera “de pânico religioso colorido de fervor

patriótico” (Finley, 1988, p. 141), pois tamanha impiedade poderia ser perigosa para a

pólis, caso os deuses quisessem se vingar: “Com a mutilação dos Hermes – da maioria

deles se tinha, numa noite, desfigurado os rostos – muita gente ficaria conturbada,

93 “Hay tres especies de injusticia y falta de rectitud: la impiedad, la codicia o avaricia y la lujuria.”

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mesmo dentre os que fazem pouco caso dessas coisas” (Plutarco, Vida de Alcibíades,

19). A vingança dos deuses era ainda mais temível no contexto bélico no qual Atenas se

encontrava, já que os deuses poderiam favorecer a derrota. Diante dessa afronta aos

deuses e do risco a que a cidade ficou exposta, os atenienses reuniram-se rapidamente

para investigar e punir os culpados:

“Entre irados e medrosos, encararam o acontecimento como ousadia partida de um conluio para ações de maior vulto e examinaram a fundo todas as suspeitas, tendo-se reunido o Conselho e a Assembléia, para esse efeito muitas vezes num espaço de poucos dias” (Plutarco, Vida de Alcibíades, 18).

Para encontrar e punir os culpados do incidente, a Boulé foi investido de poderes

especiais para a investigação. Para Bauman (1990, p. 66), o resultado político desse

evento foi o avanço da democracia para a esfera religiosa, pois, pela primeira vez,

prescrições de autoridades religiosas foram dadas a uma sanção secular.

O episódio da mutilação das estátuas de Hermes não foi uma brincadeira ou um

ato de vandalismo isolado. Foi uma ação planejada meticulosamente pelos clubes

aristocráticos com o objetivo de frustrar a expedição à Sicília.

Durante a investigação dos responsáveis pela mutilação, descobriu-se, ao se

interrogar um escravo, que, em certas casas aristocráticas de Atenas, jovens estavam

parodiando os Mistérios. Segundo o relato de Andócides, em Sobre os Mistérios, depois

do interrogatório do criado de Alcibíades, que se chamava Andrômaco, descobriu-se

que, na casa de Pulicíon, haviam sido celebrados os Mistérios por Alcibíades, Nícides e

Meleto. Também estiveram presente outros cidadãos e seus escravos. Mas essa não foi a

única casa em que se parodiaram os Mistérios. Outros interrogatórios mostraram que

mais pessoas tinham participado da profanação, que ocorreu nas casas de Cármides e

Férecles (Andócides, Sobre os Mistérios, 13-18).

Atenas se deparava agora com uma dupla afronta aos deuses, provocada por

jovens considerados irresponsáveis e despreocupados com a tradição. Essas ações

precisavam de imediata condenação para que a cidade assegurasse, no momento de

crise, os valores tradicionais e a benevolência dos deuses.

O principal alvo das condenações foi Alcibíades, um dos três generais no

comando da expedição à Sicília. Assim que desembarcou, ele foi convocado para

retornar a Atenas para responder ao processo da profanação dos Mistérios. Ele não

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voltou e refugiou-se em Esparta. Serviu de conselheiro para o rei Ágis até ser

perseguido por, supostamente, ser amante da rainha, voltando para Atenas em 411 a.C.

A partir desses dois acontecimentos, segundo Bauman (1990, p. 62), se forjou de

maneira definitiva na mentalidade ateniense a ligação entre impiedade, traição contra a

cidade e conspiração contra a democracia (kátalsis toû démou), como demonstra a

definição de Aristóteles, em Das virtudes e dos vícios, que classifica como impiedade

toda transgressão contra a pólis (Aristóteles, Das virtudes e dos vícios, 1251b) . Essa

relação foi explorada com sucesso em casos posteriores, como exemplifica o de

Sócrates, cuja acusação baseou-se no imbricamento do argumento da corrupção da

juventude e da veneração a outros deuses.

A impiedade é um crime contra a cidade, pois estremece os elos religiosos,

prejudicando, assim, um dos elementos fundamentais para a constituição da pólis.

Nesses dois eventos, além da impiedade, fica explícita a ação de grupos que se

organizam secretamente com o intuito de prejudicar a democracia. Por isso, há uma

intensificação da relação entre impiedade e crime contra democracia, o que pode

explicar a opção de utilizar a eisangelía e não a graphē asebeías.

Outros exemplos de atos ímpios são: destruição de oliveiras sagradas e de

qualquer outro objeto consagrado; realização de sacrifícios impróprios; violação de

proibições ritualísticas; saque aos templos; homicídio cometido nas redondezas do

templo, pois trazia para a morada do deus a mácula do sangue; agressão a um

suplicante. Outras ações consideradas ímpias eram a introdução de novos deuses ou

cultos, que ainda não foram reconhecidos pela cidade; perjúrio94; não acreditar nos

deuses protetores da cidade; emitir uma opinião sobre a esfera divina que contrariava a

religião tradicional.

MacDowell (1986, p. 197) e Bauman (1990, p. 116-117) relatam diversos

processos de impiedade ocorridos no século IV a.C, cujas ações se enquadram nas

narradas acima. Árquias, um hierofanta dos Mistérios, sofreu um processo de impiedade

por ter realizado um sacrifício para uma mulher no dia do festival de Haloa. Com isso,

ele descumpriu duas regras sagradas: os sacrifícios somente podem ser realizados pelas

sacerdotisas, e não pelo hierofanta; e no dia do festival era proibido fazer sacrifícios. No

ano de 376/7 a.C. em Delos, no momento em que os atenienses controlavam o

94 O perjúrio era um delito grave, principalmente para os juízes, quando a quebra do juramento de

respeito às leis e de dar o veredicto justo levava a condenação de um inocente ou à inocência de um culpado.

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santuário, vários moradores locais foram condenados ao exílio e a pagarem 10.000

dracmas cada um, por terem perseguido e agredido um dos administradores ateniense

perto do templo de Apolo. Uma mulher, de nome Teóris, foi condenada à morte por

utilizar magia. De acordo com o relato de Flávio Josefo, também foi condenada à morte

Nino, uma sacerdotisa, por introduzir rituais a um novo deus: “Porque foi acusada por

alguém de se iniciar em deuses estrangeiros, mataram a sacerdotisa Nino. Tal iniciação

era proibida e o castigo cominado a quem introduzisse um deus estrangeiro era a morte”

(Flávio Josefo, Contra Apion, II, 267). Por fim, temos o registro que Andrócion, um

rico ateniense que desempenhou diversos cargos políticos e acusou um homem de

impiedade por ter se associado com um parricida.

3.4.3.2 Impiedade e punição: processos de impiedade e o conceito jurídico de

impiedade

Existiram muitos processos de impiedade em Atenas? Esse questionamento é

difícil de ser respondido devido à fragmentação de nossa documentação. Segundo o

relato do autor de A constituição dos atenienses, os processos de impiedade tomavam

parte do tempo dos atenienses: “De vez em quando deviam solucionar conflitos do

exército e qualquer outro delito imprevisto que poderia acontecer, no caso de que alguns

cometam um ultraje inusitado ou atos de impiedade95” (Pseudo-Xenofonte, A

constituição dos atenienses, III, 5)96. Diante das lacunas das provas documentais que

nos restaram, optaremos por pensar que os processos de impiedade foram numerosos, já

que o sentimento religioso era presente em todos os aspectos da vida. A maior parte das

95 Para o tradutor da edição em espanhol, Gerardo Ramírez Vidal, o ultraje inusitado e os atos de

impiedade se referem a paródia dos Mistérios e mutilação das estátuas de Hermes. Para o tradutor, o aoristo de asebēsōsi (atos de impiedade) expressa um valor pontual e não continuo, indicando um evento singular, como foi o caso da mutilação. Entretanto, há um intenso debate acerca da datação da obra, sendo o limite aceito para o texto entre 431 a.C. a 413 a.C.. Se considerarmos a obra anterior a Guerra do Peloponeso, a hipótese de Ramídez Vidal é invalida. Não é o objetivo de nossa pesquisa entrar no debate da datação e estabelecer uma para a obra. A menção da impiedade pelo autor, quer ele esteja se referindo a paródia dos Mistério, a mutilação das estátuas de Hermes ou a qualquer outro processo de impiedade, é um indicativo de que a impiedade causava um distúrbio na cidade que precisava ser rapidamente resolvido.

96 “De vez em cuando se deben solucionar conflictos del ejército y cualquier outro delito imprevisto que pueda darse, em caso de que algunos cometan um ultraje inusitado o actos de impiedad.”

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responsabilidades da pólis era sobre assuntos religiosos e o tribunal era, por excelência,

o local para resolução de conflitos, fossem eles relativos à esfera privada ou pública.

A condição fragmentada de nossas fontes também deixa insolúvel a questão da

definição legal da impiedade. Uma das polêmicas é com relação à intencionalidade do

delito. A pessoa poderia ser condenada por impiedade somente se tivesse consciência de

que cometeu tal ato ou ações ímpias cometidas involuntariamente, ou pela ignorância,

também poderiam ser condenadas? Na opinião de MacDowell (1986, p. 199), a lei

considerava ímpio aquele que cometeu uma ofensa à esfera sagrada, mesmo sem saber

ou querer. Ésquilo foi acusado de impiedade por ter revelado alguns dos segredos dos

Mistérios numa de suas peças. Mas, como ele não era um iniciado, não poderia saber

que o que narrava quebraria o voto de silêncio, a menos que, alguém tivesse contado

para ele o funcionamento dos Mistérios. Não se tem registro do desfecho do caso, mas

suspeita-se de que ele foi inocentado (Bauman, 1990, p. 45-6). O caso de Ésquilo indica

que o desconhecimento da afronta ao sagrado pode ser um argumento forte na defesa.

Porém, nada impede de acreditar que ofensas graves, mesmo cometidas

inconscientemente, eram severamente punidas.

Outro problema é com relação à ação jurídica utilizada para processar a

impiedade. No século IV a.C., a impiedade era processada por meio da graphē, mas não

se encontra nenhum registro desse uso no século V a.C. Sabe-se que a eisangelía foi o

meio utilizado para processar os profanadores dos Mistérios e os mutiladores das

estátuas. Segundo MacDowell (1986, p. 201), os processos de Anaxágoras e de

Protágoras foram uma eisangeliai. Para o autor, o decreto de Diopites pode ter sido

modificado em 403 a.C., quando todo o código das leis ateniense foi reescrito. Por esse

motivo o processo contra Sócrates em 399 a.C. foi uma graphē. Para ele (1986, p. 199),

esse foi o procedimento normal para processar a impiedade tanto no século V a.C.

quanto no IV a.C., mas a eisangelía também era possível de ser utilizada.

A problemática que provoca o maior embate entre os estudiosos é a

indeterminação, ou não, do conceito jurídico de impiedade. Seria a impiedade no

contexto jurídico diferente do conceito moral?

Rudhardt combate a idéia de que o delito de impiedade é indeterminado no

direito ático. A indeterminação e a elasticidade da noção de impiedade é a tese mais

difundida e foi defendida com mais vigor a partir do século XVIII97, quando a

97 Para uma lista dos estudiosos do século XVIII que analisaram a impiedade ver Rudhardt, Jean. La

définition du délit d'impiété d'après la legislation attique. Museum Helveticum, v. 17, 1960, p. 87.

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impiedade provocou inquietação nos estudiosos: como a pólis, que favoreceu o

desenvolvimento da filosofia, pode condenar filósofos por impiedade? Gernet (2001, p.

72) é adepto da tese da elasticidade da noção. Para ele, a noção jurídica de impiedade

tem um sentido muito amplo e não se relaciona com os atos materiais, mas com o

pensamento. Semelhantemente, MacDowell (2002, p. 17) defende que os processos de

impiedade não eram restritos à contravenção de leis específicas e, por isso, várias ações

poderiam ser enquadradas nesse delito. Como exemplo, o autor cita a mutilação das

estátuas de Hermes, em 415 a.C., que foi considerada uma impiedade, mesmo não

existindo nenhuma lei escrita que proibisse a sua destruição, total ou parcial

(MacDowell, 2002, p. 17).

De acordo com Rudhardt, os favoráveis à tese da elasticidade do termo asébeia

apresentam uma definição insuficiente desse delito. Segundo ele, esse é determinado no

direito ático, pois todas as faltas puníveis recebem um nome técnico e o mesmo

acontece com a impiedade, que pode ser processada por uma graphē asebeías

(Rudhardt, 1960, p. 89). Para ele, o conceito moral de impiedade entre os gregos é

indefinido, mas o conceito jurídico é definido. Na sua perspectiva, a definição de

impiedade apresentada por Aristóteles, em Das virtudes e dos vícios, é um conceito

moral, diferente dos utilizados nos tribunais. Sua justificativa está na determinação do

descuido com os pais como um ato de impiedade. Nos tribunais essa atitude recebia o

nome técnico de kákōsis gonēōn (Rudhardt, 1960, p. 88) e não de impiedade, apesar de

que, no julgamento moral poderia ser considerada uma ação ímpia98.

Para demonstrar que a impiedade é definida juridicamente, o autor utiliza o

decreto estabelecido a partir da proposição do adivinho Diopites, citada por Plutarco na

Vida de Péricles, parágrafo 32, e a lei mencionada por Flávio Josefo (Contra Apion, II,

267), que considera um delito de impiedade introduzir novos deuses dos quais a pólis

não autorizou o culto. Para o autor, a necessidade de se estabelecer um decreto para

condenar como ímpios aqueles que não acreditavam na existência dos deuses da cidade

ou ensinavam as coisas celestes de forma a contestar a natureza divina é um indício da

necessidade de uma legislação que definisse o delito de impiedade, para que a cidade

pudesse agir juridicamente. De acordo com ele, se o crime fosse indefinido e extensivo

a todas as ações impiedosas, não haveria nenhum motivo para a criação de um decreto

assim. Para comprovar sua tese, o autor também evoca uma legislação acerca de crimes

98 Gernet (2001, p. 109), aponta para um relação entre impiedade, traição e kákōsis gonēōn desenvolvida

pelo orador Licurgo no discurso Contra Leócrates (94, 117).

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100

religiosos99 relativos a infrações cometidas contra rituais e cultos que não eram tratados

como graphē asebeías e recebiam uma nomenclatura jurídica específica. Para ele, os

atenienses definiam com exatidão todos os delitos considerados ofensivos à ordem do

sagrado, pois somente os atos que se enquadrassem precisamente numa das leis eram

passíveis de serem processados.

A principal falha na tese de Rudtdhard é considerar que todas as leis relativas à

impiedade nos foram transmitidas. Entretanto, existe uma forte suspeita de que a lei

acerca da impiedade não foi preservada. Na opinião de MacDowell (1986, p. 199), a lei

a respeito da impiedade deveria ser similar à lei sobre a hýbris, preservada no Contra

Mídias, e deixava a cargo de qualquer um submeter uma graphē contra qualquer um que

tivesse cometido uma impiedade. No entanto, ela não oferecia uma definição precisa de

quais comportamentos seriam considerados ímpios100. Para afirmar que todos os atos de

impiedade, para serem processados, precisariam repousar numa contravenção definida

juridicamente, como propõe Rudtdhard, seria necessário o conhecimento de mais

exemplos de processos de impiedade, dos quais, infelizmente, poucos chegaram até nós.

A maior parte dos registros sobre os processos de impiedade, e a maior parte dos

exemplos citados por Rudtdhard, diz respeito a processos movidos contra filósofos, que

se enquadram nos delitos punidos pelo decreto de Diopites. Dessa maneira, frente às

lacunas existentes pela ausência de fontes, é preferível trabalhar na perspectiva da

elasticidade do conceito jurídico da impiedade. Esse conceito pode conter vários atos,

cabendo aos juízes, a partir de seu próprio entendimento, considerar se o ato do acusado

foi ímpio ou não (Macdowell, 1986, p. 200; Gernet, 2001, p. 75).

Segundo Cohen (1994, p. 205), nos discursos forenses, a impiedade foi utilizada

amplamente pelos oradores como sinônimo de injustiça, sem que o adversário tenha

cometido necessariamente uma afronta grave ao sagrado. Para o autor, o uso da

impiedade com esse sentido segue um conjunto de técnicas retóricas pelas quais o

orador procura caracterizar seu oponente como ímpio, violento ou imoral. Essa

utilização da impiedade no contexto do litígio é um indicativo de como era um

argumento com forte poder de persuasão, capaz de atrair a simpatia dos juízes e

depreciar os oponentes.

99 Para uma relação das leis relativas à esfera religiosa ver o livro de Lupu, Eran. Greek Sacred Law: A

collection of New Documents (NGLS). Boston: Bristol, 2005. 100Para MacDowell (1986, p. 199-200), a ausência na precisão da delimitação dos atos ímpios possibilita

ao acusador duas atitudes: a primeira, é relacionar o comportamento com a violação de alguma lei sagrada e, a segunda, é deixar para os próprios juízes decidirem se o ato cometido foi, ou não, uma impiedade.

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101

Assim, diante da ausência de documentação, não se deve tentar elaborar um

conceito jurídico definido para a impiedade. Sabe-se que a impiedade despertava

sentimentos de reprovação, em maior ou menor grau, o que produziu resultados bem

diferentes nos processos. Com relação à afronta ao religioso, não se pode afirmar se

Atenas foi ou não tolerante, ou mesmo se essa palavra teria algum sentido para ela.

3.4.3.3 Impiedade na vida pública: Os processos de impiedade

Dos registros que possuímos sobre os processos de impiedade, a maioria diz a

respeito de processos movidos contra filósofos, mas como já foi demonstrado nos

exemplos acima, os processos não se voltaram exclusivamente contra eles. Não se

detecta qualquer diferença na acusação de impiedade formulada contra os filósofos e os

não filósofos, assim, não se pode estabelecer nenhuma diferença técnica na acusação

desses dois grupos (Bauman, 1990, p. 118).

No século V a.C., os processos com a acusação de impiedade mais conhecidos

são contra Anaxágoras, Fídias, Aspásia, Diágora de Melos, Andócides e Sócrates. Já

para o século IV a.C., sabe-se que Aristóteles, Demades, Teofrasto, Demétrio de Falero,

Estílpon de Mégara e Teodoro foram processados por impiedade.

No século V a.C., a impiedade entra na cena política com os diversos processos

movidos pelos inimigos de Péricles a pessoas pertencentes ao ciclo de convivência do

estratego. Segundo o relato de Plutarco, Fídias foi processado pelos inimigos de Péricles

sob a acusação de furtar marfim e ouro das construções do Partenon e de impiedade, por

ter reproduzido sua imagem e a de Péricles no escudo da estátua de Atena. Ele foi

penalizado com o exílio e o pagamento de uma multa. A amante do estratego, Aspásia,

foi alvo de piadas e ataques, principalmente nas comédias, devido à influência que

exercia nele. Foi processada por impiedade por um poeta cômico de nome Hermipo e

foi considerada inocente devido à intervenção de Péricles. Nesse contexto, tem-se a

aprovação de um decreto, Decreto de Diopites, que irá atingir principalmente o grupo de

intelectuais, e o primeiro a ser condenado por ele foi Anaxágoras, mestre de Péricles.

Para Bauman (1990, p. 48), o decreto serviu para tornar o dêmos responsável pela

punição dos crimes religiosos, pois transferiu para ele a possibilidade de julgá-los,

tarefa antes restrita ao Areópago. Segundo o autor, o sucesso nos processos contra os

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aliados de Péricles tornou a impiedade, por meio do decreto de Diopites, numa arma

política muito eficaz, sendo utilizada com sucesso em 415 a.C, 399 a.C., e em outros

períodos da história ateniense (Bauman, 1990, p. 49).

2.4.3.3.1 Decreto Diopites

O Decreto de Diopites foi proposto pelo adivinho de mesmo nome e aprovado

em Atenas por volta de 432-430 a.C., nos anos da eclosão da Guerra do Peloponeso.

Segundo o decreto, era considerado ímpio aquele que não acreditava na existência dos

deuses da cidade ou ensinava sobre coisas celestes de forma a contestar a natureza

divina.

Nesse momento, a pólis precisava assegurar a benevolência dos deuses, já que se

preparava para enfrentar Esparta. Culturalmente, a cidade vivia uma grande

efervescência intelectual, na qual se destacava a atuação dos sofistas com suas novas

acepções sobre o homem, a cidade e os deuses.

Nesse contexto de mudanças, a pólis buscou preservar as crenças da

comunidade, processando aqueles que a ameaçavam, seja por colocarem em cheque a

existência dos deuses da cidade por meio de seus ensinamentos, seja por substituírem os

deuses por outros.

Há hipóteses que defendem a aprovação do decreto como resultado de uma

manobra política realizada pelos inimigos de Péricles para o atingirem indiretamente, ao

processarem seu mestre, Anaxágoras. Para Finley (1988, p. 139), essa interpretação é

equivocada, pois julga “a força dos antigos temores do sobrenatural em termos

racionalistas modernos”. Segundo ele, o decreto foi aprovado nos primeiros anos da

guerra, quando ocorreu a peste, que dizimou cerca de um terço da população ateniense.

Tal quadro provocou terror na população, fazendo com que reagisse violentamente a

tudo que representasse uma ameaça à comunidade.

O quadro de terror e desolação provocado pela guerra é explicitado por

Tucídides na sua narrativa da Guerra do Peloponeso. O historiador narra que a

população se voltou aos deuses pedindo o fim da peste, mas, como suas preces pareciam

vãs, longo as abandonaram: “As preces feitas nos santuários, ou os apelos aos oráculos

e atitudes semelhantes foram todas inúteis, e afinal a população desistiu delas vencida

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pelo flagelo” (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, 47). Depois de abandonar

os deuses, os homens passaram a não respeitar as leis e a tradição e com isso, relegaram

um dos aspectos essenciais da piedade, o cuidado com os mortos, sepultando seus

parentes como podiam, já que a peste provocou um número tão grande de mortos que

faltava material para a realização dos funerais:

“Os templos nos quais se haviam alojado estavam repletos dos cadáveres daqueles que morriam dentro deles, pois a desgraça que os atingia era tão avassaladora que as pessoas, não sabendo o que as esperava, tornavam-se indiferentes a todas as leis, quer sagradas, quer profanas. Os costumes até então observados em relação aos funerais passaram a ser ignorados na confusão reinante, e cada um enterrava os seus mortos como podia. Muitos recorreram a modos escabrosos de sepultamento, porque já haviam morrido tantos membros de suas famílias que já não dispunham de material funerário adequado” (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, 52).

O alto grau de incerteza gerado pela guerra e a peste causou uma busca para a

realização imediata de todos os desejos, o que levava a desobediência dos preceitos

religiosos e legais:

“[...] o temor dos deuses e as leis dos homens já não detinham ninguém, pois vendo que todos estavam morrendo da mesma forma, as pessoas passaram a pensar que a impiedade e a piedade eram a mesma coisa; além disso, ninguém esperava estar vivo para ser chamado a prestar conta e responder por seus atos; ao contrário, todos acreditavam que o castigo já decretado contra cada um deles e pendente sobre suas cabeças, era pesado demais, e que seria justo, portanto, gozar os prazeres da vida antes de sua consumação” (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, 53).

Com base nesse relato de Tucídides, fica claro que a cidade estava entrando em

colapso, já que havia um grupo de pessoas que não possuía qualquer limite, agindo sem

se preocupar com os outros. Nesse contexto de crise, a pólis busca assegurar sua

integridade reforçando um de seus elementos essenciais, a religião, que estava numa

situação muito frágil. O decreto de Diopites se enquadra na tentativa da cidade de

assegurar sua coesão, em torno dos deuses e dos homens.

Para Finley, os processos realizados posteriormente ao decreto de Diopites

foram um “ataque a um setor dos intelectuais” (1988, p. 140), já que as pessoas eram

perseguidas mais por suas idéias, mesmo quando elas não demonstravam uma

interferência direta na ordem religiosa, do que atos explícitos de impiedade. O autor

concorda com Dodds (2002, p. 191), que explicita que “a prova mais surpreendente da

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reação contra o Iluminismo encontra-se nos processos bem-sucedidos movidos contra

intelectuais, a propósito de questões de natureza religiosa, ocorridos em Atenas no

último terço do século V a.C.”. Esse “setor dos intelectuais” representava um perigo

para a ordem estabelecida pela cidade, pois questionavam crenças, profundamente

enraizadas, relativas à esfera política, moral e religiosa.

2.4.3.3.2 Processos de impiedade contra filósofos

A inexistência de um dogmatismo religioso levava a pólis a ignorar as

provocações da filosofia, que eram consideradas restritas a um número reduzido de

pessoas. Dessa forma, foi possível a convivência da religião tradicional com as mais

ousadas experimentações intelectuais no campo teológico, ético e cientifico. (Vegetti,

1994, p. 253). Contudo, esse convívio não foi tão pacífico, e os processos contra os

filósofos marcam o conflito entre a pólis e os novos questionamentos emergentes. Por

outro lado, nem todos os filósofos foram perseguidos e houve no âmbito da cidade um

espaço para o desenvolvimento das reflexões filosóficas. Os processos de impiedade

contra os filósofos marcam o limite da atuação da filosofia na cidade, mas,

principalmente, mostram os limites que o filósofo deveria ter na sua relação com a

política, por meio de seu envolvimento com grupos políticos. Nos casos levantados para

o estudo da dissertação, com exceção de Estílpon, todos os filósofos foram processados

por integrantes de grupos políticos opostos àqueles com os quais possuíam algum tipo

de ligação. A partir disso, pode considerar-se que a cidade dava liberdade para o

desenvolvimento da reflexão filosófica, desde que não a prejudicasse, por meio da

mudança de conduta dos cidadãos. As considerações sobre a impiedade dos filósofos e

sua relação com grupos políticos será apresentada de forma breve. Esse tema necessita

uma investigação mais detalhada, que não é possível devido aos limites da pesquisa.

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Anaxágoras

Anaxágoras foi acusado de impiedade por ensinar que o Sol era uma pedra

incandescente e a Lua uma simples pedra, negando, dessa forma, que eles seriam os

deuses Apolo e Ártemis, respectivamente. Não se têm muitas informações sobre o

processo e os relatos são dúbios. Há três versões para o caso. A primeira, narra que o

filósofo foi processado por Cléon, inimigo de Péricles, e foi defendido pelo estratego.

Foi considerado culpado e como pena foi exilado e pagou uma multa de cinco talentos.

A segunda, conta que o processo foi movido por Tucídides, o político. O filósofo foi

condenado à morte, mas conseguiu escapar da sentença fugindo para Lâmpsaco, na Ásia

Menor, onde foi recebido com honrarias e, logo depois, fundou uma escola. Na última

versão, enquanto ele estava para receber a execução do processo movido por Tucídides,

Péricles persuadiu os atenienses a deixá-lo fugir.

Sócrates

A condenação de Sócrates conservou ao longo dos séculos um caráter exemplar.

Em torno de seu nome foi construída a imagem do sábio, vítima da intolerância dos

homens que não estavam preparados para seus ensinamentos, que acatou com grande

respeito a decisão da cidade e, com sabedoria, a morte (Mossé, 1990, p. 141). O que

porém, realmente significou o processo de Sócrates para os atenienses? Essa resposta é

difícil de ser respondida, pois os únicos registros do processo provêm de seus discípulos

Platão e Xenofonte. Esse silêncio, leva a crer que o processo não teve uma grande

repercussão na população, como o caso da mutilação das estátuas de Hermes e da

profanação dos Mistérios, cujos registros se encontram em diversas fontes. Para a

população geral de Atenas, a figura de Sócrates deve ter sido semelhante à de

Anaxágoras ou a dos sofistas.

O processo contra Sócrates foi movido por Meleto. Ele era um jovem, que se

considerava um poeta, e pertencia ao grupo político de Ânito, o mentor de toda trama

contra o filósofo. Ânito era um homem rico e influente politicamente, mas não pertencia

a nenhuma família aristocrática. Era um curtidor de peles, que se enriqueceu durante a

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Guerra do Peloponeso. Teve uma atuação importante na restauração da democracia,

após a Tirania dos Trinta. Mais um nome aparece como acusador do filósofo, mas não

se tem muitas informações sobre ele. Sabe-se, apenas, que era um orador, de nome

Lícon, ligado ao grupo político de Ânito (Mossé, 1990, p. 108).

Meleto acusou Sócrates de corromper a juventude, de não acreditar nos deuses

da cidade e de introduzir outras divindades. O filósofo foi sentenciado à morte por uma

diferença pequena de votos: 281 a favor da condenação e 220 contra. Segundo Finley

(1988, p 146), o principal argumento motivador da condenação foi a acusação de

corrupção da juventude. O movimento sofista, e posteriormente Sócrates, ensinaram a

toda uma geração de jovens a questionarem os valores tradicionais. Para os olhos da

maioria, os recentes prejuízos sofridos pela cidade (mutilação das estátuas de Hermes,

perdas na Guerra do Peloponeso e os golpes oligárquicos) eram obras desses jovens

influenciados por seus mentores. Sócrates era considerado como um desses novos

mentores, que corrompia a juventude. Além disso, participava do círculo de amizade de

Alcibíades, Cármides e Crítias, que eram apontados pela população como responsáveis

por graves danos à democracia. Contudo, preferimos adotar a perspectiva que explica a

condenação do filósofo por meio da relação entre as três acusações, uma vez que não

venerar os deuses da cidade e adorar outros era ameaçar a ordem estabelecida pela pólis

para a relação entre deuses e homens. A integração entre as esferas sagrada e humana

foi comprometida por esses jovens corrompidos por meio do questionamento da

tradição. Sócrates se torna impiedoso ao ensinar a transgressão de um dos componentes

da piedade: nada mudar na tradição dos antepassados.

Tanto o processo de Anaxágoras, quando de Sócrates são, sobretudo,

considerados episódios da luta política de Atenas. Com Anaxágoras se queria atingir o

meio político e intelectual próximo a Péricles. Sócrates era membro eminente do grupo

oligárquico chefiado por Crítias que, com o golpe em 404 a.C., tinha colocado em

perigo a democracia ateniense. Apesar de toda a disputa política que envolve os dois

processos, a condenação foi impulsionada, essencialmente, pelo temor da perda de um

estilo de vida, que se formara a partir do Império e da democracia. Esse modo de vida

estava passando por difíceis provas devido à Guerra do Peloponeso, que se prolongou e

acarretou mais prejuízos do que os calculados. A vitória na guerra, que implicava a

vitória desse modo de vida, exigia a benevolência dos deuses ou, pelo menos, a crença

de que estavam neutros e, assim, não favorecendo os espartanos (Finley, 1988, p. 154).

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Por esse motivo, a importância de se preservar boas relações com a esfera divina e

condenar todos aqueles que representavam uma ameaça ao sagrado.

A impiedade, no século IV a.C., continuou como um instrumento de acusação

contra filósofos. Foi utilizada, principalmente, pelo grupo político de Hagnônides,

Demócares e Demófilo, que, após a morte de Alexandre, realizaram uma perseguição

judicial contra seus inimigos políticos e partidários da Macedônia, no período em que a

democracia ascendeu em 318 a.C. Antes dessa data, tem-se registro de um processo de

impiedade contra Aristóteles, em 323 a.C. No mesmo ano também há a acusação de

impiedade do político Demades.

Aristóteles

A morte de Alexandre, em 323 a.C., desencadeou em Atenas um movimento de

perseguição a todos que possuíam alguma relação com os macedônicos. O estagirita,

desde a infância, possuía ligação com os macedônicos, pois seu pai era médico da corte

de Amintas II. Essa relação se estreitou quando o filósofo tornou-se o preceptor de

Alexandre, a convite do rei Filipe II. O filósofo sofreu um processo de impiedade sob a

acusação de que um hino, que compôs para homenagear Hérmias101, era um peã, uma

das formas de lirismo, que consistia num canto em honra aos deuses. Dessa forma, o

hino a Hérmias era a profanação de um canto consagrado somente às divindades.

Devido a esse processo102, o filósofo mudou-se para Cálcide, onde morreu em 322 a.C.

Teofrasto

Teofrasto fez da religião um objeto de intensa reflexão. Segundo a listagem de

Diógenes Laércio, ele escreveu pelo menos seis obras sobre esse tema: Pesquisa sobre a

101Após a morte de Platão, Aristóteles, devido aos laços com os macedônicos, o clima político de Atenas

e o descontentamento com a nomeação do sucessor para a Academia, mudou-se para Asso, onde manteve relações com o tirano Hérmias e casou-se com sua sobrinha.

102Bauman (1990, p. 120) indica outras fontes que apontam para a formulação de um texto por Aristóteles se defendendo da acusação de impiedade.

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divindade, Dos deuses, Da felicidade dos deuses, Da Bacante, Encômios dos deuses e

Sobre a piedade. Infelizmente, é impossível restabelecer completamente o grau de

reflexão realizado pelo filósofo, já que restaram somente alguns fragmentos da última

obra.

O processo contra ele foi movido por Hagnônides, e possivelmente por

Demócares, no momento em que eram feitas perseguições aos partidários da política

macedônica, no intervalo entre o governo de Fócion e de Demétrio de Falero

(O’Sullivan, 1997, p. 138). A motivação política para o processo é o relacionamento do

filósofo com Demétrio de Falero, seu discípulo. Demétrio era partidário da política de

Fócion, isto é, era favorável a uma aliança macedônica. Ele iniciou sua vida política em

325 a.C. e foi eleito estratego várias vezes. Governou Atenas de 317 a.C. a 307 a.C.,

após um acordo, em 318 a.C., quando os macedônios retomaram o controle da cidade.

A natureza da impiedade de Teofrasto não é especificada nas fontes. Ditadi

(2005, p. 94) levanta a hipótese de que a acusação não foi bem formulada, pois o

filósofo foi inocentado pela maioria dos juízes e, por pouco, Hagnônides não teve que

pagar a multa por não ter obtido um quinto dos votos. Para o autor, a motivação do

processo foi a sua obra Sobre a piedade, Perì eusebíias, que propunha uma reforma

político-religiosa para cidade que chocava os valores e ritos principais da religião

tradicional. Já para Bauman (1990, p. 122), provavelmente o filósofo cometeu alguma

ofensa contra o panteão.

Possivelmente, o processo se deu pouco depois da escrita do tratado, entre 316

a.C. e 315 a.C., quando Demétrio exercia o poder. Esse recorte é estabelecido por

Ditadi, que se baseia numa menção, no tratado, de reprovação à conduta de Olimpíade,

mãe de Alexandre. A expressão pública de uma palavra condenatória a ela somente

poderia ter ocorrido depois de sua morte, na primavera de 316 a.C. O processo ocorreu

antes de 314 a.C., pois, nesse ano, Hagnônides foi condenado à morte, por ter proposto

a pena capital a Fócion.

No tratado, Teofrasto recusava os rituais da religião cívica, especialmente o

sacrifício sangrento. Para ele, a religião e as instituições da pólis eram fundadas sobre o

sangue e a piedade por ela exercida era baseada no engano e na injustiça. Ele faz da

piedade uma expressão mais individual, na qual o deus se importava mais com os

sentimentos do fiel, do que com as manifestações públicas de sua devoção: “Quem

deseja ser admirado na sua relação com o divino não deve fazer sacrifícios com grandes

ofertas, mas honrar freqüentemente o divino; não é sua riqueza que deve demonstrar,

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mas sua devoção” (Teofrasto, Sobre a piedade, V)103. Segundo o filósofo, os deuses

apreciam mais as ofertas pequenas do que as grandes, pois eles observam a pureza de

quem está realizando o sacrifício, e não a quantidade ou a qualidade do que é

sacrificado: “Eis como os deuses amam as ofertas pouco custosas. A divindade observa

mais o modo de ser do sacrificante, do que a quantidade dos bens ofertados em

sacrifício” (Teofrasto, Sobre a piedade, IV 15.3)104.

Teodoro

Teodoro, chamado de filósofo ateu, esteve em Atenas durante o governo de

Demétrio de Falero. Ficou conhecido por suas reflexões no campo da matemática e da

geometria. Ele foi expulso de sua terra-natal, Cirene, mas não se sabe qual foi o motivo

e nem, ao certo, se esteve em Atenas antes do governo de Demétrio. Sofreu um processo

de impiedade, que contou com a intervenção de Demétrio. Possivelmente, sua

proximidade com o estratego, até mesmo com Fócion (O’Sullivan, 1997, p. 146), foi a

motivação política para o processo. Qualquer análise sobre a natureza da acusação é

especulativa, devido às poucas informações que se têm. Provavelmente, a acusação era

de descrença dos deuses tradicionais, já que apresentava um repúdio a eles na sua obra

Sobre os deuses.

Estílpon de Mégara

Estílpon de Mégara era uma figura popular em Atenas e seus ensinamentos se

voltavam para o campo ético. Não se tem muitas informações sobre o processo e por

isso não é possível precisar as possíveis motivações políticas que o conduziram. Por

isso, seu processo é considerado um “caso inequívoco de pura asébeia” (O’Sullivan,

103“Chi vuole essere ammirato nel suo rapporto co il divino, non deve far sacrifici com grandi offerte,

ma onorare frequentemente il divino; non è la sua agitezza che deve dimostrare, ma la sua devozione.” 104“Ecco come gli dèi amano le offerte poco costose. La divinità guarda più al modo d’essere del

sacrificante, che alla quantità dei beni offerti in sacrificio.”

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1997, p. 147). Sabe-se que foi acusado de impiedade por declarar que a estátua de

Atena, feita por Fídias, não era a deusa. Como punição foi exilado.

3.4.3.3.3 Outros processos envolvendo a acusação de impiedade

Diágoras de Melos

Diágoras foi um poeta ativo no cenário ateniense no final do século V a.C. Ele

era reconhecido por suas críticas à religião. Foi considerado ateu e condenado à morte

por zombar dos Mistérios. Esse ato, possivelmente, foi uma reação à captura de Melos

pelos atenienses. Ele escapou da pena, fugindo, e os atenienses ofereceram uma

recompensa por sua captura, vivo ou morto (Bauman, 1990, p. 68). Os fragmentos que

possuímos de sua obra não apresentam indícios de uma afronta à religião ou de uma

descrença nos deuses.

Demades

Demades era partidário da política de Fócion. Ele foi condenado por impiedade

sob a acusação de defender a divinização de Alexandre (Bauman, 1990, p. 119). Ele

pretendia incluir o macedônio no panteão dos doze deuses, o que provocaria um

desequilíbrio na ordem estabelecida pela religião cívica. O processo foi movido, em 323

a.C., por Demócares, sobrinho de Demóstenes, que também era contra a divinização do

rei.

Nos processos do século IV a.C., percebe-se uma continuidade da utilização da

impiedade no campo jurídico para atacar aqueles que não estavam diretamente

envolvidos no fazer político, mas que possuíam ligações com algum grupo político.

Nesse período, o argumento da impiedade era utilizado, sobretudo, contra aqueles que

foram considerados partidários da política macedônica. Mesmo sendo nítidas as

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motivações políticas por detrás de cada caso, o corpo de juízes se reuniu para julgar um

processo de natureza religiosa e, pelo que nossos registros apontam, a maioria recebeu a

sentença condenatória.

Em momentos de crise, vários aspectos da cidade eram colocados em xeque e

para se autopreservar a comunidade deveria resguardar seus valores. Nesses momentos,

a religião constituía um valioso respaldo para a tradição, pois a unidade dos homens em

torno dos deuses da cidade correspondia à própria união dos homens. É exatamente

durante períodos de crise que a documentação revela a maior utilização da impiedade

como argumento de acusação. Mas o uso da impiedade não ficou restrito a esses

momentos. Ela foi uma prática constante no meio jurídico ateniense e uma arma

acusatória eficaz, como demonstra o seu uso pelos oradores no empenho de caracterizar

o inimigo como ímpio e o majoritário veredicto condenatório nos processos, mesmo por

uma diferença pequena de votos, como foi o caso de Sócrates.

Assim, ao longo dos séculos V a.C e IV a.C., a impiedade foi utilizada nos

tribunais para demonstrar o perigo que determinada pessoa representava para a

comunidade. Ela foi um importante instrumento na tentativa de desmantelar

grupos/pessoas politicamente divergentes, e uma arma eficiente para atacar aqueles que

não possuíam uma atuação direta na política, mas participavam dela por meio do

convívio em determinados grupos políticos, como evidenciam, claramente, os processos

contra os filósofos.

3.4.3.4 Combate contra a impiedade: As leis de Platão.

O combate contra a impiedade na cidade assume sua forma mais rigorosa não na

pólis histórica, mas, precisamente, na legislação apresentada por Platão na sua obra As

Leis. A definição do delito de impiedade e sua condenação ocupam grande parte do

Livro X.

O tema da relação com o sagrado já tinha sido explorado por Platão no diálogo

Eutífron. No início do diálogo, os dois interlocutores, Sócrates e Eutífron, apresentam

controvérsias sobre a definição de hósios e seu contrário, e é em torno da definição

dessa noção o cerne da obra. Os parentes de Eutífron consideram-no anósios ao

processar o próprio pai, que deixou à míngua um servo que tinha cometido assassinato.

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112

Para os parentes, não é anósios matar um homicida. Já o jovem Eutífron considera seu

pai culpado e ele próprio seria anósios se deixasse de processá-lo. Na visão do jovem,

tem-se a conjunção entre o processo judiciário e o ato de purificar. Ele busca livrar-se

da mácula do erro do pai, levando-o à justiça. Sócrates não concorda com nenhuma das

duas visões e pede a Eutífron a definição verdadeira de hósios.

Nesse diálogo, a palavra hósion aparece nove vezes e o plural, tà hósia, dez. He

hosiótes, seis vezes, e uma na forma negativa, he anosiótes. A dupla tó hósión te kaì tò

anósion aparece quatorze vezes. Já eusebés é bem menos representada, aparece uma vez

no singular e duas vezes no plural. Asébeia aparece três vezes e ho asebón, uma vez

(Zaidman, 2001, p. 158).

A distribuição desigual dos termos hósios e eusebés, e seus derivados, indica a

escolha de Platão pela palavra hósios para a investigação acerca do sentimento que

impele a realização de certas obrigações com relação ao sagrado. Para Zaidman (2001,

p. 159), o filósofo escolheu essa palavra pois ela não é marcada por conotações

circunstanciais, como o grupo eusébeia e asébeia, que era empregado no contexto

jurídico. Segundo a autora, a atribuição jurídica dada à asébeia explica o uso díspar do

grupo de famílias eusébeia e hósios, bem como seus antônimos, no conjunto da obra de

Platão: hósios possui 148 ocorrências contra 7 de eusebés.

O filósofo marca a presença de uma conotação jurídica no emprego recorrente105

do termo asébeia no Livro X de As Leis. Esse livro apresenta a legislação contra aqueles

que cometem ofensas contra os deuses. Esse tipo de ofensa, segundo o filósofo, é a mais

grave dentre todas e merecedora das maiores punições. Nessa obra, ele elabora uma lista

com as ofensas que a cidade deveria punir, começando por aquelas consideradas mais

graves. A primeira é relativa às ofensas ao sagrado e que são de domínio público, como

por exemplo, ações prejudiciais aos templos ou às representações dos deuses; a segunda

se refere às ofensas sagradas, mas que dizem a respeito à família, como, por exemplo, a

profanação dos túmulos; em terceiro lugar está qualquer ofensa aos pais; em quarto

qualquer ação ofensiva contra quem possui cargo público; e, por fim, as ofensas contra

os cidadãos:

“E as ofensas são mais graves quanto atingem as coisas sagradas, e especialmente graves quando atingem coisas que são tanto pública quanto santa, ou parcialmente públicas, por serem partilhadas pelos

105No conjunto na obra de Platão, o termo asebes aparece 15 vezes, sendo que 9 estão presentes no Livro

X de As Leis. A palavra asébeia aparece 21 vezes e asebein 12 vezes (Zaidman, 2001, p. 159).

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membros de uma tribo ou outra comunidade similar. Em segundo lugar (inclusive em matéria de gravidade) vêm as ofensas contra objetos sagrados e túmulos que são privados; e em terceiro lugar vêm as ofensas contra os pais, quando uma pessoa comete um ultraje bem distinto dos anteriores. Um quarto tipo de ultraje é quando uma pessoa, desafiando os magistrados, se apodera ou usa qualquer tipo de suas coisas sem seu consentimento; e um quinto tipo é um atentado aos direitos civis de qualquer indivíduo, o que exige reparo por meios jurídicos” (Platão, As Leis, Livro X, 884a-885a).

Nessa lista, observa-se que os três primeiros tipos de ofensas elencadas como as

mais graves são ações claramente consideradas ímpias, pois indicam o desrespeito aos

deuses, à cidade e aos pais. Assim, as ofensas mais graves, que devem ser combatidas

pela cidade, são aquelas que contêm traços de impiedade. Possivelmente, devido a isso,

o filósofo apresenta os motivos que conduzem a pessoa a realizar uma ação ímpia. Para

ele, há três razões para se cometer impiedade. A primeira é não acreditar nos deuses. A

segunda é acreditar neles, mas achar que eles não se importam com os assuntos

mundanos. A última é acreditar que os deuses são facilmente conquistados e

persuadidos com preces e sacrifícios:

“Ninguém que acredite, como é prescrito pela lei, na existência dos deuses jamais cometeu uma ação ímpia voluntariamente ou proferiu uma palavra criminosa; aquele que agiu assim só pode tê-lo feito movido por uma destas três convicções: não acredita no que eu afirmei, acredita nos deuses, mas não que estes se importem como os seres humanos ou acredita que os deuses são fáceis de serem conquistados quando subornados por oferendas e orações” (Platão, As Leis, Livro X, 885b).

É interessante observar no trecho acima que a crença nos deuses é assegurada

pela lei. Assim como na pólis histórica, na legislação proposta por Platão a cidade toma

para si o dever de fazer com que seus habitantes acreditem nos deuses, principalmente

naqueles que são protetores da cidade. Mais uma vez, isso demonstra que a coesão em

torno dos deuses reforça a coesão dos homens na cidade. O sistema de símbolos que a

religião oferece constitui em um valioso aparato simbólico que permite aos habitantes

da cidade se identificarem como pertencentes ao mesmo grupo. Assim, quando os

homens reforçam seu elo com os deuses, reforçam sua ligação com a cidade.

Em mais um ponto, a legislação proposta por Platão está de acordo com as

práticas da pólis histórica; nas duas são considerados ímpios aqueles que deixam uma

impiedade sem a devida punição: “[...] e se algum magistrado ao ser informado do fato

[da impiedade] deixar de levar a pessoa à corte, ele próprio estará sujeito a uma

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acusação por impiedade nas mãos de quem quiser puni-lo em nome das leis” (Platão, As

Leis, Livro X, 907e).

Devido à importância que a piedade tem para cidade e os perigos que a

impiedade representa, a última deve ser severamente punida, e se deve criar

mecanismos para evitá-la. Em As Leis, a impiedade é evitada por meio do controle

rigoroso da cidade nos assuntos religiosos. Esse controle é legitimado e exercido pelo

estabelecimento de uma lei que determina o controle pela cidade de todas as ações que o

fiel deseje fazer para entrar em contato com a esfera sagrada. Dessa maneira, o cidadão

somente poderia realizar sacrifícios por intermédio de um dos sacerdotes da cidade, e

em sua casa estava proibido qualquer espécie de santuário:

“ninguém possuirá um santuário em sua própria casa; quando alguém estiver motivado em espírito a realizar um sacrifício, deverá dirigir-se aos locais públicos para sacrificar e apresentará suas oblações aos sacerdotes e sacerdotisas aos quais diz respeito a sua consagração; aí ele mesmo, em companhia daqueles que escolher, unir-se-à nas orações [...]” (Platão, As Leis, Livro X, 909d-909e).

Assim, nessa obra de Platão, se encontra a exacerbação máxima do controle da

religião pela cidade. A preocupação em ter esse controle e a criação de mecanismos,

para que se puna e evitem todas as ações que provoquem distúrbio na esfera religiosa,

demonstra a importância da religião para a cidade, e o papel vital desempenhado por ela

na manutenção da ordem na pólis.

3.4.4 Piedade e impiedade: normas para a relação entre os homens

O homem grego, primeiramente, se define por sua filiação à pólis, por sua

participação ativa nela, exercida por meio de sua capacidade deliberativa e julgadora.

Semelhantemente, a piedade e a impiedade também se definem a partir de sua relação

com a cidade ou, em outras palavras, ela se relaciona com a cidade porque ditava

condutas que os homens deveriam fazer. Dessa maneira, tanto a piedade, quanto a

impiedade são indicativos de como os homens se relacionavam entre si na pólis. A

piedade demonstra ações que são consideradas positivas, já a impiedade, como os

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exemplos acima evidenciaram, eram os atos considerados negativos, pois ameaçavam

aquilo que foi estabelecido como correto para a pólis.

A dimensão social e coletiva do religioso não anula a experiência íntima da

pessoa. A piedade possui elementos que proporcionam à pessoa uma experiência

pessoal com o deus. Pode-se chamá-la de dimensão subjetiva. E por moldar

comportamentos e atitudes que eram socialmente esperados, ela possui uma dimensão

social. A impiedade é mais fortemente percebida na sua dimensão social, pois ela se

manifestava, quando oferecia um risco para a cidade, e precisava ser combatida. Assim,

para a impiedade ocorrer ela precisa do outro. Ela somente ocorre quando alguém

considera que o ato realizado por outrem foi ofensivo à esfera religiosa.

Essa divisão entre piedade/impiedade interior ou pessoal e piedade/impiedade

exterior ou social é usada para efeitos explicativos e nos auxilia na compreensão dessas

noções religiosas. Os gregos não as percebiam com essa dicotomia e não foi o intuito da

pesquisa introduzir essa oposição. Em nosso trabalho, o enfoque ficou voltado para a

interiorização nas pessoas da piedade e da impiedade por intermédio dos modelos de

conduta que deveriam ser seguidos ou recusados de acordo com o estipulado pela pólis

para a relação com o sagrado. Nosso recorte conduziu para uma perspectiva que

privilegiasse as manifestações sociais. Para uma análise que valorize a dimensão

subjetiva, privilegiando a relação entre o fiel e a divindade seria necessária uma

pesquisa documental que utilize outras fontes, além das que foram usadas neste

trabalho.

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CAPÍTULO 4

A impiedade no discurso Contra Mídias

4.1. Lei e democracia: a importância das leis na retórica do Contra Mídias

O estabelecimento do sistema jurídico ateniense relaciona-se com a esfera

religiosa, tendo essa relação se perpetuado em certa medida devido à ausência de

separação nítida das esferas política, jurídica e religiosa no mundo grego. Essa ausência

de separação levou alguns estudiosos a considerarem o temor da punição divina uma

etapa anterior ao estabelecimento do direito como uma ação positiva dos homens106.

Eles acreditam, que com o desenvolvimento da pólis, ocorreu a substituição dos

sentimentos de cunho religioso de temor ou satisfação advindo do conhecimento de que

os deuses punem os infratores pela racionalidade incorporada na pena jurídica infligida

aos culpados depois de um processo decisório. Entretanto, a relação entre religião e

direito no mundo antigo, especialmente para a realidade ateniense, objeto de estudo

desta pesquisa, é mais complexa do que pensá-la como um jogo de sucessões em que as

ações realizadas pelo sentimento religioso são consideradas primitivas e foram

substituídas pela racionalidade.

Para a análise dessa relação, adotaremos a proposta de Gernet (1982a, p. 11),

que aborda as formas de mentalidade religiosa expressas no direito. Ele se volta para a

análise das práticas e crenças religiosas que podem ser intimamente associadas ao

direito, sem que isso signifique que sejam primitivas. Com o aprimoramento do direito,

tem-se a “laicização da palavra” (Gernet, 1982a, p. 110) e o enfraquecimento do

simbolismo religioso. Mas esse simbolismo na prática judiciária continua ecoando na

pólis, por ser a religião um aspecto essencial à vida do homem grego, e foi

freqüentemente utilizado nos tribunais por constituir um forte apelo. Aristóteles, na

Retórica, ao expor as paixões de temor e confiança, afirma que há uma predisposição do

público a acreditar que a divindade pune as injustiças:

106Pierre Noailles e Henri Lévy-Bruhl são autores que defendem essa hipótese, citados como exemplos

por Gernet (1982a, p. 7).

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“E, em geral, se estamos em boa situação com os deuses, tanto em outras questões, quanto nas provenientes de presságios e de oráculos, [...] Com efeito, a cólera inspira confiança; ora, não cometer injustiça mas sofrê-la causa a cólera e supõe-se que a divindade socorre as vítimas de injustiça” (Aristóteles, Retórica, 1383b).

O início mítico da institucionalização da justiça por meio da criação do tribunal

no Areópago demonstra a relação entre religião e direito. O Areópago era formado pelos

arcontes mais antigos que deixaram de exercer suas funções e se tornavam membros

vitalícios. Após as reformas de Efialtes (462-1 a.C.), ele perde parte de suas funções

judiciárias, restringindo sua atuação às tentativas de assassinato, assassinatos

premeditados e investigações acerca de incêndios e envenenamentos. Mesmo que a

maior parte dos assuntos judiciais fosse resolvida nos tribunais populares, o Areópago

encarnava, para os atenienses, o estabelecimento e a manutenção da justiça, da ordem e

das leis.

O Areópago foi instituído para resolver os crimes de sangue (homicídios),

interrompendo com o encadeamento de mortes entre as famílias, envolvidas no

assassinato, criado pelo dever da vingança. Na origem mítica do Areópago, narrada por

Ésquilo nas Eumênides107, o primeiro crime julgado foi o matricídio de Orestes. O pai

de Orestes, Agamêmnon, foi morto de forma vergonhosa por sua mãe, Clitemnestra,

após regressar da Batalha de Tróia. Por ser o único herdeiro masculino, Orestes tem o

dever de vingar a morte do pai. Mas isso gera um impasse para o personagem trágico

pois, para a realização da vingança, ele deve cometer o crime hediondo de assassinar a

própria mãe. Orestes comete o matricídio e, em seguida, parte para o exílio, levando

consigo a mácula do assassinato. Mesmo que Orestes tenha cometido um crime para

salvar a honra de seu pai, aquele também deve ser castigado pelo matricídio e passa,

então, a ser perseguido pelas Erínias. Ele pede o auxílio de Apolo, que o acolhe. Para

resolver o impasse (se Orestes merece ou não ser punido pelo matricídio), institui-se,

por intermédio da deusa Atena, um tribunal formado pelos melhores cidadãos que ficam

encarregados de julgar o caso. A composição do tribunal por homens e deuses reforça a

idéia de que a justiça constitui-se simultaneamente com a esfera humana e a divina.

Apolo se apresenta para a defesa de Orestes e declara que o matricídio é justo

por estar em conformidade com os desejos de Zeus. Para a condenação, apresentam-se

as Erínias, que desejam a punição por ele ter assassinado um consangüíneo. Na tragédia,

107As Eumênides são a última tragédia da Orésteia também composta pelas tragédias Agamêmnon e

Coéforas.

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o julgamento segue os mesmos passos dos tribunais de Atenas. A acusação e a defesa

têm um determinado tempo para expor seus argumentos, para que depois os juízes, com

“a justa sentença” (Ésquilo, Eumênides, 675-676), votem favoravelmente ou não ao

acusado. O papel de arconte-rei, que preside as reuniões no Areópago, é assumido pela

deusa Atena, demonstrando o caráter sagrado dessa função, bem como a sacralidade do

procedimento judiciário. No fim das Eumênides, tem-se a absolvição de Orestes, que

representa a quebra do ciclo de vingança familiar e a defesa de um novo modelo de

reparação pelos crimes cometidos. Essa reparação seria estabelecida a partir de uma

justiça deliberativa, realizada pela pólis, por meio da coletividade dos cidadãos, a qual

cessa a justiça retributiva de caráter vingativo, realizada pelas famílias.

Com a criação do tribunal no Areópago, a vingança, como um dever relativo à

esfera privada, passa para a pólis. Ela prima pela manutenção da justiça por meio das

condenações dos culpados. Dessa forma, o conflito passa a ser resolvido na esfera

pública, com a intermediação dos aparatos criados pela cidade. A partir da incorporação

dos conflitos privados pela pólis, há elaboração das leis, que, na democracia, servem

para regulamentar os aspectos considerados essenciais à vida na cidade, garantindo a

segurança comum de todos os habitantes. A resolução de conflitos privados, na esfera

pública, requer uma confiança das partes litigantes nos instrumentos utilizados pela

cidade e a crença de que tais instrumentos são justos e eficientes para a manutenção da

boa ordem. Por isso, o bom cidadão, preocupado com a cidade, deve confiar nas leis e

no veredicto feito pelos juízes. Paralelamente à organização do sistema judiciário, a

pólis define a noção de delito e faz-se a distinção entre a religião, a moralidade e o

direito. A separação dessas esferas se dá quando a noção do delito se consolida na idéia

de uma repressão organizada pela cidade (Gernet, 2001, p. 81).

A confiança nas leis e no veredicto justo da cidade (proferido pelo grupo de

cidadãos que exerce a tarefa de juízes) é usada como estratégia de convencimento pelos

oradores nos discursos forenses. A aparição recorrente, nos discursos, do apego à lei, já

é um indício de que esse sentimento tinha um impacto nos atenienses. Relacionados a

ele, existem outros sentimentos que envolvem a própria prática política na cidade. A

relação entre lei e democracia tem uma forte ressonância no Contra Mídias e será

analisada a seguir, de forma breve, para possibilitar uma compreensão mais apurada do

discurso e auxiliar no entendimento do papel da impiedade na estratégia persuasiva de

Demóstenes.

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Para os gregos, as leis eram obras humanas elaboradas a partir da convenção

entre os homens. A palavra grega nómos, utilizada para designar a lei, é a mesma usada

para expressar o costume. Ela representa um princípio de ordem e, também, pode

indicar a maneira como algo se estabelece a partir da prática do hábito, em outras

palavras, as ações e as tradições praticadas por membros de um grupo. Segundo

Aristóteles, o que faz a lei ter seu poder de coerção, garantindo que todos a obedeçam, é

o hábito (Aristóteles, Política, 2, 3, 1269a).

Para Demóstenes, mais do que o hábito, a lei somente tem força quando

colocada em prática, em outras palavras, no momento em que os juízes punem aquele

que a transgride. Para ele, a lei não passa de um “texto escrito” (Demóstenes, Contra

Mídias, 30) e somente terá eficácia quando colocada em prática pelos juízes, por

intermédio do veredicto justo:

“E estas leis, como funcionam? Garantem a todos os cidadãos, por meio delas, a punição daqueles que cometem uma ofensa ou um dano aos outros. Portanto, quando vocês punem quem viola as leis, não estão entregando-o aos seus acusadores, mas estão reforçando as leis em interesse próprio” (Demóstenes, Contra Mídias, 30)108.

A aplicação da lei permite, ao mesmo tempo, o seu fortalecimento e o da

democracia, como indica Demóstenes ao dizer que “as leis são fortes graças a vocês

[juízes] e vocês graças a elas” (Demóstenes, Contra Mídias, 224)109. A lei assegura a

maior coesão entre os cidadãos, por meio de três pontos. Primeiro, pela reafirmação de

modelos de conduta que não devem ser seguidos. Segundo, pelo próprio ato de julgar,

que reúne os cidadãos em um processo decisório e aumenta o grau de participação nos

assuntos da cidade. E, por fim, pela exclusão ou pagamento de uma reparação por

aqueles que agiram em desacordo com os princípios estipulados pela coletividade.

As leis se apresentam de forma benéfica para a vida coletiva, pois estabelecem

medidas que buscam coibir a sobreposição de indivíduos e a ação de sujeitos que agem

sem se preocupar se provocam prejuízos. Elas são benéficas, pois garantem a ordem da

pólis, sendo sua transgressão um risco para ela. Como o malefício do crime pode se

espalhar por toda a cidade, a reparação do crime não interessa somente à parte

diretamente prejudicada, mas a todos os cidadãos. Dessa forma, quem transgride a lei

108“E queste leggi come operano? Esse garantiscono a ogni cittadino la punizione, per mezzo loro, di chi

commette offese a danno degli altri. Quando dunque voi punite chi viola la legge, non lo consegnate ai suoi accusatori, ma rafforzate nel vostro stesso interesse le leggi.”

109“Di conseguenza le leggi sono forti grazie a voi e voi grazie a loro.”

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deve ser punido com severidade mesmo tendo realizado várias ações benéficas à pólis.

Segundo o orador:

“Portanto é necessário protegê-las [as leis] como protegeríamos a nós mesmos se fôssemos injustiçados, e considerar as violações das leis como crimes que atingem a toda comunidade, independentemente de quem for surpreendido praticando-os, e não considerar nem liturgias, nem compaixão e nem prestígio pessoal, nem imaginar qualquer outro meio ou qualquer outra escapatória para não se fazer pagar, com a punição, quem viola a lei” (Demóstenes, Contra Mídias, 225)110.

Ao propor que o cidadão que ajudou a cidade e outro que fez poucas ações

benéficas sejam punidos com a mesma severidade, o orador visa minimizar um possível

apelo de Mídias aos juízes. O apelo às boas ações feitas à cidade é freqüentemente

construído nos discursos e busca a caracterização do orador como um benfeitor da pólis,

principalmente por participar de liturgias e de campanhas militares. Esse é um poderoso

argumento capaz de atrair a simpatia para o orador e até mesmo inocentá-lo num

processo, como indica o coro de As Vespas, que, ao indagar sobre os motivos da

ausência do pontual Filocléon, revela que o júri inocentou um homem por ele ter se

apresentado como um cidadão preocupado com a pólis:

“Talvez seja por causa daquele homem que ontem escapou de nós recorrendo a mentiras, dizendo que era inteiramente dedicado à cidade de Atenas, e que foi o primeiro a revelar as intenções dos habitantes de Samos; a mágoa de vê-lo absolvido talvez tenha causado uma febre, pois ele deveria estar aqui [...]” (Aristófanes, As Vespas, 281-285)

Além de falar dos próprios feitos, outro argumento também utilizado é relembrar

aos juízes de todas os benefícios que seus antepassados realizaram pela pólis:

“Muitas vezes, ó juízes, acusados que parecem culpados obtiveram todavia de vocês seu perdão, fazendo valer os méritos de seus ancestrais e os serviços que eles mesmos prestaram, já vocês permitem provar, para sua defesa, que eles fizeram qualquer bem para cidade, é justo, em revanche que vocês escutem os acusadores,

110“Bisogna dunque proteggerle come proteggeremmo noi stessi se venissimo offesi, e ritenere le

violazioni delle leggi come crimini che interessano l’intera comunità, qualunque sia colui che viene sorpreso a compierli, e non bisogna tener conto né di liturgie, né di pietà, né di prestigio personale, né escogitare qualche mezzo o qualche altra scappatoia per non far pagare la punizione a chi viola la legge.”

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quando eles demonstram para vocês que os acusados são criminosos inveterados” (Lísias, Contra Nicomaco, 1)111.

Todos os assuntos da pólis são resolvidos pelo conjunto dos cidadãos, o que gera

um grau de participação enorme dentro dos negócios da cidade e um sentimento de

pertencimento aos assuntos políticos sem precedentes na História. Na caracterização de

Aristóteles, a cidade é o conjunto de cidadãos (Aristóteles, Política, 3, 1, 1275a). Mas,

na pólis, há os bons e os maus cidadãos, além daqueles que são filiados aos ideais

aristocráticos ou democráticos. Essas caracterizações são importantes para o julgamento

coletivo, principalmente numa sociedade que se baseia, essencialmente, no

reconhecimento do valor social. Elas eram evocadas nos tribunais para engrandecer ou

depreciar os envolvidos diante dos juízes, uma vez que os atos passados, mesmo não

sendo diretamente relacionados ao caso, poderiam influenciar no veredicto conforme

criavam simpatia ou antipatia entre os envolvidos e os juízes. Em Atenas, o bom

cidadão era aquele filiado aos princípios democráticos, havendo uma equivalência entre

ser bom cidadão e ser bom democrata. Ésquines oferece um retrato desse cidadão:

“Todos vós, creio eu, admitis serem estes os característicos do democrata: primeiro, ser de condição livre tanto da parte do pai, como da parte da mãe, não vá a infelicidade da origem torná-lo hostil às leis, salvação da democracia; em segundo lugar, ter um de seus avós prestado algum benefício ao povo ou, necessariamente, não terem pelo menos dado nenhum motivo de ódio; assim não virá a tentar algum malefício à república para vingar as desventuras dos seus maiores; em terceiro lugar, ser de gênio prudente e moderado em sua vida cotidiana, não seja a desordem dos gastos de se deixar subornar em dano ao povo; em quarto lugar ser atinado e eloqüente; bom é que o discernimento escolha o melhor partido, e a instrução e eloqüência do orador convençam os ouvintes; se não, ao menos prevaleça o tino sobre a eloqüência; em quinto lugar, ter alma viril para não abandonar o povo na hora da calamidade e do perigo.” (Ésquines, Contra Ctesifonte, 169-170).

O bom cidadão/democrata é aquele que respeita e preza o regime democrático e,

conseqüentemente, respeita também aquilo que garante a sua segurança: as leis. Ele

também deve ter um comportamento modesto, sendo moderado em todos os aspectos de

sua vida. Aliado a essa característica, ele deve ser um bom orador, que utiliza a palavra

111“Plusieurs fois, juges, des accusés qui paraissaient coupables ont cependant obtenu de vous leur

pardon, en faisant valoir les mérites de leus ancestres et les services qu’eux-mêmes avaient rendus: puisque vos leur permettez de prouver, pour leur défense, qu’ils ont fait quelque bien à la cité, il est juste, en revanche, que vous écoutiez les accusateurs, quando ils vous démontrent que les accusés sont dês dês criminels inveteres.”

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de forma correta, isto é, com discernimento e bom senso, para desenvolver por

intermédio dela ações benéficas à pólis. E, por fim, ele não deve abandonar o dêmos em

momentos de crise. Assim, o bom cidadão/democrata é o bom orador, cuja vontade está

em sintonia com a vontade da maioria, expondo-a por meio do bom uso da palavra.

Segundo Dabdab Trabulsi (2006, p. 135), na cultura política de participação o orador e

a eloqüência aparecem como instrumento da vontade popular.

Já o mau cidadão é aquele hostil às leis, por transgredi-las, por ignorá-las ou por

considerar que foi, ele ou algum antepassado, prejudicado por elas. Ele não se preocupa

em cumprir seus deveres litúrgicos e militares e abandona a cidade em momentos de

crise. É também um mau orador, pois utiliza a palavra apenas em benefício próprio.

Demóstenes apresenta Mídias como possuidor dessas características. Ele é um mau

cidadão por não ter nenhum mérito nem como soldado, nem como orador112:

“Por qual motivo [se deve absolver Mídias]? Pelos méritos guerreiros? Como um simples soldado não vale nada, imaginem como comandante! Pela sua eloqüência? Em público nunca disse nada de bom e em particular falava mal de todos. Pela família à qual pertence? Por Zeus! Quem de vocês não sabe que o seu nascimento está envolvido em mistério, como o nascimento dos heróis trágicos! No seu nascimento há dois fatos totalmente contraditórios. A sua verdadeira mãe mostrou ser uma mulher que superava a todos por inteligência; a outra, isto é, a mãe putativa, era, ao contrário, a mulher mais burra que possa existir no mundo. A prova disso é que, enquanto a primeira o vendeu quando nasceu, a segunda, podendo comprar uma outra criança, o comprou” (Demóstenes, Contra Mídias, 148-150)113.

A excessiva polarização entre bom e mau cidadão representada nas figuras de

Demóstenes e Mídias, respectivamente, além da função de atrair a simpatia dos juízes

para a causa de Demóstenes, também funciona para descaracterizar o litígio entre os

dois como uma rixa entre membros de uma mesma classe social, já que ambos eram

112Demóstenes, nesse trecho, também aponta para uma origem desconhecida da família de Mídias,

alegando que ninguém sabe quem são seus pais, pois ele foi comprado. Mas, o orador não apresenta argumentos suficientes que comprovem a adoção de Mídias. Possivelmente essa história serve para provocar risos nos ouvintes, e com isso, desmerecer seu inimigo.

113“Per quale motivo? Per meriti guerreschi? Come soldato semplice non vale niente, figuriamoci come comandante! Per la sua eloquenza? In pubblico non ha mai detto niente di buono, in privato ha sempre sparlato di tutti. Per la famiglia a cui appartiene? Per Zeus, chi di voi non sa che la sua nascita è avvolta dal mistero come quella degli eroi tragici! Vi sono in essa due fatti del tutto contraddittori. La sua vera madre mostrò di essere uma donna che superava tutti per intelligenza, invece l’altra, cioè la madre putativa, era la donna più sciocca che esista al mondo. Eccone la prova: la prima lo vendette appena nato, la seconda, invece, pur potento comprare allo stesso prezzo un altro bambino, scelse costui.”

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pertecentes à elite ateniense e declarados inimigos pessoais. Parte da estratégia

persuasiva para desqualificar o litígio como um acontecimento de caráter privado é

enfatizar as atitudes diferentes que os dois têm com relação à cidade e, principalmente,

ao dêmos, fazendo com que a agressão sofrida no teatro alcance uma dimensão política

e coletiva maior do que a briga entre dois inimigos pessoais.

Demóstenes constrói, ao longo do discurso, um modelo de conduta pública

democrática concordante com a argumentação de Ésquines exposta acima. Ele se

considera um bom orador (rhētōr114) e, para diminuir a carga negativa dessa

adjetivação, propõe a definição do bom orador como o sujeito capaz de dar conselhos

úteis aos cidadãos, fazendo-os aderirem a uma proposta, sem forçá-los contra sua

vontade (Demóstenes, Contra Mídias, 189). Nos parâmetros estabelecidos por Ésquines,

Demóstenes seria o orador que possui a eloqüência e o discernimento. Além de sua

habilidade com as palavras, voltada para os interesses da cidade, estimava-se ser um

ávido defensor das leis, indispensável para o regime democrático, e alguém que usava

seu dinheiro em benefício da cidade.

Em oposição, Mídias encarna os valores aristocráticos. Em todo o discurso, ele é

caracterizado como um homem rico, adjetivo que aparece coordenado com outros que

indicam uma conduta negativa: “Mídias [é] um homem rico e orgulhoso” (toû Meidíou

ploútou kaì tēs hyperēphanías) (Demóstenes, Contra Mídias, 96), bem como um

“homem rico e arrogante” (Meidías ē tis hallos thrasỳs hoútō kaì plousíos)

(Demóstenes, Contra Mídias, 66). Mídias, por ser um homem orgulhoso e arrogante,

utiliza a sua riqueza e sua influência para cometer atos violentos e sair impunemente:

“Quando a maldade e a prepotência de um homem se apóiam sobre sua potência e sua riqueza, essas constituem para ele um muro que o protegerá contra qualquer ataque imprevisto. Porém, se ele for privado de seus bens, então talvez não poderá mais exercitar sua prepotência ou pelo menos ele será mais humilde do que o mais humilde de vocês” (Demóstenes, Contra Mídias, 138)115.

O comportamento violento e desmedido de Mídias não é somente direcionado a

Demóstenes e nem se restringiu ao incidente ocorrido no teatro. Ele age de forma

114Para o papel desempenhado nos discursos do adjetivo “orador” ver DOVER, Kenneth. Greek popular

morality in the time of Plato and Aristotle. Oxford: Blacwell, 1974. p. 25-26. 115“Quando la malvagità e la prepotenza di un uomo si appoggiano sulla potenza e sulla ricchezza,

queste costituiscono per lui come un muro che lo proteggerà contro ogni attaco improvviso; se invece, constui viene privato dei suoi beni, allora forse non potrà più esercitare la sua prepotenza o almeno sarà tenuto in uma considerazione minore del più umile tra di voi.”

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ultrajante a todos os cidadãos indistintamente, o que pode provocar uma ação nefasta à

cidade, pois em torno dele se reúne um grupo de pessoas que mostra atitudes

semelhantes às suas. Mídias e seu grupo de amigos, que também corresponde ao grupo

político, segundo Demóstenes, fazem diversas acusações, que afetam pessoas inocentes:

“Você [Mídias] ameaça a todos, ataca a todos; pretende que os outros pensem como você, que, ao contrário, não se preocupa em agir de modo a não causar moléstia aos outros. Mas a prova mais reprovável e mais grave da sua prepotência me parece ser o fato de que você, seu grande canalha, quando sobe à tribuna, atinge com suas acusações, de modo indiscriminado, muitas pessoas” (Demóstenes, Contra Mídias, 135)116.

Outro registro do mau uso da riqueza é o luxo de Mídias. Nos seus assuntos

privados, ele não é moderado, nem modesto (virtudes essenciais ao bom cidadão), e

ostenta tanto sua fortuna que o seu reconhecimento público não advém de suas ações em

prol da pólis, mas sim de seu gosto pela riqueza e da forma mesquinha com que a gasta:

“Eu, porém, não sei como possa ser útil à maioria de vocês o fato de que Mídias possua, para satisfazer o seu desejo pelo luxo, todos esses objetos supérfluos. Acho, ao invés, que essas coisas que o fazem ser soberbo e agressivo acabam por prejudicar muitos de vocês e todos aqueles que são contra ele” (Demóstenes, Contra Mídias, 159)117.

O gosto pelo luxo aliado ao comportamento imoderado fez com que “[...] a casa

que ele construiu em Elêusis, [fosse] tão grande a ponto de tirar a vista de todas as

outras casas em volta” (Demóstenes, Contra Mídias, 158)118. Para o orador, é por essa

casa, que se sobrepõe às outras, que a população lembra de Mídias, e não por suas

liturgias.

Segundo Demóstenes, a riqueza do seu inimigo é a base de sua prepotência:

“Alguém dirá: é um homem rico. Mas vocês poderão constastar que é justamente a sua

116“Tu minacci tutti, attachi tutti; pretendi che gli altri la pensino come te, ma tu, invece, non ti

preoccupi di agire in modo da non arrecare molestie agli altri. Ma la prova più riprovevole e più grave della tua prepotenza mi sembra questa: cioè il fatto che tu, brutta canaglia, quando sali sulla tribuna, colpisci in modo indiscriminato con le tue accuse un mucchio di gente.”

117“Io, però, non so come possa giovare alla maggior parte di voi il fatto che Mídia possegga, per soddisfare il suo desiderio di lusso, tutti questi oggetti superflui. Ritengo, invece, che queste cose che lo rendono superbo e aggressivo finiscano poi per danneggiare molti di voi e tutti quelli che s’imbattono in lui.”

118“[...] il palazzo che si è costruito a Eleusi, così grande da togliere la vista a tutte le altre case intorno.”

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riqueza a principal causa de sua prepotência, por isso é oportuno tirar-lhe o meio que lhe

dá a possibilidade de ser um prepotente [...]” (Demóstenes, Contra Mídias, 98)119.

Com esses argumentos, Demóstenes não objetiva apontar uma relação estreita

entre riqueza e desvio do caráter, até mesmo porque ele era um cidadão rico. Além

disso, em nenhum momento do discurso há defesa da igualdade econômica. No sistema

ateniense, a igualdade correspondia ao direito de participação nos processos decisórios

da cidade. Essa igualdade não se transpunha à esfera econômica e social, onde o sistema

não tinha abertamente o objetivo de diminuir as diferenças de riqueza120. Mesmo na

esfera política, as pessoas tinham graus de participação diferentes. Essa variação existia

devido à disponibilidade de tempo para participar nas reuniões, à filiação a grupos

políticos influentes e à capacidade retórica frente ao público.

O orador constrói uma crítica ao uso das fortunas voltado apenas para os anseios

pessoais, fazendo uma oposição entre dêmos e aristocracia. Essa oposição não

provocaria nenhuma surpresa aos ouvintes, já que era difundida no pensamento

ateniense a diferença existente entre os interesses do dêmos e da aristocracia. Ao tratar

da relação entre a conduta de Mídias e sua riqueza, o orador expande a sua crítica a

todos os ricos que tentam esquivar-se das liturgias, como indica o aumento dos

processos de antídosis nesse período. O orador associa a imagem de Mídias com a

desses ricos que evitam assumir suas liturgias e, quando as assumem, buscam as que

têm menor encargo financeiro: “Um dia Mídias foi corego do coro de tragédia e eu o fui

do coro de flautistas, ninguém ignora que as despesas do último são maiores”

(Demóstenes, Contra Mídias, 156)121. E não havendo maneira de escapar da realização

da liturgia mais dispendiosa, Mídias tenta tirar o máximo de proveito pessoal: “assim

sendo, para esse abominável indivíduo [Mídias] a trierarquia foi um negócio lucrativo e

não um serviço público” (Demóstenes, Contra Mídias, 167)122. Para essa afirmação, o

orador se baseia no fato de que seu inimigo, ao assumir a trierarquia, desobedeceu uma

determinação e trouxe mercadorias para Atenas:

119“Qualcuno dirà: è un uomo ricco. Ma voi potrete constatare che è proprio la sua ricchezza la causa

principale della sua prepotenza, perciò è opportuno togliergli il mezzo che gli dá la possibilità di esserre um prepotente, [...]”

120Para mais informações sobre a maneira do sistema democrático ateniense fazer a redistribuição de suas riquezas através das liturgias ver o capítulo Argent, profits, intérêt collectif. In: TRABULSI, José Antonio Dabdab. Participation directe et démocratie grecque: Une histoire exemplaire?. Besançon: Presses universitares de Franche- Comté, 2006, p. 223-232.

121“Un giorno Midia fu corego per la tragedia, io lo fui in un concorso di flautisti: nessuno ignora che le spese per questi ultimi è di gran lunga maggiore.”

122“sicchè per questo abominevole individuo la trierarchia è stata un lucroso affare e non un servizio pubblico.”

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“Nós, Cléon de Súnio, Arístocles de Peânia, Pânfilo, Nicérato de Aquerdonte, Euctémon de Esfeto, declaramos que quando voltamos com toda a frota, éramos trierarcas junto com Mídias, que hoje está submetido a juízo sob a denúncia de Demóstenes, para o qual nos testemunhamos. Enquanto toda a frota estava navegando em formação e os trieracas tinham recebido a ordem de não se separarem antes que fôssemos atracadas aqui em Atenas, Mídias, que tinha ficado para trás, carregou sua nave com madeira, pás, gado e outras mercadorias e fez a rota do Pireu, sozinho, dois dias depois, sem ter conduzido seu navio à base junto com os outros trierarcas” (Demóstenes, Contra Mídias, 168) 123.

Segundo Carlier (2006, p. 136-137), o orador, no discurso, tenta explorar um

sentimento momentâneo de irritação contra os ricos, pois a política desenvolida por

Eubulo não favoreceu todos de forma igual e os pobres ficaram com ressentimentos

daqueles que se enriqueceram muito rapidamente.

Demóstenes se auto-representa como aliado dos ideais democráticos, fazendo

ações benéficas à cidade, como indica ao falar: “o meu único propósito secreto sempre

foi o de dizer e de fazer tudo aquilo que eu considerasse útil a vocês” (Demóstenes,

Contra Mídias, 190)124. Por sua preocupação com o regime democrático, ele realiza um

número maior e mais dispendioso de liturgias (Demóstenes, Contra Mídias, 154) e

almeja sempre o estabelecimento e a aplicação da justiça. Assim, para ele, processar

Mídias é realizar um ato de justiça e, se o recusasse a fazê-lo, estaria desertando da

justiça, preferindo a morte a fazer isso (Demóstenes, Contra Mídias, 120).

Demóstenes e Mídias representam dois tipos de conduta. Mídias é um velho

desertor de campanhas que não tem nada para oferecer à cidade (Demóstenes, Contra

Mídias, 166). Ele é o aristocrata barulhento, insolente e arrogante que age de forma

ultrajante para com outros cidadãos e com as leis que garantem a segurança de todos.

Sempre age de forma desmedida, falando alto, praticando subornos e intimidações para

conseguir tudo aquilo que deseja. A escolha da hýbris, na estratégia persuasiva do

orador, tem o objetivo de demonstrar todo o desprezo de Mídias pelos princípios

123“Noi Cleone di Sunio, Aristocle di Peania, Panfilo, Nicerato di Acherdonte, Euctemone di Sfetto,

dichiariamo che nel tempo in cui tornammo qui con tutta la flotta, eravamo trierarchi assieme a Midia, che oggi è sottoposto a giudizio su denuncia di Demostene, per il quale noi testimoniamo. Mentre l’inteira flotta stava navigando in formazione e i trierarhi avevano ordine di non separarsi prima che fossimo approdati qui ad Atene, Mídias, che era rimasto indietro, há caricato di legname, di pali, di bestiame e di altre merci la sua nave e ho fatto rotta sul Pireo, da solo, due giorni dopo, senza aver condotto la sua nave alla base assieme agli altri trierarchi.”

124“il mio unico segreto proposito è sempre stato quello di dire e di fare tutto ciò che io ritenessi utile a voi.”

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democráticos e pelos cidadãos. Sua hýbris é representada por meio do soco que ele dá

em Demóstenes em pleno teatro. Mais intolerável que o próprio soco é o

comportamento que o levou a isso, que indica o desdém de Mídias pela pólis. Já

Demóstenes encarna os ideais democráticos, defendendo o regime por meio da

obediência às leis, e não somente cumprindo com suas obrigações litúrgicas, mas indo

além delas.

As caracterizações de Mídias e de Demóstenes como mau e bom cidadãos,

respectivamente, são reforçadas pela apresentação das leis no discurso. As leis, usadas

nos discursos, indicam o esforço dos litigantes de embasar seu argumento legalmente.

Elas, durante o julgamento, são tratadas como uma evidência, da mesma forma que

outras anexadas ao processo, com o objetivo de fazer os juízes tomarem partido do

orador. Aristóteles, ao escrever sobre a retórica, classifica a citação das leis como

átekhnoi písteis125, existentes independentemente da argumentação desenvolvida pelo

orador, mas que se constituem em um meio de persuasão. De uma forma geral, nos

discursos encontramos uma forte tendência dos litigantes a associar-se com as

disposições legislativas ou apropriar para si o discurso da lei. Existe, igualmente, a

propensão de associar o adversário à violação das leis.

Na Atenas Clássica, não havia um livro que reunisse todas as leis e, nos

tribunais, os juízes não possuíam qualquer texto legislativo para conferir as leis citadas

nos discursos. Os envolvidos no litígio encarregavam-se de referir-se, em suas falas, às

leis ou a trecho delas, a fim de provar sua posição. Assim, as leis eram introduzidas nos

tribunais exatamente como outros documentos relativos ao caso. Mas seu uso era

vigiado, sendo punido com a morte aqueles que traziam falsas leis ao tribunal (Carey,

1996, p. 34). Dessa forma, mencionar uma lei, seja direta ou indiretamente, é a maneira

utilizada pelos envolvidos de fazer com que os juízes tenham conhecimento desta. A

menção também indica a adesão à lei, enquanto o adversário é acusado de não a

respeitar. A adesão às leis, para os juízes, não está somente ligada a uma base jurídica

do caso, mas é relacionada à defesa do interesse comum da comunidade (Bearzot, 2007,

p. 18).

As leis podem ser utilizadas de diferentes maneiras para persuadir os juízes em

favor da causa do orador. O uso mais comum é assegurar a base legal do processo. No

Contra Mídias, as leis também são utilizadas para reforçar as diferenças das disposições

125Outras provas desse grupo são os juramentos, contratos, testemunhos e testemunhos sob tortura.

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morais entre Demóstenes e Mídias. O orador, após apresentar a lei sobre a hýbris,

presente no parágrafo 47, ressalta uma característica dela, a proibição de ultrajar os

escravos, que é irrelevante para o caso, já que ambos eram cidadãos, mas ela é

significativa para a qualificação negativa de seu adversário. Logo após a apresentação

dessa lei, Demóstenes afirma que, se ela for levada às cidades estrangeiras que

fornecem escravos a Atenas, será elogiada pelos bárbaros. Para ele, se um bárbaro é

capaz de compreender essa lei e até mesmo elogiá-la, quem a transgride deve ser

severamente punido (Demóstenes, Contra Mídias, 48-50). Estritamente, essa parte da

lei não contribui em nada para o caso contra Mídias, mas é útil na qualificação do

caráter desrespeitoso deste, que não obedece nem uma lei que é compreendida pelos

bárbaros126.

Em mais um momento do discurso, a relação entre lei e bárbaros será

explicitada, mas indicando, opostamente, que a lei não é compreendida pelos bárbaros.

Demóstenes justifica o desrespeito de Mídias às leis “[...] porque [ele] é levado à

violência pela sua natureza realmente bárbara e hostil aos deuses” (Demóstenes, Contra

Mídias, 150)127. Nessa caracterização, ele aponta ao mesmo tempo para o caráter

violento e ímpio da agressão sofrida. Mídias tem a natureza bárbara, pois age segundo

seus próprios impulsos, não respeitando as leis estabelecidas pela coletividade, como

reafirma o orador, ao dizer que para “Mídias é natural que se comporte assim [de forma

violenta], nunca tendo levado em consideração a justiça em toda a sua vida”

(Demóstenes, Contra Mídias, 192)128. E, por ser hostil aos deuses, ele foi capaz de

realizar uma ação que desrespeita a festa e o recinto sagrado dedicados à divindade.

A lei, e mais precisamente a lei escrita, encarna, para os gregos, a luta contra a

tirania e o estabelecimento do ideal democrático. Ao mesmo tempo, mostra a oposição

entre gregos e bárbaros. A lei representa a idéia de civilização e de uma vida policiada e

regrada. Por oposição, há os bárbaros, que desconhecem as leis, não as respeitam ou

obedecem a um rei que as impõe e altera de acordo com seus interesses. A associação

entre barbárie e desconhecimento e/ou não respeito à lei é consolidada no pensamento

grego. Na Odisséia, por exemplo, Ulisses, ao aportar na terra dos ciclopes, indaga sobre

126Para uma breve análise da idéia de bárbaro no pensamento grego antigo e os sentidos negativos que

essa palavra apresenta na modernidade ver o artigo de Romilly, Jacqueline. Les barbares dans la pensée de la Grèce Classique. Phoenix, v. 47, n. 4, p. 283-292, 1993.

127“[...] perché è transcinato alla violenza dalla sua natura veramente barbarica e ostile agli dèi.” 128“Midia, invece, è naturale che si comporti così, non avendo mai preso in considerazione la giustizia in

tutta la sua vita.”

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a natureza de seus habitantes: “São violentos selvagens, sem lei129, ou acolhem os

hóspedes com a mente voltada aos deuses?” (Homero, Odisséia, 9, 175-176). Na

formulação da pergunta, tem-se a associação entre a ausência de lei e a vida em um

estado não civilizado, bem como entre a vida civilizada, o respeito às leis e a obediência

aos preceitos divinos. Na caracterização dos ciclopes, a ausência de lei e de governo,

bem como o caráter violento, se complementam: os ciclopes são um “povo rude, sem

lei” (Homero, Odisséia, 9,106) e “sem rei130” (Homero, Odisséia, 9, 215). Por viverem

isolados, eles não conhecem o governo e, dessa forma, também desconhecem as leis:

“Eles não sabem de assembléias deliberativas nem leis. Cada qual legisla sobre

mulheres e filhos. Solidariedade de um com outros não há” (Homero, Odisséia, 9, 211-

215). A lei constitui fator essencial, ao lado das decisões tomadas em conjunto, para

assegurar a vida dos homens sob o governo democrático.

Nos dois momentos em que aparece no discurso, a relação entre lei e bárbaro

serve para qualificar Mídias como um mau cidadão por não respeitar as leis. Se, no

primeiro momento, a lei, mesmo sendo ateniense, apresenta uma dimensão universal, o

que faz com que seja compreendida pelos bárbaros, no segundo momento, representa

um caráter de helenidade, pois somente os gregos podem compreendê-la e, além disso,

formulá-la para garantir a boa ordem na coletividade. A mudança do sentido, nos termos

dessa relação, não revela uma inconsistência no pensamento do orador, pois as duas

formulações possibilitam que ele atinja um dos seus objetivos, que é a representação de

Mídias como uma pessoa odiosa, merecedor do voto condenatório dos juízes.

Na estratégia persuasiva de Demóstenes, a caracterização de Mídias como mau

cidadão soma-se à demonstração da sua ação ultrajante, que não atingiu somente o

orador, mas toda a pólis: “Peço então a todos vocês, juízes, e lhes suplico, em primeiro

lugar, que me escutem benevolentemente enquanto falo, pois, se eu conseguir

demonstrar que Mídias, aqui presente, ofendeu não apenas a mim, mas também a vocês

129A palavra traduzida por lei por Donald Schüler é dikaoi e no verso 215 é dikas. O termo diké em

Homero pode ser entendido como sinônimo de costume, a maneira de agir tanto em relação a outros homens quanto com relação aos deuses. Em todos os outros versos, a palavra traduzida por lei é referente a temis. Ela representa um princípio de ordem, principalmente com relação ao genos, a família, assim como à esfera divina. A palavra nómos não é freqüente em Homero. O sentido de nómos como lei e costume se consolidará posteriormente em Atenas, possivelmente após a legislação de Sólon no século VI a.C. (Gernet, 2001, p. 21).

130Nesse verso, mais uma vez a ausência da lei é indicada: “Meu coração, que não mente, dizia que enfrentaríamos um homem descomunal, um brutamontes, portento de maus bofes, sem rei nem lei” (Homero, Odisséia, 9, 211-215). Considero a expressão “sem rei” como indicativa da ausência de uma instituição política organizada.

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e às leis [...]” (Demóstenes, Contra Mídias, 7)131. Mídias cometeu uma “ofensa à festa”

(adikeîn perì tēn heortēn) (Demóstenes, Contra Mídias, 1). Devido à importância que a

festa do deus Dioniso representa para a cidade, foi criada uma “lei sagrada (hieròn

nómon) para proteger a festa do deus durante o período das cerimônias” (Demóstenes,

Contra Mídias, 35)132. Essa lei determina que

“Os prítanos devem convocar a assembléia no teatro de Dioniso, no dia seguinte às Pandias. Nessa sessão deve-se colocar, na primeira ordem do dia, os assuntos religiosos e, depois, examinar as acusações preliminares (tàs probolàs) que concernem à festa e às competições das Dionisíacas, e tudo aquilo que não foi ainda deliberado” (Demóstenes, Contra Mídias, 8)133.

Essa é a primeira lei apresentada no discurso, que justifica legalmente a ação

movida por Demóstenes: uma probolē. A probolē poderia ser utilizada por qualquer um

que desejasse processar alguém que cometeu uma ofensa durante determinados

festivais. O procedimento consistia, primeiramente, na notificação dos prítanos, o que

colocava a ofensa na agenda do Conselho e da Assembléia no dia após o festival. Na

Assembléia, o autor da ação e o réu discursavam e os cidadãos votavam para decidir se,

realmente, tinha acorrido a ofensa à festa. Com esse procedimento jurídico, a pólis tinha

o objetivo de inibir e punir os comportamentos que poderiam colocar em risco a festa,

evento importante para reforçar a coesão entre os habitantes.

A segunda lei apresentada no discurso mostra a possibilidade de punição por

causa dos atos violentos realizados nos dias das festas. A lei indica que

“[...] não é licito, durante esses dias [das procissões em honra a Dioniso no Pireu, das Dionisíacas urbanas, das Lenéias e das Targélias], penhorar nem confiscar a propriedade do devedor, mesmo se ele estiver atrasado com o pagamento. Qualquer um que violar qualquer uma dessas normas será processado pela parte lesada e uma acusação preliminar deverá ser movida contra ele, como culpado de um delito” 134 (Demóstenes, Contra Mídias, 10)135.

131“Prego dunque tutti voi, o giudici, e vi supplico, in primo luogo, di ascoltarmi benevolmente mentre

parlo, poi, se riuscirò a dimostrare che Midia qui presente ha ofesso non solo me, ma anche voi e le leggi [...]”

132“voi avete fatto una legge sacra per proteggere la festa del dio durante il periodo delle cerimonie.” 133“I pritani devono convocare l’assemblea nel teatro di Dionisio, il giorno succesivo alle Pandie. In

questa seduta bisogna mettere per prima cosa all’ordine del giorno gli affari religiosi, poi passare all’esame delle accuse preliminari che riguardano la festa e le gare delle Dionisie, e tutte quelle che non sono state ancora deliberate.”

134Para uma análise acerca da autenticidade dessa lei ver SCAFURO, Adele. The Role of the Prosecutor and Athenian Legal Procedure (Dem. 21.10). Dike, v. 7, 2004, p 18 -21.

135“[...] non è lecito in quei giorni né procedere a pignoramenti né confiscae la proprietà del debitore, neppure se è moroso. Chiunque violi qualcuna di queste norme sarà perseguibile dalla parte lesa e

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Essa lei garante a participação de todos os habitantes na festa, sem receio de

serem importunados. Com essa determinação, a cidade assegura a interação do grupo

social, já que a realização da festa tem primazia sobre a resolução de pendências

pessoais. Esse aspetcto é evidenciado pelos exemplos citados pelo orador com

cumprimentos da lei do parágrafo 10. O primeiro caso narrado é o de Evandro e

Menipo. O primeiro tinha uma dívida mercantil contra o segundo e aproveitou-se de sua

presença na cidade, para a comemoração das Dionisíacas, para o prender e conseguir o

pagamento da dívida. Evandro foi processado e condenado a renunciar à dívida, no

valor de dois talentos, e ainda teve que pagar uma indenização a Menipo (Demóstenes,

Contra Mídias, 176). Também foi condenado, através de uma probolē, o filho de um

arconte que expulsou um homem que havia sentando no lugar reservado aos arcontes

(Demóstenes, Contra Mídias, 178). E por fim, Demóstenes relata que Ctésicles foi

condenado à morte por ter agredido, enquanto estava embriagado, seu inimigo com uma

esfera de couro durante as Dionisíacas (Demóstenes, Contra Mídias, 180).

O tempo da festa, o tempo sagrado, diferencia-se do tempo mundano, tempo

profano. No primeiro tempo, realizam-se ações e atitudes que, normalmente, não

ocorrem no segundo. Se, durante o tempo profano, os devedores são perseguidos e

coagidos a pagarem suas dívidas, durante o tempo sagrado eles podem sair

tranqüilamente pelas ruas e participar das festividades, pois esse é o tempo da

aproximação da cidade com o conjunto de seus habitantes, com o deus. Essa

aproximação não representa uma comunhão com ele, mas o reconhecimento do lugar

diferenciado que os homens e os deuses possuem no kósmos.

O uso de duas leis a respeito da probolē pode ser explicado pelo fato de que esta

é aplicada em diferentes circunstâncias e em diversos festivais (MacDowell, 2002, p.

14). A primeira lei determina que toda ofensa à festa pode ser submetida a probolē.

Contudo, não define quais são as ações ofensivas. Já a segunda lei apresenta um ato

específico, a tentativa de obter o pagamento da dívida, seja por meios coercitivos ou

não, como passível de ser processado pela probolē. A não apresentação de uma lei

específica que garanta a punição dos agressores dos coregos leva a crer na inexistência

dessa lei. Assim, para garantir a base legal do seu processo, o orador utiliza a lei que

un’accusa preliminare dovrà essere mossa contro di lui, come colpevole di reato, nell’assemblea in seduta nel teatro di Dioniso, così come è previsto nel caso di altri contravventori.”

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mais se assemelha à situação, pois a tentativa de receber o pagamento poderia vir

acompanhada de coerção física, como ele mesmo indica:

“Considerem, ó juízes, que se na primeira lei, a acusação preliminar (probolēs) concerne às violações causadas à festa, na segunda, vocês estabeleceram o mesmo procedimento contra aqueles que exigem o pagamento de seus devedores ou confiscam algum bem ou então praticam violência contra esses” (Demóstenes, Contra Mídias, 11)136.

No discurso, encontra-se a única referência à lei acerca da hýbris. De acordo

com ela,

“Se alguém faz um ultraje a uma outra pessoa, a uma criança, a uma mulher, a um homem de condição livre ou servil, ou então comete uma ação ilegal contra algum desses, poderá ser acusado diante dos tesmotetas por qualquer ateniense que queira fazê-lo e que goze de todos os direitos civis; [...]” (Demóstenes, Contra Mídias, 47)137.

Segundo MacDowell (1976, p. 30), essa lei foi elaborada, provavelmente, no

século VI a.C. e não tinha a intenção de acabar com as outras leis relativas a agressões e

outras ofensas. O que distingue a hýbris dos outros tipos de ofensas é o seu caráter

ultrajante ou a intenção do autor do delito de provocar o ultraje. A lei não traz uma

definição clara de quais ações podem ser consideradas ultrajantes, mas sua aplicação é

restrita aos comportamentos que envolvam uma vítima humana (criança, mulher,

homem). Assim, uma hýbris cometida contra os deuses não poderia ser processada por

essa lei. Esperava-se que todos os atenienses tivessem noção de quais ações eram

ultrajantes, uma vez que a linguagem utilizada na elaboração das leis era a mesma do

cotidiano. Dessa maneira, a hýbris, presente na lei, tem o mesmo sentido daquela que

encontramos em outras fontes138. Como a letra da lei mostra, ela pune atos ultrajantes

direcionados a uma pessoa e não à coletividade, mas, para reforçar a idéia de que o

delito de Mídias atinge a todos, o orador diz que essa lei “reconhece que quem comete

136“Considerate, o giudici, che se nella precedente legge l’accusa preliminare riguarda le violazioni

arrecate alla festa, in quella successiva voi avete stabilito la medesima procedura contro coloro che esigono il pagamento dai loro debitori o procedono alla confisca di un qualche loro bene oppure esercitano violenza conro di quelli.”

137“Se qualcuno fa un oltraggio a un’altra persona, a un fanciullo, a una donna, a un uomo di condizione libera o servile, oppure commette un’azione illegale contro qualcuno di questi, potrà essere accusato davanti ai tesmoteti da parte di qualunque ateniese che voglia farlo e che goda di tutti i diritti civili; [...]”

138Esse é o mesmo posicionamento de Carrey (1994, p. 9), MacDowell (1976, p. 24) e Fisher (1976, p. 178).

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uma violência ofende a cidade e não somente quem sofreu o crime” (Demóstenes,

Contra Mídias, 45)139.

Além dessas leis, também são apresentadas mais duas, ambas desrespeitadas por

Mídias. A primeira trata da impossibilidade da troca de árbitro e a proteção legal de sua

decisão:

“Quando os cidadãos contestarem questões de interesse privado e quiserem escolher um árbitro, qualquer que seja, a lei lhes dá a possibilidade de escolher o árbitro que desejarem. Mas depois de feita a escolha, os cidadãos devem ater-se às suas decisões e não poderão mais transferir a um outro tribunal seus litígios, porque as decisões do árbitro são consideradas inapeláveis” (Demóstenes, Contra Mídias, 94)140.

A segunda condena todos os cidadãos que tentam realizar subornos:

“Se um dos atenienses receber de alguém ou der aos outros algo ou tentar corromper os outros com promessas, prejudicando o povo ou qualquer cidadão, independentemente do meio ou do artificio por ele empregado, será privado dos seus direitos civis (como também seus filhos) e seus bens serão confiscados” (Demóstenes, Contra Mídias, 113)141.

Essas leis são citadas no relato do início das desavenças entre Mídias e

Demóstenes, quando o orador o processa por injúria. Elas servem para demonstrar que

Mídias, há muito tempo, comete crimes e continua impune. Com isso, o orador reforça a

imagem de mau cidadão e de desprezo pela cidade da parte de seu inimigo.

O regime democrático ateniense era fundado sobre o princípio da isonomia,

segundo o qual todos os cidadãos eram iguais perante a lei. Esse princípio garantia a

liberdade dos cidadãos pela lei, pois eles tinham a confiança de que poderiam recorrer à

justiça, isto é, caso fossem desrespeitados, receberiam a devida reparação. Para a

manutenção da boa ordem, era necessário que os cidadãos agissem de acordo com as

leis, pois “a ordem pública repousa nas leis, na submissão às leis” (Demóstenes, Contra

139“ritenendo che chi commette una violenza offende la città e non solo chi ha subito il crimine.” 140“Qualora dei contestino questioni d’interesse privato e vogliano scegliere un arbitro qualsiasi, la legge

dà a loro la facoltà di scegliere l’arbitro che vogliono. Ma quando si siano accordati sulla scelta, essi devono attenersi alle sue decisioni e non potranno più trasferire a un altro tribunale le medesime liti, perché le decisioni dell’arbitro devono considerarsi inappellabili.”

141“Se uno degli ateniesi riceverà da qualcuno o darà ad altri qualcosa o tenterà di corromperli con promesse, a danno del popolo o di qualche privato cittadino, qualunque sia il mezzo o l’artificio da lui impiegato, sará privato dei diritti civili assieme ai suoi figli e i suoi beni saranno confiscati.”

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Aristogiton I, 27)142. A lei era elaborada pelos próprios cidadãos143, por meio de um

processo decisório que expressava o desejo da maioria e, por isso, deveria ser

respeitada: “Quando vocês [cidadãos] fazem as leis, é necessário que vocês examinem

bem essas leis, porque, uma vez sancionadas, vocês têm que defendê-las e observá-las:

de fato, é isso que requer principalmente o respeito de seu juramento e da justiça”

(Demóstenes, Contra Mídias, 34)144.

As leis eram feitas com uma linguagem de fácil compreensão, pois seu

entendimento deveria ser claro e assimilado por todos. Essa familiaridade com o texto

da lei parece ter se afastado do cidadão contemporâneo, em especial do cidadão leigo, já

que o uso de uma terminologia específica e técnica torna a lei, em muitas casos,

incompreensível em todos os seus pormenores, o que faz com que se busque o auxílio

de profissionais para entendê-la.

Na oligarquia ou na tirania, os detentores do poder utilizavam a força para fazer

prevalecer seus desejos: “Se é verdade que a força é de poucos, é também verdade que a

lei é de todos” (Demóstenes, Contra Mídias, 45)145. Na democracia, os cidadãos

estavam protegidos pelas leis, enquanto na tirania e na oligarquia os detentores do poder

legislavam somente em benefício próprio. Eram as leis que impossibilitavam que a

força de poucos se sobrepusesse à maioria, pois são “as leis que garantem a

incolumidade a cada um de vocês [cidadãos]” (Demóstenes, Contra Mídias, 126)146.

Se as leis garantem a integridade dos cidadãos, por sua vez serão os cidadãos os

responsáveis pelo bom funcionamento da cidade, fazendo com que a pólis seja justa por

meio da aplicação da lei e da punição dos culpados: “[...] aos que sofrem injustiças é

preciso, dentro do possível, vingar e nisso não ser omisso. Agir assim é justo e bom,

mas não fazê-lo é injusto e mau” (Demócrito, DK 68 B 256). O funcionamento mais

desejável para a cidade é aquele em que o nómos, tanto a lei quanto o costume, são

respeitados, preservados e obedecidos, e em que o cidadão exerça toda a sua

potencialidade participativa, por meio de seu convívio rotineiro nos afazeres da

Assembléia, de sua capacidade de mover processos e, por fim, de realizar o julgamento,

142“[...] l’ordre public repose sur les lois, sur la soumission aux lois.” 143Para o processo de elaboração das leis atenienses ver MACDOWELL, Douglas M..Law-Making at

Athens in the Fourth Century B.C.The Journal of Hellenic Studies, Vol. 95. (1975), pp. 62-74. 144“Quando voi fate le leggi, è necessario che voi esaminate bene quali debbano essere, ma, una volta

che le abbiate sanzionate dovete difenderle e osservarle: infatti è questo che richiede soprattuto il rispetto del vostro giuramento e della giustizia.”

145“Se è vero che la forza è di pochi, è anche vero che la legge è di tutti.” 146“[...] le leggi, le quali garantiscono l’incolumità di ciascuno di voi.”

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o que faz com que continuamente estabeleça respostas aos problemas particulares e

públicos.

Na democracia, “regime que deve sua preservação aos deuses e às leis”

(Ésquines, Contra Ctesifonte, 196), o cidadão deve participar ativamente de todas as

esferas da vida da pólis. Qualquer ato que coloque em risco esse princípio era passível

de punição. Por isso, a ação de Mídias é tão nefasta à cidade, pois ele “fez isso sem se

preocupar minimamente nem com a festa, nem com as leis, nem com o que vocês teriam

dito, nem com o deus” (Demóstenes, Contra Mídias, 61)147. O mesmo argumento é

desenvolvido posteriormente, quando o orador diz, novamente, que seu inimigo “foi

pego em flagrante enquanto cometia um ultraje (hybrízonta), sem se preocupar

minimamente com a festa, com os objetos sagrados, com a lei e nem com nenhuma

outra coisa” (Demóstenes, Contra Mídias, 97)148.

Para os atenienses, julgar era uma tarefa tão importante quanto deliberar. As

duas atividades marcavam a participação política nos assuntos da pólis. Todos os

cidadãos tinham o interesse comum de defender a cidade dos crimes que pudessem ser

prejudiciais a ela: “Eu acredito agora: comum é o julgamento e de interesse comum os

crimes pelos quais são submetidos em juízo” (Demóstenes, Contra Mídias, 218)149. Por

essa razão, o interesse de Demóstenes é de qualificar o ato de Mídias como ultrajante a

todos, dizendo: “[...] este seu comportamento é muito grave, injusto e danoso para o

prestigio de vocês [cidadãos]” (Demóstenes, Contra Mídias, 66)150.

A confiança nas leis e no julgamento justo são a justificativa para a inação

imediata de Demóstenes diante da agressão física sofrida durante o festival. A inação foi

uma escolha consciente, frente à possibilidade legítima de revidar o golpe, já que ele

sofreu um ultraje:

“Eu usei de muita prudência para não cometer nada de irreparável, tanto que não quis nem ao menos me defender. De quem devo esperar a justa vingança pelas injustiças sofridas? Eu acredito em vocês e nas leis, e que isso seja um exemplo para todos os outros, porque ninguém, levado pela cólera, deve fazer justiça com as próprias mãos contra todos aqueles que o ultrajaram ou o ofenderam brutalmente, mas devem se dirigir a vocês, considerando que vocês

147“Midia ha fatto questo senza curarsi minimamente né della festa, né delle leggi, né di ciò che voi

avreste detto, né del dio.” 148“[...] un uomo che avete colto sul fatto, mentre commetteva un oltraggio, senza preoccuparsi

minimamente né della festa, né degli oggetti sacri, né della legge, né di nessun’altra cosa.” 149“Io credo adesso: comune è il giudizio e d’interesse comune i crimini per cui è sottoposto a giudizio.” 150“[...] questo suo comportamento è troppo grave, ingiusto e dannoso per il vostro prestigio.”

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saberão dar a ele que sofre injustiça, o firme amparo da lei” (Demóstenes, Contra Mídias, 76)151.

Demóstenes narra, nos parágrafos 70 a 76, dois casos em que os ultrajados

revidaram violentamente contra os ultrajantes, o que provocou a morte dos últimos. O

primeiro caso trata do conflito entre Eutino e Sófilo, ocorrido em uma reunião privada

na qual o primeiro matou o outro rapaz por pensar que ele lhe havia feito um ultraje. O

segundo caso retrata a briga entre Éveon e Beoto. O último foi assassinado por causa de

um soco dado durante uma refeição entre amigos. Neste caso, o orador explica que a

reação violenta foi provocada não pelo golpe, mas pela intenção de ultrajar, pois, para

um homem livre, mais vergonhoso do que ser agredido é ser agredido de forma

ultrajante (Demóstenes, Contra Mídias, 72). Esses dois acontecimentos são restritos à

esfera privada e a vergonha provocada não teve a mesma publicidade que o caso do

orador, pois sua agressão ocorreu no teatro, diante de todos.

O ato de julgar era precedido pelo juramento de dar a sentença de acordo com as

leis e os decretos estabelecidos pelo dêmos. Os envolvidos no processo esperavam que

os juízes agissem segundo esse juramento e freqüentemente apelavam para ele:

“Realmente, ó atenienses, vocês juraram obedecer às leis e é em virtude delas que vocês

gozam de direitos iguais” (Demóstenes, Contra Mídias, 188)152. Nesse apelo, o orador,

ao mesmo tempo, evoca o juramento e reforça a importância da lei para os cidadãos,

pois ela assegura a manutenção da democracia e garante a todos a reparação, caso

sofram alguma injustiça.

O apelo ao juramento tinha um forte impacto nos ouvintes, pois ele possuía um

caráter sagrado, relacionando-se diretamente com as forças divinas. O juramento era

uma declaração reforçada de apelo a uma divindade. De acordo com Gernet (1982a, p.

132), a palavra hórkos, juramento, não designa somente o juramento no sentido

abstrato, mas uma substância sagrada, fazendo com que aquele que o realiza entre em

contato com o domínio das forças religiosas.

151“Io che ho usato così grande prudenza nel non commettere nulla di irreparabile, tanto che non ho

voluto nemmeno difendermi, da chi devo attendere la giusta vendetta per i torti subiti? Io credo da voi e dalle leggi, e sia questo un esempio per tutti gli altri, perchè nessuno, spinto dall’ira, voglia farsi giustizia da sé contro tutti coloro che lo oltraggiano e brutalmente lo offendono, ma si rivolgano a voi, ritenendo che voi saprete dare a coloro che subiscono il fermo sostegno della legge.”

152“Infatti, o ateniesi, voi avete giurato di ubbidire alle leggi ed è in virtù delle leggi che voi godete di uguali diritti.”

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Esse apelo foi utilizado por Andócides para se defender das acuções de

impiedade com relação aos Mistérios. Ele pede aos juízes para respeitarem o juramento,

pois esse é o responsável por manter a união da pólis:

“Pois bem, considero que vocês decidam o justo e que estão dispostos a isso, pois permaneci aqui precisamente porque confio em vocês, vendo que tanto nas causas privadas, quanto nas públicas, consideram que o mais importante é votar com apego aos juramentos; e isto é a única coisa que mantém a cidade unida, apesar de quem não deseja que assim o seja. Desejo veemente, então, que prestem atenção na minha defesa, com benevolência para comigo, e que nem se apresentem como meus adversários, nem tomem minhas palavras com suspeita, nem persigam minhas expressões, apenas que, depois de escutar até o final minha defesa, somente então votem no que pareça melhor para vocês mesmos e o mais conforme aos juramentos (Andócides, Sobre os Mistérios, 9)153.

Ao apelar para a força presente no juramento, Demóstenes indaga aos juízes se

Mídias, um homem rico, mas que nunca colocou sua fortuna à disposição da cidade,

merece ser absolvido, sendo que isso implicaria na quebra do juramento de respeitar e

fazer cumprir as leis: “Se, ao invés, eles, mesmo possuindo dinheiro, não querem

renunciar ao mesmo, como poderiam vocês renunciar, sem se envergonharem, aos seus

juramentos?” (Demóstenes, Contra Mídias, 212)154. É esse sentimento de confiança na

obediência ao juramento, somada à convicção da culpa de Mídias e ao argumento de

que o delito atinge toda a coletividade, que o orador demonstra ao longo do seu discurso

para convencer os juízes, transmitindo a eles “o dever de vingar a injustiça feita [por

Mídias] às leis, à divindade e a vocês mesmos” (Demóstenes, Contra Mídias, 40)155.

O crime de Mídias, por atingir a esfera sagrada, é passível de sofrer uma punição

divina. Os deuses, nos discursos, também são representados como responsáveis pela

punição dos culpados: “[...] se, ao contrário, vocês detestam o crime, o culpado será

castigado, com a ajuda dos deuses” (Demóstenes, Contra Aristogíton I, 2)156.

153“Ahora bien, considero que vosotros decidís lo justo y que estáis dispuesto a ello, pues permanecí

aquì precisamente porque confío en vosostros, viendo que tanto en las causas privadas como en las públicas consideráis que lo más importante es votar con apego a los juramentos; y esto es lo único que mantiene unida a la ciudad, a pesar de quienes no desean que así sea. Os pio, entonces, que prestéis atención a mi defensa con benevolência hacia mí, y que ni os presentéis como mis adversários ni toméis mis palavras con suspicacia ni caceis mis expresiones, sino que, después de escuchar hasta el final mi defensa, solo entonces voteis lo que parezca lo mejor para vosostros mismos y lo más conforme al juramento.”

154“Se invece essi, pur avendo soldi, non vogliono farne rinuncia, come potreste rinunciare voi, senza perdere la faccia, all’impegno del vostro giuramento?”

155“[...] il compito di vendicare il torto fatto alle leggi, alla divinità e a voi stessi.” 156“[...] si au contraire vous détestez le crime, le coupable sera châtié, avec l’aide des dieux.”

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Entretanto, os gregos não esperavam que essa atribuição fosse cumprida pelos deuses, já

que eles interferiam nos assuntos humanos apenas quando lhes interessavam. A justiça

humana atinge a cidade, quando as decisões dos juízes estão em concordância com o

juramento, as leis e os decretos. A justiça divina, ao contrário, não precisa desses

mecanismos para agir. Os deuses realizam suas decisões baseadas em seu próprio

discernimento, sem ter nenhuma lei como parâmetro que balize sua escolha. Dessa

maneira, não há como os homens avaliarem a proporção da pena imposta pelos deuses,

nem saberem quando ela será aplicada e sua duração. Por seu caráter altamente

imprevisível e devastador, a cidade deve evitar a punição divina. Por isso, qualquer

atentado à ordem sagrada é reprimido:“Um homem ímpio e perverso pode,

eventualmente, morrer antes de pagar as penas de seus pecados, mas as cidades, por

serem imortais, ficam aguardando as punições humanas e divinas” (Isócrates, Sobre a

Paz, 120).

Com a evocação dos sentimentos de receio que uma impiedade impune pode

provocar, Demóstenes termina o seu discurso afirmando que

“Por todas essas coisas que eu disse e, sobretudo, pela divindade que preside a festa, e que ele manifestadamente ultrajou de modo ímpio, vocês devem infligir-lhe a justa punição com um voto que respeite as leis divinas e a justiça (hosían kaí dikaían)157”(Demóstenes, Contra Mídias, 227)158.

Essas duas palavras representam idéias correlacionadas. Como foi visto no

capítulo anterior, hósios significa uma conformidade aos deveres da cidade,

principalmente os relativos à esfera religiosa, já que o termo está relacionado com a

idéia de justiça divina. Sua associação com díkaios reforça o sentido do dever de agir

corretamente na cidade, respeitando as convenções estipuladas pelos deuses e pelos

homens. Dessa forma, os homens são justos quando obedecem, ao mesmo tempo, às leis

e aos ritos, e, quando fazem isso, também são piedosos no sentido de que estão em

concordância com o respeito aos preceitos religiosos e aos modelos de conduta

estabelecidos pelos cidadãos e corporificados nas leis. Piedade e justiça caminham lado

a lado para manutenção da ordem da pólis.

157Para mais exemplos de hósios coordenado a díkaios nos oradores ver MOULINIER, Louis. Le pur et

l’impur dans la pensee des grecs: d'Homere a Aristote. Paris: C. Klincksieck, 1952. p. 214. 158“Per tutte queste cose che ho detto e soprattutto per la divinità che presiede alla festa, e che costui ha

manifestamente oltraggiato in modo sacrilego, infliggetegli la giusta punizione con un voto che rispetti le leggi divine e la giustizia.”

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A justificação do uso da lei possui uma base prática: a necessidade da lei para a

manutenção da ordem no regime democrático. Segundo Romilly (2002, p. 139), o apego

às leis e ao seu senso utilitário fornece a trama essencial do Contra Mídias. No percurso

para entender o uso das leis por Demóstenes, percebe-se como elas são importantes para

a estratégia persuasiva do orador. Essa estratégia tem como um dos componentes a

caracterização de Mídias como um mau cidadão, por não respeitar tudo aquilo que é

mais importante e indispensável à vida na pólis. O eixo central do discurso não é a

demonstração da importância das leis para democracia, mas a representação de Mídias

como um sujeito que menospreza os deuses, as leis, o dêmos e, por fim, a pólis

(Demóstenes, Contra Mídias, 66 e 97).

4.2 O uso de argumentos religiosos na retórica

Anteriormente, mostrou-se a utilização das leis e do apelo à justiça na

construção do argumento persuasivo de Demóstenes e como esses termos também

podem ser relacionados ao apelo religioso, principalmente quando se observa a questão

do juramento e a relação entre a piedade, o dever cívico e o cumprimento da justiça.

Essa parte do trabalho analisará a maneira como o orador utiliza outros elementos

religiosos de forma persuasiva.

Segundo Aristóteles, é eficiente para a persuasão dos ouvintes a construção, por

parte do orador, de um éthos compatível com o deles e o uso de emoções e noções que

corresponderiam aos seus anseios. Demóstenes, no Contra Mídias, constrói um “éthos

democrático”, ao demonstrar seu alinhamento aos ideais democráticos, e à manutenção

da boa ordem por meio do respeito às leis, e por caracterizar Mídias como um mau

cidadão. Para a construção desse éthos, ele também utiliza noções religiosas para

convencer os ouvintes principalmente de que Mídias não age corretamente com relação

à cidade, pois atrapalhou a festa em honra do deus Dioniso.

As noções religiosas são utilizadas com freqüência nos discursos forenses159 por

possibilitarem a construção de uma imagem positiva do orador, que se mostra

159Para uma análise mais detalhada do uso das noções religiosas nos oradores áticos ver KING, Donald

B. The Appeal to Religion in Greek Rhetoric. The Classical Journal, v. 50, n. 8, p. 363-371, may. 1955.

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preocupado com o aspecto religioso, essencial para a pólis, e por despertar emoções

intensas nos ouvintes, já que o sentimento religioso está presente em todos os aspectos

da vida do homem grego. Elas também são responsáveis por oferecer um padrão de

conduta moral e ética com o qual a maioria das pessoas concorda. Outro forte

componente que motiva a ação dos homens, e também é utilizado pelos oradores, é o

temor da imprevisibilidade do castigo dos deuses.

Andócides, em Sobre os Mistérios, apela para a evidência da intervenção direta

dos deuses para provar sua inocência. De acordo com seu argumento, ele não poderia

ser condenado por impiedade, pois, quando estava no mar, sob a vontade dos deuses,

esses pouparam sua vida e o trouxeram de volta para Atenas:

“Acusaram-me também em relação à minha frota e minhas atividades comerciais, pois, segundo eles, os deuses me haviam salvado dos perigos para que, chegando aqui, fosse verdadeiramente condenado à morte por Cefísio. Da minha parte, atenienses, não creio que os deuses tivessem tido uma intenção semelhante de modo que, se eles consideravam ofendidos por mim, não se vingaram quando me tinham a sua mercê ao encontrar-me nos maiores perigos. Efetivamente, que perigo maior há para os homens que se lançar ao mar em época de inverno? Nesse momento, tinham-me à sua mercê e eram donos de minha vida e de meus bens, e, apesar disso, mantiveram-me a salvo” (Andócides, Sobre os Mistérios, 137)160.

Ele continua a apelar para o temor de contrariar uma decisão dos deuses e

prossegue dizendo: “Então, se é certo conjecturar sobre o pensamento dos deuses, creio

que eles muito se irritariam e se indignariam se vissem que os que são salvos por eles

são condenados à morte pelos homens” (Andócides, Sobre os Mistérios, 139)161.

O apelo às noções religiosas pelos oradores pode ser dividido em três grupos. O

primeiro é constituído por aqueles que servem para relembrar aos juízes o juramento de

obedecer às leis. Demóstenes, no discurso em defesa da ação movida contra Ctesifonte,

160“Me han acusado también en relación con mi flota y mis actividades comerciales pues, según ellos,

los dioses me habrían salvado de los peligros para que, llegado aquí, verosímilmente fuera condenado a muerte por Cefisio. Por mi parte, atenienses, no creo que los dioses hubieran tenido uma intención semejante de modo que no se hubrieran vengado, si se consideraban ofendidos por mí, cuando me tenían a su merced al encotrarme yo en los mayores peligros. En efecto ¿que peligro mayor hay para los hombres que hacerse a la mar en época de inverno? En esos ninebtis nen tenían a su merced y eran dueños de mi vida y mis bienes, y, ¿ a pesar de ello, me mantuvieron a salvo?”

161“Entonces, si es cierto que hay que conjecturar el pensamiento de los dioses, creo que ellos mucho se irritarían y se indignarían, se vieran que quienes son salvados por ellos, per los hombres son condenados a muerte.”

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141

apela diretamente aos deuses para que inspirem os juízes a darem o bom veredicto, que

é aquele em concordância com as leis e com o juramento:

“Rogo, atenienses, a todos os deuses e deusas, em primeiro lugar, que, nesta lide, se me depare de vossa parte a mesma afeição que venho, em minha vida, votando à república e a vós em geral; depois – e isto toca mais de perto a vossas pessoas, a vossa piedade e reputação – que os deuses vos inspirem a não tomar com o meu adversário conselho sobre as disposições com que me hajais de ouvir – seria, com efeito, uma lástima – mas sim com as leis e com o juramento, em cujos termos, além de todas as demais seguranças, se inclui a de prestar atenção imparcial a uma e outra parte” (Demóstenes, Oração da Coroa, 1 - 2).

Com isso, o orador, conjuntamente, relembra a importância do juramento, do

veredicto justo, e também evidencia a presença dos deuses. Um segundo grupo de

apelos é composto por aqueles que demonstram que os deuses assistem às decisões dos

juízes e podem puni-los se não derem o veredicto justo. Reafirmar a vigilância dos

deuses acerca dos veredictos reforça a responsabilidade da função julgadora exercida

pelos cidadãos, pois tão terrível quanto o crime cometido é condenar um inocente. Da

mesma forma, deixar um culpado sem punição representa um grande risco para a pólis:

“Vocês devem, portanto, considerar que em nada é uma impiedade menor condenar por

impiedade aos que nada faltaram do que não vingar-se dos que cometeram impiedade”

(Andócides, Sobre os Mistérios, 32)162. Essa responsabilidade torna-se ainda maior

quando o crime relaciona-se com a esfera religiosa, pois representa um atentado direto

aos deuses. Por fim, o último grupo é constituido pelos apelos que relembram aos juízes

a sua participação na poluição provocada por um crime impune.

Um crime impune pode ser prejudicial à cidade, pois a mácula produzida

continua a perturbar a ordem e pode atrair a punição divina. A cidade é sensível à

contaminação do corpo impuro163, como apresenta a tragédia de Sófocles Édipo Rei.

Nela, a cidade sofre com a peste, a infertilidade de mulheres e animais, e a falta de

alimentos por causa da impunidade de um assassino. O impuro, por contágio, afeta, com

sua mácula, toda a vida pública e, por isso, deve ser excluído de toda participação na

pólis (Aristóteles, Constituição de Atenas, XIII, 5). A exclusão do impuro funciona

como uma espécie de purificação. Nos séculos V a.C. e IV a.C., a idéia de mácula se

162“Debéis, por lo tanto, considerar que en nada es una impiedad menor condenar por impiedad a los que

en nada han faltado que el no vengarse de quienes han cometido impiedad.” 163O perigo contagioso do impuro é expresso de maneira mais acentuada nos crimes de homicídio.

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restringe ao local onde o crime ocorreu. Assim, ao deixar de pisar no solo de sua cidade,

o autor da mácula encontra-se puro (Vernant, 1992, p. 107).

O impuro, representado pelas palavras akáthartos (maculado), miarós (impuro),

enagēs (maldito) e miaiphónos (manchado pelo crime de sangue), é, no pensamento

grego, manifestadamente material. Ele se localiza em um ser concreto, que é culpado do

crime, e encontra-se num lugar, que também é concreto. A impureza material impede o

homem de entrar em contato com os deuses. Para que seja novamente aberta a

possibilidade de contato entre as duas esferas, o homem deve purificar-se. A

necessidade de purificação individual marca o caráter contagioso da mácula, uma vez

que a coletividade pode ser contaminada por meio da impureza de um de seus membros.

A idéia da mácula que produz um malefício advindo da potência religiosa é utilizada

pelos oradores para expressar a culpa do oponente e a necessidade da punição, pois,

com sua aplicação, a pólis estaria se resguardando dos prejuízos que podem afetar todos

os habitantes.

O puro, indicado pelas palavras katharós (sem mancha), ákratos (puro), akéraios

(não maculado), akraiphnēs (puro), hósios (piedade) e hagnōs (puramente), está

relacionado com a idéia de ordem e de eqüilíbrio. Ele também é associado à idéia de

justiça (díkē), por essa também representar o eqüilíbrio. A díkē possui várias nuances,

podendo significar os costumes, a justiça, a eqüidade, a pena ou a punição a ser sofrida,

o processo judiciário, a vingança, a sentença, a ordem final depois de uma crise, a

normalização de um processo e o regresso a uma ordem.

Demóstenes utiliza, recorrentemente, o adjetivo miarós164 (que significa impuro,

abominável ou repulsivo) para caracterizar Mídias. Com o uso desse termo, ele reforça

para os juízes a culpa de Mídias pelo delito cometido, sua afronta à ordem sagrada e a

necessidade de sua punição. O adjetivo aparece nos parágrafos 17, 19, 114, 195, 216 e

226. No parágrafo 114, o adjetivo está coordenado com asebēs (ímpio), o que reafirma a

impiedade do ato de Mídias. Assim, ele deve ser punido, sendo sua condenação uma

expurgação do mal que provocou ao corpo cívico, por ser uma pessoa ímpia, impura e

ultrajante.

De acordo com Moulinier (1952, p. 213), para os gregos a pólis era ora pura, ora

impura e a utilização desses termos pelos oradores é um indicativo de que esse tipo de

argumentação tinha impacto nos ouvintes.

164Miarós, além de indicar impuro, tem o sentido de manchado de sangue ou marcado por crime de

morte.

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Outros adjetivos também são utilizados para nutrir o sentimento de aversão

contra Mídias. Além de ser caracterizado como impuro e ímpio, ele também é chamado

de bdelyròs (Demóstenes, Contra Mídias, 2), que indica uma conduta repugnante,

impudente e asquerosa. Ao contrário de miarós, que aparece algumas vezes sozinho,

esse adjetivo está sempre coordenado com outro, de maneira a reforçar o caráter

violento e aversivo de Mídias: “Diriam, por Zeus, que é um homem repugnante e

violento” (Demóstenes, Contra Mídias, 98)165. Mídias, por duas vezes, nos parágrafos

107 e 151, é apresentado como “repugnante e impudente” (tōi bdelirōi toutōi kaì

anaideî). Seu caráter desmedido faz com que ele não respeite a festa, ofendendo os

deuses por meio de sua violência, movida por questões pessoais. Por isso, Demóstenes o

caracteriza como “repugnante e inimigo dos deuses” (theoîs ekhthròn kaì bdelyrón)

(Demóstenes, Contra Mídias, 197)166.

A utilização de elementos religiosos na retórica visa a inspirar emoções de

compaixão pelo orador e de hostilidade por seu oponente e também medo pelo destino

de toda cidade, que ficaria maculado por causa de um crime impune. O uso desses

elementos é eficaz por produzir uma resposta rápida, uma vez que os sentimentos

religiosos estavam arraigados nos ouvintes.

4. 3 Hýbris

O Contra Mídias, como já foi explicitado anteriormente, é o discurso que possui

a maior recorrência do termo hýbris e de seus derivados em toda a literatura grega. No

discurso, contando-se todas as manifestações de sua raiz, ela aparece 131 vezes. A

maior parte das recorrências está concentrada nos parágrafos 56 a 227. Em todo o

conjunto da obra de Demóstenes, essa palavra e seus derivados aparecem 247 vezes.

Quando se analisa o corpus das obras de todos os oradores, a discrepância torna-se

ainda maior, já que ela é recorrente apenas 170 vezes nos demais (Rowe, 1993, p. 397).

A recorrência do termo hýbris, de seus derivados e de palavras correlacionadas a

ele, na caracterização do ato de Mídias como ultrajante, conseqüência de seu

comportamento violento e imoderado, fez com que o discurso fosse majoritariamente

165“Direte, per Zeus, che è un uomo ripugnante e sfrontato.” 166“[…] che lui è sempre e dappertutto un essere odioso agli dèi e abnominevole.”

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analisado sob o enfoque da hýbris, considerada como o objeto central da acusação. Sua

importância para a construção da estratégia persuasiva de Demóstenes é incontestável,

pois ela é um elemento fundamental para o entendimento do discurso. Por essas razões,

será apresentada, de forma sucinta, a discussão dos especialistas acerca da hýbris e o

papel que ela desempenha no discurso.

Numa sociedade de confronto, como a ateniense, na qual para ser reconhecido é

preciso prevalecer sobre os rivais, numa competição incessante pela glória, cada pessoa

está sujeita ao olhar do outro. O valor de um homem é ligado à sua reputação e toda

ofensa pública, todo ato ou palavra que atinja sua dignidade ou prestígio, é sentida pela

vítima enquanto não tiver sido abertamente reparada. A ofensa ultrajante representa uma

forma de rebaixar ou de destruir o próprio ser. Dessa maneira, a hýbris era a indicação

da violação do status de distinção, que tenta reduzir a pessoa a uma condição inferior à

que ocupa. Por ser uma sobreposição desmedida, e muitas vezes de forma violenta, de

um membro sobre os demais, a hýbris é um crime anti-democrático (Wilson, 2004, p.

212), opondo-se a toda organização estabelecida.

Na literatura grega, de maneira geral, o termo hýbris possui um forte conteúdo

moral, e é empregado para descrever comportamentos condenáveis aos olhos da

coletividade e que provocam vergonha e desonra aos outros. Assim, a hýbris é um

comportamento que se tem em relação ao outro.

Na acepção de MacDowell (1976, p. 15), a hýbris é sempre ruim, voluntária e

envolve uma vítima. Ela tem como causa o excesso, seja ele de dinheiro, poder, comida,

bebida, sexo ou de prepotência proveniente da loucura juvenil. Para o autor, a hýbris

não é restrita aos seres humanos, podendo ocorrer em animais, deixando-os,

principalmente, violentos. A pessoa, quando está tomada pela hýbris, fica em um estado

mental que corresponderia ao que se nomeia de “cheia de si”. Nesse estado a pessoa

volta-se exclusivamente para a satisfação de seus desejos, livre de qualquer

constrangimento. O sujeito no estado de hýbris irá realizar aquilo que almeja, mesmo

que isso corresponda a um desrespeito a outras pessoas.

Fisher concorda com a colocação de MacDowell de que a hýbris produz no

ultrajante um sentimento de “cheio de si”, mas acrescenta que ela também possui como

característica fundamental a vergonha e a desonra provocadas na vítima. Para sua

análise, parte da definição de hýbris proposta por Aristóteles na Retórica, na qual “o

ultraje consiste em fazer ou dizer coisas que causam vergonha à vítima, não para obter

uma outra vantagem para si mesmo, afora a realização do ato, mas a fim de sentir

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prazer, pois quem paga na mesma moeda não comete ultraje e sim vingança”

(Aristóteles, Retórica, 1378b). De acordo com o autor, a hýbris é uma noção complexa,

pois trata-se da mistura de um estado psicológico (a vontade de satisfazer determinado

tipo de desejo) e da ação negativa que a realização do desejo provoca em outra pessoa

(Fisher, 1976, p. 184). Na sua visão, a hýbris constitui um fenômeno moral

essencialmente humano, relacionado com a intenção e a possibilidade de controlar seus

impulsos. Baseando-se nisso, ele critica o posicionamento de MacDowell de estender o

sentido da hýbris a animais, e afirma que o uso dessa palavra aplicada fora de contextos

humanos é estritamente metafórico167. Assim, a hýbris envolve um sentimento de

superioridade, pertencente ao ultrajante, que, por causa de sua ação, provoca no

ultrajado um insulto ou uma desonra que o coloca em um status inferior ao que ele

pertence.

A análise de Fisher é criticada por Cairns. Segundo ele, Fisher, para o

desenvolvimento de sua argumentação sobre a hýbris, baseada na Retórica de

Aristóteles, localiza erroneamente sua posição na teoria ética do filósofo. Ela é uma

forma de injustiça e não somente um ato que provoca vergonha e desonra à vítima

(Cairns, 1996, p. 6). Para o autor, o importante a ser ressaltado na análise da hýbris não

é o ato em si, mas a motivação que o impulsiona. Nesse sentido, a honra dos envolvidos

na ação é relevante para a definição da hýbris. Ambos os autores concordam que o

insulto se dá contra alguém, mas Fisher considera que o sentimento da hýbris possui

uma intenção consciente de realizar o ultraje e, para Cairns (1996, p. 10), a hýbris pode

ser uma atitude subjetiva, pois também é relevante a própria honra de quem nela

incorre.

Para os três autores, a hýbris não apresenta, normalmente, características

religiosas. MacDowell considera a relação da palavra com a esfera religiosa em algumas

passagens da literatura grega, mas o número de ocorrências não é substantivo em

relação à aparição dela em toda a literatura. Segundo ele, os casos em que os deuses

punem a hýbris não indicam necessariamente a existência de um conteúdo religioso,

pois eles a punem da mesma forma que castigam tudo o que é errado (MacDoweell,

1976, p. 22). Para Fisher (1976, p. 178), a hýbris nunca foi essencialmente religiosa,

mas pode assumir conotações religiosas, assim como a maior parte das palavras do

vocabulário social e moral, em contextos políticos ou jurídicos em que o autor (seja de

167Essa é a mesma posição de Cairns (1996, p. 23).

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um tratado filosófico, de uma peça de teatro ou de um discurso a ser pronunciado na

Assembléia ou no tribunal) queira explicitamente incluir os deuses na sua argumentação

ou correlacionar esses termos com conceitos religiosos.

Especialmente a tragédia168 foi utilizada como fonte para a identificação entre a

hýbris e a esfera religiosa, já que os deuses podem castigar aqueles que têm

comportamentos ultrajantes. Segundo Gernet (2001, p. 41), as tragédias indicam a

continuação da relação entre a hýbris e a esfera religiosa no período clássico, sendo elas

valiosas fontes para entendimento do estabelecimento da hýbris como uma noção

religiosa e moral no pensamento grego. Para ele, a noção de hýbris pode ser associada à

idéia de impiedade, designando um ato positivo, um atentado direto à divindade ou à

religião (Gernet, 2001, p. 212). Fisher (1979, p. 39) contrapõe-se à visão de Gernet,

argumentando que não há relação entre impiedade e hýbris. Para confirmar sua posição,

ele demonstra que não existem indícios que comprovem a correlação entre as duas

noções na fala do coro da Eumênides de Ésquilo, quando se diz: “a soberba é a filha da

impiedade” (dyssebías mèn hýbris tékos ōs etýmōs) (Ésquilo, Eumênides, 533). Esse

trecho mostra o esforço do poeta em representar o potencial contagioso dessas ofensas,

pois elas tendem a se espalhar pelo corpo social. Também explicita o sentimento de

aversão que a coletividade tem por elas.

Para Gernet (2001, p. 395), a relação entre a hýbris e a religião é inerente ao

conceito de hýbris, pois não há nele uma dualidade entre os valores místicos169 e

positivos. No momento em que o pensamento se racionaliza, ele mantém algumas

nuances do estágio anterior, que corresponde ao pensamento mágico-religioso. O termo

hýbris e sua representação no pensamento grego são utilizados pelo autor na condução

de sua reflexão acerca do estabelecimento de noções racionais e práticas positivas na

esfera jurídica. Na Grécia, tem-se a passagem de uma noção mística do delito para uma

noção de vontade criminal. Nessa mudança, também se estabelece a noção de indivíduo,

que pode ser, na época clássica, tanto o objeto quanto o sujeito do delito. Assim, para o

autor, a noção religiosa da hýbris, na época clássica, se prolonga nas representações que

tradicionalmente se ligam à palavra (Gernet, 2001, p. 396).

168Para uma crítica da visão da hýbris como o erro do herói trágico ver FISHER, N. R. E. Hýbris and

Dishonour: II. Greece & Rome, v. 26, n. 1, 1979, p. 38 et. seq. 169Gernet, no prefácio de seu livro Recherches sur le développement de la pensée juridique et morale en

Grèce, utiliza a expressão “concepção mística” (concepction mystique) e explica que continuará utilizando a palavra mística, bem como termos semelhantes ao longo da obra.

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Na sua concepção, a hýbris relacionada à esfera religiosa é considerada uma

falta religiosa. Além de ofender as coisas sagradas, ela é também uma força sinistra por

dois motivos: pelo poder de provocar uma reação terrível, inesperada e certa e pelo

poder de contágio que possui. Assim como a noção de justiça (díkē), a hýbris relaciona-

se com a idéia de ordem no kósmos, mas sob um aspecto negativo, já que representa a

quebra de um equilíbrio que não pode ser desfeito impunemente (Gernet, 2001, p. 214).

Dessa maneira, o termo hýbris traz em si uma concepção de homem e de seu lugar no

kósmos, sendo o homem uma força frágil e impotente frente à força proveniente dos

deuses. A hýbris provoca inquietação na pólis, por apresentar uma noção de indisciplina

com relação à organização estabelecida pela coletividade. Essa indisciplina é provocada

por um sentimento de orgulho que faz a pessoa ultrapassar seu domínio circunscrito.

Segundo Gernet (2001, p. 396), a hýbris é “o orgulho ímpio” que provoca uma sanção

pela qual o equilíbrio rompido se restabelece no mundo. Assim, a reprovação da hýbris

pela pólis é a rejeição ao individualismo destrutivo que pode trazer a ruína de toda a

cidade.

Tanto no seu sentido religioso quanto positivo, a hýbris caracteriza uma violação

das regras estabelecidas para gerenciar a conduta dos homens uns com os outros

(Gernet, 2001, p. 33). A transgressão dessas regras pela pessoa se dá de forma

consciente. De acordo com Gernet (2001, p. 193), um aspecto fundamental para a

definição da hýbris é a vontade do autor do delito: na hýbris há intenção de ultrajar.

Esse aspecto é trabalhado por Demóstenes no Contra Mídias, para demonstrar a culpa

de seu inimigo. Para o autor, no discurso, a hýbris apresenta-se como uma vontade da

pessoa que quer provocar o ultraje. Ela serve para indicar que ele agiu mal e

incorretamente e, por isso, deve ser punido. Esse aspecto é somado com a representação

da hýbris com traços de sacrilégio, já que o ato de Mídias constitui um atentado contra a

regularidade da festa em honra ao deus (Gernet, 2001, p. 203).

Dessa forma, a insistência da hýbris no discurso corresponde à obstinação do

orador em querer demonstrar a vontade de Mídias de ultrajá-lo e o comportamento

socialmente inadmissível decorrente desse desejo. Demóstenes alega que o ultraje

atingiu toda a cidade, pois a agressão de Mídias ocorreu enquanto ele exercia uma

função escolhida pela pólis e em beneficio dela. Mas o ato de seu inimigo não é um

desrespeito à cidade somente por tentar impedir que ele exerça as funções em prol dela.

É um desrespeito, por representar um atentado ao princípio religioso que a regula.

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Segundo Rowe, o uso repetido da hýbris, associado ao grupo de palavras

recorrentes, faz parte da técnica persuasiva do orador para caracterizar Mídias como

uma ameaça coletiva e para definir sua culpa. O autor divide em quatro grupos as

palavras que podem ser relacionadas com a hýbris (Rowe, 1993, p. 399). Essas tendem

a ser abstratas e possuem uma forte conotação moral, podendo ser semanticamente

relacionadas umas com as outras. Todas elas são usadas para descrever o

comportamento, o caráter e a ofensa de Mídias, enriquecendo e, ao mesmo tempo,

especificando o que Demóstenes considerava como o delito da hýbris.

O primeiro grupo refere-se à hýbris como violação de uma lei humana ou divina

e contém as palavras: injustiça (adik-), ímpio (aseb-), violento (aselg-), desonrado

(atim-) e mácula (miar-). O segundo grupo relaciona-se com palavras que retratam o

caráter de Mídias como culpado. É constituído pelas palavras impudente (anaid-),

audacioso (thras-), rico (plou-), ousado (tolm-), arrogante (uperēphan-) e cruel (ōm-).

As palavras repulsivo (bdelyr-), ruim (kak-) e desprezível (ponēr-), relacionadas com a

qualidade da ofensa, formam o terceiro grupo. O último é composto pelas palavras que

descrevem o ato, enfatizando a agressão física: violento (bia-), ultrajante (epēre-),

teimosia (propēlak-) e golpear (typt-). Esses grupos são importantes na estratégia

persuasiva de Demóstenes, pois qualificavam o delito de Mídias, já que a lei contra a

hýbris, apresentada no parágrafo 47, não tem uma definição explícita com relação a

quais atos a constituiram.

Com base no grande número de repetições da palavra, Rowe afirma que a hýbris

é a ofensa da qual Demóstenes está acusando seu inimigo. O orador demonstra que essa

ofensa foi contra o dêmos (Demóstenes, Contra Mídias, 7) e que todas as ações

cometidas por Mídias são resultado da sua hýbris: “[...] [Mídias] era meu inimigo

pessoal, ultrajou-me em pleno dia, deliberadamente, e não somente nessa ocasião, mas

também ele escolheu, como é claro, todo momento propício para me insultar”

(Demóstenes, Contra Mídias, 38)170.

Para Rowe, a impiedade no discurso funciona apenas para reforçar o delito da

hýbris. Ao analisar o final do discurso, no qual Demóstenes diz ser o delito cometido

por Mídias a impiedade171, o autor afirma que essa parte não invalida a qualificação da

170“[...] era mio personale nemico, mi ha oltraggiato in pieno giorno, deliberatamente, e non solo in

questa occasione, ma sceglie, com’è chiaro, ogni momento adatto per oltraggiarmi.” 171No último parágrafo do discurso, Demóstenes diz: “por todas essas coisas que eu disse e, sobretudo,

pela divindade que preside a festa, e que ele manifestadamente ultrajou de modo ímpio, infligi-o a justa punição com o voto que respeita as leis divinas e a justiça” (Demóstenes, Contra Mídias, 227).

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ofensa de Mídias como hýbris. Segundo ele, essa aparente inadequação na qualificação

da ofensa entre o ultraje e a impiedade é resolvida com o uso da probolē. A probolē,

“ofensa à festa” (adikeîn perì tēn heortēn), possui dois componentes: o primeiro é

cometer uma “ofensa”, que é o requisito para o segundo, “à festa” (Rowe, 1994, p. 62).

Dessa forma, o fato de Mídias ter agredido Demóstenes constitui o primeiro

componente que também corresponde à acusação que o orador elabora: a hýbris. Já que

a agressão ocorreu durante o festival das Grandes Dionisíacas, ela possui traços de

impiedade, o que corresponde ao segundo componente. De acordo com o autor, a

impiedade provocada por Mídias seria reafirmada pela utilização dos oráculos nos

parágrafos 51 e 53 e com a passagem dos termos adikeîn perì tēn heortēn, no primeiro

parágrafo, para perì où tēn heortēn asebōn, no último (Rowe, 1994, p. 63). A hýbris,

mesmo aparecendo de forma expressiva no discurso, não constitui o delito de Mídias.

Ela, aliada à impiedade, serve para qualificar a ofensa que ele cometeu na festa e

da qual é culpado. O comportamento ofensivo não é definido pela lei (da mesma forma

que os delitos de ultraje e impiedade também não são claramente definidos pelo direito

ático), cabendo ao acusador definir, ao longo do discurso, o comportamento que

considera assim. Para isso, Demóstenes se utiliza da hýbris e da impiedade, não só para

caracterizar a ofensa, mas também para demonstrar que elas estão presentes no caráter

de seu inimigo. Isso o torna um perigo maior para pólis, já que tanto os comportamentos

ultrajantes quanto os ímpios não se restringem à agressão ocorrida no teatro.

A probolē que condena crimes ocorridos nos festivais, por si só, apresenta um

traço de impiedade, pois uma ofensa à festa é uma afronta à ordem do sagrado. No

discurso, a hýbris é parte do caráter de Mídias, por ele ser violento com todas as

pessoas, acusando-as injustamente e utilizando sua riqueza e seu prestígio social para

escapar impunemente. Ela também caracteriza a agressão sofrida como intencional e

premeditada, o que torna o delito de Mídias mais grave. A hýbris, no discurso, aparece

relacionada diretamente à probolē, já que Mídias “cometeu um ultraje (hybrízonta) sem

se preocupar minimamente nem com a festa, nem com os objetos sagrados, nem com a

lei e nem com nenhuma outra coisa” (Demóstenes, Contra Mídias, 97)172.

172“[...] un uomo che avete colto sul fatto, mentre commetteva un oltraggio, senza preoccuparsi

minimamente né della festa, né degli oggetti sacri, né della legge, né di nessun’altra cosa.”

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4.4 A impiedade no discurso

Logo após a apresentação da lei a respeito da hýbris, Demóstenes afirma que,

dadas as condições, permeadas de uma atmosfera religiosa, em que sofreu o ultraje,

Mídias merece realmente ser condenado por impiedade: “Se então, ó atenienses, eu, não

como corego, houvesse sofrido esses ultrajes da parte de Mídias, a acusação contra ele

poderia ser somente por atos de violência, mas me parece que seria um modo de agir

conveniente se ele fosse acusado de impiedade” (Demóstenes, Contra Mídias, 51)173.

Essa é a primeira vez que o termo impiedade, asébeia, aparece no discurso, havendo

mais oito ocorrências: nos parágrafos 55, 104, 114, 120, 130, 147, 199 e 227.

Especialistas, com exceção daqueles que consideram o discurso uma graphē

asebeías, tentam elucidar os possíveis motivos que levam o orador a evitar processar

Mídias por impiedade, uma vez que, no próprio discurso, ele indica essa como a forma

mais apropriada de condenar Mídias. Os especialistas que defendem a centralidade do

discurso na hýbris tendem a considerar a impiedade como um elemento utilizado

persuasivamente com o objetivo de reforçar o crime de ultraje (Gernet, 2001, p. 200;

Rowe, 1993, p. 399).

O orador também caracteriza o ato de seu inimigo como ímpio e termina o

discurso por afirmar que ele deve ser condenado por ter agido de maneira impiedosa

para com o deus que preside a festa, Dioniso (Demóstenes, Contra Mídias, 227).

Segundo MacDowell (2002, p. 18), Demóstenes não utiliza a impiedade como principal

acusação porque seria difícil convencer os juízes de que, agredindo um corego, Mídias

estaria ofendendo os deuses, já que não há nenhuma legislação que proteja

especificamente o corego, condenando a agressão à sua pessoa. Mas o orador, ao longo

de todo o discurso, tenta relacionar a violência sofrida como uma afronta à ordem

sagrada:

“Portanto, todas as ofensas que Mídias fez contra mim como corego e contra a minha pessoa, e todas as contínuas e várias insídias e os maus tratos que eu consegui evitar, vocês os ouviram, ó atenienses, e eu omiti vários outros. Talvez não seja fácil dizer tudo. Mas as coisas são assim: não há ofensa de Mídias que se refira somente a mim, mas

173“Se dunque, o ateniesi, io, non come corego, avessi subito questi oltraggi da parte di Midia, l’accusa

contro di lui potrebbe essere solo per atti di violenza; ma a me sembra che sarebbe un modo di agire conveniente se lo si accusasse di empietà.”

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aquelas feitas ao coro atingem conjuntamente a mim, também à minha tribo, que é a décima parte de vocês, cidadãos. E as violências e as insídias dele não eram apenas dirigidas contra mim, mas também contra as leis, as quais garantem a incolumidade a cada um de vocês. Todos esses crimes, em seu conjunto, ofenderam a divindade, da qual eu fui nomeado corego, e com ela foram ultrajados os direitos divinos e tudo aquilo que é venerável e sagrado” (Demóstenes, Contra Mídias, 126)174.

A agressão de Mídias, por provocar distúrbios na esfera humana e sagrada, é um

crime que afeta toda a cidade. Na esfera humana, a agressão representa a quebra de

valores de conduta estipulados pelos cidadãos para assegurar o bom convívio na cidade.

Essa quebra provoca um deseqüilíbrio na pólis, que é restaurado com o processo de

obtenção de justiça, no qual o cidadão recorre aos mecanismos judiciários disponíveis.

Por se tratar de um cidadão que desempenha uma liturgia religiosa, o orador também

associa a violência sofrida como uma causa de perturbação na esfera religiosa, a qual,

devido a isso, assume traços de impiedade. Não somente a tentativa de atrapalhar os

trabalhos do coro é considerada uma impiedade, mas também a própria agressão.

Contudo, durante o discurso, não é apresentada nenhuma prova, exceto a argumentação

do orador, que demonstra a violência ao corego como um ato de impiedade. De acordo

com MacDowell (2002, p. 18), calculando a dificuldade de tornar essa relação (agressão

ao corego correspondente a um ato de impiedade) convincente para os juízes, o orador

opta pela ação de probolē e a acusação de ofensa à festa (adikeîn perì tēn heortēn). Mas

ele prossegue na tentativa de envolver o delito de Mídias com a impiedade, não somente

se referindo aos oráculos (parágrafos 52 e 53), mas também pelo uso, no final do

discurso (parágrafos 199 e 227), da expressão asebeîn perì tēn heortēn, que mistura as

duas noções: asebeîn e adikeîn.

Para Rudhardt (1960, p. 103), Demóstenes não processa seu inimigo por

impiedade porque ele pode fazer isso, já que nenhum dos atos de Mídias, mesmo

ofensivos à esfera divina, não são condenados pelo delito de impiedade. Então, resta ao

orador processá-lo por hýbris (como já vimos, para o autor, o discurso constitui uma

graphē hýbreōs). Segundo o especialista, no decorrer do discurso, o orador tem como

174“Tutte le offese, dunque, che sono state fatte da Midia contro di me come corego e contro la mia

persona, e tutte le continue e svariate insidie e i maltrattamenti che sono riuscito a evitare, voi li avete uditi, o ateniesi, e ne tralascio molti altri. Non è forse facile dire tutto. Ma così stanno le cose: non vi è offesa fatta da Mídia che riguardi soltanto me, ma quelle fatte al coro colpiscono, assieme a me, anche la mia tribù, che è la decima parte di voi cittadini, e le violenze e le insidie di costui non erano solo dirette contro di me, ma anche contro le leggi, le quali garantiscono l’incolumità di ciascuno di voi. Tutti questi crimini, nel loro complesso, offendono la divinità della quale io ero stato nominato corego e con lei vengono oltraggiati i diritti divini e tutto cio che è venerabile e sacro.”

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objetivo ressaltar os atos de impiedade de seu inimigo, para que os juízes também

tenham consciência desse crime. Isso é possível, porque a impiedade reside na intenção

de quem a comete.

Segundo Rudhardt, a ausência de uma lei que punisse o ato de Mídias é o

motivo para Demóstenes não processá-lo por impiedade, mas sim por ultraje. Esse

delito é demonstrado pela lei sobre a hýbris, presente no parágrafo 47. O autor conclui

que o fato de o orador não poder intentar contra seu inimigo uma ação de impiedade,

mesmo ele tendo realizado atos que chocam o sentimento religioso, é uma

demonstração de que o delito religioso é definido por uma legislação (Rudhardt, 1960,

p.102). Para ele, se havia registros de diferentes atos considerados como impiedade,

cada um deles repousava numa lei específica, de tal maneira que um ato que não seja

abarcado pelas leis escapa da condenação do tribunal, mesmo que seja condenado

moralmente pelo sentimento religioso.

Para MacDowell (2002, p. 17), a opção de Demóstenes de não utilizar uma

graphē asebeías, mas sim a probolē, é uma indicação de que, nos tribunais, havia mais

chances de obter um voto favorável dos juízes se o delito do acusado estivesse

diretamente ligado à contravenção de uma lei específica. Para ele, a probolē permite

tanto demonstrar que Mídias transgrediu uma lei, quanto possibilita qualificar o crime

com traços de impiedade, já que ocorreu durante a festa.

Mais do que indicar a infração de uma lei específica, a probolē é significativa na

estratégia persuasiva do orador, pois permite a caracterização do delito ofensivo de

Mídias por meio da exploração de três aspectos, todos prejudiciais à pólis, por

provocarem desordem: o desrespeito às leis, o comportamento ultrajante e a impiedade.

Como foi apresentada na seção anterior, a hýbris, no discurso, tem o papel de

qualificar a agressão de Mídias, os atos de violência praticados por ele contra

Demóstenes, durante e antes do período de sua coregia, bem como a arrogância

direcionada a todos os cidadãos. A hýbris é um elemento que caracteriza o delito

cometido por Mídias: a ofensa à festa (adikeîn perì tēn heortēn). Paralelamente, a

impiedade também vai ser demonstrada da mesma forma. Ela serve para qualificar

Mídias como ímpio, por tentar impedir que Demóstenes cumprisse sua liturgia religiosa,

por agredi-lo durante a festa, por atrapalhar o andamento da festa e por acusar o orador

de um homicídio que não cometeu. Assim, a impiedade, da mesma maneira que a

hýbris, é um elemento que caracteriza o delito de Mídias.

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Para convencer o público, o discurso não pode apresentar contradições. Para

Barthes (1975, p. 173), a contradição leva à dominação do outro. Forçar o discurso do

outro a se contradizer é uma das maneiras de fazer com que o público perca a confiança.

Se considerarmos isso, mais o fato de que Demóstenes era um orador cuidadoso na

escolha das palavras e da argumentação, é provável que ele não deixasse nenhum ponto

contraditório, pois isso seria uma brecha para ser atacado pelo adversário. Se o Contra

Mídias for considerado uma graphē hýbreōs, o discurso teria uma contradição evidente:

no parágrafo 47, Demóstenes apresenta a lei sobre a hýbris e logo adiante, no parágrafo

51, afirma que seu inimigo deveria ser condenado por impiedade e não por ultraje.

Entretanto, se considerarmos o discurso uma probolē, cuja ação ofensiva é caracterizada

como um ato ultrajante e impiedoso, esse dois parágrafos não formam uma contradição,

mas complementam a argumentação do orador, demonstrando aos juízes que Mídias

deve ser condenado por sua impiedade e seu ultraje.

A impiedade é o elemento principal de uma das apresentações do discurso. Na

transmissão do Contra Mídias encontra-se, em alguns manuscritos, uma apresentação

do discurso, escrita por copistas, a qual foi agregada ao início dele em algum momento

do processo de transmissão. As apresentações não trazem nenhuma informação

adicional sobre o desenrolar do processo, mas são fontes interessantes para se observar

como o discurso foi interpretado. Ao todo, foram preservadas cinco diferentes

apresentações175. Nas edições modernas, como, por exemplo, nas de Jean Humbert e

Samaranch, aparecem apenas duas. Uma, de três parágrafos, que considera o discurso

uma graphē asebeías, e uma segunda, de doze parágrafos, que analisa o discurso sob o

foco da hýbris. O último parágrafo dessa apresentação corresponde à terceira e à quarta

apresentações. De acordo com MacDowell (2002, p. 425), é um equívoco integrar essas

partes, mesmo que elas tratem da hýbris, pois aparecem em alguns manuscritos em que

a segunda não está incluída, e também há outros manuscritos com a segunda que não

contêm a terceira e quarta. A quinta apresentação, que é a mais antiga, somente é

encontrada em um papiro176 e ainda não foi traduzida pelos editores modernos de

Demóstenes. Para a nossa análise, vamos adotar a divisão proposta por Humbert, tendo,

assim, duas apresentações sobre o discurso, sendo a segunda correspondente à segunda,

terceira e quarta apresentações. A opção de manter a proposta de Humbert deve-se ao

175Para o texto em grego das cinco apresentações ver: Macdowell, Douglas M. Demosthenes Against

Meidias. London: Bristol Classical Press, 2002, p. 424-330. 176A quinta apresentação é encontrada apenas no papiro Oxy. 56.3846 II século.

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fato de que o interesse deste trabalho está voltado para a classificação, nessas

apresentações, do delito cometido por Mídias. A primeira define a impiedade como o

crime praticado por ele, já a segunda aponta para a hýbris.

A primeira apresentação foi escrita por Libânio por volta da metade do século IV

d.C. e aparece, pela primeira vez, no manuscrito do século X177 (MacDowell, 2002, p.

424). Nela, estão presentes alguns equívocos a respeito do Festival das Grandes

Dionisíacas e da organização dos coros (Humbert, 1959, p. 14; MacDowell, 2002, p.

424). A impiedade constitui o principal elemento do processo, pois seria essa a culpa de

que Demóstenes tentaria convencer os juízes. A probolē é apresentada como um

processo contra atos de impiedade, havendo uma confusão entre a probolē e a graphē

asebeías: “[...] ele [Demóstenes] acusa Mídias diante do povo por impiedade com

relação a Dioniso: este gênero de acusação se chama probolē. O povo condena Mídias

por impiedade” (Demóstenes, Contra Mídias, 2178)179.

De acordo com essa apresentação, um voto favorável na probolē já indica que

Mídias foi considerado culpado pelos cidadãos, e resta ao orador decidir por qual delito

ele deve ser punido: “[...] é por ultraje (hýbris) ou por impiedade (asébeias) que ele

deve ser punido?” (Demóstenes, Contra Mídias, 3180)181. Mídias alega ser culpado de

ultraje, “pois golpeou um homem livre” (Demóstenes, Contra Mídias, 3182)183; já

Demóstenes acredita ser a agressão uma impiedade, pois “[...] a vítima de seus golpes

era um corego durante as Dionisíacas, em pleno teatro. Esse é o sentido no qual ele

acusa Mídias de impiedade” (Demóstenes, Contra Mídias, 3184)185. Nessa apresentação,

hýbris se soma à acusação de impiedade: “sem rejeitar a denominação de ultraje,

177Manuscrito Florence: Biblioteca Medice Laurenziana, plut. 59.9. 178A referência da numeração dos parágrafos é a mesma numeração presente no primeiro argumento da

edição traduzida por Jean Humbert para a edição da Belles Lettres. 179“[...] qu’il accusa Mídias devant le peuple, pour impiété à l’égard de Dionysos: ce genre d’accusation

s’appelait probolē. Le peuple condamna Mídias pour impiété.” 180A referência da numeração dos parágrafos é a mesma numeração presente no primeiro argumento da

edição traduzida por Jean Humbert para a edição da Belles Lettres. 181“est-ce pour outrage ou pour impiété qu’il doit être puni?” 182A referência da numeração dos parágrafos é a mesma numeração presente no primeiro argumento da

edição traduzida por Jean Humbert para a edição da Belles Lettres. 183“puisqu’il a frappé un homme libre.” 184A referência da numeração dos parágrafos é a mesma numeração presente no primeiro argumento da

edição traduzida por Jean Humbert para a edição da Belles Lettres. 185“[...] puisque la victime de ces coups était um chorège, pedant les Dionysies et en plein théâtre. C’est

en ce sens qu’il accuse Mídias d’impiété.”

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reconhecida por Mídias, junta-se também a denominação de impiedade” (Demóstenes,

Contra Mídias, 3186)187.

A segunda apresentação aparece em poucos manuscritos188 e não há indícios de

quem a escreveu. Como a primeira, essa também possui alguns equívocos com relação à

data da realização dos festivais e aos fatos narrados no discurso. Por exemplo, nessa

apresentação é apontada uma tentativa de Mídias de roubar o ouro da casa do ourives

encarregado por Demóstenes de fabricar as coroas e o ornamento das vestimentas

(Demóstenes, Contra Mídias, 5189). Contudo, isso não é demonstrado no discurso. O

que o orador nos relata é a invasão feita por Mídias à casa do ourives, na tentativa de

destruir os objetos destinados a ele e ao seu coro (Demóstenes, Contra Mídias, 16).

Essa apresentação inicia-se com a narrativa das violências realizadas por Mídias

contra Demóstenes. Assim como na primeira, segundo esta o discurso trata da definição

do delito de Mídias. Mas ela não se detém em definir o delito como uma impiedade ou

um ultraje, mas sim, em definir se se trata de um processo privado ou público: “Mídias

faz dele um conflito privado, enquanto orador faz dele uma ação pública” (Demóstenes,

Contra Mídias, 6190)191. Para o autor dessa apresentação, Demóstenes, para demonstrar

que o delito de Mídias era público, desenvolve quatro pontos no decorrer do discurso:

“o primeiro ponto é que aquele que comete um delito durante a festa comete um delito

público. O segundo, é que há o delito em seu mais alto grau quando se ofende um

corego. O terceiro, é que todo ultraje é um delito de caráter público. [...] O quarto

sustenta que aquele que ultraja a todos dá aos seus delitos um caráter público, pois,

como o público é composto pelo conjunto de todos os cidadãos, o delito é, por

conseqüência, público” (Demóstenes, Contra Mídias, 9-10192)193. Ao longo da

186A referência da numeração dos parágrafos é a mesma numeração presente no primeiro argumento da

edição traduzida por Jean Humbert para a edição da Belles Lettres. 187“sans rejeter la dénomination d’outrage devant Mídias qui reconnaît l’outrage, il y ajoute aussi la

denomination d’impiété.” 188A segunda apresentação é encontrada nos manuscritos Paris: Bibliothèque Nationale, gr. 2940, século

XII; Bologna: Biblioteca Universitaria, 3564, século XIV e Paris: Bibliothèque Nationale, gr. 2994, século XIV.

189A referência da numeração dos parágrafos é a mesma numeração presente no segundo argumento da edição traduzida por Jean Humbert para a edição da Belles Lettres.

190A referência da numeração dos parágrafos é a mesma numeração presente no segundo argumento da edição traduzida por Jean Humbert para a edição da Belles Lettres.

191“Mídias en fait un conflit privé, tandis que l’orateur en fait une action publique.” 192A referência da numeração dos parágrafos é a mesma numeração presente no segundo argumento da

edição traduzida por Jean Humbert para a edição da Belles Lettres. 193“Le premier point est que celui qui commet um délit pendant une fête commet un délit public. Le

second, qu’il y a délit au plus haut degree quand on offense un chorège. Le troisième est que tout outrage est un délit de caractére public. […] Le quatrième point soutient que celui qui outrage tout le

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apresentação, a impiedade não é citada pelo autor porque ela não se configura como

parte da culpa que Demóstenes está tentando demonstrar aos juízes.

As duas apresentações sintetizam a maneira como o Contra Mídias foi

interpretado no decorrer do tempo. Em particular, a segunda reflete a visão mais

difundida recentemente, que considera a hýbris o objeto central do discurso. A primeira

chama a atenção para a impiedade e o seu uso para o convencimento dos juízes. Por

meio dessa noção, pode-se entender o discurso a partir de uma outra chave de leitura,

percebendo-se mais com esmero a riqueza de elementos que Demóstenes utiliza para

qualificar Mídias como culpado.

Para comprovar a impiedade do ato de Mídias, o orador discursará sobre a

importância da festa e dos coros, ambos regulados pela cidade por meio de leis e

oráculos. Os oráculos apresentam a vontade dos deuses de que os homens celebrem a

festa em sua honra:

“Vocês certamente sabem que todos esses coros, todos esses hinos, vocês os fazem em honra ao deus e não somente em conformidade com leis que regulam a Dionisíacas, mas também segundo os vaticínios dos oráculos; vocês encontrarão nos oráculos (seja da parte do oráculo de Delfos, seja da parte de Dodona) que está prescrito à nossa cidade instituir coros seguindo a tradição de nossos pais de espalhar pelas ruas a fumaça dos sacrifícios e usar guirlandas” (Demóstenes, Contra Mídias, 51)194.

Os oráculos são responsáveis por instruir os atenienses sobre as ações que

devem ser feitas para honrarem os deuses: realização de coros, os sacrifícios e o uso de

coroas pelos participantes da festa. Essas ações honoríficas são demonstradas nos dois

oráculos citados pelo orador nos parágrafos 52 e 53, considerados respectivamente

como oráculos de Delfos e oráculo de Dodona195:

“É a vocês que eu me dirijo, filhos de Erecteu, a todos vocês que habitam a cidade de Pandíon e fazem as suas festas segundo as tradições de seus pais. Não se esqueçam de Baco, e todos que, indistintamente, instituem os coros nas amplas vias, para agradecê-lo

monde donne à ses délits um caractere public; comme le public est composé de l’ensemble de touts les citoyens, le délit est, en conséquence, public.”

194“Voi certamente sapete che tutti questo cori, tutti questi inni voi li fate in onore del dio e non solo in conformità delle leggi che regolano le Dionisie, ma anche secondo i vaticini degli oracoli, e in tutti questi (sia da parte dell’oracolo di Delfi, sia da quello di Dodona) troverete che viene prescritto alla nostra città di istituire cori, seguendo la tradizione dei nostri padri, di riempire le strade com il fumo dei sacrifici e di portare ghirlande.”

195MacDowell (2002, p. 274) cogita a possibilidade dos dois oráculos serem obtidos pelos atenienses na mesma ocasião, quando eles procuravam conselhos a respeito do estabelecimento de um festival extra.

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das dádivas da estação, coroem com guirlandas suas cabeças, e que se elevem a fumaça das vítimas sobre os altares. Para ter saúde, ofereçam sacrifícios e preces a Zeus, deus máximo, a Héracles, a Apolo protetor. Para que a fortuna seja propícia, sacrifiquem e orem a Apolo, protetor das vias, Leto, Ártemis. Coloquem as crateras nas suas ruas, formem coros e usem guirlandas, segundo a tradição de seus pais, em honra de todos deuses e todas deusas do Olimpo, levantando para eles as mãos, sem se esquecer de fazer-lhes as ofertas” (Demóstenes, Contra Mídias, 52)196. “Eis o que anuncia ao povo ateniense o intérprete de Zeus: já que vocês deixaram passar o tempo prescrito para o sacrifício e para a theoría, ele ordena a vocês enviar-lhe, por esse motivo, os theoroí escolhidos por vocês, o mais depressa possível, e de sacrificar três bois para Zeus Naios e, junto com cada boi, duas ovelhas; ordena também oferecer em sacrifício a Dione um boi e consagrar uma mesa votiva de bronze para a oferta apresentada pelo povo ateniense. Eis o que anuncia o intérprete de Zeus, em Dodona. Que a cidade faça, em honra a Dioniso, sacrifícios por conta da pólis, que sejam colocadas grandes crateras de vinho misturado com água, e que cantem os coros; que se ofereça um boi em sacrifício a Apolo Apotropeu e que os homens livres e os escravos tragam guirlandas e façam um dia de repouso; seja sacrificado a Zeus Ctésio um boi branco” (Demóstenes, Contra Mídias, 53)197.

Esses dois parágrafos apresentam a parte mais corrompida de todo discurso e o

maior número de diferenças entre os manuscritos. Na opinião de Humbert (1959, p. 11),

esses oráculos foram adicionados ao discurso tardiamente, pois eles são estranhos nas

suas expressões e também porque a poesia198 se mistura à prosa de maneira insólita.

MacDowell (2002, p. 270) defende a veracidade dos oráculos, sendo ambos

provavelmente provenientes de uma coleção que reunia todos os oráculos direcionados

196“È a voi che io mi rivolgo, figli di Eretteo, a tutti voi che abiate la città di Pandione e regolate le

vostre feste secondo le tradizioni dei vostri padri. Non dimenticatevi di Bacco, e tutti quanti indistintamente, istituite i corri nelle ampie vie, per ringraziarlo dei doni della stagione, incoronate con ghirlande le vostre teste e procurate che si levi il fumo delle vittime sugli altari. Per la vostra salute offrite sacrifici e preghiere a Zeus, dio massimo, a Ercole, ad Apollo protettore; perché la fortuna vi sai propizia sacrificate e pregate Apollo protetore delle vie, Latona, Artemide. Collocate crateri nelle vostre strade, formate cori e portate ghirlande secondo la tradizione dei vostri padri in onore di tutti gli dèi e di tutte le dee dell’Olimpo, levando verso di loro la mano destra e la sinistra e ricordatevi di fare le offerte.”

197“Ecco che cosa annuncia al popolo ateniese l’interprete di Zeus: poiché avete lasciato passarei il tempo prescritto per il sacrificio e per la theoría, egli vi ordina di inviargli, per questo motivo, dei therói scelti da voi, il più in fretta possibile e di sacrificare a Zeus Naios tre buoi e, assieme a ciascun bove, due pecore; di offrire in sacrifício a Dione um bove e consacrare uma tavola votiva di bronzo per l’offerta presentata dal popolo ateniese. Ecco che cosa annuncia l’interprete di Zeus, a Dodone. Che la città faccia in onore di Dionísio sacrifici a spese dello stato, che vengano posti crateri di vino mescolati con l’acqua, che si conducano dei cori; che si offra in sacrificio ad Apollo Apotropeo un bove e che gli uomini liberi e gli schiavi portino ghirlande e osservino un giorno di riposo; venga sacrificato a Zeus Ctesio un bove bianco.”

198O primeiro oráculo está em versos e o segundo está escrito em prosa. Para informações sobre o estilo e linguagem dos oráculos ver Demosthenes Against Meidias. Trad. Douglas M. Macdowell. London: Bristol Classical Press, 2002, p. 270 -275.

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aos atenienses. O orador teria selecionado esses dois oráculos considerando que eles

seriam os mais pertinentes ao caso. Segundo o autor, os oráculos não são intimamente

relevantes para os argumentos de Demóstenes e por isso devem ser genuínos, já que, se

fossem construídos para o discurso, o orador poderia escrever um que se relacionasse

mais diretamente com o caso. Ele também levanta a possibilidade de oráculos errados,

pertencentes à coleção, terem sido escolhidos por quem editou o texto após a morte do

orador, ou posteriormente, durante o processo de transmissão. Dessa forma, eles podem

ter sido retirados de uma coleção de oráculos que já continha erros.

Os oráculos representam uma resposta aos anseios dos atenienses. Essa resposta

indica um modelo de conduta para os habitantes da pólis. Eles são fonte de autoridade

para a execução de certas atitudes que envolvem todos. Assim como as leis, os oráculos

no discurso são apresentados como guia para a conduta correta. O bom cidadão é aquele

que, além de respeitar as leis, respeita os oráculos e a tradição dos antepassados. No

discurso, os oráculos são inseridos da mesma forma que as leis, com o objetivo de

provar que Mídias cometeu um delito. E, semelhantemente a elas, os oráculos também

funcionam para caracterizar Mídias como um mau cidadão, por agir de forma ímpia e

ultrajante para com Demóstenes e seu coro, não respeitando a festa e, por sua vez, não

respeitando os deuses, uma vez que os festivais servem para homenageá-los.

O orador utiliza esses oráculos para reafirmar a importância da festa para a

cidade. Eles apresentam a função dos coros na pólis, que é honrar os deuses. Por ser

uma prescrição direta dos deuses, a cidade deve cuidar para que tudo seja executado

corretamente:

“Que as respostas desses oráculos não apenas prescrevam que se façam sacrifícios em honras aos deuses indicados por cada um dos oráculos, mas, além disso, em todos os oráculos há também a imposição de preparar os coros e de levar guirlandas, segundo a tradição dos nossos pais” (Demóstenes, Contra Mídias, 54)199.

Ao chamar a atenção para a prescrição dos deuses para realização dos coros nos

festivais e do uso das guirlandas (coroas), Demóstenes reforça o caráter sagrado de dois

alvos do ultraje de Mídias. O coro foi ultrajado nas tentativas de sabotagem e na própria

agressão ocorrida no teatro. Já o ultraje da prescrição do uso de guirlandas pode ser

relacionado com a tentativa da destruição da coroa por Mídias, durante a invasão à casa

199“Che i responsi di questi oracoli non solo prescrivono di fare sacrifici in onore degli dèi indicati da

ciascun oracolo ma, oltre a questo, in tutti gli oracoli c’è anche l’imposizione di allestire cori e portare ghirlande secondo la tradizione dei nostri padri.”

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do ourives encarregado por Demóstenes de confeccioná-la, que é narrada no discurso

pelo testemunho do próprio ourives (Demóstenes, Contra Mídias, 22). Essas ações

serão novamente apresentadas pelo orador logo após a apresentação dos oráculos,

quando ele descreve todas as ações nocivas feitas por Mídias durante o período da

coregia (Demóstenes, Contra Mídias, 63-64). Na estratégia persuasiva do orador, o

destaque para esses dois elementos prescritos nos oráculos serve para relembrar os atos

de Mídias apresentados até o momento e também demonstram e reforçam como eles são

desrespeitosos à esfera sagrada. Assim, quando essas ações são retomadas

posteriormente no discurso, os juízes as relacionam com uma afronta ao sagrado, já que

Mídias desrespeita as prescrições dos deuses.

Dessa forma, os oráculos servem para demonstrar que as ações de Mídias são

ímpias:

“Portanto, quando se preparam os coros e quando nós, coregos, nos dias em que nos reunimos para as competições, colocamos coroas nas cabeças, seguindo as prescrições dos oráculos [...]. Mas se uma pessoa comete um ato de violência por hostilidade pessoal contra qualquer um dos coreutas ou dos coregos e o comete justamente durante as competições dentro do templo do deus, poderíamos não definir como impiedade a sua ação?” (Demóstenes, Contra Mídias, 55)200.

A celebração dos festivais, com seus coros, é ordenada pelos deuses por meio

dos oráculos, o que revela que qualquer um que atrapalhasse a performance do coro

estaria contrariando a vontade dos deuses. Essa passagem também reforça o caráter

coletivo da agressão feita por Mídias, já que o orador defende, na sua argumentação,

que a cidade também foi ofendida quando um dos seus representantes, encarregado de

auxiliar uma das funções primordiais da cidade, foi ultrajado.

Os atos impiedosos de Mídias não se restringem às ações prejudiciais realizadas

contra a festa. O orador também o caracteriza de ímpio pela tentativa de incriminar por

homicídio um homem inocente, engrandecendo a lista dos delitos cometidos por ele

contra a pólis. Antes de começar a narrar os fatos que mostram que Mídias tentou

incriminá-lo pelo assassinato de Nicodemo (Demóstenes, Contra Mídias, 104-120), o

orador diz: “Mas agora falarei, ao contrário, ó atenienses, sobre uma ação terrível, sobre

200“Orbene, quando si allestiscono i cori e quando noi coreghi, nei giorni in cui ci riuniamo per le gare,

ci mettiamo le corne, seguendo le prescrizioni degli oracoli [...]. Ma se uma persona commette un atto di violenza per ostilità personale contro qualcuno dei coreuti o dei coreghi e lo commette proprio durante le gare nello stesso tempio del dio, potremo non definire empia la sua azione?”

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um fato grave e miserável cometido por ele [Mídias] e que não é apenas um crime, pelo

menos na minha opinião, mas um ato de impiedade que atinge toda a cidade”

(Demóstenes, Contra Mídias, 104)201. Assim, antes de começar a narrar o acontecido, o

orador já o qualifica como um ato ímpio, influenciando os juízes para que o considerem

também como uma impiedade que coloca em risco toda a cidade.

O assassinato de Nicodemo por Aristarco ocorreu aproximadamente um ano

antes do Contra Mídias ter sido elaborado e, por isso, Demóstenes esperava que os

juízes tivessem conhecimento do caso. Isso explicaria a ausência de detalhes, no

discurso, sobre esse acontecimento (MacDowell, 2002, p. 328). Esse assassinato teve

repercussão em Atenas, e foi tema de discussão na Assembléia, pois alguém havia

declarado a morte de Nicodemo como matéria de importância pública. Homicídios não

eram comumente temas de debate na Assembléia, mas os assassinatos motivados por

intenções políticas poderiam causar grande comoção e provocar repúdio na população, o

que levaria à sua discussão pelos cidadãos.

Sobre Nicodemo sabe-se pouco. Ésquines202 relata, em Contra Timarco, que

Nicodemo teria acusado Demóstenes de desertar. Entretanto, em Contra Mídias, o

orador indica que foi Euctémon o responsável pelo processo de deserção (Demóstenes,

Contra Mídias, 103). MacDowell (2002, p. 329) defende que esse processo foi feito por

Euctémon e, frente aos diferentes relatos dos dois oradores, levanta duas hipóteses. A

primeira seria de que Nicodemo ajudou Euctémon a processar Demóstenes; e a segunda,

de que Nicodemo teria tentando processar Demóstenes, mas abandonou o processo

depois de um acordo feito com ele. A última hipótese concorda com a narrativa de

Ésquines, que narra o pagamento de uma taxa por Demóstenes para que ele deixasse o

processo.

Sobre Aristarco, as evidências indicam que ele era um jovem adulto com o pai

falecido. Ele administrava sua propriedade juntamente com a mãe e tinha envolvimento

com Mídias e Demóstenes, possivelmente para buscar apoio para se inserir na vida

política. No discurso, o orador narra que Aristarco tentou fazê-lo parar de brigar com

Mídias: “Aquele Aristarco que, quando a sorte lhe era favorável, aborrecia-me

201“Ma, ora, parlerò invece, o ateniesi, di un’azione tremenda, di un fatto grave e miserabile commesso

da costui, e che non è solo un crimine, almeno a mio giudizio, ma un atto di empietà che riguarda la comunità.”

202Outras informações sobre o envolvimento de Demóstenes no homicídio de Nicodemo são encontradas no discurso de Ésquines Contra Timarco.

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procurando me reconciliar com Mídias” (Demóstenes, Contra Mídias, 117)203. Suspeita-

se que Demóstenes envolveu-se com Aristarco, seja atraído por sua beleza ou por sua

riqueza, e prometeu ensinar-lhe retórica e ajudá-lo a se tornar um homem de destaque

nos afazeres políticos. Com o objetivo de participar da vida política ateniense, Aristarco

também deve ter se aproximado de Mídias, com o intuito de buscar apoio em seu grupo

político. Não temos informações suficientes para explicar os motivos que conduziram

Aristarco a assassinar Nicodemo e nem para inferir como a amizade com os dois rivais

influenciou na condução desse ato.

Mídias comete um ato ímpio ao tentar acusar Demóstenes, inocente do crime, do

homicídio de Nicodemo. Para acusá-lo, ele tenta subornar os parentes de Nicodemo,

para que apontem Demóstenes, ao invés de Aristarco, como autor do crime. A seu favor,

o orador apresenta o testemunho dos parentes e a lei que condena aqueles que tentam

corromper os cidadãos (Demóstenes, Contra Mídias, 107-113). Após isso, Demóstenes,

para reforçar esses atos como impiedosos, caracteriza Mídias como ímpio: “Mas ele

[Mídias] é um homem ímpio (asebēs), imundo (miaròs) e disposto a dizer e a fazer

tudo”(Demóstenes, Contra Mídias, 114)204. Prosseguindo com seu argumento, o orador

indica que o próprio Mídias não acreditava na sua culpa, já que não o impediu de

participar dos ritos públicos (Demóstenes, Contra Mídias, 115). Nenhum cidadão, ao

acreditar que um homem fosse culpado de homicídio, o deixaria participar dos ritos

religiosos. O assassinato é um crime que pode poluir toda a cidade, pois a mácula

espalhará se o homicida entrar em contato com outra pessoa ou participar de rituais

religiosos.

Mídias também comete um ato ímpio ao ficar sob o mesmo teto que Aristarco,

depois de denunciá-lo. Após a denúncia, ele a retira, e fala a todos que nunca fez essa

acusação: “E como é possível, ó atenienses, não considerar que seja uma coisa grave, ou

melhor, absolutamente ímpia dizer que um é o assassino e depois jurar não havê-lo dito

e acusar de homicídio uma pessoa vivendo com ele sob o mesmo teto?” (Demóstenes,

Contra Mídias, 120)205. Essa atitude contraditória de Mídias é comprovada pelos

testemunhos dos cidadãos presentes na Assembléia (Demóstenes, Contra Mídias, 121).

203“[...] quell’Aristarco che quando la fortuna gli era propizia mi annoiava cercando di riconciliarmi con

Midia.” 204“Ma costui è veramente um uomo così empio, repellente e disposto a dire e a fare ogni cosa.”

205“E come è possibile,o ateniese, non ritenere che sia una cosa grave, anzi addirittura empia, dire che uno è un assassino e poi spergiurare di non averlo detto, e incolpare di omicidio una persona e vivere con lui sotto lo stesso tetto?”

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O homicídio, em Atenas, era considerado uma ofensa contra a vítima e sua

família, mas também poderia ser visto como uma ofensa contra os deuses. Um homem

que se une a um assassino de maneira amigável, indo até sua casa, pode ser considerado

como ímpio (asebēs). A restrição de permanecer no mesmo local do homicida é

especialmente aplicada aos parentes do morto, que têm o dever de levar o assassino à

justiça. Demóstenes utiliza-se disso para classificar Mídias como ímpio, por estar na

mesma casa que Aristarco, após denunciá-lo por homicídio, embora, nesse caso, Mídias

não tenha nenhum grau de parentesco com Nicodemo e não possua nenhum dever de

processar o responsável por sua morte. Também era considerado ímpio um homem que

acusasse um inocente de assassinato e essa acusação provocasse a morte do mesmo. O

orador adapta essa noção compartilhada pelos habitantes da pólis, para caracterizar seu

inimigo como ímpio por tentar exilá-lo por intermédio de uma falsa acusação de

homicídio (Demóstenes, Contra Mídias, 120). Aqui, o exílio equipara-se com a pena de

morte, pois os dois atingem o objetivo de afastar do corpo cívico o que era considerado

prejudicial à pólis.

Depois de terminar o relato sobre a tentativa frustrada de envolvê-lo com um

homicídio, o orador, antes de passar para a descrição dos outros crimes cometidos por

Mídias, mais uma vez classifica os atos praticados por seu inimigo como impiedosos:

“Violência em abundância, más ações contra os seus, atos de impiedade contra os

deuses, não há lugar onde Mídias não tenha cometido crimes merecedores da morte”

(Demóstenes, Contra Mídias, 130)206. Assim, nessa parte do discurso, o orador inicia e

termina caracterizando Mídias como ímpio, reforçando para os juízes essa característica.

A impiedade do ato de Mídias, além de ser indicada por meio de sua

qualificação direta, também é apresentada de forma indireta por meio da comparação

entre ele e Alcibíades, nos parágrafos 143 a 150. Suspeita-se que a parte relativa a

Alcibíades e o caso da mutilação dos Hermes foi acrescentada posteriormente, pois

apresenta alguns dados equivocados (Humbert, 1959, p. 66). Os defensores dessa

posição alegam que Demóstenes deveria conhecer muito bem a história de Alcibíades e

não cometeria tais erros. Logo quando começa narrar a história, o orador já apresenta

um erro sobre sua ascendência alcmeônida. Os Alcmeônidas eram uma grande família

ateniense, influente nos assuntos políticos da cidade no fim do século VII a.C. e ao

longo do século VI a. C. e, mesmo sendo uma das mais antigas e tradicionais famílias

206 “[...] violenze in abbondanza, malefatte contro i suoi, atti di empietà verso gli dèi, non vi è luogo

dove Midia non abbia commesso reati meritevoli della morte.”

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aristocráticas de Atenas, era muitas vezes caracterizada como “defensora do dêmos”. No

discurso, o orador relata: “Realmente dizem, ó atenienses, que Alcibíades descendia,

por parte de pai, dos Alcmeônidas [...] e, por parte de mãe, da estirpe de Hipônico”

(Demóstenes, Contra Mídias, 144)207. Entretanto, sabe-se que Alcibíades era

descendente dos Alcmeônidas por parte materna e era ligado à família de Hipônico pelo

matrimônio com sua filha, Hipárete, como relata Plutarco:

“um recuado ancestral da família de Alcibíades parece ter sido Eurísaces, filho de Ájax; por parte de mãe era um Alcmeônida, pois nasceu de Diômaca, filha de Mégacles. Seu pai, Clínias, equipou com despesas próprias uma trirreme” (Plutarco, Vida de Alcibíades, 1).

Ainda segundo Plutarco, não foi “Hipônico, mas Cálias, seu filho quem deu

Hipárete a Alcibíades, com o dote de doze talentos” (Plutarco, Vida de Alcibíades, 8).

Aparentemente, Demóstenes se confunde e narra a genealogia do filho de Alcibíades,

que também se chamava Alcibíades, e era, por parte de pai, descedente dos

Alcmeônidas e, por parte de mãe, da família de Hipônico (MacDowell, 2002, p. 358).

Os dados acerca da ascendência de Alcibíades não são significativos para a estratégia

persuasiva do orador, que não tinha o propósito de escrever sua biografia, mas somente

desejava mencionar alguns aspectos de sua vida que permitiriam depreciar Mídias pela

comparação.

Demóstenes justifica a evocação de uma pessoa tão estimada pelos atenienses,

não no sentido de comparar Mídias e Alcibíades, já que o primeiro seria muito inferior

ao segundo, mas para demonstrar o repúdio dos atenienses aos atos violentos e ímpios,

mesmo quando feitos por pessoas com alto reconhecimento social: “considerem agora

como os nossos antepassados se comportavam com um homem [Alcibíades] que tinha

tanta benemerência pelo povo, quanto acreditava lícito comportar-se de modo odioso e

arrogante” (Demóstenes, Contra Mídias, 144)208. Mesmo possuindo os méritos do bom

cidadão, sendo um bom orador e utilizando essa habilidade em favor da cidade, além de

sempre estar de prontidão para defender os interesses da pólis, os atenienses “não lhe

207“Si dice, infatti, o ateniesi, che Alcibiade discendesse per parte di padre dagli Alcmeonidi [...] e per

parte di madre dalla stirpe di Ipponico [...]”

208“[...] considerate ora come i nostri antenati si comportarono con un uomo che aveva tali benemerenze verso il popolo, quando costui credette lecito comportarsi in modo odioso e tracotante.”

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perdoaram o fato que ele se comportasse de modo ultrajante, mas lhe infligiram a pena

do exílio e o expulsaram” (Demóstenes, Contra Mídias, 146)209.

O uso da figura de Alcibíades mostra a repulsa dos atenienses por atos

ultrajantes e ímpios, e também justifica a inação do orador frente à agressão.

Demóstenes narra que “Alcibíades esbofeteou Táureas, quando aquele era corego”

(Demóstenes, Contra Mídias, 147)210. Alcibíades e Táureas eram coregos rivais e este

último tentou remover do coro de Alcibíades um garoto supostamente estrangeiro, mas

Alcibíades o agrediu e o repeliu, mesmo com toda a platéia assistindo. Todavia, os

juízes premiaram com o primeiro lugar o coro de Alcibíades. A ação dele, mesmo

violenta, foi uma resposta a um ato que tentava impedir a execução de seus trabalhos

como corego, sendo uma legítima defesa e concordando com o temperamento agressivo

e explosivo de Alcibíades, que sempre reagia, de forma mais grave, a tudo aquilo que

considerava uma afronta. Com essa alusão, o orador reforça sua escolha de inação frente

à agressão de Mídias diante da possibilidade legítima de reação, bem como a prudência

de seu caráter (Demóstenes, Contra Mídias, 76), pois ele tem confiança de que irá obter

sua reparação por meio da justiça da cidade.

Alcibíades também esteve envolvido em dois escândalos religiosos que

ocorreram em Atenas em 415 a.C.: a mutilação das estátuas de Hermes e a profanação

dos Mistérios de Elêusis. Fontes contemporâneas aos acontecimentos narram a ligação

dele apenas com a profanação dos Mistérios. Mas, no tempo de Demóstenes, não

deveria ocorrer essa distinção, sendo o envolvimento de Alcibíades com a mutilação das

estátuas parte da tradição popular ateniense (Dover, 1974, p. 12).

Após citar o episódio de agressão ao corego Táureas, o orador narra que

Alcibíades estava envolvido na mutilação das estátuas de Hermes:

“[Ele] mutilou os Hermes. Certamente, eu acredito que seja justo considerar merecedores da mesma indignação todas as ações de impiedade: mas destruir completamente os objetos sagrados é ação diversa de mutilá-los; mas foi provado que Mídias queria fazer isso” (Demóstenes, Contra Mídias, 147)211.

209“[...] non gli perdonarono il fatto che egli si comportasse oltraggiosamente nei loro riguardi, ma gli

inflissero la pena dell’esilio e lo cacciarono via.” 210“Alcibiade ha schiaffeggiato Taurea, quando costui era corego.”

211“[...] ha mutilato le erme. Certamente, io credo, che sia giusto ritenere meritevoli della medesima indignazione tutte le azioni empie: ma distruggere completamente degli oggetti sacri è azione diversa dal mutilarli: ma è stato provato che Midia voleva fare questo.”

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Com isso, o orador recorre a um exemplo do passado, consolidado na tradição

ateniense, que demonstra uma reação fervorosa da população contra uma ação ímpia,

para sugerir aos juízes que punam com o mesmo fervor os atos ímpios de Mídias. Ao

mesmo tempo, Demóstenes também caracteriza as ações de Mídias como mais

impiedosas do que as realizadas por Alcibíades, pois ele tentou destruir completamente

os objetos destinados ao coro, enquanto Alcibíades teria apenas desfigurado parte das

estátuas sagradas. Essa comparação reforça, principalmente, a impiedade existente na

tentativa de destruição da coroa, que possui um caráter sagrado, durante a invasão à casa

dos ourives. Mesmo ao utilizar termos de comparação difíceis, já que considera a ofensa

realizada à coroa mais grave do que a feita contra as estátuas de Hermes, Demóstenes

atinge o objetivo de sua estratégia persuasiva. Ele consegue depreciar Mídias e

demonstrar, ao mesmo tempo, o desrespeito deste à ordem do sagrado e,

conseqüentemente, à cidade e ao conjunto de cidadãos.

Assim, a alusão a Alcibíades e, em particular, ao episódio da mutilação das

estátuas de Hermes serve para reforçar a idéia de que Mídias cometeu atos impiedosos

que devem ser punidos, como a cidade puniu um dos seus cidadãos mais ilustres e

benevolentes.

Depois da exposição da mutilação das estátuas de Hermes, a impiedade no

discurso aparece mais duas vezes, nos parágrafos 199 e 227, na acusação de “impiedade

com relação à festa” (asebeîn perì tēn heortēn). Essa expressão substitui a acusação

presente no início do Contra Mídias, a “ofensa à festa” (adikeîn perì tēn heortēn212).

Essa passagem é mais um indício de que Demóstenes tenta culpar Mídias por impiedade

(MacDowell, 2002, p. 18).

Para entender como se dá essa mudança e o seu sentido no discurso, tem-se que

compreender primeiramente a noção de adikeîn. Adikeîn, no dicionário Grego-

Português, é traduzido por agir contra a norma, ser injusto, cometer uma injustiça, sofrer

uma injustiça, danificar, lesar. Adikeîn como a ação de romper com a díkē, justiça, que

indica o princípio de ordem no mundo, possui um conteúdo religioso em seu princípio,

uma vez que a noção primitiva da injustiça se relaciona com a idéia de uma desordem

no mundo. Esse viés religioso permanece durante a evolução moral da palavra (Gernet,

2001, p. 69). O termo adikeîn pode ser aplicado a tudo que é percebido como um

agressor em potencial à coletividade. Assim, o adikeîn em adikeîn perì tēn heortēn

212A expressão adikeîn perì tēn heortēn aparece nos parágrafos 1, 9, 11, 19, 26, 28, 174, 180 e 214.

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designa ações realizadas contra a boa ordem, contra as condições que possibilitam a

reunião e a confraternização dos habitantes da pólis. Segundo Gernet ( 2001, p. 77), o

termo adikeîn e a expressão adikeîn perì tēn heortēn demonstram um atentado à boa

ordem e contra a majestade que requer o acompanhamento dos ritos pelos cidadãos.

Demóstenes termina o seu discurso afirmando que seu inimigo agiu de forma

impiedosa, pois fez uma ofensa à festa:

“Por todas as coisas que eu disse e, sobretudo, pela divindade que preside a festa, e que ele manifestadamente ultrajou de modo ímpio, vocês devem infligir-lhe a justa punição, com um voto que respeite as leis divinas e a justiça” (Demóstenes, Contra Mídias, 227)213.

A associação entre os termos adikeîn e asebeîn é possível, pois são duas ações

que estão relacionadas com a idéia de prejuízo à cidade (Gernet, 1986, p. 70). De certa

maneira, todos os delitos (adikeîn) correspondem a um atentado à ordem do sagrado, já

que levam à desordem do mundo. Mas a relação entre esse dois termos é mais evidente

quando se trata de um delito religioso. Com essa associação, o orador sugere que o

verdadeiro delito de Mídias foi contra a ordem sagrada e, por isso, deve ser punido.

Como o delito provoca deseqüilibro na esfera religiosa, o orador oferece mais um

elemento que caracteriza como público a ofensa que sofreu.

Toda a cidade repousa sobre um sentimento religioso, que se transforma em

sentimento de solidariedade, principalmente na execução de rituais públicos. Isso cria

uma reprovação a todo comportamento que possa perturbar esse sentimento e, dessa

maneira, que possa levar a um enfraquecimento da coesão dos habitantes da pólis.

Demóstenes, ao longo do Contra Mídias, demonstra que os crimes de seu

inimigo são um atentado à ordem sagrada da cidade: “Todos esses crimes, em seu

conjunto, ofenderam a divindade da qual eu fui nomeado corego e, com ela, foram

ultrajados os direitos divinos e tudo aquilo que é venerável e sagrado” (Demóstenes,

Contra Mídias, 126)214. Por tentar perturbar a ordem da festa, ao fazer uma ofensa de

forma ímpia e ultrajante, Mídias não demonstra respeito nem aos deuses, nem às leis e

nem à cidade:

213“Per tutte queste cose che ho detto e soprattutto per la divinità che presiede alla festa, e che costui ha

manifestamente oltraggiato in modo sacrílego, infliggetegli la giusta punizione con un voto che rispetti le leggi divine e la giustizia.”

214“[...] Tutti questi crimini, nel loro complesso, offendono la divinità della quale io ero stato nominato corego e con lei vengono oltraggiati i diritti divini e tutto cio che è venerabile e sacro.”

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“Mas se vocês quiserem exigir para ele [Mídias] uma punição adequada aos seus crimes, vocês têm que se indignar não somente pelas injustiças cometidas contra mim, mas porque ele, ofendendo a mim, ofendeu ao mesmo tempo as leis, a divindade, a nossa cidade, e vocês devem, por isso, infligir-lhe castigo adequado” (Demóstenes, Contra Mídias, 127)215.

Mídias, ao longo de todo o discurso, é caracterizado como um mau cidadão, já

que se preocupa apenas com o seu poder pessoal e sua riqueza, não respeitando tudo

aquilo que é importante para a cidade. Demóstenes o apresenta como uma pessoa odiada

pelos deuses, impura, repulsiva, ímpia e ultrajante. Com a exposição desse conjunto de

características negativas e das ações nefastas que Mídias fez, o orador atinge seu

objetivo de apresentá-lo como um sujeito prejudicial à pólis e que, por isso, deve

receber a justa punição dos cidadãos.

215“Ma se voi volete esigere per lui uma punizione adeguata ai suoi crimini, dovete essere sdegnati non

solo per i torti da lui commessi contro di me, ma perchè egli, offendendo me, ha ofesso nello stesso tempo le leggi, la divinità, la nostra città e dovete perciò infliggergli un castigo adeguato [...]”

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cidade, a impiedade e a piedade

A pólis constitui uma cidade de cidadãos, de acordo com a definição apresentada

por Aristóteles no livro III da Política. A cidadania é o sustentáculo da cidade e deveria

ser mantida com cuidado. Da mesma forma que se agia com rigor para afastar todos os

não cidadãos das atividades políticas, há um empenho em distanciar os considerados

maus cidadãos dos afazeres políticos por meio de mecanismos como o ostracismo, a

graphē paranómōn e os processos de impiedade. A impiedade foi um instrumento

eficaz para afastar as pessoas consideradas prejudiciais à pólis, que poderiam cometer

atos mais perigosos que a simples transgressão da lei ou a perturbação da boa ordem.

Elas poderiam, com esses atos, ofender os deuses, atraindo a fúria deles para a pólis,

com resultados incalculáveis.

Dessa maneira, a impiedade constituía um risco para a cidade e, por isso, todos

os ímpios deveriam ser punidos. Paralelamente ao terror causado por ela, a cidade era

sustentada pelo sentimento de piedade, considerado uma virtude cívica. Esse sentimento

era responsável por fazer os cidadãos se portarem da forma correta durante a execução

de ritos religiosos. Demóstenes ao relatar a querela entre Saníon e outros preparadores

de coro, diz que foi o sentimento de piedade que impediu os cidadãos de atrapalhar seu

trabalho:

“Se pode bem ver quão grande é em cada um de vocês a indulgência que inspira o sentimento religioso (eusebeías) pelo fato de que Saníon continuou, por todo o tempo restante, instruindo os coros, sem ser impedido por nenhum de seus inimigos, tampouco pelos coregos” (Demóstenes, Contra Mídias, 59)216.

O sentimento de piedade, no discurso, é apresentado como fator de união da

pólis. O apelo para a coesão, feita pela piedade, é explorado pelo orador após a leitura

da segunda lei. Ele diz: “Vocês, atenienses, chegaram, portanto, a tão alto grau de

humanidade (philanthrōpías) e piedade religiosa (eusebeías), a ponto de suspender

216“Si può bem vedere quanto grande sia in ciascuno di voi l’indulgenza che vi ispira il sentimento

religioso dal fatto che Sannione ha continuato, per tutto il tempo successivo, a istruire i cori senza essere impedito da nessuno dei suoi nemici; tanto meno daí coreghi.”

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durante esses dias o direito de se obter justiça da parte de quem tenha recebido uma

ofensa” (Demóstenes, Contra Mídias, 12)217. Devido a esse dever cívico, as querelas

pessoais devem ser deixadas de lado durante a realização das festas. Prezar e contribuir

para o funcionamento da cidade também é uma demonstração de amor aos outros

homens, como indica o termo philanthrōpía.

Se aplicarmos a teoria retórica de Aristóteles, na qual o filósofo explicita que o

orador deve utilizar e manipular a seu favor as noções compartilhadas pelos habitantes

da pólis, ao discurso de Demóstenes, perceberemos que os três elementos usados pelo

orador (a impiedade, o ultraje e o desrespeito à lei) para caracterizar seu inimigo como

mau cidadão e definir sua culpa são todos recriminados pelos atenienses. O uso da

impiedade na construção do argumento persuasivo indica que ela provocava um

sentimento de repulsa e, por isso, era um arma muito eficaz na caracterização do

adversário como culpado. Assim, a condenação da impiedade e o incentivo para o

exercício da piedade eram amplamente difundidos no interior da pólis e o orador as

utilizou com o objetivo de alcançar o voto favorável dos juízes.

No tribunal tem-se a instituição de um processo decisório, nas quais espera-se

que as decisões sejam voltadas para o interesse coletivo. Dentre os inúmeros fatores que

os juízes ponderam para tomar sua decisão, o interesse coletivo constitui um importante

fator. Assim, na base do julgamento está o que é melhor para cidade. Por isso, a

insistência de Demóstenes em fazer a oposição a seu inimigo por meio da caracterização

entre bom e mau cidadão. O orador ao enumerar o desrespeito ao coletivo da parte de

seu inimigo, acaba por sacralizar o coletivo, apresentando-o como inviolável. Durante a

elaboração de sua acusação, Demóstenes não apresenta somente o coletivo como

inviolável, mas também a pessoa. Revendo o parágrafo 126 percebe-se claramente o

percurso da acusação contruída pelo orador:

“Portanto, todas as ofensas que Mídias fez contra mim como corego e contra a minha pessoa, e todas as contínuas e várias insídias e os maus tratos que eu consegui evitar, vocês os ouviram, ó atenienses, e eu omiti vários outros. Talvez não seja fácil dizer tudo. Mas as coisas são assim: não há ofensa de Mídias que se refira somente a mim, mas aquelas feitas ao coro atingem conjuntamente a mim, também à minha tribo, que é a décima parte de vocês, cidadãos. E as violências e as insídias dele não eram apenas dirigidas contra mim, mas também contra as leis, as quais garantem a incolumidade a cada um

217“Voi, ateniesi, siete giunti perciò a un così alto grado di umanità e di pietà religiosa da sospendere

durante questi giorni il diritto di ottenere giustizia da parte di chi abbia subito un’offesa.”

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de vocês. Todos esses crimes, em seu conjunto, ofenderam a divindade, da qual eu fui nomeado corego, e com ela foram ultrajados os direitos divinos e tudo aquilo que é venerável e sagrado” (Demóstenes, Contra Mídias, 126)218.

Nesse paragráfo a acusação se inicia na ofensa cometida contra o corego, isto é,

contra a pessoa. Depois o orador demonstra que ofensa que prolonga para o coro, que

representa a tribo. Por sua vez, ele demonstra que seu inimigo ofendeu as leis,

essenciais para a manutenção da boa ordem na cidade. O coro, a tribo e as leis

representam a cidade. Logo após, o orador apresenta a acusação de ofensa contra a

divindade e, por fim, retorna a figura do corego, fechando o percurso da argumentação.

No percurso da acusação, o orador utiliza a inviolabilidade da esfera divina e a

transfere para o mundo dos homens, fazendo com que as ofensas aos deuses e aos

homens sejam complementares no processo de caracterização da culpa e do delito.

A utilização dos argumentos religiosos na retórica é uma das fontes que nos

revelam a importância da religião para a constituição da pólis e da configuração das

relações humanas existentes nela. Ao reforçar a importância da piedade e da impiedade

para a vida dos gregos antigos, e de sua utilização no domínio político e jurídico, por ser

eficaz nos ouvintes, não tenho o objetivo caracterizá-los como supersticiosos. Uma

atitude de temor exacerbado do divino não era vista com bons olhos pelos habitantes da

pólis, como retrata de forma satírica Teofrasto em sua obra Os Caracteres. O filósofo

caracteriza o supersticioso como uma pessoa que a todo momento se preocupa em se

purificar das máculas, fazendo libações e procurando os sacerdotes constantemente, até

para os assuntos mais prosaicos: “Se um rato roeu o saco de farinha, dirige-se a um

exegeta e pergunta o que é preciso fazer e, se ele lhe responde que o dê ao curtidor para

remendar, não se conforma com o conselho, mas afasta-se e oferece um sacrifício

expiatório” (Teofrasto, Os Caracteres, 6).

Caracterizar os gregos como homens religiosos não significa taxá-los como

supersticiosos ou irracionais, mas sim demonstrar o espaço significativo da religião na

vida deles. É importante ressaltar também que um homem religioso ocupa somente uma

218“Tutte le offese, dunque, che sono state fatte da Midia contro di me come corego e contro la mia

persona, e tutte le continue e svariate insidie e i maltrattamenti che sono riuscito a evitare, voi li avete uditi, o ateniesi, e ne tralascio molti altri. Non è forse facile dire tutto. Ma così stanno le cose: non vi è offesa fatta da Mídia che riguardi soltanto me, ma quelle fatte al coro colpiscono, assieme a me, anche la mia tribù, che è la decima parte di voi cittadini, e le violenze e le insidie di costui non erano solo dirette contro di me, ma anche contro le leggi, le quali garantiscono l’incolumità di ciascuno di voi. Tutti questi crimini, nel loro complesso, offendono la divinità della quale io ero stato nominato corego e con lei vengono oltraggiati i diritti divini e tutto cio che è venerabile e sacro.”

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parcela pequena de seus pensamentos com a religião219. Dentro do cotidiano do grego,

seu pensamento voltava-se para vários aspectos, tais como, a obtenção de alimento, sua

segurança, seu ôíkos, seu círculo de amizade, questões relativa à pólis, entre muitos

outros. Assim, segundo Veyne (1984, p. 102), a experiência cotidiana demonstra que,

mesmo sendo importantes para os homens, a religião, a política, a economia, entre

outras esferas, ocupam somente um lugar pequeno na prática do dia-a-dia. A religião

pode ocupar uma faixa estreita da vida cotidiana, mas a ocupa de forma sincera e

intensa e, por isso, ela é tão importante.

Em um discurso forense, as palavras utilizadas devem ser analisadas com

cuidado, ainda mais ao se tratar de um orador como Demóstenes que, segundo a

tradição, preparava cuidadosamente seus discursos. As palavras utilizadas por ele, em

Contra Mídias, foram escolhidas com esmero, calculando-se seu o impacto nos

ouvintes. A asébeia e a hýbris, cada uma a sua maneira, cumpre sua função no discurso.

A combinação delas, além de ser um forte indicativo de como as esferas religiosa,

política e jurídica estavam imbricadas na Atenas Clássica, também aponta para o

impacto que as noções religiosas tiveram nos atenienses, e a forma como permaneceram

na esfera jurídica. A presença do religioso e do racional no jurídico é explicada pela

heterogeneidade de programas de verdade que existem e coexistem na mesma pessoa.

Um cidadão poderia ao mesmo tempo acreditar que uma injustiça era passível de

punição divina e que as leis foram criadas pelos homens para punir os culpados,

assegurando, dessa forma, o bom convívio entre os habitantes da cidade. Esses dois

programas de verdade são verdadeiros, pois são pensados com partes diferentes da

mente (Veyne, 1984, p. 102).

219Está hipótese é apresentada por Veyne (1984, p. 102), ao citar a obra de Paul Pruyser intitulada

Dynamic Psychology of Religion.

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