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· Neste chissico da literatura cotitemporanea, Primo Levi da urn· testemunho pungente de uma tragedia que afetou milh5es de pessoas. Considerado 0 mais belo livroja escrito SOM bre a existencia massacrada dos judeus de- portados, E ista urn h()mem? n~o e, no entan .. to, urn relato carregado de 6dio e vingan~a. Desprovidos de esperan~as e saude, os judeus nos campos de extermfnio dificilmente poderiam ser identificados com os homens que eram antes da tragedia. IvIuito menos seus algozes sem rosto, senhores de escravos, mas sem vontade pr6pria, num campo de morteonde eIa, afinal,era 0 menor dos males. 'J' 'I! ., I :11 I; I ,/ I II II II I I Primo Levi

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Page 1: 65647716 E Isto o Homem Primo Levi

·Neste chissico da literatura cotitemporanea,Primo Levi da urn· testemunho pungente deuma tragedia que afetou milh5es de pessoas.Considerado 0 mais belo livroja escrito SOM

bre a existencia massacrada dos judeus de-portados, E ista urn h()mem? n~o e, no entan ..to, urn relato carregado de 6dio e vingan~a.

Desprovidos de esperan~as e saude, osjudeus nos campos de extermfnio dificilmentepoderiam ser identificados com os homensque eram antes da tragedia. IvIuitomenos seusalgozes sem rosto, senhores de escravos, massem vontade pr6pria, num campo demorteondeeIa,afinal,era 0 menor dos males.

'J' 'I!.,I :11I; I

,/ I

II

IIIIII

Primo Levi

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Relato autentico da experienciade Primo Levi em campos de con-central;ao, este °livro e 0 depoi-mento pessoal de uma situal;aoimpessmil.

Deportado em 1944 paraAuschwitz, Levi sobreviveu. Dos650 judeus deportados com ele,no entanto, sobraram apenas tres.o dia a dia de trabalhos pesados,humilhal;oes e assassinatos encar-regou-:se de desumanizar e redu-zir a algo inqualificavel 0 que eraantes urn homem digno de talnome.

E isto urn hornern? nao e, noentanto, apenas mais urn livro so-bre os horrores da Segunda Guerra.Tampouco urna obra encharcadaem odio, incapaz de fazer vingarqualquer racionalidade.

Nela Primo Levi faz a apolo-gia de uma das teorias que lheerammais caras~A de que "a ~humana sOpode serjulgada indivi-dualmente, caso a caso".

Perdidos naquela babel, os ju-deus encontravam como algozeshomens igualmente indistinguiveis.Tao inacessiveis que se tomavaminodiaveis.

E ISTO UMHOMEM?

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Titulo originalSE QUESTa E UN UOMO

SUMARIO

Direilos mundiais para a lingua portuguesareservados com exc1usividade it

EDITORA ROCCO LTDA.Avenida Presidente Wilson, 231, 8° andar

20030-021 - Rio de Janeiro, RJTel.: (21) 3525-2000 - Fax: (21) 3525-2001

[email protected]

prepara~ao de originaisVIVIANMARA

Prefacio .£ isto urn homem? .A viagem .No fundo .Iniciayao .Ka-Be· . . .As nossas noites .o trabalho .Urn dia born .Aquern do bem e do mal .Os submersos e os salvos .Prova de Qufmka .o canto de Ulisses .Os acontecimentos do verao .Outubro de 1944 .Kraus .Die drei Leute vom Labor .o ultimo .Hist6ria de dez dias ..

foto de capaFABIO FAYET DEL RE

CIP-Brasil. Cataloga~iio-na-fonle.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Levi, PrimoE islo urn homem? / Primo Levi: traduciio de Luigi Del Re.

- Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

Traducao de: Se questo e un uomo

ISBN 85-325- 0346-2

CDD-853CDU-850-3

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PREFAcIO

Por minha sorte, fui deportado para Auschwitz s6 em 1944,depois que 0 governo alemiio, em vista da crescente escassezde miio-de-obra, resolveu prolongar a vida media dos prisionei-ros a serem eliminados, concedendo senslveis melhoras em seunivel de vida e suspendendo temporariamente as matanfas arbi-trarias.

Este meu livro, portanto, nada acrescenta, quanta a deta-lhes atrozes, ao que ja e bem conhecido dos leitores de todo 0

mundo com referencia ao tema doloroso dos campos de ex/er-minio. Ele nao foi escrito para fazer novas denuncias; podera,antes, fornecer documentos para um sereno estudo de certosaspectos da alma humana. Muitos, pessoas ou povos, podemchegar a pensar, conscientemente ou niio, que "cada estrangei-ro e um inimigo". Em geral, essa convicfiio ;az no fundo dasalmas' como uma infecfiio latente;manifesta-se apenas em afoesesporadicas e niio coordenadas; niio fica na origem de um siste-made pensamento. Quando isso acontece, porem, quando 0

dogma nao enunci£ldo se torna premissa maior de um silogismo,entiio, como ultimo elo da corrente, esta 0 Campo de Extermi-nio. Este e 0 produto de uma conceprao do mundo levada assuas ultimas conseqiiencias com uma 16gica rigorosa. Enquantoa concepfao _subsistir, suas conseqiiencias nos ameafam. A his-t6ria dos campos de exterminio deveria ser compreendida por_todos como sinistro sinal de perigo.

Sou consciente dos defeitos estrutura'is do livro e pefO des-culpas por eles. Se niio de fato, pelo menos como-,intenfiio econceprao 0 livro ;a nasceu nos dias do Campo. A hecessidade

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de contar "aos outros", de tamar "os outros" participantes,alcanfou entre nos, antes e depois da libertafiio, carater deimpulso imediato e violento, ate 0 pont() de competir com outrasnecessidades elementares. 0 livro foi escrito para satisfazer essanecessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade deliberafiio interior. Dai, seu carater fragmentario: seus capitulosforam escritos niio em sucessiio logica, mas por ordem de urgen-cia. 0 trabalho de ligafiio e fusiio foi planejado posteriormente.

Acho desnec£:'ssarioacrescentar que nenhum dos episodiosfoi fruto de imaginafiio.

:E ISTO UM HOMEM?

Voces que vivem segurosem suas calidas casas,voces que, voltando a noite,encontram comida quente e rostos amigos,

pensem bem se isto e um homemque trabalha no meio do barro,que nao conhece paz,que luta por um peda<;o de pao,que morre por um sim ou por urn noPensem bem se isto e uma mulher,sem cabelos e sem nome,sem mais for<;a para lembrar,vazios as olhos, frio 0 ventre,,como um sapo no inverno.

Pensem que isto aconteceu:eu lhes mando estas palavras.Gravem-na em seus corac;6es,estando em casa, andando na rua,ao deitar, ao levantar;repitam~nas a seus filhos.

Qu, senao, desmorone-se a sua casa,a doen<;a as tome invalidos,os seus filhos virem 0 rosto para nao ve-Ios.

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Fui. detido pela MiHcia fascista no dia 13 de dezembro de 1943.Eu tinha vinte e quatro anos, poueo jufzo, nenhuma experien-cia e uma forte propensao, favorecida pelo regime de segrega-c;:aoao qual as leis contra os judeus haviam me obrigado du-rante os ultimos quatro anos, a viver num mundo s6 meu, umtanto apartado da realidade, povoado de racionais fantasmascartesianos, de sinceras amizades masculinas e minguadas ami-zades femininas. Cultivava urn moderado e .abstnito espfritQ derebeliao. .

Nao fora facil, para mim, eseolher 0 eaminho da monta·nha e contribuir para criar 0 que, na minha opiniao e na dealguns amigos poueo mais experientes do que eu, deveria tor-nar-se urn grupo de guerrilheiros ligado ao Movimento "Gius-tizia e Liberta". Faltavam os contatos, faltavam as armas, 0 di·nheiro e a experieneia para consegui-los; faltavam homens ca·pazes; estavamos no meio de um monte de gente sem a menorqualificac;:ao; gente de boa ou mMe, que chegara ate hi vindada planfcie, a procura de uma organizac;:aoinexistente, de qua-dros, de armas, ou apenas de protec;:ao,de urn eseonderijo,. docalor de uma fogueira, de um par de sapatos.

Naquele tempo, ainda nao me fora ensinada a doutrinaque, mais tarde, eu seria obrigado a aprender rapidamente nocampo de eoneentrac;:ao: que 0 primeiro mandamento do ho-mem e perseguir seus intentos por meios idoneos, e que quemerra, paga. De acordo com essa doutrina, eu nao poderia deixarde concluir que tudo 0 que nos aeonteeeu foi rigorosamentecerto.

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Tres companhias da Milicia, que tinham saido no meio danoite para surpreender outro grupo de guerrilheiros bem maisforte e perigoso que 0 nosso, instal ado num vale proximo, in-vadiram de repente nosso refugio, num espectral alvorecer deneve, e me levaram como pessoa suspeita.

Nos interrogat6rios que se seguiram, preferi declarar minhacondiyao de "cidadao italiano de raya judia", imaginando que,de outro modo, eu nao poderia justificar minha presenya na-quele fim de mundo, retirado demais para quem simplesmentequisesse evitar os boinbardeios das grandes cidades. Eu acredi-tava (e estava ·muito enganado, como aprendi mais tarde) que,se admitisse minha atividade politica, nao escaparia da torturae ~a morte. Como judeu, mandaram-me a Fossoli, perto deM6dena, onde em urn grande campo de concentrayao, anter~or-mente destinado aos prisioneiros ingleses e americanos, eramreunidas as pessoas pertencentes as varias categorias nao gratasao govemo fascista republicano.

quando la cheguei, em fins de janeiro de 1944, os judeusitalianos no campo eram uns cento e cinquenta. Poucas semanasdepois, ja passavam de seiscentos. Eram, emgeral, fammasinteiras, detidas pelos fascistas ou pelos nazistas porque lhesfaltara prudencia ou porque alguem as delatara. Havia tambemuns poucos que se tinham apresentado espontaneamente, devidoao desespero de contiriuarem vivendo errantes e fugidios, oupor terem ficado sem recurso algum, ou por nao quererem se-parar-se de um parente ja detido, ou ainda, absurdamente, para"ficarem dentro da lei". Havia tambem uma eentena de mili-tares iugoslavos, alem de outros estrangeiros considerados poli-ticamente suspeitos.

Chegou uma pequena tropa 55, ° que lleveria esclareeerate os mais otimistas, mas ainda assim conseguimos interpretaressa novidade de varias maneiras, sem ehegar a conclusiio mais6bvia. De modo que, apesar de tudo, 0 anunCio da deportayaonos pegou despreparados.

No dia 20 de fevereiro, os alemaestinham inspecionadometiculosamente 0 campo de concentrayao e feito publieos eveementes protestos junto ao comissario italiano, por eausa dama organizayao da cozinha e insuficiente quantidade de lenha .

destinada it ealefayao; ate disseram que. em breve se instalariauma enfermaria. Na manha do dia 21, porem, soube-se que osjudeus sedam levados no dia seguinte. Todos, sem eXCeyao.Inclusive as crianyas, os velhos. os doentes. Nao se sabia paraonde. Aordem era preparar-se para uma viagem de quinze dias.Se um prisioneiro faltasse a ehamada, dez seriam fuzilados.

50 uns poueos ingenuos e iludidos ainda teimaram em es-perar. Nos ja conversaramos com os fugitivos poloneses e croa-tas; sabiamos, portanto, 0 que significava partir. •

Para com os condenados a morte, a tradiyao prescreve urnaustere cerimonial, a fim de tomar evidente que ja nao existepaixao nem raiva; apenas medida de jUStiy8, triste obrigayaoperante a sociedade, tanto que ate 0 verdugo pode ter piedadeda vltima. Evita-se ao condenado. portanto, toda preocupayiioextema; a solidao lhe e concedida e, se assim ele 0 desejar,todo conforto espiritual; procura-se, enfim, que nao perceba aoredor de si nem 6dio, nem arbitrariedade, mas necessidadejustiya e, junto com a pena, 0 perdao.

Nada disso, porem, nos foi concedido, ja que eram05 muilo.,e POUCO0 tempo. AMm do mais, de que deveriamos nos am:pender ou sermos perdoados? 0 cornissario italiano providcnciou para que todos os serviyos continuassem funcionando ,ufo anuncio definitivo; na cozinha trabalhou~se como sempre, 1111

equipes de limpeza tambem; ate os professores da pequ 1)11escola deram aula a naile, como nas noites anteriores. S6 I'"as crianyas nao receberam dever para 0 dia seguinte.

A noite chegou, e todos cornpreenderarn que olhos hU1Il1Inos nao deveriam assistir, nem sobreviver a uma noite d \Nenhum dos guardas, italianos ou alemaes, animou-se a vII litnos para ver 0 que fazem os homens quando sabem qu V 'Imorrer.

Cada urn se despediu da vida da maneira que lh 'rll Itlllconvi~cente. Uns rezaram, outros se embebedaram; roll 11111,ram alguns em nefanda, derradeira paixao. As m II, pIll III

ficaram acordadas para preparar com esmero as proviN t JIIlIIla viagem, deram banho nas crianyas, arrumaram II mulll, I

ao alvorecer, 0 arame farpado estava cheio de rouplnhll I' II

duradaspara secar. Etas nao esqueceram as fraldas.. 111 t1'llH

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IllIlI, WI tl'UVOIJI.lOh'OS, nem todas as pequenas coisas necessanasI)tj Ul'lIHWll/J 0 que as maes conhecem tao bem. Sera que vocesuHo fUl'1U111 0 mesmo? Se estivesseni para ser mortos, amanha,jUllto com seus filhos, sera que hoje nao lhes dariam de comer?

No barraeao n.O6 morava 0 velho Gattegno, com a mulher,as filhos, as genros, as noras trabalhadeiras. Todos as homenseram. marceneiros; vinham de Tripoli, apos muitas e longas via-·gens, sempre tinham levado eonsigo as ferramentas do oficio,as baterias da eozinha, os acorde6es e 0 violino para tocar edanyar no fim do dia de trabalho, ja que eram alegres e tinham.p~.As mulheres foram as primeiras a ocupar-se dos preparativosda viagem, ealadas e rapidas, para que nao faltasse tempo parao luto e, quando tudo ficou pronto, assado 0 pao, amarradas astrouxas, entao tiraram os sapatos, soltaram 0 cabelo, fincaramno chao as velas funebres e as acenderam, conforme 0 uso deseus antepassados; sentatam ·em circulo para a lamenta9ao; re-zaram e choraram durante toda a noite. Muitos de nos ficaramna frente. daquela porta; desceu dentro de nossas alma.s, ~ovapara n6s, a dor antiga do povo sem terra, a dor sem esperan9ado exodo, a cada seculo renovado.

estava em ordem. Embarcaram-nos, entao, nos onibus e noslevaram ate a esta9ao de Carpi. La nos esperavam 0 trem e aescolta para a viagem. E la recebemos as primeiras pancadas,o que roi tao novo e absurdo que nao chegamos a sentir dor,nero no corpo nem ua alma. Apenas urn profundo assombro:como e que, sem raiva, pode-se bater numa criatura humana?

Os vagoes eram doze,e n6s, seiscentos e cinqiienta; nomeu vagao havia apenas quarenta e cinco, mas era urn vagaopequeno. Ali estava, entao, sob nossos olhares, sob nossos pes,um dos famosos comboios alemaes, desses que nao retornam,dos quais, com urn calafrio e com uma pontinha de increduli-dade, tantas vezes tinhamos ouvido falar. Era isso mesmo. ,ponto por ponto: vagoes de carga, trancados por fora, e, dentro,homens, mulheres e criancas socados sem piedade, como mer-cadoria barata, a caminho do nada, morro abaixo, pl;lra0 fundo.

Cedo ou tarde, na vida, cada um de n6s se da conta deque a felicidade completa e irrealizavel; poucos, porem, aten-tam para a reflexao oposta:. que tambem e irrealizavel a infe-licidade completa. Os motivos que se op6em a realiza9ao deambos os estados-limite sac da mesma natureza; eles vem denossa condi9ao humana, que e contra qualquer "infinito".Assim, op6e-se a esta rcalizaCao 0 insuficiente conhecimento dofuturo, chamado de esperan9a no primeiro casoe de duvidaquanto ao amanha, no segundo. Assim, opoe-se a ela a certezada morte, que fixa urn limite a cada alegria, mas tambem acada tristeza. Assim, op6em-se as inevitaveis lides materiais que,da mesma forma como desgastam com 0 tempo toda a felici-dade, desviam a cada instante a nossa aten930 da desgraca quepesa sobre n6s tornando a sua perCeP9aOfragmentaria, e, por-tanto, suportavel.

Foram justamente as privacoes, as pancadas, 0 frio, a sedeque, durante a viagem e depois dela, nos impediram de mer-gulhar no vazio de um desespero sem fim. Foi isso. Niio avon-tade de viver, nem uma resignac;ao consciente: dela poucos ho-mens sac capazes, e nos eramos apenas exemplares comuns daespecie humana.

o alvorecer surpreendeu-nos como uma trai9aO; como seo .novo dia se aliasse aas homens na determina9aO de nos des-truir. Os diversos ~entimentos que se agitavam em n6s - deconsciente aceitac;ao. de revolta sem saida, de religioso abando-no, de medo, de desespero - confluiam agora, depois da noiteinsone, numa coletiva; descontrolada loucura. 0 tempo la me-ditacao. 0 tempo do julgamento havia acabado, e qualquer im-pulso razmivel derretia-se no tumulto dcsenfreado acima doqu'al emergiam. de repente, dol~rosas como punhaladas, as lem-br.an9as ainda tao recentes, as boas lembran9as de cas·ii. ...

Falamos de muitas coisas naquelas horas; fizemos muitascoisas; mas e melhor que nao permanec;am na memoria.

Com a absurda precisao a qual em breve nos acostumaria-mos, os alemaes fizeram n chamada. Ao final - Wieviel Stuck?- perguntou 0 sargento, e 0 caba, batendo continencia res-pondeu que as "pec;as" eram seiscentas e cinqiienta, eque' tudo

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Aspo11as ;foram trancadas imediatamente, mas a trem s6partiu a noite. Soubemos comaHvia qual e(a a nossa destino:Auschwitz. Uni nome' que, para n6s, nadl;l significava, mas quedeveria corresponder a algum lugardeste Mundo.

o trem viajava cievagar, com longas e enervantes paradas.Pelas frestas, vimos desfilar asaltas e palidas, rochas do Vakdo Adige, os ultimosnomes de cidades italianas;' Cruzamos afronteira, 0 Passo do Brennero, as doze horas do seg1,1ndodia;tbdos levantaram, mas ninguem disse nada. Eu tinhano cora-~~o 0 pensament6 do retorno e, cruelmente, imaginava qual se-ria a alegria sobre~humana dessa nova passagem, com as portal!dos vagoes escancaradas (ninguem pensaria em fugir) e os pri-meiros nomes italiarios ... Olhei aomeu redor, e pensei quantos,desse misero p6 humano, seriam eleitos pelo destino.

Das quarenta e cinco pessoas do meu vagao, s6 quatrotornaram a ver as suas casas; e 0 meu vagao foi, de longe, 0

mais afortunado.Sofriamos com a sede e 0 frio; a cada parada, gritavamos

pedindo agua, ou ao menos um punhado de neve, mas rara-mente fomos ouvidos; os soldados da escolta afastavam quemtentasse aprox\mar-se do comboio. Duas jovens maes, com crian-l,:as de peito, queixavam-se dia e noite implorando por 'agua.Havia tamhem a fome, a fadiga, a falta de sono, mas a meSmatensao nervosa as'mitigava. As noites, porem, eram pesadelossem fim.

Sao poucos 'Oshomens que sabem enfrentar a morte comdlgnidade, e nem sempre sao aqueles de quem poderiamos es-perar. Poucos sabem calar e resj:eitar 0 silencio alheio. Freqiien-temente, 0 nosso sono inquieto era interrompido por brig as ba-rulhentas e ftlteis, por imprecal,:6es, por socos e pontapes lar-gados as cegas, reagindo contra algum contato incomodo, masinevitavel. Entao alguem acendia a chama mortil,:a de uma vela.revelando no chao urn escuro fervilhar, uma massa humanaconfusa e continua, entorpecida e sofrendo, erguendo-se aquie acola em convuls6es repentinas, logo sufocadas pelo cansac;o.

Pela fresta, alguns nqmes conhecidbs e outros estranhos decidades austrfacas, Salzburg, Viena; depois, thecas; por fim,polonesas. Na noite do quarto dia, a frio £icou mais pungente;

o trem corria entre escuros pinheirais sem fim, sempre subindo.A neve era aIta. Deveriamos estar em uma linha secundaria,pois as esta~oes eram pequenas e quase desertas. Ninguem ten-tava mais comunicar-se com 0 mundo extemo; seritfamo-nos "dooutro lado". Houve uma longa parada na campina aberta; logoa march a recomel,:Ou,lenta, lentissima, ate que 0 cOIilboio paroudefinitivamente, no meio, da noite, numa planicie escura e silen-ciosa.

Ao lado dos trilhos enxergavam-se fileiras de luzes brancase vermelhas, a perder de vista; nada, porem, daquele zumbidoconfusoque denota os povoados ao longe. Na pobre luz daultima vela, emudecido 0 ritmo dos trilhos e todo som h\1mano,esperavamos que algo acontecesse.

Ao meu lado, apertadacoma eu, entre corpo e corpo, fi-cara, durante a viagem toda, uma mulher. Conheciamo-nos haviamuitos anos, e a desgral,:a nos surpreendera juntos; pouco,porem, sabiamos urn do outro. Falamos entao, na hora dodecisao, de caisas das quais nao se costuma falar entre as vivos.Despedimo-nos brevemente; cada urn despediu-se, do outro, dovida. JIi nao tinhamos medo.·

o desfecho chegou de rerente. A porta foi aberta comfragor, a escuridao retumbou com ordens estrangeiras e comesses blirbaros latidos dos atemaes ao mandar, parecendo querorlibertar-se de' uma ira secular. Vimos uma larga plataforma ilu-minada por holofotes. Mais longe, uma fila de caminhi5es. Emseguida, silencio. Alguem traduziu: deviamos desembarcardepositar a bagagem no chao, ao lade do trem. Num instant.a plataforma fervilhou de sombras, mas receavamos quebrnresse silencio, todos lidavam Com a sua bagagem, procuravam-s ,chamavam-se, timidamente, porem, e em voz baixa;

,Uma duzia de 88 estavam a parte, com ar indiferent ,ptantados de pemas abert/1s, mas logo meteram-se eritre n68 •em voz baixa, com rostos impassiveis, come~aram a nos intern I

gar, um a urn, em mau italiano. Nilo interrogavam todos; tIalguns. - Idade? Sao ou doente? - e, conforme a respo t~l,indicavam duas dire~oes diferentes.

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'1'1Il10OI'H slWnclo, como num aquarlo e como em certas1111111111 do Ilonhos. Terfamos esperado algo mais apocaliptico, masIlluN 1'11l'Oclamsimples guardas. Isso deixava-nos desconcertados,<loAul'mndos.Alguem ousou perguntar pela bagagem; responde-mm: "Bagagem depois"; outros nao queriam separar-se da mu-lher; responderam: "Depois, de novo juntos"; muitas maes naoqueriam separar-se dos filhos; responderam: "Esb! bern, ficarcom filho". Sempre com a pacata seguran~a de quem apenascumpre com sua tarefa diliria; mas Renzo demorou urn instantea mais ao se despedir de Francesca, sua noiva, e derrubaram-noCom urn unico soco na cara. Essa tambem era a tarefa diaria.

Em dez minutos todos nos, homens vaIido~, fomosreuni-dos num grupo. a que aconteceu com as demais mulherescrian<;as e velhos, nunca pudemos Gf'scobrir, nem' na epoca:nem depois. Foram, simplesmente, tragados pela noite. Hoje,~orem, s~bemos muito bem que, nessa escolha rapida e sumaria,tmha-se ]ulgado, para cada urn de n6s, se poderia au nao tra-balhar de maneira utiI para 0 Reich; sabemos que nos camposde Buna-Monovitz e Birkenau s6 entraram noventa e seis ho-mens e vinte e nove mulheres do nosso trem, e que de todosos restantes (mais de quinhentos) nenhum vivia mais dois diasdepois. Tambem sabemos que nem sempre foi seguido e~se cri-teria, ainda que tenue, de discrimina~ao entre habeis e inabeisc que, mais tarde, freqiientemente adotou-se 0 sistema de abrirsi~ultaneamente as portas dos dois lados dos vag6es, semaVISO ·algum, nem instru<;oes, aos rc;:cem-chegados.Entravam nocampo os que, casualmente,. tinham descido por urn lade"certo"; os do outro lado, iam para a camara de gas.

Foi assim que morreu Emilia, uma menina de tres anos.j8 que aos alemaes configurava-se evidente a necessidade hist6-rica de mandar a morte as crianrras judias. Emilia, filha do en-g~nheiro AIda Levi de Milao, era uma crian<;a curiosa, ambi·ClOsa,alegre e inteligente. Durante a viagem, no vagao lotado,seus pais tinham conseguido dar-lhe urn banho numa baCia dezinco, em ligua morna que 0 degenerado maquinista alemao can·sentira em tirar da locomotiva que nos arrastava para a morte.

Assim, de repente, a trai<;ao, desapareceram nossas mulhe·res, nossos pais, nossos filhos. Praticamente ninguem teve como

~e despedir deles. Ainda as vimos urn tempo, massa escura 'noHm da plataforma; logo depois, nao virtlOS.mais nada.

Emergiram, em compensarrao, na luz dos holofo.tes, daisgrupos de sujeitos estranhos. Caminhavam em linhas de trescom urn andar esquisito, atrapalhado, a cabe<;abaixa, as bta<;o~rigidos. Urn bone ridfculo, uma longa tunica listrada que, ape-~ar da escuridao e d,a distancia, adivinhava-se esfarrapada eImunda. Deram uma larga volta ao redor de nos, sem aproxi-mar-se, e, silenciosamente, comerraram a remexer em nossa ba-gagem, a subir e descer dos vagoes vazios. •

. Entreolhavamo-nos sem dizer uma palavra. Tudo era in-compreensi'vel e -Iouco, mas entenderamos alga: aquela era ametamorfose que nos esperava. Amanha, n6s tambem estaria-mos assim.

Sem saber como, achei-me num caminhao, junto com unstrinta companheiros, arran cando a toda, na escuridao. Estavafechado, nao era possivel olhar para fora, porem, pelas sacudi-das, sabia-se que a estrada era cheia de curvas e buracos. Esta-damos sem escolta? E se nos jogassemos pata baixo? Tarde.demllis:i'amos todos "morro abaixo". Por outro lado, descobri-mas logo que uma escolta nos acompanhava. Urn soldado ale-mao, hirto de armas. Nao,' dava para enxerga-Io, devido a es-curidao fechada, mas sentiamos seu cantata duro, cada vez queuma sacudida do vefculo nos atirava embolados para a direitaau para a esquerda. Ligou uma lanterna de mao, e, em vez degritar: "Ai de vas, almas danadas!"l perguntou gentilmente,um a urn, em alemao e em frarwes, se tinhamos rel6gios ou di-nheiro parl:\ dar-lhe; dequalquer modo, ja nao nos serviriampara nada. Nao se tratava de uma ordem nem de um regula-mento, mas visivelmente de uma pequena iniciativa pessoal donosso Caronte. Isso causou entre nos raiva, riso, e urn estranhoalivio.

I £ a maldi~iio que Caronte lan~a contra os danados,. ao transporta-losem 'sua balsa alem do Aqueronte, para 0 Inferno. Dante, Inf. III, trad.Cristiimo Martins. (N. do t.)

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criterio detenninado, as pe~as de la de um lado, 0 resto doutro;tirar os sapatos, com cuidado para que nao nos sejam roubados.

Roubados?Por quem? Por que deveriam roubar nossossapatos? E os nossos documentos? E 0 pouco que ainda guar-damos nos bolsos? E os rel6gios? Olhamos todos para 0 inter-prete, 0 interprete pergunta ao alemao e 0 alemao continua fu-mando, olha atraves dele como se fosse transparente, como scninguem tivesse falado.

Eu nunca tinha visto velhos nus. 0 Sr. Bergmann usa urncinto herniario; pergunta ao interprete se deve tira-Io e 0 in-terprete vacUa. 0 alemao compreende, porem; fala serio 80

interprete indicando alguem; 0 interprete engole em seco e tra-duz: - 0 sargento diz que 0 senhor tire 0 dnto e que recebao do Sr. Coen. Nota-se que as palavras saem amargas da bocnde Flesch; foi este 0 jeito do alemao rir de n6s.

Logo vem outro alemao, diz que devemos colocar os saps-tos num canto,e assim fazemos, porque tudo ja acabou, senti-mos que estamos fora do mundo, que s6 nos resta obedecer.Chega urn sujeito de vassoura que leva os sapatos todos, varren-do-os para fora da porta, todos juntos, numa pUha s6. Est6maluco, vai mistura-los todos, noventa e seis pares de sapato8.A porta da para fora, entra urn vento gelado, estamos nus, co-brimos 0 ventre com os bra~os. Urn golpe de vento bate a porta;o alemao torna a abri-Ia, fiea olhando, absorto, como nos con-torcemos uns detras dos outros para abrigar-nos; depois sai.tornando a fecha-Ia.

Segundo ato. Quatro homens entram bruscamente compinceis, navalhas e tesouras para tosquia. Usam cal~as e casu-cos listrados, urn numero costurado no peito, devem ser dnmesma especie daqueles desta noite (ou da noite passada?),mas estes sao robustos e saudaveis. Fazemos perguntas e molperguntas; eles simplesmente nos agarram, e num instantetamos barbeados e tosquiados. Com que caras ridiculas ficamusem cabeIos! Os quatro falam uma lingua que n50 parece S J

deste mundo: alemao, em todo caso, nao e; urn pouco de alemloen ja entendo.

Por fim, abre-se outra porta; aqui estamos todos, tran Il

dos, nus, tosquiados e de pe, com os pes na agua, e a sala dill

A viagem levou uns vinte minutos. 0 caminhao parou; via-seum grande .portio e, em cima do portao, uma frase bem Uu-minada (cuja lembran~a ainda hoje me atormenta nos sonhos):ARBEIT MACHT FREI - a trabalho liberta.

Descemos, fazem-nos entrar numa sala ampla, nua e fra-camente aquecida. Que sede! 0 leve zumbido da agua nos canasda calefa~ao nos e.n1ouquece: faz quatro dias que nao bebemosnada. Ha urna torneira e, acima, urn cartaz: p~oibido beber,agua poluida. Besteira: e cbvio que 0 aviso e um deboche."Eles" sabem que estamos morrendo de sede, botam-nos numasala, ha uma torneira e Wassertrinken verboten. Bebo, e convi- .do os companheiros a beber tambem, mas logo cuspo fora aagua: esta morna, adocicada, com cheiro de pantano.

Isto e 0 inferno. Hoje, em nossos dias, 0 inferno deve serassim: uma sala grande e vazia, e n6s, eansados, de pe, diantede uma torneira gotejante mas que nao tern agua potavel, espe-rando algo certamente terrivel, e nada acontece, e continua naoacontecendo nada. Como e possivel pensar? Nao e mais possi-vel; e como se estivessemos mortos. Alguns sentam no chao.o tempo passa, gota a gota.

Nao estamos mortos: abre-se a porta, entre, fumando, urnsargento SS. Olha-nos sem pressa; pergunta: - Wer kannDeutsch? - Adianta-se urn de nos que eu nunea vira, chama-se Flesch; sera nosso interprete. 0 SS fala longa e tranqiiila-mente; 0 interprete traduz. Devemos formar filas de cinco. dei-xando. urn espa~o de dois metros entre urn e outro; a seguir,despir-nos e fazer uma trouxa com nossas roupas conforme

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duchas. Estamos sozinhos; pouco a pouco 0 assombro cede,falamos,todo mundo pergunta, ninguem responde. Estarmosnus numa sala de duchas, quer dizer que. vamos tomar banho.Tomarmos banho, quer dizer que nao nos vao matar ~ ainda.Por que, entao, nos deixamaqui de pe e nao nos dao de bebere ninguem nos explica nada; e estamos sem sapatos, sem roupa,COmos pes na agua, e faz frio, e ha cinco dias que viajamose nem podemos sentar?

E as nossas mulheres?o engenheiro Levi pergunta se acho que' elas tambemestao

na mesma situac;:ao que n6s, neste instante, e onde sera queestao, e se poderemos reve-Ias, Respondo que sim, porque eleC casado e tern uma' filhinha; claro que tornaremos a ve-Ias.Eu, porem, ja tenho a Impressao de que tudo isto e apenas urnenorme aparato para cac;:oarde n6s e rebaixar-nos; e claro quevao nos matar, s6 urn louco poderia cair no conto, pensar quecontinuara vivendo, mas eu nao, nao caf, ente~di que em brevetudo estara acabado, talvez nesta mesma sala, quando e1es es-tiverem cansados de nos ve,r nus, saltando de urn pe para 0

outro, tentando, de vez em quando, sentar no chao e nao po-dendo faze-Io porque ati ha urn palma de agua, fria.

Caminhamos de urn lado para 0 outro e falamos, cada urnfala com os demais, e isso resulta num grande barulho. Abre-sea porta, entra urn alemao, e 0 sargento de antes; fala breve-mente, 0 interprete traduz: - 0 sargento mandou ficarem ca-lados, isto' nao e uma escola rabfnica. Ve-se que as palavras,cstas palavras maldosas, que nao sao dele, fazem repuxar a suaboca, como se ele cuspisse urn bocado nojento. Rogamos quepcrgunte 0 que estamos esperando, quanto tempo ainda vamosficar aqui, que pergunte pelas nossas mulheres, que perguntetudo, mas nao, ele diz que nao, que nao quei-' fazer perguntas.

sse Flesch, que contra a sua vontade concorda em traduzirpara 0 italiano frases alemas geladas, e que se recusa a verterpara 0 alernao as nossas perguntas, porque sabe que nao adianta,c urn judeu alemao de uns cinqlienta anos, que tern no rostoa larga cicatriz de uma ferida recebida na Primeira Guerra Mun-dial, lutando contra os italianos no Rio Piave. E urn hornem

retrafdo e caladao, pelo qual sinto urn espontaneo respeito,porque compreendo que comec;:oua sofrer antes de nos.

o alernao se retira; agora ficamos em silencio, embora urntanto constrangidos por ficarmos em silencio. Aillda e noite, enos perguntamos se vai voltar a ser dia. Abre-se novarnente aporta, entrando urn camarada de roupa listrada. Ele e dife-rente dos outros; e mais idoso,usa oculos, tern mais cara degente, ebem menos robusto. Fala conosco, e fala italiano .•

Nada mais nos assombra. Parece-nos assistir a algurna pec;:amaluca, dessas onde as bruxas, 0 Espfrito Santo e 0 Diabo apa-recem no palco. Ele fala italiano, mas com dificuldade, comforte sotaque estrangeiro. Faz urn longo discurso, e gentil, pro-cura responder a todas as nossas perguntas.

Estamos em Monowitz, perto de Auschwitz, na Alta Sile-sia, uma regiao onde vivem alemaes e poloneses. Este e urnCampo de, trabalho (em alemao chama-se Arbeitslager); todosos prisioneiros, uns dez mil, trabalham na' instalac;:ao de uma'fabrica de borracha de nome Buna; 0 Campo, portanto, tambemchama-se Buna.

Receberemos sapatos e roupas; nao, nao as nossas: outrossapatos, outra roupa, igual a dele. Estamos nus a espera daducha e da desinfecc;:ao,que se realizarao logo depois da alvo-rada, porque nao se pode entrar no Campo senao depois dadesirifecc;:iio.

.claro, teremos que trabalhar, aqui todo rnundo trabalha.Ha, porem, trabalhos diferentes; ele, por exemplo, e medico;urn medico hungaro que estudou na !talia. E 0 dentista doCampo. Vive no Campo ha quatro apos - nao s6 neste, nao- Buna existe ha apenas urn ana e meio. Apesar de tudo, comopodemos vel', ele esta bern, nem esta tao magro assim. POl' queesta no campo? ~ judeu como nos? - Ni'io - responde comnaturalidade. - Sou urn crirninoso.

Continuamos com as perguntas; as vezes ele ri, as vezesresponde, outras nao; nota-se que evita certos assuntos. Dasmulheres nao, fala; diz que estao bern, que em breve tornare-mos a ve-las. Mas como? Onde? Conta-nos outras coisas, coisasestranhas e absurdas; talvez ele tarnbem esteja cac;:oando de

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n6s. Ou talvez esteja meio loueo: no Campo, a gente enlou"quece. Conta que todos os domingosha concertos e i9gos defuteboL Diz que. quem e born boxeador tern chance de· ganharuma vaga como cozinheiro. Que quem trabalha bem recebebOnus-premios com os quais pode comprar t~baco e sabao. Queaagua, realmente, nao e potavel. masque a cada dia recebe-seurn cafe de cevada, s6 que em geral ninguem " toma, ja que asopa e tao aguada qu~, sczinha, basta para aplacar a sede. Ro-gamos que· nos. consiga algo para heber; responde que naopode, que veio as escondidas, contrariando ordens dos 55,· jaqlie nao passamos pela desinfe~ao, e que tern que ir emboralogo; veio porque simpatiza com os italianos e porque "tern urnpouco de coraerao". PerguntamQs ainda se hli mitros italianosrio Campo; responde que ha alguns, POllCOS, nao sabe quantos,e muda de assunto. Nesse meio tempo, toca urn sino, ele desa-parece correndo, deixando-nos atonitos; transtornados. Algunssentem-se mais sossegados; eu nao, continuo pensando que ateo dentista, esse cara enigmatico, esta brincando conosco; naoquero acreditar em nada do que disse. .

Ao toque de sino, 0 campo escuro 'vai· acordando. De re-pente, a agua sai fervendo das duchas' - cinco minutos divi-nos. Logo, porem, irrompem quatro pessoas (as barbeiros, tal-vez), que, A for~a de gritos e empurr5es, nos mandam, molhadose fumegarites, para a gelida sala ao lado. La, outros tipos ati-ram-nos, berrando, sei 18 que trapos esfarrapados e nos socamna mao uns sapatoes de sola de madeira. Nao temos nem 0

tempo de compreender, e ja nos· encontramos ao ar livre, naneveazulada e gelada do amanhecer, e, nus e descal~os, comnossa trouxa na mao, devemos correr ate outro barraco, a uriscern metros de distancia. La, podemos vestir-nos .

.Ao terminar, cada qual fica em seu canto, sem ousali Ie-van tar 0 olhar p·ara as clemais. NaQ ha espelhos, mas a nossaimagem esta ai na nossa frente, refletida emc.em rostos palidos,em cem bonecos· s6rdidos e miseraveis. Estamos transformadosem fantasmas como os que vimos ontem Ii noite.

.PeI~ primeira vez, entao, nos damos conta de que anossaHngua ..nao tem. palavras para expressar esta ofensa, a aniqui-Iar;ao de: um homem. Num instante, por intui~ao. quaseprofe-

tica, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mai,para baixo nao e possivel. Condierao human a mais miserav'(nao existe, nao da para· imaginar. Nada mais e nosso: tiraramnos as roupas, os sapatos, ate os cabelos; se falarmos, nao noescutarao - e, se nos escutarem, nao nos compreenderao. R 1I

barao tambem 0 nosso nome, e, se quisermos mante-Io, dcv'remos encontrar dentro de n6s a forera para tanto, para que,a16m do nom~, sobre alguma coisa de n6s, do que eramos.

Bern sei que, contando isso, dificilmente seremos compre I)

didos, e talvez seja .bom assim. Mas que cada urn reflita sobllo significado que se encerra mesmo em nossos pequenos hlibtos de todos os dias, em todos esses objetos nossos, que at6 II

mendigo mais humilde possui: urn lenero, uma velha carta, 1\

fotografia de urn ser amado. Essas coisas fazem parte de n I

sao algo como os 61'gaos de .nosso corpOj em nosso mundo I

inconcebivel pensar em perde-Ias, ja que logo achariamos outroobjetos para substituir os velhos, outros que sao nossos porquconservam e reavivam as nossas· lembraneras. '

Imagine-se, agora, urn homem privado nao apenas dOll I

res queridos, mas de sua casa, seus habitos, sua roupa,. tudo,enfim, rigorosamente tudo que possuia; ele sera urn ser WI;/' lI,

reduzido a puro sofrimento e carencia, esquecido de dignidncle discernimento - pois quem perde tudo, muitas vezes p 'nltamhem a si mesmo; transformado em algo tao miseravel, <illfacUmente se decidira sobre sua vida e sua marte, sem quoll"l I

sentimento de afinidade humana, na melhor das hip6tesell t'llll

siderando puros criterios de conveniencia. Fieara claro, III II,

o duplo significado da expressao "Campo de extermfnio", III III

como 0 que desejo expressar quando digo: chegar no fund .

Wi/tling: aprendi que sou urn Wiltling. Meu n llJ

174.517; fomos batizados, levaremos ate a morte essa marcll III

tuada no brayo esquerdo.A operaerao foi pouco dolorosa e extraordinariamcnt I

pida: colocaram-nos numa fila e, urn por um, conforme U l)I'd III

alfabetica dos nossos nomes, passamos por urn habil fUI1t' 1lI1

rio, munido de uma especie de punyao com uma agulho JU III

cula. Ao que parece, esta e a verdadeira iniciayao: 86 "11111

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POr outraparte, 0 proeesso todo de inserir-se nesta ordem,lH)YII pura n6s, aeonteee de forma grotesea e fanhistica. Depois1111 t'lpljrll~iiotatuagem, eneerraram-nos num barraeao onde naolllw!o oinguem. Os beliehes estavam arrumados, mas nos foi

(V l'lImente proibido toea-Ios ou sentar neles; assim, duranteIllI tlldo do dia vagamos sem rumo no poueo esp81t0 disponivel,

atormentados ainda pela sede exasperada da viagem. Abriu-se,entao, a porta; entrou um rapazote de roupa listrada, de boaaparencia, pequeno, magro e loiro. Este falava frances, e nosaglomeramos ao seu redor, bombardeando-o com todas as per-guntas que ate enUio nos fizeramos uns aos outros inutilmente.

Mas ele poueo faIou; aqui, ningucm gosta de falar. Somosnovatos, nada temos, nada sabcmos; para que perder tempoeonosco? A contragosto, esclareceu que os demais sairam paratrabalhar; que voltadio a noite. Ele teve aita de n\anha da en-fermaria; pOl' i5S0nao precisava trabalhar hoje. Perguntei (comuma ingenuidade que, apenas uns dias depois, ja me pare ceriaabsurda) se ao menos receberiamos de volta as escovas de den-tes. Ele nao riu, mas com uma expressao de extremo desprezojogou-me it cara: - Vous n'etes pas a la maison. - Este e 0refraoque todos nos repetem: voces nao estao mais em casa,isto nao e urn sanatorio, daqui s6 se sai pela Chamine (0 quesignifiea isso? Ja vamos sabe-Io).

Por exemplo: com toda aquela sede, vi, do lado de forada janela, 110 alcance da mao! urn bonito caramelo de gelo.Abro a janela, quebro 0 caramelo, mas logo ad~anta-se urn gran-dalhao que esta dando ,,"oltas I::ifora e 0 arranca brutalmenteda minha mao. ~ Warum? - pergunto, em meu pobre alemao.- Hier ist kein Warum - (aqui nao existe "por que"), res-ponde, empurrando-me para tras.

A explicacraoe repugnante, Forem simples: neste lugar tudoe proibido, nao pOl'motivos inexplicaveis e sim porque oCampofoi criado para isso. Se quisermos viver aqui, teremos de apren-de-Io, bem e depressa:

"Qui non ha luogo il Santo Volto,qui si nuota altrimenti che nel Serchio!"2

Hora ap6s hora, vai se aeabando este primeiro longo,longo dia no limiar do inferno. Quando 0 sol se poe num rcde-moinho de sombrias nuvens cor de sangue, finalmente man-

ll'l\odo 0 numero" recebe-se 0 pao e a sopa. Necessitamos devrtl'lOtl dins e de muitos socos e bofetadas, ate criarmos 0 habitotI( 1110 trllr prontamente 0 numera, de modo a nao atrapalharII ·otldlanas operaltoes de distribuiltao de viveres; necessitamostl mllnllSemeses para acostumarmo-nos ao som do numeroIII ul ·mlio. E durante muitos dias, quando 0 habito da vida eml II rdudc me 1evava a olhar a hora no re16gio, no pulso apare-

II mo, ironieamente, meu novo nome, esse numero tatuado em1II11f IIN azuladas sob a pele.

S6 bem mais tarde, pouco a pouco, alguns de n6s apren-(I mm ulgo da macabra ciencia dos numeros de Auschwitz, naCjulil H resumem as etapas da destruilt80 do judafsmo europeu.Ao v Ihos do Campo, 0 numero revela tudo: a epoca da en-jll,tlu no Campo, 0 comboio com 0 qual se chegou e, conse-q III' mente, a nacionalidade. Todos tratarao com respeito osIII In tOs entre 30.000 e 80.000: sobraram apenas algumas cen-I Illl , ussinalam os poueos sobreviventes dos guetos poloneses.'tlllv'm abrir bem os olhos ao eptrar-se em rela90es comerciais

lOll~um 116.000 ou 117.000: jA devem estar reduzidos a uns1111 II' l1(u,mas trata-se dos gregos de Tessalonica, nao devemos(Ii xUI'-noscnrolar. Quanto aos numeros mais altos, carregam111lI1I nota de leve ironia, como acontece para os termos "no-VlIlll" ou "calouro" na vida normal. 0 grande numero tfpico eIlll~ UjllitO barrigudo, d6cil e burro, ao qual se pode fazer acre-d 1I1J' que nn enfermaria distribuem sapatos de couro para pesII I lidos, convence-Io a correr la, deixando a sua gamela de

I'll "1l0SnOSS05euidados"; pode-se vender-Ihe uma colher porII ~lJQ es de pao; poqe-se manda-Io ate 0 mais feroz dos Kapos)111111 pcrguntar (aconteceu comigo!) se e' verdade que 0 seu(llUlondo e 0 Kartoffelschal Kommando, 0 Comando-de-Des-II IIr-)llltatas, e se e possivel alistar-se nele.

2 "0 Rosto Santo niio tens mais II frente / Ja nso estas no Serquioaqui nadando!" (Dante. Inferno. XXI. Trad. Cristiano Martins). Ouseja: "Aqui nso e comonadar no riozinho da aldeia!" (N. do T.)

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dam-nos sair do barracao. Sera que vao dar-nos de heber? Nao,eles nos poem em fila, mais uma vez, levam-nos ate urn grandeespa~o aberto 'que ocupa 0 centro do Campo, e la nos colocam,cuidadosamente Jormados. Depois, nada acontece por mais 'umahora; parece que estamos esperando por alguem.

Uma banda de musica come~aa tocar, ao lado do portaodo Campo; toca "Rosamunda", essa can~ao popular sentimen-tal, e isso nos parece tao absurdo que nos entreolhamos sorrin-do com escarnio. Nasce em n6s uma sombra de alivio; talvezessas cerimonias todas sejam apenas urna gigantesca palha~ada,ao gosto teutonico. A banda,' porern, depois de "Rosamunda",continua tocando uma rnusica ap6s outra, e 16 aparecem nos-sos, companheiros, voltando em grupos do trabalho. Marchamem filas de cinco, com urn andar estranho, nao natural, duro,como rfgidos bonecos feitos s6 de ossos; marcham, porern,acompanhando exatJlmente 0 ritmo da musica.

Eles tambem formam-se como n6s, numa ordem meticulo-sa, na grande pra~a; uma vez chegado 0 ultimo grupo, somoscontados e recontados durante mais de uma hora; tern lugarlongos controles que parecemconvergir, todos, para urn sujeitode roupa listrada, 0 qual por sua vez transmite seu relat6rioa urn grupinho de SS em completo equipamento de guerra.

Por fim (ja escureceu, mas 0 Campo e intensamente ilu-minado por far6is e holofotes), ouve-se gritar: - Absperre! -e todos os grupos se desmancham num vaivem confuso e tur-bulento. Os prisioneiros ja naocaminham rigidos, de peito es-tufado; cada qual se arrasta penosamente. Reparo que todoslevam na mao, ou' pendurada no cinto, uma gamela quase dotamanho de uma bacia.

Nos tambem, os recem-chegados, andamos no meio damultidao, a protura de urna voz familiar, de urn rosto amigo,de urn guia. Encostados na parede de urn barradio estao sen-tados, no chao, dois rapazes. Parecem bem jovens, dezesseisanos no maximo; ambos tern 0 rosto e as maos sujos de fuli-gem. Urn deles me chama enquanto passamos; em alemao faz-me umas perguntas que nao entendo; quer saber de onde vie-mos. - ltalien - respondo; gostaria de Ihe perguntar muitacoisa, m?s 0 meu vocabuhhio alemao e reduzidissimo.

- Voce e jtideu?- Sim. Judeu, polones.-:- Faz muito que estli no Campo?- Tres anos -'e mostra tres dedos. Deve ter n!nulll

ainda ctian~a, penso com horror. Por outro lado, isso tll~lII I

que pelo menos alguem consegue viver aqui.- Qual e 0 seu trabalho?- Schlosser - responde. Nao cornpreendo, - f: I II,

Feuer (ferro, fogo) - insiste, e faz urn gesto com as mil,

de quem bate com urn martelo na bigorna. I! urn ferreiro.- Ich Chemiker - digo, e ele acena serio com a cab 1,/"

- Chemiker gut. - Tuda isso, POl'ern, s6 tern a ver corn II

remoto futuro. 0 que me atormenta, 'agora, e a sede.- Beber agua. N6s nada agua - digo. Ele olha '0/11

rosto serio,quase severo, acentua cada palavra: - Nilo b h I

agua, companheiro - e acrescenta algo mais que nao entcll(ltI.- W£;rum?- Geschwollen - responde, laconicamente. - Inchudo

- explica, inflando as bochechas e representando com 8S m (l

monstruosa tumescenCia do rosto e do ventre. - Wart en I,heute £;bend. - Esperarate hoje noite, traduzo, .palavra POI

palavra.Logy pergunta: - lch Schlome. Du? - Digo meu nom.

Pergunta: - Onde tua Mae? - Na !talia. - Schlome eslrllnha: - fudia, na Halia? - Sim - tento explicar -, escondidll,ninguem conheee, fugir, nao falar, ninguem ver. - Coinprccl\odeu. Levanta-se, aproxima-se de mim, timidamente me abrac,:n.Terminou 0 episodio e sinto uma tristeza tao pura que e quaalegria .. Nunca mais vi Schlome, mas nao esqueci seu rostoserio e suave de crian~a, que me recebeu no umbral da casa domortos.

Muitissimas coisas ainda deverao ser aprendidas; muitas,porem, ja aprendemos. Ja temos ideia da topografia do Campo:este nosso Campo e urn quadrado de uns seicentos metros delado, fechado com duas cereas de arame farpado, sendo a dodentro ligada a corrente de alta tensao. Consta de sessenta bar-

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racos de madeira, aqui chamados Blocos; destes, uma dezena'ainda esta em. constru~ao. Alem dos Blocos,0 conjunto, emmateri~l, das cozinhas; ~ma granja experimental,cuidada porum grupo de Haftlinge privilegiados;os barracos das 'duchase das latrinas, urn para cada seis ou sete BIocos. E inais, algunsBlocos destinados a finalidades especiais:. antes ae tudo, urnconjunto de' oito, na extremidade leste do Campo, cOnstitui aenfermaria e 0 ambulat6rw; hel, logo, 0 BIoco 24, 0 Kriitze-block, para os sarnentos; 0 Bloeo 7.-,no qual nunea ehtrou ne-nhum Wi/tling comum, reservado a Prominenz, ou seja, a aris-tocracia,aos prisioneiros' ineumbidos de fun~oes superiores;· 0

Bloco 47, para 0 Reichsdeutsche (os. ariimosalemaes, politicosOU criminosos); 0 Bloeo 49, s6 para Kapas; o Bloco 12, metadedo qual funciona como cantina; -para os f?,eichsdeutsche .e osKapos, au seja, para a distribui~ao de tab!lco, p6 inseticida e,ocasionalmente; outrosartigos; 0 BIoco 37, contendo 0 Eserl-t6rio Central e a Chefia do Trabalho, e, por. fim, 0 Bloc029,que fica sempre com as janelas fechada'S, porque e o Frauen-blok, 0 BIaco das Mulheres, 0 prostibulo do Campo, servidopor m~as Hii/tlinge polonesas e reservado aos. Reichsdeutsch~;

Os Bloc~~ residenciais comuns dividem-se em dois setore~:num deles (Tagesraum) mora 0 chefe do Blaco com seus ami-gos; ha uma longa mesa, cadeiras, bancos; urn monte de obje-tos de COIes vivas, fotos, recortes de revistas, desenhos, floresartificia'is, bibelos;' nas paredes, grandesinsc;ri~Oes, proverbios'e versinhos exaltando a ordem, a disciplina,a higiene; numcanto, a vitrina com os apetrechos do Blockfrisar (barbeiro au·torizado), as conchas para _distribuir a sopa, e d6iscacetes' deborracha, oco urn, maci~o outro, para manter a discipHrta supra-citada. 0 segundosetor e 0 dormit6rio e s6 contem. beliches:cento e quarenta e oito beliches de tres camaS cada urn; encai-xaclinhos urn o.ooutro como·celulas de: colmeias, de modo' aaproveitar todoovao, ate 0 teto, e dividfdos porttes corredore~:Aqui vivem·os comuns .Haftlinge,· em mimero de dtizentosa du~zentos e cinqiienta por Bloco; na maiot'ia d6scasos,' portanto;dois para cada cama. As camas sao de tabuas removiveis, cadauma com Urn fino colchao de palha e dois cobertores. ()scorre~dores sac tao estreitos, que mal dao para duaspessoas Be cru·

zarem; 0 espa90 disponfvel e Hio pequeno, que os moradoresde urn Bloco s6 cabem nele quando a metade esta deitada nosbeliehes .. Daf a proibi~ao de entrar num Bloco ao qual naose pertence.

No meio do Campo esta a Praya da Chamada, imensa,onde a gente se reune cada manhii para formar as grupos detrabalho, e a noite para ser contado. Na frente da pra~a haurn canteiro, eom a grama euidadosamente aparada: la sao at'-madas as forcas, quando necessario.

Aprendemos rapidamente que as h6spedes do Campo di-videm-se em tres categorias: as eriminosos, os politicos e asjudeus. Todos vestem roupa listrada, todos sao Haftlinge, masos eriminosos levam, ao lado do numero, costurado no casaco,um trHingulo verde; os politicos, urn triangulo vermelho; osjudeus, que formam a grande maioria, levam a Estrela deDavid, vermelha e amarela. Os SS estao aqui, sim; poucos,parem, fora do Campo, e raramente apareeem. Nossos verda-deiros patr6es sao os triangulos verdes, que podem fazer den6s 0 que querem, e, alem deles, os das outras duas categoriasque se presterna secunda-los. E estes nao sao poueos.

Outras coisas aprendemos ainda, uns mais, outros menosrapidamente, conforme 0 temperamento de cada um. A respon-der: Jawohl!, a nao fazer nunea perguntas, a fingir ter com-preendido sempre. Aprendemos 0 valor dos alimentos; n6stambem, agora,raspamos 0 fundo da gaxpela, e a seguramosdebaixo do queixo quando comemos pao, para nao desperdi~armigalhas. N6s tambem, agora, sabemos que nao e a mesmacoisa receber uma concha de sopa retirada da 5uperficie, au dofundo do panelao, e ja estamos em condi~6es de calc~lar, mlbase da capacidadedos diversos panel6es, qual e 0 lugar maiseonveniente quando entramos na fila.

Aprendemos que tudo serve: 0 peda~o de arame, paraamarrar os sapatos; os trapos, para envolver as pes; 0 papel,para farrar (embor~ proibido) 0 casaco contra 0 frio. Aprende-mos que, por outro lado, tuda pade ser roubado; alias, que e,automatieamente, roubado ao menor deseuido, e para evitarisso tivemos que aprender a arte de dormir apoiando a cabe~a

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numa trouxa feita com a casaco e contendo _todos as nossospertences, da gamela ate os sapatos ..

Ja conhecemos em grande parte a regulamento do Campo,que e absurdamente complicado. Imlmeras sac as proibi90es:aproximar-se a menos de dois metros do arame farpado; dormircom a casaco posta, au sem ceroulas, au de chapeu ria cabe~a;usar as lavat6rios e as privadas que sao "s6 para Kapos" ou"s6 para Reichsdeutsche" (cidadaos alemaes); nao tomar duchanos dias marcados, ou. toma~la fora desses dias; sair do Blococom 0 casaco desabotoado ou coIn a gola~levantada; .levar, porbaixo da roupa, papel ou palhapara se proteger do frio; lavar-se .de outra maneira que nao seja com 0 peito nu.

. Infindaveis e insensatos sao os rituais obrigat6rios: cadadia, de manha, de~e"se arrumar a cama, pedeitamente, planae Usa; passar nos tamaricos barrentos a graxa patehte para 1S50destinada; raspar das roupasas manchasde barro (as de tinta,gordura e ferrugem, peto contraria, sac admitidas); a noite, agente deve submeter7se ao controle dos piolhos e ao.da lavagemdos pes; aos sabados, fazer-se barbear e raspar ocabelo, cerzhou fazer-se cerzir os farrapos; aosdomingo~, submeter-se 'aocontrole geral da sarna e ao dos hotOes do' easaco, que devemser cinco. .

Tem mais: imlmeras circunstancias,' normalmente -irrele-vantes, aqui se tornam problemas. Quando as unhas crescem, agente precisa corta-las, e isso 56 pode ser feito com .os dentes .(quanto as unhas dos pes, basta -.0 atrito dos tamancos); se agente perde uinpot~o, deve aprendera costura-Io com'arame;se vai a latrina ou ao lavat6rio,' deve levar t\ldo consigo, sempree Ii toda parte, ·e, enquanto lava os olhos, manter a trouXadaroupa bemapertada entre os joelhos;de outra maneira, nesseinstante-ela sumiria. Se urn sapato apirta, a gente deve apresen-tar-se, a noite; a cerimonla da troca de sapatos; aU p5e-se aprova aperfcfa do sujeito. No meio da multidao apinhada, de-ve-se conseguir escolher, s6 por urn olhar, urn sapato (nao urnpar: um sapato s6) quesirva para 0 nosso pe, ja que, uma'vezfeita a escolha, nao e permitida nova troea.

E nao e de crer que as sapatos signifiquem pouco, na vidado Campo; A morte come~a pelos sapatos. EI~s se' revelaram,

para a maioria de n6s, verdadeiros instrumentos de tortura que,~p6s ~mas horas de marcha, criam feridas dolorosas, 'sujeitas amfeccrao na certa. A gente, entao caminha comO se tivesse umabola de ferro amarrada no pe (dai, a estraIiha andadura doexercito defantasmas que a cada noite volta em forma~ao demar~ha); s_enipre chega por ultimo, e sempre apanha; se per-~eguIdo, na~ ~onseg1ie fugir; seus pes incham e, quanta maismcham, maIS msuportavel toma-se a atrito com a madeira e a10ila dos sapatos. Entao, s~ resta a hospital, mas entear no hos-pital com 0 diagn6stico dicke Fiisse (pes inchados) e sumamen-te perigoso, ja que todos sabem (e especialmente os 5S) quedessa doenya, aqui, nao da para se curar.

E ainda nao falamos do trabalho, que par sua vez e urnemaranhado de leis, tabus e problemas.

Trabalhamos todos, comexcecrao dos doentes (e fazer-sereconhecer como doente exige por si so uma ampla bagagem deconhecimentos e experieneias). Cada manha, saimos do Campoem formacrao, dirigidos a fabrica; cada noite, em formacrao, vol-tamos. Quanto ao trabalho, estamos divididos em perto de du-zentos Kommandos, cada" urn com urn minimo de quinze ho-mens e urn maximo de cento e cinqiienta, comandado por urnKapo. Ha Kommandos 'bons e ruins; a maioria deles e destinadaaos transportes, e 0 trabalho e duro, prineipalmente no inverno,ja que e feito' ao ar livre. Ha tambem Kommandos de especia-listas (e!ctricistas, ferreiros, pedreiros, solqadores, mecanicosetc.), cada qual destinado a certa ofieina ou setor da fabrica,e dependente de maneira mais direta de mestres civis, em geralalemaes e poloneses. Isto, obviamente; s6 acontece nas horas do;:trabalho; no resto do dia, os espeeialistas (que nao passam detrezentos.ou quatrocentos ao todo) nao gozam de tratamentodiferente dos' trabalhadores comuns. A destinacrao de cada urnaos varios Kommandos e orientada por urn escrit6rio especi-fico do Campo, 0 Arbeitsdienst (Chefia do Trabalho), que ficaem constante contato com a dire9ao civil da fabrica, 0 Arbeits-dienst toma suas decis6es na base de criterios misteriosos efreqiientemente, esta claro, na base de preferencias e subornos:de maneira que, se alguemda 0 jeito de conseguir comida, pode

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estar quase seguro de conseguir tambein urn born trabalho na .fabrica.

o horario de trabalhovaria conforme a estayao. Todas ashoras de luz sao horas de trabalho; portanto, oscila-se de urnhorario' minimo inverrial (8h as 12h e 12h:30m as 16h) a urnhorario maximo de veraei' (6h:30m as 12h e 13h as 18h). OsHii:ftlinge nao podem, de maneira alguma, estar trabalhando nashoras de escuridao, ou quando ha cerrayao fechada, emboratrabalh~m normalmente se chove, se nevaou (0 que e bem fre-qiiente) se sopra 0 vento feroz dos Carpatos; isso porqueaescurid~o ou cerrayao poderiam favore~er tentativas de fuga.

Urn domingo emcada dois e dia normal de trabalho, e, nosdorningos de folga" em vez de trabalhar na fabrica trabalha-seemgeral, na manuteny80 do Campo, de modo que os dias d;verdadeiro descanso sao rarlssimos.

haja muitos agn6sticos, mas porque a malOrIa, sem mem6rianem logica, oscila entre as duas posic;:6esextremas, conformeo interlocutor e conforme 0 momento.

Aqui estou, entao: no fundo do P0l;0. Quando a necessi-dade aperta, aprende-se em breve a apagar da nossa mente 0

passado y 0 futuro. Quinze dias depois da chegada, ja tenho afome regulamentar, essa forne cronica que os homens livres des-conhecem; que faz sonhar, a noite; que fica dentro de cadafragmento de nossos corpos. Aprendi a nao deixar que me rou-bem; alias, se vejo por af uma colher, urn barbante; urn botaodos quais consiga tomar posse sem risco de punil;aO, embolso-os, considero-os rneus, de pleno direito. Ja apareceram. no peitode meus pes, as torpes chagas que nunca irao sarar.' Empurruvag6es, trabalho com a pa, desfale~o na chuva. tremo no vento;mesmo meu corpo ja nao e meu; meu ventre esta incnado meusmernbros ressequidos, meu rosto tumido de manhff e chupadoa noite; alguns de n6s tern a pele amarelada, outros cinzenta;quando nao nos vemos durante tres ou quatro dias, custamos areconhecer-nos. .

Resolveramos encontrar-nos, nos, italianos, cada domingoa noite, num canto do Campo, mas paramos logo com isso; eratriste demais contar-nos, encontrar-nos cada vez em menor nu-mero, cada vez mais disformes, esqualidos. E custava carninharate hi, por perto que fosse; e, ainda, encontrando-nos, aconte-ceria lembrar, pensar ... melhor nao.

Esta sera, entao, a nossa vida. Cada dia, conforme 0 ritmofixado, Ausrilcken e Einriicken, sair e voltar; trabalhar, dormire comer; adoecer,.sarar ou morrer.. . " Ate· quando? Os velhos habitantes do Campo riem

desta pergunta: uma pergunta pela qual se conhecem os recem-chegados. Riem, e nao respondeni: para eles, desde meses eanos 0 problema do· futuro longlnquo foi se apagando, perdeutoda intensidade, perante os problemas do futuro imediato, bemmais urgentes e concretos: ~omo a gente comera hoje, se vainevar, se vamos ter quedescarregar carviio.

Se fossemosseres razoaveis, teriamos que aceitar esta evi-dencia: que nao podemos, absolutamente, preyer nosso destino;que qualquer suposiyaoe arbitraria e carece de todo funda-mento. Raramente, porem, os homens sac razoaveis quando estaem jogo a sua pr6pria sorte;eles preferem sempre asatitudesextremas; conforme seu carater, alguns de nos convericeram-selogo de que tudo esta perdido, de que aqul nao da para viver,,de que 0 fim e pr6ximo e inevitavel; outros que, por penosaque seja a vida que os~espera, asalvayao eprovavel, e nao estalonge; se· tivermos fe e forya, tornaremos a ver os nossos lares. os seres arnados. As duas categorias,a dos pessirnistas e a~dosotimistas. nao sao, parern, tao hem deterrninadas; nao porque

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INICIA~AO

so: sinto-me amea<rado, a cada instante estoll pronto para mecontrair num espasmo de defesa. Sonho, e me parece dormirno meio de uma rua, de uma ponte, atravessado no limiar deuma porta poronde vai e vem muita gente. E ja chega, quaecedo, ail a alvorada. a Bloco inteiro estremece desde os ali-cerces, acendem-se as luzes, todos ao redor de mim agitam-senuma repentina, frenetica atividade: sacodem os cobertores,levantimdo nuvens de fetido p6, vestem-se com pressa febril,correm para fora, no ar gelado, ainda meio nus, precipitam-serumo as latrinas e aos lavatorios; muitos, como mchos, urinamenquanto correm, para poupar tempo, porque dentro de cincominutos come<ra a distribuiyao do pao - do pao, Brot,Broit, chleb, pain, lechem, kenyer -, do sagrado tijolinho cin-zento, que parece gigantesco na mao do teu vizinho e, natua, pequeno de fazer chorar. :£ uma alucinayao cotidiana, aqual a gente acaba se acostumando, mas nos· primeiros temposela e irresistivel, a um ponto tal que muitos de n6s, depois dediscutir um bocado uns com os outros, lamentando 0 pr6prio evi-dente e constante azar e a sorte descarada dos outros, trocamas ra<roes, por fim, e entao a ilusao recome<ra, ao cotttnlrio,deixando desiludidos e frustrados a todos.

a pao e tambem a nossa unica moeda: durante os poucosminutos que passam entre a distribuiyao e 0 consumo, 0 Blocoressoa de chamados, de brigas e fugas. Sao os credores de ontemque exigem 0 pagamento, nos poucos instantes nos quais 0 deve-dor tem com que pagar. Logo volta certa paz, e muitos aprovei-tam para ir novamente aos banheiros e fumar la meio cigarro,ou ao lavat6rio para lavar-se realmente.

a lavatorio e um local pouca convidativo. Ele e mal ilu-minado. cheio de correntes de ar, com 0 piso de tijolos cobertopor uma camada de lama; a agua nao e potavel, tern um cheironauseante ,e, com freqiiencia, falta durante horas. As paredessao decoradas com estranhos afrescos didaticos: ve~se, porexemplo, 0 born Rattling, nu ate a cintura, ensaboando cuida-dosamente 0 cranio bem raspado e rosado, e 0 mau Rattling, denariz marcadamente semitico e de cor esverdeada, que, todo,entrouxado em suas roupas cheias de manchas, e com 0 bonena cabeyll, imerge apenas urn dedo, cautelosamente, na agua da

Oepois ·das pnmeiras caprichosas mudanyas de Bloca a Blocoe de Kommando a Kommando, a noite destinam-se .ao BIoca30,. indicam-me uma cama na qual Oiena ja dorme. Diena acor-da e, ainda que exausto, me da lugar e me recebe amistasamente.

Estou sem sono, ou, melhor, meu sono esta oculto porurn estado de tenslio e ansiedade do qual ainda nlio me libertei;portanto, fala sem paral.

Tenho perguntas demais a fazer. Estou com fome, e quan-do, amanha, nos distribuirao a sopa, como e que you come-Iase nao tenho' colher? E como e que se consegue uma colher?E aonde vao me mandar trabalhar? Diena, obviamente, sabe

'I. O'tanto quanta eu, e responde com outras perguntas. e Clma,porein, de baixo, de perto, de longe, de todos os cantos doBloco ja escuro; vozes sonolentas e iradas gritam-me: - Ruhe!Ruhe! (Silencio!)

Compreendo que querem que cale a boca, mas essapala-vra e nova para mim e; nao conhecendo seu significado nemSUllS implicayoes, minha ansiedade aumenta. Aqui, a confusliodas linguas e um elemento constante da nossa maneira de viver;a gente fica no meio de uma perpetua babel, na qual todos ber-ram ordens e ameayas em linguas. nunca antes ouvidas, e aide quem nao entende logo 0 sentido. Aqui ninguem tern tem-po, ninguem tem paciencia, ninguem te da ouvidos; n6s,osrecem-chegados, instintivamente nos juntamos nos cantos can-trll as paredes, como um rebariho de ovelhas, para sentirmosas costas materialmente protegidas.

Renuncio, portanto, a fazer mais perguntas, e em brevemergulho num sono amargo e tenso. l! sono, mas nao e descan-

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pia. Debaixo do primeiro esta escrito: So bist du rein (assim,estas limpo); debaixo do segundo: So gehst du ein (assim, des-tr6is a ti mesmo). E, ainda mais embaixo, num dubio franeesmas em letras g6ticas: La praprete, c'est la sante (limpeza esaude).

Na parede oposta, sobressai urn enorme piolho branco,vermelho e preto, com a eserita: Eine Laus, dein Tad (urnpiolho e a tua morte), e 0 inspirado distico:

Nach dem Abort, vor dem EssenHande wasehen, nieht vergessen

(depois da latrina, arites de comer, lava as maos, nao esquece).Durante semanas, considerei estas exorta~oes a higiene

como simple~ tra~os de humor teutonieo, do mesmo estilo dodialogo sobre 0 dnto herniario com 0 qual fomos recebidos aoentrarmos no Campo. Mais tarde, porem, compreendi que seusignotos autores nao estavam (talvez ineonscientemente) longede importantes verdades. Neste lugar, lavar-se cada dia na aguaturva da pia imunda, bem poueo adianta quanto ao asseio e asaude; e extremamente importante, porem, como sintoma deresidua vitaHdade, e essencial como meio de sobrevivencia mo-ral.

Vamos morrer, todos; estamos para morrer; se e que me sobramdcz minutos entre a alvorada e 0 trabalho, quero destina-Ios aoutra coisa, a feenar-IJ1edentro de mim mesmo, a faze,r 0 balan-yO da minha vida, ou qui~a a olhar para 0 ceu e a pensar que.tnlvez eu 0 'veja pela ultima vez; ou a me deixar viver, apenas,n permitir-me 0 luxe de uma brevissima folga.

Steinlauf, porem, passa.me uma descompostura. Terminoude se lavar, esta se secando com o' casaeo de lona que antessegurava, enrolado, entre os joelhos e que logo vettira, e, seminterr~IJlpeT a opera~ao. me da uma' pr~le~ao em regra.

Ja esqueci, e 0 lamento, suas palavras diretas e claras, aspalavras -do ex-sargento Steinlauf do exercito -austro-hUngaro,-Cruz de Ferro da Primeira Guerra Mundia!. £ urna pena: youter que traduzir seu incerto italiano e sua falasimples de bornsoldado em minha linguagem de homerri eetieo. Seu sentido,porem, que nao esqueci nunca mais, era esse: justamente por-que 0 Campo e uma grande engrenagem para nos transfo~arem animais, nao devemos nos transformar em animais; ate numlugar como este, pode-se sobreviver, para relatar a verdade,para dar nosso depoimento; e, para v~ver, e essencial esfor~ar-nos par salvar ao menos a estrutura, a forma da civilizayao.Sim, somos eseravos, despojados de qualquer direito, expostosa qualquer injuria, destinados a uma morte quase certa. masainda nos resta uma op~ao. Devemos nos esfor~ar por defende-la a todo custo, justamente porque e a ultima: a opyao derecusar nosso consentimento. Portanto, devemos nos lavar, sim;ainda que sem sabao, coni essa agua suja e usando 0 casaeocomo toalha. Devemos engraxar os sapatos, naoporque assimreza 0 regulamento, e sim por dignidade e aHnho. Devemosmarchar' eretos, sem arrastar os pes, nao em homenagem adisciplina prussiana, e sim para continuarmos vivos, para naocome~armos a morrer.

Essas palavras me disse Steinlauf, homem de boa vontade;palavras estranhas para 0 meu ouvido desabituado, compreen-didas e aceitas s6 em parte, atenuadas numa doutrina maisfacit, elastica e branda, a que respiramos h3 seculos deste ladodos Alpes, conforme a qual,' entre outras coisas, nao ha vaidade

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Tenho que confessar: bastou urna semana de cativeiro parasurnir 0 meu .hlibito de limpeza. Vou zanzando pelos lavat6rios,e la ate 0 companheiro Steinlauf, meu amigo quase cinqiientao,de p~ito nu, esfregando-se ombros e pesco~o com escassos re-sulta~os (nem tern sabiio), mas com extrema energia. Steinlaufme v&.,me sauda, e, sem rodeios, me pergunta, severamente, porque nao me lavo. E por que deveria me lavar? Me sentiria me-Ihor do que estou me sentindo? Alguem gostaria mais de mirn?

.Viveria urn dia, uma hora a mais? Pelo contTl:lrio, viveriamenos, porque lavar-se da trabalho, e urn desperdicio de ener-gia e de calor. Sera. que Steinlauf nao sabe que bastara meiahora entre os sacos de carvao para acabar com qualquer dife~renc;:aentre n6s dois? Quanto mais penso nisso, mais acho quelavar a cara em nossa situa<;ao 15 folice, futilida.de ate; habitoautomatico ou, pior, lugubre repeti~ao de urn ritual ja extinto.

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maior do que esfor<;ar-sepor engolir inteiros os sistemas mor~iselaborados pOl' outros, sob outro ceu. Nao, a sabedoria, a Vlr-

tude de S[einlauf, pOl' certo validas para ele, a mim nao bastali1;Frente a este mundo infernal, minhas ideias se confu~dem: seramesmo necessario elaborar um sistema e observa-lo? Nao seramelhor compreender que nao se possui sistema algum?

'"KA-BE

Todos os dias se parecem um com 0 outro, e nao e facH conta-105: Ha quanto tempo dura, ja, este vaivem em parelhas, daestrada de ferro· ao galpao? Cern metros de chao em degelo.No ida, sob a carga; na volta, com os bra<;os caidos ao longodo corpo, em silencio.

Ao redor de n6s, tudo nos e hostil. POl' cima, sucedem-semaldosas nuvens para tirar-nos 0 sol; pOl' todos os lados, cir-cunda-nos a esqualida floresta de ferro retorcido. Nunca vimosseus limites, ma·s sentimos, ao redor, a presen<;a ma d6 aramefarpado que nos segrega do mundo. Enos andaimes, nos trensmanobrando, nas estradas, nas escava<;6es, nos escritorios, ho-mens e homens, escravos e patroes, e os patr6es, escravos elestamb6m; 0 medo impele uns e 0 odio os outros; qualquer outrafor<;a emudece. Todos sao, para n6s, inimigos ou rivais.

Nao. Realmente, hoje, neste meu companheiro de cangaeu nao sinto um inimigo, nem um rival.

Ele e Null Achtzehn. Chama-se apenas assim: Zero-Dezoi-to,. os tres algarismos finais da sua matricula; como se todostivessem compreendido que s6 os homens tem direito a umnome, e que Null Achtzehn ja nao e um homem. Imagino queate eleproprio tenha esquecido seu nome; em todo caso, com-porta~se como se fosse assi~. Quando fala, quando olha, da aimpressao de estar interiormente oco, nada· mais do que uminv61ucro, como certos despojos de insetos que encontramosria beira dos pantanos, ligados pOl' um fio as pedras e balanya--dos pelo vento.

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Null Achtzehn e muito jovem, 0 querepresenta grave peri-g . Nao apenas porque os rapazes agiientam menos que osodultos. as fadigas e 0 jejum, mas, principalmente, porque aqui,pora sobreviver, precisa-se de urn longo treino para a luta deuda urn. contra todos, que os jovens raramente possuem. Null

Achtz'ehn nem esta especialmente enfraquecido, mas todos evi-IIIIll trabalhar com ele. Tudo ja the e tao indiferente, que naoI nlu fugir ao trabal~o e as pancadas, nem procurar comida.I.x cuta todas as ordens que recebe; e provavel que, quandoOr cnviado a morte, ele va com essamesma absoluta indife-

r fH;/l.

EJe nao possui nem essa asrucia elementar das bestas de('111'1(11, que param de puxar antes de chegar ao total esgotamen-10; Ie puxa, ou leva, ou empurra, enquanto tern for~as para

0; I~go cede de repente; sem uma palavra de advertencia,t III I vantar do chao seu olhar opaco e triste. Lembra-me osII horros de tren6s dos Bvros de London, que fazem for~a ate

II (111m alento e caem mortos na trilha.L jl1 que todos n6s, pelo contrario, procuramos, de qualquer

, to, vitar a fadiga, Null Achtzehn e 0 que trabalha mais quehlllo • Por isso, e porque e urn companheiro perigoso, ninguem'1Ilnr Irubalhar com ele; por outro lado, ninguem quer trabalharI lUll ~o, porque sou fraco e desajeitado. Assim, acontece segui~1111111 III que nos encontremos juntos.

escondido no meio do carvao, Hcar calado e im6vel na escuri-dao, escutando 0 ritmo intermimlvel dos trilhos, mais forte doque a fome e 0 cansa<;o; ate que, de repente, 0 trem pare, e eusiota 0 ar tepido' e 0 cheiro do fena, e passa sair a.o sol; entaodcitar no chao, e beija-lo, como se Ie nos livros, com 0 rosto'na grama. E passaria uma mulher, e perguntaria, em italiano:Chi sei?, eu re.sp()ll.deria em italiano, ela compreenderia eme daria. comida e abrigo. Ela nao acreditaria nas coisas queeu contasse, e entao eu mostraria 0 numero tatuado no bra<;o,e entao ...

. . _ Acahou-se. Passou 0 ultimo vagao e, como ao levantardo pano no teatro, la esta, diante de nOSSQSolhos, a pilha desuportes de ferro, 0 Kapo de pe, em cima da pilha, de cacetena mao, os companheiros macilentos que VaGe vem, em pare-lhas.

Ai de quem sonha! 0 instante no qual, ao despertar, reto-mamas consciencia da re.alidade, e como uma pontada dolorasa.bso, poi-em, raras vezes nos acontece, e os nossos sonhos naoduram. Somos apenas uns animais cansados.

I 1I'I"untO. de maos vazias, retomamos uma vez mais doIll" 0, lIrrllstando os pes, uma locomotiva da urn apito curto

I illl corlll 0 caminho. Contentes pela pausa inevitavel, NullI hft hn eu nos detemos. Curvos e esfarrapados, esperamos

(Ill I) VIII{ S acabem seu lento desfile.,. n 'ulsche Reichsbahn. Deutsche Reichbahn. SNCF.3

1111 I 110 Ill' vag6es russos, com a foice e 0 martelo meio'I'll lido. ))'ulsche Reichsbahn. Logo: Cavalli 8, uomini 40.III/ii, I'/lf/nltl: um vagiio italiano .... Subir la, num canto, bem

Mais uma vez, estamos ao pe da pilha. Micha e 0 Galicia-no levantam urn suporte e 0 colocam rudemente em nossoscmbros. Sua tarefa e a menos cansativa; portanto, ostentamzelo a fim de conserva-Ia. Chamam os companheiros inai's len-to~, incitam, e,xortam, imp6em ao trabalho um ritmoinsusten-tavel. Isso me revolta, mas hem sei que e conforme a regra: .Os privilegiados oprimem os nao-privilegiados. Na base destalei, sustenta-se a estrutura social do Campo.

B a minha vez de caminhar na frente. 0 suporte e pesado,porem curto, de modo que, a cada passo, sinto os pes de NullAchtzehn trope<;ando nos meus. Ele e incapaz de acompanharo meti anda!', ou nao se importa.

Vinte passos, chegamos aos trilhos, ha urn cabo a transpor.A carga esta mal colocada, nao da; vai rcsvalando do ombro.Cinqiienta passos, sessenta. A porta do galpao; mais urn trechoiguaI, e largaremos a carga. Nao, nao da mais, 0 suporte pesa

1 1)1111 till H ('II buhn: Estrada de Ferro Nacional Alemii. SNCF: So• ,. Nil' 1111111 d .hem ins de Fer (Fran\=a). (N. do T.)

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todo no meu bra~o; nao agi.iento a dor e 0 esfor~o, grito, tentovirar-me, apenas em tempo de ver Null Achtzehn que trope~a elarga tudo.

Se eu tivesse a minha agilidade de antes, poderia pularfora; pelo contnirio, aqui estou, no chao, os musculos contral-dos, 0 pe ferido apertado entre as maos, cego de dor. A quinade ferro golpeou 0 dorso de meu pe esquerdo.

Durante urn minuto, tudo se apaga na vertigem da dor.Quando consigo olhar ao meu redor, Null Achtzehn airida estaaU de pe, nem se mexeu; as maos enfiadas nas mangas, nao dizuma palavra, olha-me sem a menor expressao. Chegam Mischae 0 Galidano, falam entre si em iidiche, dao-me nao sei quaisconselhos. Chegam Templer, David e os demais; aproveitam adigressao para largar 0 trabaUio. Chega 0 Kapo, distribui pon-tapes, socos e palavroes, os companheiros se dispersam comofarelo ao vento; Null Achtzehn levauma das maos ao nariz,retira-a ensangi.ientada, olha-a em silendo. Eu s6 recebo duasbofetadas na cabe~a, dessas que nao doem, apenas tonteiamurn pouco.

o epis6dio eshi encerrado. Verifieo que, bem ou mal, meagi.iento em pe, 0 osso nao deve estar quebrado. Nao me animoa. tirar 0 sapato, com medo de reavivar a dor, e tambem porquesei que, depois, nao poderia tornar a po-Io: 0 pe vai inchar.

o Kapo manda-me substituir 0 Galiciano na pilha; este,olhando-rne carrancudo, vai tomar seu lugar junto a Null Acht-zehn, mas ja passam os prisioneiros ingleses, esta quase na horade voltarmos ao Campo.

Durante a marcha, esfor~o-me por andar depressa, masnao consigo manter 0 ritmo dos outros;' 0 Kapo designa NulAchtzehn e Finder para me sustentarem ate passarmos a frentedos SS, e par fim (sorte: esta noite nao ha chamada) chego aoBloco, posso jogar-me no beliche e tomar £Olego.

Ou por causa do calor, ou pelo cansa~o da caminhada, ador voltou, e, com ela, uma estranha sensa~ao de umidade nope ferido. Tiro 0 sapato; esta cheio de sangue ja coagulado,grudado ao barro e aos farrapos do pano que aehei urn mes

atras e que uso para entrouxar os pes - urn dia 0 pe direito,no dia seguinte 0 pe esquerdo.

Hoje a noite, depois da sopa, irei ao Ka-Be.

Ka-Be e a sigla do Krankenbau, a enfermaria. Oito Bloeos,iguais aos do Campo, porem isolados por uma cerca de aramefarpado. Eles contem constantemente urn decimo da lota~aodo Campo; poucos,. porem, param la mais de duas semanas eninguem mais de dois meses: nesse prazo a regra e ficar bornou morrer. Quem tende a ficar born, e curado no Ka-Be; quemtende a piorar, do Ka Be e mandado as camaras de gas.

Tudo isso porque n6s, por sorte, pertencemos it categoriados "judeus economicamente uteis".

Nunca estive no Ka-Be; nem no Ambulat6rio. Aqui, tudoe novidade para mim.

Os Ambulat6rios sao dois: Medico e Cirurgico. A. frenteda porta, no noite e no vento, estao duas longas filas de som-bras. Alguns necessitam apenas de urn curativo ou de urncomprimido, outros pedem visita medica; ha os que tern a mor-te na cara. Os primeiros das duas filas ja estao descal~os eprontos para entrar; os demais, it medida que se aproxima a suaveZj dao urn jeito para, no meio da gente, soltarem os cordoes eos arames dos sapatos e para tirarem, sem rasga-Ios, os preciosospanos para os pes; nao cedo demais, para nao ficarem inutil-mente descal~os no barro; nao muito tarde, para nao perderema vez, ja que entrar de sapatos no Ka-Be e rigorosamente proibi-do. Quem cuida para que a proibi~ao seja respeitada e urngigantesco INiftling frances que mora na casinhola entre asportas dos dois ambulat6rios. :e urn dos poucos funciomlriosfranceses do Campo; passar 0 dia entre sapatos barrentos eesfarrapados nao e pequeno privilegio. Basta pensar em q:"dntosentram no Ka~Be de sapatos, e saem sem precisar mais deles.

Quando chega a minha vez, consigo milagrollamente tiraros sapatos e os panos sem perder nem uns nem outros, semdeixar que me seja roubada a gamela nem as luvas, e semperder 0 equilibria, embora sempre segurando na mao a bone,que, dentro dos Bloeos, nao se pode manter na cabe~a par moti-vo algum.

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l~nlrego os sapatos no dep6sito e reuro 0 correspondenten 'Ibo; logo,. descalr,:o e claudicante, as maos ocupadas comt ldu as minhas pobres eoisas que nao posso largar em parte"lKlIma, sou admitido no interior e paro atnis de outra fila, que( rmlnn na sala de visitas.

Nesta fila, a gente se despe poueo a poueo; antes de ehe-HUI', cleve··se ficar nu, para que urn enfermeiro nos ponha 0

t I'In6mctro sob a axila; se alguem ainda esta vestido, perde seuturn e volta aD fim da fila. A temperatura e tomada alod , uincla que tenham vindo por causa de sarna ou de dord dentes. Assim, sabe-se que quem naoestiver seriamented Cnte nao se submetera pOI' eapricho a este complicado ritual.

Chega, pOI' fim, minha vez: sou admitido Ii frente de urnm6Jico; 0 enfermeiro retira 0 termometro e me apresenta: -Nummer 174.417, kein Fieber (sem febre). - Para mim, naoII neoessidade de urn exame minucioso; de imediato sou declao

I'ud Arztvormelder, que nao sei 0 que quer dizer, e este nao.Jugar onde pedir esclarecimentos. Mandam-me embora, re-

'upero os sapatos e volto ao Bloco.Chaim congratula-se comigo: tenho uma boa ferida, ela

Ouo parece perigosa e me gamnte urn periodo razoavel de. des-canso. Passarei a noite no Bloco com os demais; amanha, porem,m vez de ir ao trabalho, deverei reapresentar-me aos medicos

para a visita definitiva: Arztvormelder signifiea isso. Chaimt m pratica destas coisas e aeha provavel que amanha eu sejaudmitido ao Ka-Be. Chaim e 0 meu companheiro de cama;tcnho absoluta confianc;a. Ele e polones, judeu devoto, estudio-so da Lei.. Tern mais ou menos a minha idade; e relojoeiro eaqui na fabrica trabalha como medinico de precisao; e umdos poucos, portanto, que man tern a dignidade e a autoconfian-yU de quem pratiea uma arte para a qual esta preparado.

Assim e. Depois da alvorada e da distribuir;ao do pao, souchamado junto com mais tres do meu Bloeo. Levam-nos a urncanto da Prar;a da Chamada, onde ja espera uma longa fila,lodos os Arztvormelder de hoje; logo aparece urn sujeito que metira gamela, colher, bone e luvas. as demais riem: eu nao sabiaque devia esconde-Ios, au confhi-Ios a alguem, au, melhor quetudo, vende-los? Nao sabia· que no Ka-Be e proibido leva-los?

Logo olham meu numero e meneiam a cabeya: de alguem comnumero tao alto, pode-se esperar qualquer tolice.

Contam-nos, mandani despir-nos, fora, no frio, tiram-nosas sapatos,contam-nos novamente, raspam-nos barba, caber,:a epelos, contam-nos mais uma vez, fazem-nos tomar ducha; logov~m urn SS, olha-nos di.splicente, detem-se a frente de um com-panheiro que tern uma volumosa hidrocele, manda que fique aparte. Mais uma vez nos contam, mais uma vez nos dao umaducha, apesar de estarmos molhados ainda da anterior e dehaver entre nos quem t~rite de ·febre.

Agora, sim, estamos prontos para a visita defiriitiva. Pelajanela, vejo 0 ceu claro e, por momentos, 0 sol; neste pais, pode-se olhar direto para· 0 sol, atrav~s dasnuvens, como atravesde um vidro opaco. Julgando pela sua posiyao, deve ter passadodas duas da tarde. Sopa, adeus! Estamos de pe ha dez horase nus ha seis..

Esta segunda visita medica e tamMm rapidissima. 0 medi-co veste roupa listrada como n6s, mas, por cima, um guarda-pobranco, C01!l seu numero costurado, e est a bem mais gordo doque n6s ..Ele olha e apalpa meu pe inchado e sangrento, arran-cando-me urn grito de dor; logo diz: - Aufgenommen (aceito),Bloco 23.

Fico ati de boea aberta, it espera de. maiores escIarecimen-tos, mas alguem puxa-me bruscamente para tras, joga-me urnabrigo nas costas, entrega-me umas sanda lias e me manda parafora.

A uns cem metros esta 0 Bloco 23; leio Schonungsblock,quem sabe 0 .que quer dizer. Dentro, tiram-me 0 abrigo e assandalias; mais uma vez, encontro-me nu e ultimo de uma filade esqueietos nus: os que baixafam hoje.

Ra muito tempo que parei de ten tar eompreender. Quantoa mim, estou tao cansado de me agiientar no pe ferido e -aindanao medicado, tao enregelado e faminto, que ja nao ligo paranada. 0 dia de hoje bem pode ser meu ultimo, e estasala, asala de~ua) tocloJ11.UililQ.hla,_edai? Oue...e...qu.e...ey'-paae:ti!I faze.tL..Q~..11Q_!!1~S.rn~:.~Q.~~~~~.:~Jt~.PJlred_e.,- {eehar.Hos_olbJ~....~~rm: ..

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o meu vizinho nao parece judeu. Nao e circuncidado,e,aMm disso,· ja aprendi que uma pele tao clara, urn rosto taolargo, um corpo tao espadaudo sao tipicos dos poloneses naojudeus. Ele e uma cabe~a mais alto do que eu, mas tem fei~srazoavelmente cordiais, como s6 as tern os que nao padecemfu~. .

Tento perguntar-lhe se sabe quando e que nos deixaraoentrar. Ele se vira para 0 enfermeiro, que tern identico tipofisico e que esta fun;tando num canto; falam, riem juntos semme responder, como se eu nem estivesse ali; logo, urn delespega 0 meu bra~o, olha 0 nUmero, e entao os dois riem maisalto. Todo mundo sabe que "os 174.000" sac os judeus itaHa-nos: os bem conhecidos judeus itaHanos, que chegaram ha doismeses, todos. advogados, todos doutores, eram mais de cern ehi sao apenas quarenta; os que nao sabem trabalhar, os quese deixam roubar 0 pao, os que apanham da manha ate a noite;os alemaes cham am-nos "zwei Linke Hande" (duas maos es-querdas); ate os prisioneiros poloneses desprezam-nos porquenao sabemos falar iidiche.

o enfermeiro aponta as minhas coste1as ao outro, comose eu fosse urn cadaver na sala de anatomia; mostra as palpe-bras, as faces inchadas, 0 pescoc;:ofino; inclina-se, faz pressaocom 0 dedo em minha canela, indicando a profunda cavidadeque 0 dedo deixa na palida carne, como se fosse. cera.

Desejaria nao ter falado ao polones; parece-me que nuncasafri, na minha vida toda, insulto pior. 0 enfermeiro acabousua demonstrac;:ao, em sua lingua que nao entendo· e que mesoa terrivel; dirige-se a mim e, em quase-alemao, compassiva·mente, fornece-me uma sintese: - Du Jude kaputt. Du schnellKrematorium fertig. (Tu judeu liquidado, tu em breve cremato-rio, acabado).

minhas doenc;:as.Um monte de perguntas, para que? Tudoissoe uma compHcadissima farsa para rir de n6s. E este seria um'hospital onde mandam a gente ficar de pe, nu, p,ara fazer-Iheperguntas?

Por fim, a porta abre-se tan'lbempara mim; ~ posso entrarno dormit6rio. .

Aqui tambem, como em toda parte, beliches de tres ania-res, em tres filasem todo 0 Bloco, separadas par tres estreitissi-mos corredores. As camas sao cento e cinqiienta, os doen~esuns duzentos e cinqiierita:' portanto,· dois na maioria d.as camas.Os das camas superiores, apertados contra 0 teto, malpodemsentar; debrucram-se curiosos para olhar os recem-chegados, e 0

momento mais interessante do dia, topa-se.sempre com algumconhecido. Eu fui destinado a cama 10. MUagre! Esta vazia.Espicho-me voluptuosamente; e a primeira vez, desde que estouno Campo, que teriho uma cama s6 para mim. Apesar da fome,adorme~o.

A vida no Ka-Be e vida no limbo. Os sofrimentos materiaisnao sao muitos, a nao ser a fome e os ligados as doen~as. Naofaz frio, nao se trabalha, e - desde que nao se incorra emalguma faIta grave - nao se apanha.

A alvorada e as quatro tambem para os doentes. A gentetem -que arrumar a cama e lavar-se, mas nno hli muita pressanem rigor. As cinco e meia, distribuicrao de pao; pode-se cortaro pao sossegadamente, em £inas fatias, e come-lo em paz, dei-tados na cama; pode-se dormir nova mente ate 0 meio-dia, horada distribuic;:ao da sopa. Ate as quatro da tarde, Mittagsruhe,sesta; a essa hora, freqiientemente ha visita medica e curativos,devemos descer dos beliches, tirar a camisa e entrar na fila.Tambem 0 rancho da noite e distribufdo junto as camas, ap6so que, as nove, apagam-se todas as luzes, a nao ser a lampadavelada do guarda; e e 0 silencio.Passaram algumas horas mais ate quetodos os doentes

fossem admitidos, recebessem a sua camisa e fosse preenchidaa sua ficha. Eu, como sempre, fui 0 ultimo; urn sujeito de rou-pa listrada bem novinha perguntou onde e que nasci, qual erao meu trabalho quando "civil", se tinha filhos, quais foram as

Pela primeira vez desde que estoll no Campo, a alvoradapega-me no meio de urn sono profundo; acordar e regressar donada. Na hora da distribuic;:ao do pao ouve-se ao longe, no ar

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Guro, a banda de musica que come~a a toear; sao as campa-nhoiros ,sadios que saem,. formados, para a trabalho.

Aqui no Ka-Be mal se ouve a musica; chega-nos constan·t , mon6tono, 0 martelar do-bumbo e dos prates, mas nesta tex·hlri\ as frases musicais desenham-se s6 par momentos, ao capri·'11 do vento. Entreolhamo-nos de uma cama a outra; sentimoslodo~ que essa musica e infernal. As musicas sao poucas, talvezIImu duzia, cada dia as mesmas, de manha e it noite: marchas

cnn90es populares caras a todo alemao. Etas estao gravadasIII n ssas mentes: serao a ultima coisa do Campo a ser esqu.e·'Idu: sao a voz do Campo, a expressao sensorial de sua geom~-

t rI 'U ~oucura, da determinalYao dos Qutros em nllls aniquilar,prhnclro, como seres humanos, para depois matar-nos ..J.~nta·111 nle.

Ao ecoar essa musica, sabemos que os companheiros, l~I )rIl, on bruma, partem marchando como automatos; suas almas

III mortas e a musica substitui a vontade deles; leva-os como() V nto leva as folhas secas. Ja nao existe vontade; cada pulsa-I; q l rna-se passo, contralYaOreflexa dos musculos destruidos.() I lllllmaes conseguira~ll p~ioneir~, uma u~1 llqll na nzenta;_~taQ_p'rogramados, nio-p.etlS.a...m,nao que-I' 111. Marcham.

No mllrcha de saida e na de regresso, nunca faltam as, ••'. 011 m podeiia negar-Ihes 0 direito de assistir a essa corea-WllrJlIque eles criaram, it dan\;a dos homens apagados, pelotao'Ill) P I tao, voltando e indo em dire\;ao it bruma? Que provaHili 'onereta de vit6ria?

'I'llmbem os do Ka-Be conhecem esse ir e voltar do traba-IIllt, u hipnose do ritII).o interminavel que mata 0 pensamentoI ••IIIhOlu a dor; passaram pOl' isso, passarao por isso outra vez.1.111 pr"j 0, porem; sairmos do encantamento, ouvirmos a musi-III II f ra, assim como a ouviamos no Ka-Be e como agora,•• ('J( Y nd , a recrio em minha lembran\;a, depois da liberta\;aO,till I' n Illcimento (ja sem Ihe obedecer, sem lhe ceder), para)111'1' b 'I'm S 0 que ela era; para compreendermos por qualdl I h rlld motive os alemaes criaram esse ritual monstruoso,

f10" qllll, sinda hoje, quando a memoria nos restitui algumatit II in cntes canc;6es, 0 sangue gela em nossas veias e temos

consciencia de que regressar de Auschwitz nao foi pequenasorte.

Tenho dois vizinhos de beliche. Jazem, dia e noHe, ladoa lado, pele contra pele, entrela9ados como os Peixes do zodia-co, de modo que cada urn deles tern os pes do outro ao ladoda cabe\;a.

Um deles e Walter Bonn, holandes educado e de certacultura. El~ repara que nao tenho c6m que cortar 0 pao, em-presta-me a faca e logo propoe troca-Ia por .ra\;aO de pao.Regateio 0 prec;o; acabo desistindo, penso que aqui no Ka-Besempre vou consgguir alguma emprestada, e fora daqui as facascustam apenas urn terc;o de rac;ao. Nem por isso Walter seabstem da sua cortesia, e, ao meio-dia, depois de tomar a sopa,lambe a colher (0 que e conveniente antes de empresta-Ia, paraIimpa-Ia e para nao desperdic;ar os restinhos de sopa aindaaderentes), e, espontaneamente, a oferece.

- Qual e a tua doen\;a, Walter?- Korperschwiiche - esgotamento organico. B a pior das

doen\;as: ela nao tern cura; e extremamente perigoso entrar noKa-Be com este diagn6stico. Nao fosse 0 edema dos tornozelos(e ele os mostra) que Ihe impede' de ir ao trabalho, nunca teriapedido baixa.

Quanto· a esse tipo de perigos, ainda. tenho ideias confus.as.Todos falam nisso indiretamente, por alus6es; se pergunto,olham-me e calam.

£ verdade, entao, 0 que se ouve dizer, de selec;6es, de gas,de forno crematorio?

Crematorio. 0 outro, 0 vizinho de Walter, acorda sobres-saltado, endireita-se: quem fala em crematorio? Que e que ha?Nao podemdeixar· a .gente dormir em paz? Ele e urn judeupolones, albino, com um rosto magro e benevolo; ja paSSOl!dajuventude. Chama~se Schmulek, e ferreiro. Walter, brevemen··te, 0 informa.

Der Italeyner naoacredita nas sele90es? Schmulek esfor-c;a-se por falar alemao, mas fala iidiche; tao grande, porem, ea sua ansiaevidente de f.azer-se compreender, que, bem

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tHl InuI, compl'eendo. Faz Walter calar com um gesto; cabe aele me convencer.

- Me mostra t~u numero. Tu es 174.517. Esta numera-craocomecrou ha dezoito meses e vale para Auschwitz e os Cam-pos que dele dependem. N6s somos, agora, dez mil aqui emBuna-Monowitz; uns trinta mil, talvez, entre Auschwitz e Bir-kenau. Wo sind die Andere? Onde estao os outros?

- Talvez transferidos para outros Campos ...Schmulek abana a cabecra, diz a Walter: - Er will nix

"erstayen - ele nao quer compreender.

Estava escrito, porem, que em breve eu entenderia, e as~xpensas do mesmo Schmulek. A noite, abriu-se a porta do Bloco,uma voz gritou: Achtung! (Atencrao!). - Todo barulho ces-sou, fez-se urn silencio de morte.

Entraram dois SS (urn dos quais cheio de galoes, seria urnoficia1?); ouviam-se seus passos no Bloco, como se este estives-se vazio. Falaram com 0 medico-chefe, este mostrou urn regis-lro, apontando uma outra anotacrao. 0 oficial tomou nota numacademeta. Schmulek toea-me urn joelho: - Pass'au!, pass'au!- cuidado!

o oficial, seguido pelo medico, passa em silencio, displi-cente, entre os beliches. Tern urn chicote na mao, da uma chi-cotada numa ponta de cobertor que pende de uma cama alta;o doente apressa-se a ajeita-Ia. 0 oficial· prossegue.

Outro doente tern a cara amarela; 0 oficial arranca-lhe oscobertores, apalpa-Ihe 0 ventre, diz: - Gut, gut -'- e vaiadiante.

Ai esta: deitou 0 olhar em Schmulek; pega a cademeta,controla 0 numero da cama e 0 da tatuagem. Eu, da cama decima, posso enxergar muito bem. Fez uma cruzinha ao lado donumero de Schmulek. Depois, prossegue.

Olho para Schmulek e, atras, dele, vejo 0 olhar de Walter;nao pergunto mais nada.

No dia seguinte, em vez do grupo habitual dos que tive-ram alta, saem dois grupos diferentes. Os primeiros foram

barbeados e tosquiados e tomaram ducha. Os outros sairamassim como estavam, barbudos, sem fazer curativo, sem ducha.Ninguem se despediu deles, ninguem Ihes deu recados paraos companheiros saos.

Neste grupo estava Schmulek.Assim, de urn modo discreto, sossegado, sem ostentacrao,

sem c6lera, pelos Blocos do Ka-Be, cada dia, vai a Marte, etoea este au aquele. Quando Schmulek foi embora, deixou-mea faca e a colher; Walter e eu evitamos olhar-nos e ficamos umtempo em silencio. Logo Walter me perguntotl' como e que euconsigo conservar tanto tempo a minha racrao de pao; esclare-ceu que ele costuma cortar a dele ao comprido, para ter fatiasmais largas e passar melhor a margarina.

Walter me explica muitas coisas: Schonungsblock significaBloco de Descanso, aqui s6 tern doentes sem gravidade ouconvalescentes, ou que nao precisam de trata'mento. Entre eles,ao menos uns cinqiienta disentericos.

Estes sao controlados a cada tres dias. POem-se em fila nocorredor; no fim, M duas bacias de folha e 0 enferrneiro, comregistro, rel6gio e lapis. Os doentes apresentam-se dais a dais Q

tern que mostrar, ali e imediatamente, que a diarreia continua;dispoem, exatarnente, de urn minuto, ap6s 0 qual exibemresultado ao enfermeiro, que olha e julga; lavam depressa asbacias numa cuba a isso destinada, e js vern as seguintes.

Entre os que esperam, ha os que se retorcem no esfor~de reter 0 precioso testemunho ainda vinte, ainda dez minutos;outros, sem recursos nesse instante, forcram veias e musculos noempenho oposto. 0 enfermeiro assiste, impassivel, mordiscandoa lapis; um olhar ao rel6gio, outro as amostras que the vao sendoapresentadas. Nos casos duvidosos, leva a bacia ao medico P0l'll

que a examine.Rec~bi uma visita: e 0 Piero Sonnino, de Roma. - VIII

como. 0 tapeei? - Piero tern uma enterite bem leve, mas () II

aqui M vinte dias, gosta, descansa e engorda, nem Jiga plll'U

as selecroes e resolveu ficar no Ka-Be ate 0 fim do invcrllo,custe 0 que custar. Seu metodo e 0 de colocar-se na fila utrde um disenterico autentico, que apresente garantia de exito,

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. no hora H, pedir sua colabora~ao (a ser remunerada com paoII com sopa). Se 0 camarada concorda e 0 enfermeiro se des-

'ulda por urn instante, Piero· troca as bacias, aproveitando essa·onfu.sao de gente, e pronto. Bern sabt:: 0 risco que corre, mas,

1116 agora, sempre se saiu bem.

A vida do Ka-Be, porem, nao e essa. Nao esta rios instantes'nJ iais das sele~'6es, nem nos episodios grotescos dos controlesde diarreia e piolhos, nem nas proprias doen9as.

~P.O--1Lv.t:e..J s riment ICO. Por isso,quc!!l. a.!.~d~ p.0s~uLum. germe.Ae consciencia. recupera essa'on ciencia; por isso!. .!10seterno~Aias vazios, a gem.t~fuLfalaIIpcna~a.e.·Jome.e ·de3ii15.~lfiQ.;:._cheg.amo,~considerar co~n06 transformaram, 0~nto )).Q.sjiraram,..;Q.~~

Nosto G.Be: paren1ese de relativa paz, aprendemos que anossa personalidade corre maior perigo que a pr6pria vida. Osnllligos sabios. em vez de exortar: "Lembra-te que vais morrer",d1ivcriam ter recorda do este outro maior perigo que nos amea-Yll. Se, do interior do Campo. uma mensagem tivesse podidoWltSf ate os homens livres. deveria ter sido esta: procuremII 0 aceitar em seus lares 0 que aqui nos e imposto.

Quando se trabalha, se sofre, nao ha tempo de pensar; nos-~ lares sac menos que uma lembran9a. Aqui, porem, 0 teplpon08SO; de beliche para beliche, apesar da proibi9ao. nos visi-

llllno e falamos. falamos. 0 Bloco de madeira, apinhado dehumanidade sofredora, esta cheio de palavras. de lembran~as. de uma dor diferente. Heimweh, chama-se em alemao essad r. Burna palavrabonita; signifiea "dor do lar".

Sabemos de onde viemos; as lembran9as do mundo def l"Il povoam nossos sonhos e nossas vigilias; percebemos comn sombro que naoesquecemos nada;cada lembran9a evocadar oasce a nossa frente, dolorosamente nftida.

Nao sabemos, porem, para onde vamos. Talvez sobreviva-mos as doen9as e escapemos as sele90es. talvez agiientemos 0

lrnbalho e a fome que nos consomem, mas, e depois? Aqui,longc (por enquanto) das blasfemias e das pancadas, podemosl'lltornar dentro de nos mesmos e refletir, e torna-se elaro,enHio,

que voltaremos. Viajamos ate aqMi nos vagoes chumbados; vi-mos partir rumo ao nada nossas mulheres e nossas crianrras;n6s, feito escrav6s. marchamos cem vezes, Ida e volta, para anossa fadiga, apagados na alma antes que pela motte anonima.Nao voltaremos. Ninguem deve sair daqui; poderia levar aomundo, junto com a marea gravada na carne. a ma 'novadaquilo que, em Auschwitz, 0 homem chegou a fazer do homem.

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o homem que sai do Ka-Be, porem, nu e, em geral, aindanao hem curado, sente-se jogado nas trevas e no gelo do espa~osideral. As cal~as caern, os sapatos. apeitam, a camisa nao ternbotoes. Ele procura umcontato humano, e todos the viram ascostas. E inerme, vuhieravel como lima crian~a recem-nascida,mas no dia seguinte devera marehar rumo ao trabalho.

:E nessas condi~oes que eu me encontro, quando 0 enfer-meiro, ap6s os rituais administrativos de praxe, me entrega aoscuidados do Blockiiltester, do responsavel pelo Bloco 45.De repente, uma lembran~a me alvoro~a: tive sorte, e 0 Bloeode Alberto!

Alberto e 0 meu melhor amigo. Temapenas vinte e doisanos (dois menos que eu), mas nenhum de n6s, italianos, reve-Iou eapacidade de adapta~ao semelhante a dele. Alberto en-trou no Campo de cabe~a erguida e vive no Campo Heso, inte-gro. Foi 0 primeiro a compreender que esta vida e uma guerra;nao fez concess6es a si mesmo, nao perdeu tempo com reer!-mina~6es ou compadecendo-se de si p.r6prioe dos outros; foia luta desde 0 primeiro dia. Ajudam-no sua inteligencia e suointui~ao; raciocina e acerta; as vezes nao raciocina, e ~eertfltambem. Percebe tudo num instante; fala apenas urn pouco dofrances, mas compreende 0 que the dizem alemaes e poloneses.Responde em italiano e, com gestos, se faz compreender e 8'

torna simpatico a todos. Luta pela vida, mas e amigo de todos."Sabe" quem subornar, quem evitar, quem podera mover-se beompaixao, a quem se deve resistir.

Apesar de tudo, ele nao mudou, e e por isso que, aindohoje, a sua eara lembranl;a continua tao perto de mim. Semprvi nele, e alnda vejo, 0 simbolo raro do homem forte e bom,contra 0 qual nada podem as armas da noite.

Nao· consegui licen~a para dormir na cama dele, e ncmele conseguiu, apesar de gozar ja de certa popularidade noBIoco 45. E uma lastima, porque ter urn eompanheiro de earn I

no qual eonfiar ou, ao menos, com 0 qual se entender, represcn-ta vantagem inestimavel; e, alem disso, ainda estamos no inv'rno, as noites sao longas, e ja que devemos compartilhar su 1',

cheiro e calor com alguem, debaixo do mesma cobertor e nUlII

Depois de vinte dias de Ka-Be, minha ferida sarou e tive altacom grande pesar.

A cerimonia e simples, mas implica num doloroso e peri-goso periodo de readaptacrao. Quem nao dispoe de protetores,.saindo do Ka-Be nao volta ao Bloco e ao Kommando anterior,mas e destin ado, na base de criterios que -desconher;o; a outroBloeo qualquer e encaminhado a outro trabalho. Tern mais:do Ka·Be a gente sai nu; recehe nova roupa e novos sapatos(novos! Quero dizer, njio os mesmos que se deixou ao entrar),deve-se agir, rapida e :atentamente, para adapta·los a sua pes-soa, 0 que implica trabalho e despesas. Deve-se arranjar nova-mente faca e colher; por fim, e isto e 0 mais grave, encontr~-seestranho num meio desconhecido, entre companheiros nuncavistos adtes e hostis, com chefes dos quais se descobre 0 caratere dos quais, porUmto, e dificil cuidar-se.

A capacidade humana de cavar-se uma toca, de criar umacasca, de erguer ao redor de si uma tenue barreira defensiva,ainda que em circunstancias aparentemente desesperadas, eespantosa e mereceria urn estudo profundo. Trata-se de urn pre-cioso trabalho de adapta~ao, parte passivo e inconsciente, parteativo: cravar urn prego no· beliche para pendurar os sapatos, anoite; ajustar tacitos acordos de nao-agressao com os vizinhos;intuir e aceitar os habitos e leis peculia res do Kommando edo Bloco. Gra~as a esse trabalho, depois de umas semanasconsegue-se alcancrar certo equilibria, certo grau de seguranl;afrente aos imprevistos; o· ninho esta feito, 0 trauma da mu-dancra foi superado.

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t JlIIl(O de setenta centimetros" ao menos que se trate de urnIII

/jllClt'da notumo e todas as luzes se apagam definitivamente. S6ll{)S resta despir-nos e deitar.

r~ inverno, as noites sao longas e temos mais tempo para11111'111 r,

/\ 'olma-se, pouco a pouco, a agitac;:aodo BIoco; faz maisel. II lru que acabou a distribuic;:ao do rancho notumo, e s6ulKIII\ obstinados insistem em raspar 0 fundo, ja lustroso, da

nlll Ill, revirando-a minuciosamente debaixo da lampada, fran-'I II 10 u testa, atentos. 0 engenheiro Kardos vai de beliche emhi I 'h , faZiendo curativos nos pes feridos e nos calos inflama-dll ; seu neg6cio, nao ha quem nao renuncie de boa von-Illd 0 uma fatia de pao, desde que the seja aliviado 0 tormentotill llllgns encardidas, que sangram a cada passo durantelodo 0 din, Desse modo, honestamente, 0 engenheiro Kardos re-Illy II problema da vida.

I' 10 portinhola traseira, as escondidas e olhando cauteloso'Ill Vllltu, ntra 0 cantador. Senta no beliche de Wachsmann, efOHn Junln- e 80 redor dele uma turminha atenta e silenciosa. Ele11111111 limo intcrminavel raps6dia iidiche, sempre igual, em qua-,1111 lmodus, de uma melancoHa tesignada e penetrante (ou tal-VI '/. jll ossim que a lembre, s6 porque a ouvi naquela'hora eIIUlJU I Jugar?), Pelas poucas palavras que compreendo, pareceIIUlII lilly' que ele mesmo compos sobre a vida do Campo em

I II 11\ II r ' detalhes. Alguem, generosamente, gratifica 0 can-1111 ('lUll limo pitada de fumo ou com uma agulhada de Hnha;1111110 'ulom absortos, mas nao dao nada.

I) r p ote, ninda retumba 0 chamado para a ultima func;:aodll II u: Wer hat kaputt die Schuhe? (Quem tern sapatos11111) • • jt1 se dcsencadeia a barulheira dos quarenta ou cin-q I III I II plrnnt s a troca, que se precipitam rumo ao Tages-11111/1/ lllllllli orrldu muluea: bem sabem que s6 os primeirosdrt, III III Ihor d s easos, serao atendidos.

1)11'1) u Os cg , A luz se apaga uma primeira vez,IIIll' 1111!III 'YoUIlt! 6, parll avisar os alfaiates que guardem 0

I II j' II VIII 0 (/ 11111 lIulhfl; log toea 0 sino ao 'longe, entra 0

Nao sei quem e 0 meu vizinho; nem posso estar segurodo que seja sempre a mesma pessoa, porque nunca the vi a. .nara, a nao ser pOl' uns instantes no tumulto da alvorada; muitomelhor. do que :a cara, conhec;:o-lhe0 dorso e os pes. Ele naotl'abalha no meu Kommando e vem para 0 beliche s6 na horade dormir; enrola-se no cobertor, el,1lpurra-rnede lado com urngolpe de seu quadril magro, vira-me as costas e ja comeya aroncar. Dorso contra dorso, esforc;:o-mepor conquistar uma8uperficie razoavel do colchao; com os rins fa90 pressao pro-gressiva contra os rins dele; logo me viro e procuro empurrarCOmos joelhos, pego nos seus, tornozelos e tento ·ajeita-Ios urnpouco mais longe, de modo a nao ter seus pes na. minha cara;tudo e inutil, porern; ele e bem mais pesado do que eu e nosono parece que virou pedra.

Entao dou um jeito para deitar assim, im6vel, com metade·do corpo pOl' cima da borda de madeira, Estou tao cansado,porem, tao atordoado, que em breve eu tambem mergulho nosono, e parece·me dormir em cima dos trilhos~

o trem esta por chegar: ouve-se ofegar a locomotiva -e a locomotiva e 0 meu vizinho. Ainda nao estou tao adorme-cido que nao me de conta da dupla natureza. da locomotiva.£ essa rnesma que, hoje na fabriea, rebocava os vag6es quetivemos de descarregar; reconhec;:o-aporque, agora tambem, co-mo quando passou ao nosso lado, percebo 0 calor que se irra-dia de seu negro flanco. Arfa, cada vez mais perto; ja vem. porcima de rnim. " e nunea chega. 0 meu sono e leve, leve comourn veu; posso rasga-Io quando quero. Quero, sim, para sairde cima dos trilhos. Pronto: estou acordado. Nao bem aeordado;s6 um poueo,' entre a insensibilidade e a consciencia. Tenhoos olhos fechados; hao quero abri-los, nao, para que 0 sononao fuja de mim, nias ouc;:oos ruidos: este apito ao longe eusei que e de verdade, nao e da locornotiva do sonho. f. 0 apitodo trenzinho da fabriea, que trabalha dia e noite. Urna longanota firme, logo outra, mais baixa de urn semitom, logo a pri-rneira nota de novo, mas curta, truncada, Esse apito e impor-

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o homem que sai do Ka-Be, porem, nu e, em geral, aindanao hem curado, sente-se jogado nas trevas e no gelD do espa~osideral. As caleras caem, os sapatos. apertam, a camisa nao tern:botoes. Ele procura urn ·contato humano, e todos the viram ascostas. f: inerme, vulnenlvel como lIma crianera recem-nascida,mas no dia seguinte devera marehar rumo ao trabalho .

.f: nessas condi~oes que eu me encontro, quando 0 enfer-meiro, ap6s os rituais administrativos de praxe,me entrega aoscuidados do Blockiiltester, do responsavel pelo Bloco 45.De repente, uma lembran~a me alvoro~a: tive sorte, e 0 Blocode Alberto!

Alberto e 0 meu melhor amigo. Temapenas vinte e doisanos (dois menos que eu), mas nenhum de n6s, italianos, reve-Iou capacidade de adapta~iio setnelhante a dele. Alberto en-trou no Campo de cabeera erguida e vive no Campo Heso, inte-gro. Foi 0 primeiro a eompreender que esta vida e uma guerra;nao fez eoneess6es a si mesmo, nao perdeu tempo com reeri-minaeroes ou eompadecendo-se de si p.r6prioe dos outros; foiit luta des&~0 primeiro dia. Ajudam-no sua inteligencia e suaintuierao; raciocina e aeerta; as vezes nao raciocina, e acertatambem. Percebe tudo num instante; fala apenas urn poueo defrances, mas compreende 0 que the dizem alemaes e poloneses.Responde em italiano e, com gestos, se faz compreender e setorna simpatico a todos. Luta pela vida, mas e amigo de todos."Sabe" quem subornar, quem evitar, quem podera mover-se acompaixao, a quem se deve resistir.

Apesar de tudo, ele nao mudou, e e por isso que, aindahoje, a sua cara lembranera continua tao perto de mim. Semprevi nele, e ainda vejo, 0 simbolo raro do homem forte e born,contra 0 qual nada podem as armas da noite.

Nao· consegui lieen~a para dormir na eama dele, e nemele conseguiu, apesar de gozar ja de certa popularidade noBloeo 45. E uma lastima, porque ter urn companheiro de camano qual confiar ou, ao menos, com 0 qual se entender, represen-ta vantagem inestimavel; e, al6m disso, ainda estamos no inver-no, as noites sao longas, e ja que devemos compartilhar SUOf,

cheiro e calor com alguem, debaixo do mesmo cobertor e num

Depois de vinte dias de Ka-Be, minha ferida saroq e tive aItacom grande pesar.

A cerimonia e simples, mas implica num doloroso e peri-goso periodo de readapta~ao. Quem nao dispoe de protetores,.saindo do Ka-Be nao volta ao Bloco eao Kommando anterior,mas e destinado, na base de criterios que -desconhe~o; a outroBloeo qualquer e encaminhado a outro trabalho. Tern mais:do Ka-Be a gente sai nu; reeebe nova roupa e novos sapatos(novos! Quero dizer, n,ao os mesmos que se deixou ao entrar),deve-se agir, rapida e :atentamente, para adapta-los a sua pes-soa, 0 que implica trabalho e despesas. Deve-se arranjar nova-mente faca e colher; por fim, e isto IS 0 mais grave, encontr~-seestranho u"um meio desconhecido, entre eompanheiros nuncavistos adtes e hostis, com chefes dos quais se descobre 0 canltere dos quais, porhmto, IS dificil cuidar-se.

A capacidade humana de cavar-se uma toca, de criar umacasca, de erguer ao redor de si uma tenue barreira defensiva,ainda que em circunstancias aparentemente desesperadas, eespantosa e mereceria urn estudo profundo. Trata-se de urn pre-cioso trabalho de adapta~ao, parte passive e inconsciente, parteativo: cravar urn prego no· beliche para pendurar os sapatos, itnoite; ajustar hlcitos acordos de nao-agressao com os vizinhos;intuir e aceitar os habitos e leis peculiares· do Kommando edo Bloco. Gra~as a esse trabalho, depois de umas semanasconsegue-se alcan~ar certo equilibrio, certo grau de seguran<;afrente aos imprevist~s; o· ninho esta feito, 0 trauma da mu-dan~a foi superado.

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tante; e, de certo modo, essencial: tantas vezes ja 0 ouvimos,ligado ao sofrimento do trabalho e do Campo, que se tomouseu simbolo, evoca diretamente a ideia do Campo, assim comoacontece com certos cheiros, certas musicas.

Aqui eshl minha irma, e algum amigo (qual?), e muitasoutras pessoas. Todos me escutam, enquanto conto do apitoem tres notas, da cama dura, do vizinho que gostaria de empur-rar para o.lado, mas tenho medo de acorda-Io porque e maisforte que eu. Conto tambe.m a historia da nossa fome, e docontrole dos piolhos, e do Kapo que me deu urn soco no narize logo mandou que me lavasse porque sangrava. I! uma feUci-dade intema, fisica, inefavel, estar em minha casa, entre pes-s·oasamigas, e ter tanta coisa para cantar , mas bem me apercebo·de que e1es nao me escutam. Parecem indiferentes; falam entresi de outras coisas, como se eu nao estivesse. Minha Irma olhapara mim, levanta, vai embora em silencio.

Nasce enta~, dentro de mim, uma pima desolada, comocertas magoas da infiincia que ficam vagamente em nossa me-moria; uma dor nao temperada pelo sentido da reaUdade oua intromissao de circunstiincias estranhas, uma dor dessas quefazem chorar as crianc;as. Melhor, entao, que eu tome mais umavez It tona, que abra bem os olhos; preciso estar certo de queacordei, acordei mesmo.

o sonho esta na minha frente, ainda quentinho; eu. em-bora desperto, continuo, dentro, com essa angUstia do sonho;lembro, entao, que nao e um sonho qualquer; qu.e, desde quevivo aqui, ja 0 sonhei muitas vezes, com pequenas variantes deambiente e detalhes. Agora estou bem lucido, recordo tambemque ja contei 0 meu sonho a Alberto e que ele me confessouque esse e tambem 0 sonho dele e 0 sonho de muitos mais;talvez de todos. Por que? Por que 0 sofrimento de cada dia setraduz, constantemente, em nossos sonhos, na cena semprerepetida da narrac;ao que os outros nao escutam?

. " Enquanto medito assim, procuro aproveitar esse inter-valo de lucidez para tirar de cima de mim os farrapos de an-gustia da modorra anterior e garantir, talvez, a paz do proximosana. Sento no escuro, olho ao redor, aguc;o 0 ouvido.

Os companheiros dormem. Respiram, roncam, alguns sequeixam e falam. Muitos estalarn os labios e mexem os rnaxila-res. Sonham que comem; esse tambern e urn sonho de todos,um sonho cruel; quem criou 0 mito de Tantalo devia conhece-lo.Nao apenas se ve a comida; sente-se na mao, clara, concreta;percebe-se seu cheiro, gordo e penetrante; aproxirnarn-na den6s, ate tocar nossos llibios; logo sobrevem algum fato, cadavez diferente, e 0 ato se interrompe. Enta·o 0 sonho se dissolve,cinde-se em seus elementos, mas recompoe-se logo, recomec;a,semelhante e diverso; e, isso sem descanso, para. cada urn den6s, a cada noite enquanto a alvorada nao vem.

Devem ter passado as onze da noite, porque ja e freqiienteo vaivem ate 0 balde, ao lado do guarda. e urn obsceno tor-mento, uma vergonha indelevel. A cada duas, tres horas, temosque levan tar para despejar essa quantidade de ligua que duranteo dia devemos absorver, sob a forma de sopa, a fim de saciara fome; essa mesma ligua que a noite nos incha tomozelos eolhos, marcando' em todos as rostos uma semelhanc;a disfonne,e cuja eliminac;ao impoe aos rins um trabalho extenuante.

Nao se trata apenas da procissao ate 0 balde. A lei e queo ultimo a usar 0 balde va esvazii-lo na privada; a lei e, tam-bem, que it noite s6 se possa sair do Bloco de camisa ecerou-las, indicando previamente ao guarda 0 numero de matricula.Conseqiiencia: 0 guarda noturno procura poupar dessa tarefaseus amigos e patricios e os "proeminentes"; e mais: os maisvelhos do Campo ja tern sentidos tao aguc;ados, que, emboraficando em seus beliches, conseguem, milagrosamente, perce-ber (apenas pelo barulho das paredes do balde) se 0 Ifquidochegou ou nao 80 mvel perigoso,· e portanto conseguem, emgeral, evitar a tarefa. Os candidatos ao servic;o de esvaziar 0

balde sao poucos, em cada Bloco, enquanto os litros de llquidoa eliminar sao, no minimo, duzentos, de modo que 0 baldedeve ser esvaziado umas vinte vezes.

Em conc1usao: 0 risco e grave para n6s, inexperientes enao privilegiados. quando, a cada noite, a necessidade nos im-pele ate 0 balde. De repente, 0 guarda pula fora de seu canto,nos agarra, rabisca 0 nosso numero, nos entrega os tamancos

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('j 0 OOide e nos emp~rra para fora, na neve, tiritantes e saner.Ren~os.. Toc!l~nos arrastaroDOSate a latrina, com 0 balde batendoni.•pemas nuas, asquerosamente mama; tao cheio que, a cadaslAcudlida,alga transbordaem nossos pes. Par isso, embora at~refa seja Jlojenta, ainda e melhor que' toque a nos e nao aonosso companheiro de cama.

logios, preyer quase exatamente sua chegada. A hora do toqueda alvorada, que muda conforme as estac;oes mas que precedesempre, e muito, a aurora, toca insistentemente 0 sininho doCampo. Em cada Bloco, 0 guarda noturno acaba seu trabalho:liga as luzes, levanta-se, espregui!(a-se e pronuncia a condena-!(80 de cada dia: - Aufstehen! (Levanta) - ou, mais fre-qiientemente, em polones: - Wstawac!

Bern poucos sao os que ainda dormem quando e pronun-ciada essa palavra: a. dor desse instante 6 agu,da demais paraque, it sua aproxima~ao, nao se dissolva 0 sono mais profundo.o g!Jarda noturno bem sabe disso; nein precisa gritar em voz decomando, fala em voz baixa. e calma, sera logo ouvido eobedecido. .

A palavra estrangeira cai como urna pedra no fundo decada alma. "Levantar": a Husoria barreit'a dos cobertores quen-tinhos, 0 tenue involucro do sono; a evasao, embora tormen-tosa, da noite, desabam ao redor de nos; estamos irremediavel-mente despertos, expostos a ofensa, cruelmente nus e vulnera-veis. Vai comec;armais um dia igual aos outros, tao longo, que 0

seu termo 6 quase inconcebiveE quanta frio, quanta fome,quanto cansac;o nos separam, ainda, desse termo! Melhor con-centrar a aten!(ao-e 0 desejo na forminha de pao cinzento, que6 pequena, sim, mas que em breve sera nossa P:, durante cincominutos (at6 que a tivermos devorado), constituira tudo que alei deste lugar nos -permite possuir.

Ao Wstawac recornec;a 0 tumulto. De repente, 0 dormit6·rio inteiro entra numa atividade frenetica; cada urn sobe e des-ce pelo beliche, arruma a cama e ao mesmo tempo trata depor a roupa, de modo a nao perder de vista nenhum de seuspertences; 0 ar enche-se de po, andamos derttro de uma nuvemopaca; os mais rapidos abrem caminho as cotoveladas parachegar ao lavat6rio e a privada antes que se forme a fila. E jaentram em func;ao os garis, que empurram para fora todomundo,' aos gritos e as pancadas.

Arrumei a cama, botei a roupa. Desero ate 0 chao, ponhoos sapatos. Re~brem.-se as chagas dos pes. Mais urn dia come~a.

Assim. transcorrem as nossas noites. 0 sQnho de Tantaloe 0 sonho da narra~ao inserem-se num contexto de imagens.mais confusas: 0 sofrimento do dia, feito de fome, pancadas,frio, cansaero, medo e promiscuidade, transforma-se, a noite, em.pesadelos disformes -de inaudita violencia, como, na vida livre,s6 acontecem nas noiies de febre. Despertamos a cada instante,paralisados pelo terror, nUm estremecimento de todos os mem-bros, sob a impressiio de u\na ordem berrada por uma voz fu-riosa, numa lingua incompreensivel. A procissao do balde e 0

barulho dos nosso~ pes descal~os no assoalho transforniam-seem outra simb6licapro¢issao: somos nos, cinzentos e identicos,pequenos como fortnigas e altos ate as estrelas, comprimidosum contra outro, inumeraveis, por toda a planfcie ate 0 hori-zonte; fundidos, as ve:£t<s,numa unica substancia, numa massaangustiante na qual nos sentimospresos e sufocados;ou, asvezes, numa marcha em circulo, sem comec,;onem Hm, numaofuscante vertigem, numa mare de nausea que nos sobe ate agarganta; ate que a fome, 0 frio ou a bexiga cheia encaminhemos nossos sonhos dentro dos esquemas de sempre. Quando 0

pesadelo Illesmo, ou 0 incomodo nos despertam, tentamos emvao decifrar seus elementos, rechac,;a-Ios um por uin fora danOSSapercep~ao atual, para defender nosso sono da sua intro-missao; mas, logo que fechamos os olhos, percebemos novamen-te que 0 cerebro recomec;ou a trabalhar, independente da nossavontade; zune e martela, .sem descanso, constr6i fantasmas esignos terrfveis, sem parar oS' trac;a_e os agita numa nevoa cin-zenta na tela dos sonhos.

Enquanto dura a noite, potem, atraves desse constanteal!e.rnar-se de sono, vigHia e pesade1os, estao sempre presentesa espera e 0 terror do instante da alvorada. Graeras a essa fa-culdade misteriosa comum a muitos, podemos, embora sem reo

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Ao chegarmos it fabrica, conduziram-nos it Eisenrohreplatz,o descampado onde sao carregadcis OS canos de ferro, e logocomeyou a rotina. 0 Kapo repetiu a chamada, anotou, rapida-mente, os recem-chegados, acertou com 0 mestre civil 0 trabalhode hoje. Logo nos entregou ao capataz e foi dormir na chou-pana das ferramentas. Ele nao e urn Kapo que incomode, por-que nao e judeu e nao tern medo de perder seu lugar. 0 capatazdistribuiu as alavancas de ferro a n6s, e os cabrestantes a seusamigos; houve a pequena briga de praxe para nos apoderarmosdas alavancas mais leves, e hoje fui mal, a minha e essa meiotorta, que pesa seus bons quinze quilos. Ja sei que, ainda quea manuseasse sem levantar nada, ao cabo de meia horaestariamorto de cansa~o.

Depois fomos embqra, cada qual com a sua alavanca, cIau-dicando na neve que ia se derretendo. A cada passo, mais urnpouco de neve e barro grudava-se nas solas de madeira, ate queacabavamos caminhando vacilantes por cima de dois aglome-rados disformes, dos quais nao havia jeito de nos livrar. Ese,de repente, urn deles se soltava, era como se uma perna ficasseurn paJmo mais curta que a outra.

Hoje vamos desca:rregar do vagao urn enorme cilindro deferro fundido; parece-me urn cano para sfntese de gases; devepesar varias toneIadas. Melhor assim: a gente cansa menos li-

Na march a para 0 trabalho, vacilando sobre nossos taman-cos por cima da neve gelada, trocamos algumas· palavras.Resnyk e polones; morou vinte anos em Paris, mas fala urnfrances terrfvel. Tern trinta anos, porem, assim como cada urnde n6s, poderia aparentar entre dezessete e cinquenta. Contou-me a sua hist6ria e ja a esqueci; devia ser, por certo, uma his-t6ria dolorosa, comovedora, cruel, porque todas as nossas his-t6rias sac assim, centenas de milhares de hist6rias, cada umadiferente das demais e cada uma carregada de uma tragica, sur-preendente fatalidade. Contamo-nos essas hist6rias, uns aos ou-tros, a noite; hist6rias de fatos acontecidos ua Noruega, naItalia, na Argelia, na Ucrania, hist6rias simples e incompreensi-veis como as da Bfblia. Ou serao, acaso, hist6rias de uma novaBiblia?

Antes de Resnyk, ao rneu lado dormia urn polones cujo nomeninguem sabia; ele era calado e manso, tinha duas velhas feridasnas canelas e, a noite, exalava urn cheiro nauseabundo de doen-9a; era, ainda, debil de bexiga e ~cordava (e me acordava) oitoou dez vezes cada noite.

Uma tarde, entregou-me as luvas e baixou ao hospital. Du-rante ineia hora, esperei que 0 encarregado esquecesse que euficara sozinho em minha cami:l, mas, ja depois do toque desilencio, 0 beliche estremeceu e um sujeito comprido e verme-lho, com 0 nurnero dos franceses de Drancy,4 subiu ao rneu lado.

Ter urn companheiro de caina de aha estatura e urna des-graya: significa perder hotas de sono, e a rnim tocam semprecompanheiros altos, porque· sou baixinho, e dois cornprid6esnao cabern juntos numa cama. Vi logo, porern, que Resnyk,apesar disso, nao era mau companheiro. Falava pouco, e genti!-mente; era tirnpo, nao roncava, s6 levantava duas outres vezespor noite, e procurando nao incomodar. De manha, prontificou-se a arrurnar a cama (tarefa complicada, trabalhosa, que irnpli-caurna responsabi'lidade consideravel, ja que os que nao arru-mam direito a sua carna, os schlechte Bettenbauer, sac devida-mente punidos), arrumou·a bem e depressa, de maneira que mecausou certa fugaz alegria 0 fato que, mais tarde, na Praya daChamada, ele fosse agregado ao meu Kommando.

4 Em Draney, perto de Paris, os alemaes organizaram urn grande campoprovis6rio para os judeus eapturados na Fran<;a e destinados aos camposde exterminio. (No do T.)

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111111(10 III US grandes cargas do que com as pequenas. 0 tra-Illdb 1 rnnis repartido, recebem-se as ferramentas adequadas,"II 1111 um trabalho perigoso, nao da para se distrair: urn des·I II do .. II carga pode nos esmagar.

M 'slr Nogalla em pessoa, 0 capataz polones, rigido, serio,I III III 0, cuidou da tarefa de descarga. Agora 0 cano jaz no·I h~o M tre Nogalla diz: - Bohlen holen.

•. '110m -nos desfalecer. Isso significa "trazer dormentes",11111I IIrrnor, no barro mole, a trilha sobre a qual 0 cilindro vaiI I 1'lI1purrado com as alavancas ate a fabrica. Os dormentes

I I 10 IIfundados no chao e pesam oitenta quilos, 0 que repre-111111, muis ou'menos, 0 limite das nossas forc;:as. Os mais .ro-

bu 10 , trabalhan:do em pares, pod em transportar dormentes du-111111r1gumas horas. ·Para mim, isso e uma tortura. 0 peso es-Ill/II{ I-Jrl' 0 ombro; apos a primeira viagem, ja estou surdo e111I 0 • go pelo esforc;:o; cometeria qualquer covardia para evi-1111 tun I scgunda viagem,

T !llarei ficar em .parelha com Resnyk, que parece serIHlIll Irl1balhador e, alto como e, acabara agtientando a maiorPill I do peso, Bem sei 0 que vai acontecer: Resnyk recusara1'011\ d prczo e procurara juntar-se com outro sujeito robusto;

III 10, pedirei para ir aobanheiro e Ia ficarei enquanto puder;fOliO I nlutei me esconder, embora com a certeza de ser desco-III 1'10, scarnecida e surrado; tudo, porem, seramelhor que essehllhlliho.

Ao contraria, Resnyk aceita. E nao apenas isso: levanta0:1. nho 0 dormente, encosta-o em meu ombra direito, com cui-

11'ldo; logo levanta a outra· ponta, sustenta-a em seu ombro es-till rd ; partimos.

dormente tern tima crosta de neve e barro, it cada passoI ho 'II-se contra a minha orelha, a neve desliza no meu pescoc;:o.I) )10111 de uns cinqtienta metros, ja estou no limite do que umaII IIlurll pode agiientar; meus joelhos se dobram, 0 ombro d6iI'om so urn torniquete 0 apertasse,o equilibrio vacHa. A cadaJIll 0, barro segura meussapatos '- esse onipresente barro101011 , cujo mon6tono peso enche os nossos dias.

Mordo fundo ,meus labios; bem sabemos que provocar-selIllIlI p quena dor acessoria po de servir de estimulo para juntar

as extremas reservas de energia. Tambem os Kapos sabem disso;alguns deles nos surram par pura brutalidade; outros, porem,surram·nos quando estamos debaixo da carga quase carinhosa-mente, acompanhando os golpes com exortac;:6es e incitamentos,assim como fazem os carroceiros com seus esforc;:ados cavalos.

Chegamos ao cilindro, largamos 0 dormente, eu fico im6-vel, os olhos vazios, abaca aberta, as brac;:os pendentes, absortono extase efemero e negativo da cessac;:50 da dor. Numa brumade esgotamento, aguardo 0 empurrao que me o~rigara a reco-mec;:ar 0, trabalho, e tento aproveitar cad a segundo de esperapara recuperar alguma energia.

o empurrao nao chega. Resnyk toca·me 0 cotovelo; lenta-mente voltamos aos dormentes. La perambulam os outros, aospares, todos tentando demorar tanto quanto possivel antes desubmeter-se a nova carga.

- Allons, petit, attrape. (Vamos, rapazes: pega). - Destavez, 0 dormente e seco e um pouco mais leve, mas, no fim dasegunda viagem, apresento-me ao capahlz pedindo para ir aprivada.

Por sorte, a latrina e um tanto longe, 0 que nos permite,uma vez por dia, uma ausencia mais demorada, e, ainda, ja quee proibido ir Ia sozinhos, Wachsmann, 0 mais fraco e desajei-tado do Kommando; foi encarregado da func;:ao de Scheissbe-gleiter, acompanhador as latrinas. Wachsmann, por for9a dessanomeac;:ao, e responsavel _por nassas hipoteticas tentativas defuga (risiveis hipoteses!) e, mais realisticamente, por nossasdemoras.

Meu pe~ido foiaceito; encamip.ho-me, ncimeio do' barro.da neve e dos cacos de ferro; escoltado pelo pequeno Wachs-mann. Com ele nao ha jeito de se entender; porquenao. pos-suimos linguas em comum; seus companheiros, porem, disse-ram-me que e rabino, alias, Melamed, um dauto da Tora, e,ainda, em sua terra na Galicia, tinha fama de curandeiro. e tau-maturgo. Posso acreditar nisso, ja que,magrinho, fragil e mansecomo e, conseguiu trabalhar dois anos aqui, sem ficar doentee sem morrer, inflamado, pelo contrario, por u~a assombrosa

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vitalidade de olhares e de palavras; chega a passar longas horasnotumas discutindo questoes talmudicas, de modo para miminccmpreensivel, em iidiche e em hebraico, com Mendi, que erabino modernista.·

A latrina e urn oasis de paz. :£ uma latrina provis6ria, queos alemaes ainda nao equiparam com os tabiques de madeirahabituais para separar os varios setores: Nur fur Engliinder (sopara ingleses), Nur fur Polen (poloneses), Nur fur UkrainischeFr/Juen (mulheres ucranianas) e assim por diante, e, mais itparte, Nur fiir Haftlinge. No interior, lado a lado, estao senta-dos quatro Haftlinge esfomeados, urn velho barbudo, operariorusso com a faixa azul OST no bra~o esquerdo, um rapaz po-lones, com um grande P branco no peito e nas costas, um pri-sioneiro de guerra ingles, de rosto rnaravilhO$amente r6seo e bar-beado, a farda caqui reluzente, bem passada e limpa, a nao sera grande marca nas costas: KG (l(riegsgefangener, prisioneirode guerra). Urn quinto Haftling esta naportae, a cada pessoaque entra desafivelando 0 cinto, pergunta, paciente e monotone:- Etes-vous franfais?

Quando volto ao trabalho, vejo passar os caminhOes do·rancho, 0 que significa que sao dez horas; ja e algUma coisa,o intervalo do meio·dia ja se vislumbra nas brunias do futuroe isso nos da for~a.

Ainda fa~o duas ou tres viagens com Resnyk, sempre ten-tando achar dormentes mais leves, ate em pilhas afastadas, masos melhores· ja forain levados, s6 re~tam os outros, medonhos,de cantos cortantes, carregados de barro e de gelo ou com tra·vessas de ferro encravadas, onde encaixar os trilhos.

Quando: Franz vem chamar Wachsmann para que va reti-rar 0 rancho ·com ele, quer dizer que· sac onze horas, que aimanha quase acabou. Ninguem quer pensar na tarde .. Depois,as onze e meia, o·ranchochega; e vem as perguntas de sempre,qual e a quantidade da sopa, hoje, e como ela e, e se nos tocouda superficie ou dofundo do panelao; 'eu meesf6r~ por naofazer essas perguntas, mas nao posso evitar de agu~ar avida-mente 0 ouvido as respostas e oo1£ato tl fuma~a que 0 ventonos traz da cozinha.

E por fim, como urn meteoro celeste, sobre-humano e im-pessoal como urn sinal divino, soa 0 apito do meio·dia, aten-dendo aos nossos cansac;:os,nossas fomes anonimas e identicas. E,rnais uma vez, as coisas de sempre: corrernos para a barraca,formamos fila estendendo as gamelas, todos temos uma urgen-cia animal de despejar em nossas visceras a quente mistura;ninguem, porem, quer ser 0 primeiro, porque toca ao primeiroa ra~ao mais liquida. Como sempre, 0 Kapo debocha de n6s,insulta-nos por causa da nossa voracidade e nem pensa em re-mexer na sopa, porque 0 fundo espesso ficara para ele. Logovem a beatitude da barriga cheia, quente, no calor do barracoao redor da estufa barulhenta. Os que fumam, com gestos ava-ros e devotos, enrolam urn Magro cigarro; as roupas, umidas debarro e de neve, fumegam na frente da estufa, com cheiro decani! e rebanho.

Uma tacita convenc;:aoManda que ninguem fale; num mi·nuto, todos dormem, sentados lado a lado; por mornentos ca·beceiam para a frente e logo se endireitam, enrijecendo 0 lom-boo Por tras das palpebras recem-fechadas, brotam violentamen-te os sonhos, os sonhos de sempre.· De estar em nossa casa,numa prodigiosa banheira quente. De estar em casa, sentados itmesa. De estar em casa, narrando este nosso trabalho sem es-peran~a) esta fome de sempre, este sono de escravos.

Logo, no meio dos vapores das torpes digestoes, condensa-se umnucleo odoloroso, e nos punge, e cresce ate transpor 0 li-miar da consciencia, e nos tira a felicidade do sono.· Es wirdbald ein Uhr .sein, e quase uma hora. Como urn cancer rapidoe voraz, isso acaba com nosso sono e nos esmaga numa ang6stiaantecipada; aguc;:amos0 ouvido ao vento assobiando Ia fora, aneve zunindo na vidra~a, es wird schnell ein Uhr sein, jli vaiser urna hora. Enquanto cada urn lie aferra ao sono para quenao 0 abandone, todos nossos sentidos estao tensos no pavordo sinal que esta por vir, que ja esta no 'umbral da porta, quechega ...

Aqui esta. Uma pancada na vidra~a, Mestre NogaUa atirouuma bola de neve, espera de pe, rigido, Iii fora, segura 0 relo-gio com 0 mostrador it vista. 0 Kapo levaiJ.ta, espregui~a·se,

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diz - em voz baixa, bem sabe que nao precisa gritar para serf1tendido: - Alles heraus - todos para fora.

Poder chorar! Poder enfrentar 0 vento como antigamente,de igual pal"a igual,nao como vermes ocos sem alma!

Estamos fora. Cada qual retoma a sua alavanca. ResnykI'otrai a eabe9a entre os ombros, calea 0 bone at~ as orelhas,

Iha para 0 ceu baixo' e cinzento de onde redemoinha a nevelmpiedosa: - Si j'avey une chien, je ne le chasse pas dehors.(So tivesse urn caehorro, nao 0 mandaria para fora.)

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.'A convic~ao de que a vida tem um objetivo esta enraizada emcada fibra' do homem; c;uma caracteristica da substancia hu-mana. Os homens livres,'dao a esse objetivo varios nomes, emuitos pensam e discutem quanta a' sua natureza. Para n6s, aquestao IS mais simples.

Hoje, e aqui, 0 nosso objetivo IS agiientarmos ate a prima-vera. No momento,' nao pensamos em outra coisa. Depoisdesse objetivo nao ha, pOl' enquanto, outro. De manha, quando,formados na Pra~a da Chamada, esperamos longamente pelahora de irmos ao trabalho, e cada sopro de ventro penetra pOl'baixo da roupa e corre em arrepios pOI'nossos corpos indefesos,e tudo ao redor e·de cor cinza, e n6s tambem somos cinzentos;de manha, quando ainda esta escuro, todos esqul.)drinhamos 0

ceu ao nascente, a espera dos primeiros sinais da primavera,e cada dia comenta-se 0 levan tar do sol - hoje urn pouco antesdo que ontem, hoje umpouco mais quente; em dois meses,rium mes, 0 frio abrandara, teremos um inimigo a menos.

Hoje, pela primeira vez, o sol nasceu vivo e nftido pOl'cima do horizonte de lama. E um sol polones, frio, branco elongfnquo, esquenta apenas a pele, mas, quando se libertou dasultimas .brumas, um sussurro correu pela nossa palida multidao,e quando eu' tambem senti sua tepidez atraves da roupa, com-preendi como e que se pode adoral' 0 sol.

- Das Schlimmste is! voriiber - diz Ziegler, erguendono solos magros ombros: 0 pior ja passou. Ao nosso lado estliurn grupo de gregos, esses admiraveis e terriveis judeus Salo-niki, teimosos, ladroes. ferozes e solidarios, tao decididos a con-

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tinuar vivendo e tao implacaveis na luta pela vida; esses gregosque prevaleceram, nas cozinhas e na fabrica, e que ate os ale-maes respeitam e os poloneses temem. Estao em seu terceiro anade Campo, ninguem melhor do que eles sabe 0 que e 0 Campo;agora, reunidos em circul0, ombro a ombro, cantam uma dessassuas cantilenas sem fim.

Fellcio, 0 grego, me conhece: - L'annee prochaine a famaison! (No anb proximo, para casal) - grita-me, e acres-centa - ... a la maison par la cheminee! (para casa, pas-sando pela chamine!) - 0 FeHcio esteve em Birkenau. E elescontinuam cantando, sapateando, iriebriando-se de can~6es.

Quando, por fim, saimos pelo grande portal do Campo, 0sol ja estava bastante alto e 0 ceu sereno. Viam-se ao suI asmontanhas;no poente, familiar e absurdo, 0 campanario deAuschwitz (aqui, urn campanario!) e ao redor 0 cerco dos ba-loes cativos. Os vapores da fabrica estagnavam no ar frio; via-se tambem uma serie de baixas colinas, verdes de bosques, e avista nos apertou 0 cora9ao; todos sabemos que aquilo e Bir-ken au, que 18 acabaram as nossas mulheres, que em breve nostambem acabaremos Ili; so que nao estamos acostumados ave-lo.

Pela primeira vez, nos demos conta de que, para os ladosda estrada, aqui tambem a campina e verde. Quando nao has(;)l,onde esbi 0 verde dos campos?. A fabrica, essa nao: a fabrica e desesperadamente, essen-

cialmente cinzenta e opaca. Este emaranhado sem fi'm de ferro,cimento, fuma~ e lama e a nega9ao da beleza. Suas ruas, seusedificios chamam-se como nos, com letras ou numeros, ou comnomes inumanos e sinistros. Dentro da sua cerca nao cresce urnfio de grama; a terra esta saturada dos residuos toxicas decarvao e petrol eo, nao ha nada vivo, a nao ser as maquinas eo·sescravos; mais vivas aquelas do que estes.

A fabrica e grande como uma cidade: Ali trabalham, alemdos chefes e tecnicos alemaes, quarenta mil estrangeiros; falam-se quinze au vinte Hnguas. Todos os estrangeiros moram nosvarios Campos proximos: 0 Campo dos prisioneiros ingleses, 0

Campo das mulheres ucranianas, 0 Campo dos voluntarios fran-ceses, e outros Campos que nao conhecemos. S6 " nosso Campo

(ludenlager, Vernichtungslager, Kazett) fornece dez mil truhlllhadores, vindos de todas as na96es da Europa, e nos somos ()escravos dos escravos, que todos podem comandar, '.e 0 n II

nome e 0 numero que levamos, tatuado no bra90 e costurntlllno peito.

A Torre do Carbureto, que se eleva no mcioda fabriclIcujo topo raramente se enxerga na bruma, fomos nos qu .1construimos. Seus tijolos foram chamados Ziegel, briques, I,'gula, cegli, kamenny, bricks. teglak, e foi 0 6dio que os .mentou; 0 odio e a discordia, como a Torre de Babel, e as III

a chamamos: Babelturm,· Babelturm, e odiamos nela 0 sonhodemente de grandeza dos nossos patroes, seu desprezo. de D II

e dos homens, de nos homens. .E, ainda uma vez, hoje, como na antiga lenda, nos t do

percebemos (e os mesmos alemaes 0 percebem) que uma mnldi~ao - nao transcendente e divina, mas imanente. e hist6r1clI-.:.. pende sobre essa insolente estrutura, fundada na confu 0

das Iinguagens e erguida a desafiar 0 ceu, como uma blasf8m nde pedra.

Da fabrica da Buna, que custou aos alemaes quatro anode trabalho, e na qual nos sofremos e morremos inumeravnunca saiu nem urn quito de borracha sintetica.

Hoje, porem, as p09as d'agua, por cill)a das quais trcnllllllurn veu iridescente de petr6leo, refletem 0 ceu sereno. COl\O•caibros, caldeiras, ainda frios do gelD da noite, gotejam orvolho.A terra revolvida das es.cavac;6es,as pilhas de carvao, os blo('ode cimento exalam numa leve nevoa a umidade do inverno,

Hoje e urn dia bom. Olhamos ao redor, como cegos qllrecuperaram a visao, e nos entreolhamos. Nunca nos vfrolllono sol! Alguem sorri. Se nao fosse pela fome ...

Porque assim e a natureza humana: as penas pad '111simultaneamente nilo se somam em nossa sensibilidade; ocultlllllse, as menores atras das maiores, conforme uma lei de prlOldades· hem definida. Isso e providencial, e nos permite v v I

no Campo. E e esse 0 motivo pelo qual ouve-se dizer, amhul ,na vida livre, que 0 homem e incontentaveI. Realmente, /1\11

que de incapacidade humana para urn estado de bem-estar Ih 11

luto, trata-se de conhecimento insuficiente da complexidadt .10

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tudo de desgra~a; as suas causas (que sao multiplas, e hierar-ql!icamente dispostas), da-se apenas urn nome, 0 da causa maior,It que esta eventualmente chegue a cessar, e entao nos assom-hl'l dolorosamente a constata~ao de que atras dessa havia outra,\111111 crie de outras.

Portanto, acabado a frio, que durante todo 0 inverno nospilI' 'ciu a unic.o inimigo, demo-nos cont~/de ter fome, e, vol-1111\<1 uo mesmo erro, hoje repetimos: -'- Se nao fosse por essat 11111 ••• .

mo poderiamos pensar em nao ter fome? 0 CamEo eII IOH\'; n6s mesmos somas a fome, uma fame viva. --

Al'm da estrada, trabalha uma escayadeira. A sua concha.'I plll!)l1 nos cabos, escancara suas mandibulas dentadas, paira

11111 II tuute, como hesitando na escolha, de repente arre'meteIlllth'lI u terra mole e argilosa, abocanha avida, enquanto da1I11II ni urn' jato satisfeito de fuma~a branca e densa. Logo'

11111111 U 1 vantar, da urn quarto de volta, despeja a presa queI IIlVII'IIrrcgando, e' recome~a.

Apoludos em nossas pas, othamos fascinados. A cada ,mor-II ,11\ d, HCflvadeiraentreabrem-se as bocas, os pomos-de-adao

11111111 d 'scem, miseramente ,visiveis por baixo da pele frouxa.N II I'lln guimos renunciar EtO espetaculo do banquete da es-

IWlld'lll. .

:; ~\ I 'm dezessete anos e mais fome que todos, embora aIlItllI flU I •.'ccba urn pouco de sopa de seu ..protetor, presumi-

11111' Ill, 1111 dcsinteressado. Come~ou falando de sua casa em, 11111, { d sua mae; logo descamhou para a tema da comida;

"11111 ~ 0111 t scm parar a hist6ria de nao sei qual jantar deIIIlJlIII I mbra, com sincero pesar, que nao acabou seu ter-111111 JlllIlll d s po de feijao. Todos mandam que cate a boca,t III II ~I pu lUll dez minutos e ja Bela nos descreve a sua cam- .I' 1111 hUll 111'11, • os milharais, e uma receita para cozinhar po-" 1111 dill • 'om liB cspigas torrad!1s, 0 toucinho, as especiarias,

j 4lllluldic;oudo, iusultado, e mais outro. come~a aI 11111111

1'lIllIU II 1I0S!)U Carne e fraca! Eu me dou conta perfeita-III I Ii il, qlllllliO Nfl viis essas fantasias de fame, mas nao con-

II 11I1I1IH \I III du lei comum, dan~a na frente de meus olhos

o macarrao que tfnhamos recem-cozinhado, Yanda, Luciana,Franco e eu, na Halia, no campoprovis6rio, quando, de repente~soubemos que no dia seguinte viriamos para ca; estavamos co-mendo a massa (tao gostosa, amarela, no ponto) e paramos,burros, insensatos: se soubessemos! Se isso acontecesse outravez ... Absurdo: se neste mundo existe algo certo, e que nuncamais isso nos acontecera.

Fischer, 0 recem-chegado, tira do bolso urn pacotinho. em-brulhado com essa meticulosidade dos hUngaros; derl'tro ha meiarac,:aode pao: a metade do pao desta manha. £ sabido que s6Os "numeros grandes" guardam no bolso seu pao: ninguemde n6s, veteranos, esta em condi<;oes de guardar 0 pao duranteuma hora. Circulam varias teorias para justificar essa nossaincapacidade: 0 pao comido pouco a pouco nao e assimiladototaln:ente; a tensao nervosa pecessaria para conservar 0 pao,sem fmcar-lhe 0 dente apesar da fome, prejudica· e enfraquecea gente; 0 piio dormido perderapidamente seu valor alimenti-cio, de modo que quanta antes se come, mais resulta nutritivo;Alberto diz que a fome e 0 pao no bolsa sac somat6rios de sinalcontrario, que se elidem automaticamente e nao podem coexis-tir na mesma pessoa; a maiaria, enfim, afirma com razao queo estomago e 0 cofre mais seguro contra roubos e extorsoes. -Moi, on m'a jamais vole mon pain! (ninguem, nunca roubouo mei.l pao!) - rosna David, dando umas pancadinhas na con~cavidade de seu estomago, mas nao pode tirar os olhos deFischer que mastiga lento e met6dico, do "felizardo" que aindapossui meia ras:ao as dez horas da manha: - Sacre veinard,va! (Esse rabudo danado!)

Nilo e apenas por causa do sol que hoje e dia de alegria:ao. meio-dia nos espera urna surpresa. Alem do rancho normalda manha, encontramos no Bloco um fabutoso panelao de cin-.qiienta .litros, desses da cozinha da fabrica, quase cheio. Tem-pler olha triunfante para n6s: foi ete que arranjou.

Templer e 0 "faz-tudo" oficial do nosso Kommando: paraa sopa dos trabalhadores externos tem uma sensibilidade raracomo as abelhas para as flores. 0 nosso Kapo, que nao e mau:deixa-Ihe toda iniciativa, e com razilo: Templer se vai, atras depistas imperceptiveis, como um sabujo, e volta com a preciosa

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nodcia de que os operarios poloneses do Metanol, a dois qui-lometros daqui, deixaram quarenta litros de sopa porque estavaazeda, ou que um vagao de nabos ficou sem guarda no desviomorto da cozinha .da fabrica.

Hoje os litros sao cinqiienta e n6s quinze, inclusive 0 Kapoe 0 capataz. Tres litros por cabe~a: um ao meio-dia, atem dorancho normal, e, quanto aos outros dois, iremo~ por tumosao galpao, a tarde; gozaremos, excepcionalmente, de cinco mi-nutos de folga para encher a barriga.

Que mais poderiamos desejar? Ate 0 trabalho parece leve,hoje, frente a perspectiva dos dois litros espessos e quentesque nos esperam no galpao. De vez em quando, 0 Kapo passaentre n6s e chama: - Wer hat noch zu fressen? (Quemdeve comer ainda?)

Realmente, fressen nao e bem "comer". "Comer" IS comercomo gente, seJ.1l.tadosa mesa, religiosamente: IS essen. Fressene comer como bichos, mas 0 Kapo nao fala assim por escarnio.Comer assim, de pe, a toda a pressa~ prendendo 0 folego, quei-mando-nos boea e garganta, e, realmente, fressen; e esta a pa-lavra certa, a que costumamos dizer.

Mestre Nogalla observa e fecha os olhos as nossas ausen-cias do trabalho. Ele tambem parece ter fome; se nao fosse pelasconveniencias sociais, talvez aceitasse um litro da nossa quentemistura. .

Chega a vez de Templer, ao qual, com voto unanime,foram reservados cinco litros bem espessos, retirados do fundodo paneliio - ja que Templer, atem de campeiio do "jeito", eum incrivel comedor de sopa e tem a singular habilidade deesvaziar 0 intestino, voluntaria e antecipadamente, antes de umacomilan~, 0 que contribui para a sua assombrosa capacidadegastrica. -

Desse seu dom ele e, com razao, orgulhoso, e todo 0 mundoesta a par dele, inclusive Mestre Nogalla. Acompanhado pelagratidao de todos, 0 benfeitor Templer fecha-se uns instantes naprivada, sai radiante e pronto, encaminha-se, entre a geral -be-nevolencia, para aproveitar a fruto de sua obra: - Nu, Tem--pier, hast du Platz genug fiir die Suppe gemacht? (Como e,Templer, arranjaste lugar para a sopa?)

Aopor~do·sol, toca a sire~ado -Feierabend, do fim do tra-balho, e, ja que todos estamos fartos (ao menos por algumashoras), nao ha brigas, sentimo-nos bem-dispostos, 0 Kapo naotem vontade de espancar-nos, conseguimos pensar em nossasmaes e em nossas mulheres, 0 que raramente acontece. Durantealgumas horas, podemos ser infelizes it maneira dos homenslivres.

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AQUEM DO BEM E DO MAL

de modo que em questao de minutos 0 Campo soube da imi-nencia da Wiischetauschen e, de mais a mais, que desta veztratava-se de camisas novas, provenientes de urn transporte dehungaros chegado tres dias antes.

A noticia teve imediata repercussao. Todos os detentoresilegais de segundas camisas, roubadas ou arranjadas ou ate ho-nestamente compradas em troca de pao para abrigar-se do frioou para investir capital num momenta de prosperi dade, preci-pitaram-se ate a Bolsa, esperando chegar a tempo para trocar acamisa de reserva por generos alimenticios, ant~s que a ava-lancha de camisas novas, ou a certeza da sua chegada, fizessem

~

cair irreparavelmente a cota~ao do artigo.A Bolsa e sempre muito ativa. Embora cada troca (alias,

cada especie de posse) seja expressamente proibida, e freqiien-tes batidas de Kapos ou Chefes de BIoco ponham a correr mer-cadores, clientes e curiosos, no canto nordeste do Campo (e secompreende: e 0 canto mais afastado dos alojamentos dos SS),logo que os grupos voltam do trabalho, ha sempre urn ajunta-mento excitado - no verao, ao ar livre; no inverno, num doslavatorios.

Vagam aqui, as dezenas; de labios entreabertos e olhosalucinados, as desesperados de fome, que urn instinto· falaz levaonde as mercadorias expostas tornam mais aguda a mordida doestomago e mais ativa a saliva~ao.· Estao munidos, no melhordos casos, da miseravel meia ra~ao de pao que, com esfor~odoloroso, pouparam desde a manha, na absurda esperan~a deque apare~a a pechincha de uma troca vantajosa com algumingenuo que nao esteja a par das cota~6es do dia. Alguns deles,com paciencia feroz, compram, por essa meia ra~ao, urn litrode sopa e logo, distanciando-se dos demais, deJa pescam ospoucos peda~os de. batata- do fundo; logo, trocam outra vez asopa pelo pao, e 0 pao por mais urn litro a ser "desnatado",e assim por diante, ate a exaustao dos nervos ou ate que urndos prejudicados as apanhe com as maos na massa e lhes deuma boa li~ao, expondo-os ao vexame publico. Pertencem itmesma categoria os que vem it Bolsa para vender a sua unicacamisa. Bern sabem 0 que vai acontecer urn desses dias, quandoo Kapo se der conta de que sob 0 casaco eles estao nus. 0 Kapo

Tfnhamos uma tendencia incorrigivel para ver em cada acon-tecimenio urn sinal e urn simbolo. Fazia ja setenta dias quedemorava a Wiischetauschen, a cerimonia da troca de roupa,e corria insistente 0 boato de que a roupa faitava porque, apro-ximando-se a frente de guerra, os alemaes nao podiam encami-nhar novos transportes ·para Auschwitz; "portanto", a liberta-980 estava proxima. Corria, paralelamente, 0 boato oposto: que

atraso na troca significava certamente a proxima total aniqui-la~ao do Campo. Peto contrario, a troca veio e, como sempre, adjre~iio do Campo cuidou para que se verificasse de repente,em todos os Blocos ao mesmo tempo.

Convem saber que no Campo nao ha tecido e que este eprecioso, 0 unico jeito de arranjar urn pano para limpar 0 narizu um trapo para enrolar os pes, e cortar fora urn peda~o deumisa noato da troca. Se a camisa tern mangas compridas,

corl.'1m-seas mangas; se nao, agente se contenta com urn retan-gulo da fralda, ou descose urn dos tantos remendos. Ainda'lUlsim,precisa-se de certo tempo para eonseguir agulha e linha\ executar a OperayaOcom capricho, de modo que 0 estrago naoI' • 'ulte muito evidente na ocasilio da entrega. A roupa suja eI'll gada vai, num monte, a Alfaiataria do Campo, onde e suma-rlumente consertada; logo a desinfecyao a vapor (nao a lava-H ml) e e novamente ciistribuida; dai, para salvar ~ roupa usadadus citadas mutila~6es, a necessidade de que as troc~as aconte-(,lUlll de repente.

Mas, como sempre, nao se pOde evitar que algum olharJ) 'rto penetrasse sob a Iona do carro que saia dadesinfeq:ao,

II '

"I iI

I

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perguntanl 0 que e que fizeram com a ,camisa - pergunta pura-mente ret6rica pro forma, s6 para abordar 0 assunto. Respon-deriio que a camisa foi roubada no lavat6rio; tambem esta res-posta e de praxe e nao tern a pretensao de ser acreditada; ateas pedras do Campo bem sabem que, noventa e nove vezes emcern, quem nao tern mais camisa vendeu-a por causa da fome,e que cada qual e responsavel pela sua camisa, porque elapertence ao Campo. Entao 0 Kapo dara uma surra neles, e logoeles receberao outra camisa e, urn dia ou outro,tornarao avende-la.

Os mercadores profissionais tern seu ponto na ,Bolsa, cadaurn em seu canto habitual; primeiros entre eles os gregos,' irn6-v~is e silenciosos como esfinges, acocorados atras das garnelasde sopa espessa, fruto de seu trabalho, de suas manipula~oese de sua solidariedade nacional. Os gregos ja estao reduzidosa pouquissimos; deram, ,porem" urna contribui~ao considenlvela fisionomia do Campo e a giria internacional que se fala nele.Todo 0 mundo sabe que caravana ea gamela; que La comederaes buena significa que a sopa esta gostosa; 0 vocabulo que ex-prime a ideia generica de furto e kLepsi-kLepsi, de evidente ori·gem grega. Esses poucos sobreviventes da colonia judia de Tes-salonica, de dupla linguagem, espanhola e helenica, e de mul-tiplas atividades, sao os depositarios de uma concreta, terrena,consciente sabedoria na qual confluem as tradi~oes de todas ascivi1iza~5es mediterraneas. 0 fato de que essa sabedoria se ma-nifesta, no, Campo, com a pratica sistematica e cientifica doroubo e da escalada aos cargos, e com 0 monop6lio da Bolsade trocas, nao deve fazer esquecer que a repulsa dos gregos abrutalidade inutil, a sua assombrosa consciencia de que aindasubsiste uma dignidade humana (ao menos, potencia!), .faz deleso nueleo nacional mais coerente do Campo e, sob esses aspectos,mais civilizado.

A gente pade achar na Bolsa os especialist8s em roubos nacozinha, com os casacos estofados por saliencias misteriosas.Enquanto para a sopa existe uma cota~ao praticamente estavel(meia ra~ao de pao por urn litro de sopa), a cota~ao donabo,das cenouras, das batatas e extremamente variavel e depende

muito de diferentes fatores, entre os quais a eficiencia e a ve-nalidade dos guardas de servi~o nos depositos.

Vende-se 0 Mahorca: 0 Mahorca e urn tabaco ordinarlo,com aspecto ,de lascas de 'madeira, oficialmente a venda na Can-

, (tina, em pacotinhos de cinqiienta gramas contra entrega debonus-premios,teoricamente distribuidos entre os melhores tra-balhadores da fabrica. Essa distribui~ao acontece irregularmen-te, com grande parcimonia e evidente injusti~a, de maneiraqueos bonus acabam, em: sua granfle maioria, diretamente ou porabuso de autoridade, nas'maos dos Kapos 0:11 dos ~"proeminen-tes"; circulam, porem, no mercado do Campo, funcionandcomo moeda, e seu valor e variavel, estritamente ligado as leida economia classica. " ' ,

Houve periodos nOs,quais pelos bonus-premiospagava-~'uma ra~ao de pao, logo,uma e urn quarto, ate ullia e urn terco;urn dia foi cotado a uma ra~ao e mehi;de repente, par U II

abastecimento do Mahorca it Qintina, e, privada de sua cob r, ,

tura,a moeda despencou ate urn quarto dera~ao. Houve d 10uma fase de aIta, devida a' um: motivo singular: a trocu III

guarnirrao no Frauenblock (Bloco das Mulheres) com a ch Hullllde ,urn contingente de robustas mo~as polonesas. 0 b 1111

premio yale para uma entrada'n'o Frauenblock (s6 para 'f III

nos,os e politicos; nao para os· judeus, QS quais, pOl.:cm. 11111

sofrem eom essa limita~ao); entao, os interessados tratarulll IIa~ambarcar todos os 'bonus disponiveis e a cota~ao sublu, 11111

nao por mtiito tempo.Entre os Hii/tlinge comuns, hem poueos procuram tl Mil

horea para fuma-lo pessoalfuetite; em geral, este sai do ('111111'1

e vai parar entre os trabalhador~s externos da fabricu. Ii· I

urn tipo de korribinacja muito comum: 0 Wi/tling, d JlO IIeconomizar de alguma manein. uma racaode pao, inv It'll I I

Mahorca, entra em contato, cautelosamente, com um "lll'llldlll"de fora, que compra 0 Mahorca pagando a vista, COlli 111\1

quantidade de pao superior a inicialmente investida. ) Ildlfl//come a margem de lucro e p5e novamente em ·1,.Clllll II

Ira~ao que sobra. Neg6cios desse tipo estabelecem urn I 1 II II

entre a economia intern a do Campo e a vida 011 III I II .11mundo exterior. Quando, casualmente, parou a di~ll'lhll ~ II .I

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fumo a popula~ao civil de Crac6via, 0 fato transpos a cerca dearame farpado que nos segregava do restodo mundo, provocandoum claro aumento da c~ta!rao do Mahorca e, portanto, dobonus-premio.

Esse caso foi 0 mitis esquematico, mas ha outros mais com-plexos. 0 Hiijtling ,compra, com Mahorca ou .com pao, ou con-segue de presente de ~m -trabalhador de fora, urn qualquer abo-minavel, rasgado, sujo farrapo de camisa, desde que providoainda de. tres furos por onde fazer passar, bem ou mal, os bra!rose a cabe~a. Se·o artigo mostra apenas sinais de uso, e nao cortesarbitnlrios; ele vale como camisa, no ato da Wiischetauschen,da troea de roupas, e da direito a troca; no pior dos casos, 0

portador podera receber uma dose adequada de pancadas, porter cuidado tao mal do vestuario regulamentar.

No interior do Campo, portanto, 11aO'ha grande diferen!ra,entre 0 valor de uma camisa que ainda mere!ra 0 nome de ·ca-misa, e 0 valor de um trapo cheio de remendos; 0 Hii/tlingsupracitado encontrara facilmente um companheiro possuidorde uma camisa em eondi!roes de ser eomercializada, mas sempoder aproveita-hi porque, por razoes de setor de trabalho, oude linguagem, ou deintrfnseca incapacidade, nao tem contatocom trabalhadores externos. Este, entao, se contentara com ·umamodesta quantidade de pao para fazer a troca, ja que a pr6ximaWiischetauschen tornara igual 0 valor das duas camisas, a boae a ruim, distribuindo totalmente ao acaso uma e outra. 0 pri-meiro Hii/tling, porem, podera contrabandear para a faQrica acamisa boa e vende-la ao trabalhador de antes (ou a outro qual-quer) por quatro, seis, ate dez ra!roes de pao. Essa margem taoelevada de lucro revela a gravidade do risco de sair do CampoCOmmais de uma camisa posta, ou de voltar sem·'C8!Jlisa.

Existem muitas varia!roes sobre este tema. Ha gente quenao vacHa em mandar extrair as coroas de Duro dos dentes paratroca-Ias na fabriea por pao ou tabaco; e mais comum, porem,que esse eomercio aconte!ra com a intermedia!rao de terceiros.Um "numero grande", ou seja, um reeem-ehegado, ja embru-tecido pela fome e pela extrema tensao da vida no Campo, enotado por um "numero pequeno", por sua valiosa protese den-taria. 0 "pequeno" oferece ao "grande" tres ou .quatro rar,;5es

de pao, a vista, para que se submeta a extra9ao. Se 0 "grande"aceita, 0 "pequeno" paga, leva 0 ouro a fabrica e, se estiver emcontato com um trabalhador externo de confian!ra, que naoinspire receio de dela!roes ou calotes, realizara um hicro de dez,ou ate vinte ou mais ra'roes, que the serao pagas poueo apoueo,uma ou duas por dia. :£ de ohservar q\.le; eontrariamente ao queaeonteee na fabrica, 0 valor maximo dos neg6cios feehadosdentro do Campo e de quatro ra!roes. de pao; aqui, seria prati-camente impossivel tanto estipular contratos a prazo, como pre-servar uma quantidade maior de plio da avidez albeia· e dapropria fome. '

\' 0 trafieo com os trabalhadoresexternos e um aspeeto ea-l racteristieo do Campo de Trahalho e determina a sua vidaeeonomica.Constitui, por outro lade, urn crime expressamenteprevisto pelo Regulamento do Campo, assimilado aos· crimes"politicos" e, portant6, severamente punido; 0 Hit/tling reuconvicto de Handel mit Zivilisten (comercio com civis), se naotiyer bons pistol5es, acaba em Gleiwitz III, em Janina, em Hei-debreck, nas minas ,de carvao, 0 que significa morte poresgo-tamento dentro de poueas semanas. E mais: 0 trabalhador ex-terno, seu cUI!'plice, pode ser denunciado' a competente autori-·dade alema e condenado a passar no Vernichtungslager .(Campode Exterminio), em condi90es analogas as nossas, um periodovariavel (pelo que sei) entre quinze dias e oito meses. Os ope-rarios sujeitos a essa especie de pimi!rao saodespidos na che-'gada, como. nos, mas suas roup as e objetos sao guardados numdep6sito es.pecial.Nao sao tatuados, nao sao raspados, de modoque se dife.renciam facilmente den6s; mas, durante toda a du-ra!rao da pena,sa6 suhmetido~ ao nosso trapalh9 e a nossa disci-plina .,.....com exee!rao, obvi!lmente, das sele!roes.. .

_Trabalham em Kommandos especiais, nao tem contato al-gum com os Hiijtlinge comuns. ~~s~ portanto, senao morrerem por esgotamento oudoen!ra, terao boas 'chances de re.tornar ao munao dos homens.Se pudessem eomunicar-se eonoseo, isso represeritaria uma bre-cha no muro que nos torna mortos para 0 mundo, e uma frestano misterio que reina entre os homens livres quanto as nossascondic;5es. p~os, 0 Campo nao e uma puni!rao; para J.!os nao

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es~!9J1m_~pmaSJ)_generG-d~sten-J!ia.~s .roi atributdo, sem limites de tel!!P_,?!._~entro~trutura socrafale~==-""--'~-- ' _

..."-~-~Uma se~iio do nosso Campo esta destinada, justamente, aos

trabalhadores extemos de todas as naeionalidades, que aU de-vem permanecer durante um tempo mais ou menos longo, paraexpiar suas liga~oes ilicitas com os Hii/tlinge. Essa se~ao estaseparada do resto do Campo por uma cerca de arame farpado;chama-se E lager (Campo E), e seus h6spedes chamam-se E-Hii/tUnge. "E" e a letra inicial de Erziehung, educa~o.

Todos os traficos ate agora mencionados baseiam-se nocontrabando de materiais pertencentes ao Campo. Por isso, osSS sa<?tao rigorosos ,ao reprimi-Ios: ate ~ ouro dos nossos den-tes e propriedade deles, porque, arraneado dos maxilares dosvivos ou dos mortos, cedo ou tarde acabara nas suas maos. :£natural, portanto, que se empenhem para que 0 ouro nao saiado Campo.

Contra 0 roubo em si, porem, a dire~ao do Campo nao tempreconceito algum. Prova-o 0 criterio d~ ampla conivencia dosSS com 0 contrabando inverso. '

Aqui a questao, em geral, e mais simples. Trata-se de rou-bar ou receptar algum dos variados utensilios, materiais, pro-dutos etc. com os quais lidamos diariamente 'na fabrica pormotivos de trabalho; introduzi-Io no Campo a noite, achar 0interessado e fazer a troea por pao ou' sopa. Esse trafico emuito ativo; quanto a certos artigos, ainda que necessarios avida no Campo, 0 rouba na fabrica e 0 11nicomeio regular deabastecimento. Casos tipicos, os das vassouras, da tinta, do fioeletrico, da graxa para sapatos.

Por exemplo, comOja dissemos, 0 Regulamento do Campoprescreve que ca,dli manha' os sapatos sejam engraxlidos e lus-trados, e todos os Chefes de Bloco saD responsaveis, gerante osSS, pelo cumprimento dessa norma por parte de ,seus homens.Seria de imaginar, portanto, que cada Bloco, reeebesse urn for-necimento 'peri6dico de graxa para sapatos, masnio: 0 meca-nistno IS DutrO.~onvem urna premissa: cada Bloco recebe a suasopa, a noite, numa quantidade urn tanto superior a soma dasra~s necess8rias; 0 que; sobrae repartido, conforme arbitrio

do Chefe do Bloco: parte entre seus amigos e protegidos, parteaos varredores, aos guarda~ noturnos, aos control adores de pio-Ihos e aos demais funciomirios e proeminentes" do Bloco. 0que ainda sobra (e a Chefe do Bloeo da sempre urn jeito paraque sabre) serve, justamente, para as compras.

Agora tudo esta claro: os Hiiftlinge que, na fabrica, encon-tram a maneira de encher a gamela com graxa ou oleo (au 0

que for: qualquer substancia escura e untuosa pode servir),chegando, it noite, ao campo, passam' por todos os Blocos ateencontrarem 0 chefe que esta sem graxa au que pretende au-mentar seu estoque. Alias, em geral cada Bloco tern seti fome-cedor habitual, com 0 qual foi acertadauma remunera~ao dia-ria, desde que ele forne~a a graxa cada vez que a reserva vaaeabando.

Cada noite, nas portas do Tagesriiume,5 esperam paeiente-mente os grupinhos dos fomecedores: de pe, durante horas,debaixo da ehuva ou da neve, discutem animadamente, em vozbaixa, quanto as varia~oes dos pre~os e ao, valor dos bonus-premios. De vez em quando, um deles se afasta para urna rapidavisitaa Boisa e volta com as ultimas noticias.

Alem dos artigos ja mencionados, ha outros, inumeraveis,que podem ser encontrados nS:fabrica e resultar uteis no Bloco,ou de agrado do chefe, 'ou de interesse dos "proeminentes".Lampadas, escovas, sabao comum au de barbear, limas, alicates,sacos, pregos; vende-se 0 alcool metilico, bom para fazer bebe-ragens, e a gasolina, que serve para rUsticos lampiOes, prodi-gios da industria secreta dos artesaos do Campo.

Nesta rede complicada de roubos e contra-roubos, alimen-tados pela surda hostilidade entre os comandos SS e as autori-clades civis da fabrica, uma fun~ao itnportantissima e exercidapela enfermaria (Ka-Be). 0 Ka-Be IS 0 ponto de menor resis-tencia, a saida por onde mais facilmente podem ser desobede-cidos os. regulamentos e bur1ada a vigilancia' dos chefes. Todossabem quesao os pr6prios enferrneiros que jogam de novo no

5 Tagesriiume: setores reservados 80S Kapas; ao lado dos dormit6riocomuns.