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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO JOSIANE RODRIGUES NEVES IL CIBO CALDO E I VISI AMICI: A MEMÓRIA ALIMENTAR NA NARRATIVA DE PRIMO LEVI RIO DE JANEIRO 2017

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Page 1: IL CIBO CALDO E I VISI AMICI: A MEMÓRIA ALIMENTAR NA … · do sobrevivente dos campos de concentração. Palavras-chave: 1. Primo Levi; 2. literatura italiana; 3. memória; 4. abundância;

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

JOSIANE RODRIGUES NEVES

IL CIBO CALDO E I VISI AMICI: A MEMÓRIA ALIMENTAR NA

NARRATIVA DE PRIMO LEVI

RIO DE JANEIRO

2017

Page 2: IL CIBO CALDO E I VISI AMICI: A MEMÓRIA ALIMENTAR NA … · do sobrevivente dos campos de concentração. Palavras-chave: 1. Primo Levi; 2. literatura italiana; 3. memória; 4. abundância;

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

JOSIANE RODRIGUES NEVES

IL CIBO CALDO E I VISI AMICI: A MEMÓRIA ALIMENTAR NA

NARRATIVA DE PRIMO LEVI

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de

Janeiro como quesito para a obtenção do Título

de Mestre em Letras Neolatinas (Línguas e

Culturas em Contato - Literatura Italiana)

Orientador: Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona

RIO DE JANEIRO

2017

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JOSIANE RODRIGUES NEVES

IL CIBO CALDO E I VISI AMICI: A MEMÓRIA ALIMENTAR NA

NARRATIVA DE PRIMO LEVI

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Línguas e Culturas em Contato/Literatura Italiana) Orientador: Prof. Dr. Fabiano dalla Bona

Data de Aprovação: _____ de ________________ de 2017.

________________________________________________

Presidente: Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona – UFRJ

________________________________________________

Profª. Drª. Sonia Cristina Reis – UFRJ

________________________________________________

Prof. Dr. Mauro Porru – UFBA

________________________________________________

Profª. Drª. Flora de Paoli Faria – UFRJ, Suplente

________________________________________________

Profª. Drª. Roberta Barni – USP, Suplente

RIO DE JANEIRO 2017

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RESUMO

NEVES, Josiane Rodrigues. “Il cibo caldo e i visi amici”: a memória alimentar na narrativa de Primo Levi. Rio de Janeiro, 2017. Dissertação (Mestre em Letras Neolatinas, área de concentração Línguas e Culturas em contato, opção Literatura de Língua Italiana) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

A presente Pesquisa de Dissertação de Mestrado investiga o tema da memória alimentar na narrativa de Primo Levi (1919-1987), tendo como corpus de análise Se questo è un uomo (1989), La Tregua (1989), I sommersi e i salvati (1991) – a chamada Trilogia do Lager-, além de Il Sistema Periodico (2005), Lilith e altri racconti (2005), Assim foi Auschwitz (2015) e A assimetria e a vida (2016). Dadas as várias referências em torno da comida e da ausência dela na obra leviana, busca-se verificar o modo como a questão da memória alimentar manifesta-se, em particular, na narrativa memorialística do escritor e químico italiano Primo Levi. Para isso, são utilizados como pressupostos teóricos conceitos sobre a memória forjados por Henry Bergson (1999), Maurice Halbwachs (2003), Paul Ricoeur (2007), Jacques Le Goff (1999), Tadié e Tadié (1997), dentre outros. Em seguida, parte-se para a análise das obras literárias, considerando as memórias atreladas à abundância alimentar e à fome. Por fim, busca-se estabelecer uma relação entre a fome e o desejo de narrar do sobrevivente dos campos de concentração.

Palavras-chave: 1. Primo Levi; 2. literatura italiana; 3. memória; 4. abundância; 5. fome

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ABSTRACT

NEVES, Josiane Rodrigues. Il cibo caldo e i visi amici: a memória alimentar na

narrativa de Primo Levi. Rio de Janeiro, 2017. Dissertação (Mestre em Letras

Neolatinas, área de concentração Línguas e Culturas em contato, opção Literatura

de Língua Italiana) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Rio de Janeiro, 2017.

This research dissertation studies the theme food memory in the Primo Levi (1919-1987)’s narratives. The corpus analyzed is If this a man (2003), The truce (2003), The drowned and the saved (1991) – called Trilogy of Auschwitz – besides The periodic table (2005), Moments of reprieve (2005), Assim foi Auschwitz (2015) and The blach hole of Auschwitz (2016). Given the various references around the food and her scarcity in the Levi’s literary oeuvre, this study verifies the mode as the question of the food memory manifests in the Levi’s narrative of Shoah. For this, it uses the concepts of the memory created by Henry Bergson (1999), Maurice Halbwachs (2003), Paul Ricoeur (2007), Jacques Le Goff (1999), Tadié and Tadié (1997) among others. Subsequently, it analysies the narratives, considering the memories linkend to the food abundance and the hungry. Finally, it establishes a relation the hungry and the desire to narrate of Auschwitz survivor.

Keywords: 1. Primo Levi; 2. Italian Literature; 3. Memory; 4. Abundance; 5. Hunger

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RIASSUNTO

NEVES, Josiane Rodrigues. Il cibo caldo e i visi amici: a memória alimentar na

narrativa de Primo Levi. Rio de Janeiro, 2017. Dissertação (Mestrado em Letras

Neolatinas) – Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

Questa ricerca studia la questione della memoria alimentare negli scritti di Primo Levi

(1919-1987), il cui corpus si concentra, soprattutto, su Se questo è un uomo (1989),

La Tregua (1989), I sommersi e i salvati (1991) – la cosidetta Trilogia del Lager-, oltre

a Il Sistema Periodico (2005), Lilith e altri racconti (2005), Così fu Auschwitz (2015) e

L'assimetria e la vita (2016). Verificati i numerosi riferimenti riguardo il cibo e la sua

assenza nell'opera leviana, si vuole verificare il modo in cui la questione della

memoria alimentare si manifesta, in particolare, nella narrativa memorialistica dello

scrittore e chimico italiano. Come pressuposti teorici vengono presi i concetti sulla

memoria forgiati da Henry Bergson (1999), Maurice Halbwachs (2003), Paul Ricoeur

(2007), Jacques Le Goff (1999), Tadié e Tadié (1997), tra altri. Dopodiché si fa

un'analisi delle opere letterarie in riferimento alle memorie legate all'abbondanza e la

fame. Alla fine si vuol stabilire un rapporto tra la fame e il desiderio di raccontare del

reduce del Lager,

Parole chiavi: 1. Primo Levi; 2. letteratura italiana; 3. memoria; 4. abbondanza; 5. fame

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DEDICATÓRIA

Dedico a Marta e Nelson Neves.

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AGRADECIMENTOS

A Deus por ter me confortado em meus momentos de angústia e por me

encorajar sempre;

A minha família por estar sempre ao meu lado. Em especial, ao meu irmão,

Mauro, que me proporcionou muitos momentos de alegria;

Aos meus queridos Evandro Souza e Rozinaldo Valetim, que me apoiaram

durante toda a minha caminhada e com quem mantive conversas enriquecedoras;

Ao meu orientador, Professor Doutor Fabiano Dalla Bona, pelo carinho, pela

compreensão, pelas conversas e, principalmente, pelo apoio em momentos cruciais

em meu caminho pelo saber;

À Professora Doutora Sonia Cristina Reis pelas orientações acadêmicas e

pelo incentivo constante;

À Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello pelas dicas valiosas e

pela disponibilidade de materiais;

À pesquisadora italiana Raffaela Di Castro, pela disponibilidade de materiais

relevantes a minha pesquisa;

À CAPES pela Bolsa de estudos que me proporcionou maior dedicação em

meus estudos.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 12

2 SOBRE O CONCEITO DE MEMÓRIA 16

3 I SOMMERSI E I SALVATI: UMA DIGRESSÃO

37

4 AS MEMÓRIAS DA ABUNDÂNCIA E DA FOME 55

4.1 AS MEMÓRIAS DA ABUNDÂNCIA 58

4.2 NOI SIAMO LA FAME VIVENTE: AS MEMÓRIAS DA FOME 72

5 A FOME DA MEMÓRIA 95

6 CONCLUSÕES 124

7 REFERÊNCIAS 126

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Oggi ai nostri occhi Primo Levi appare non solo come uno scrittore di prima

grandezza, ma come un’intera galassia, che non ci si stanca di percorrere e

di esplorare. Il centro gravitazionale è costituito da un gruppo di libri – non

più da un testo singolo, e nemmeno da una coppia di testi – che debbono

essere considerati i suoi più necessari per la nostra identità culturale

(BARENGHI, 2016: on-line).

Io che ho sempre dubbi, questa volta non ne ho. È Primo Levi il più

importante scrittore del secondo Novecento italiano. Attenzione, ho detto il

più importante, non il migliore. La cosa è diversa. Se dovessi fare una

graduatoria dal punto di vista dell’invenzione stilistica, il nome sarebbe un

altro, o altri. Ma siccome credo fermamente che l’estetica è una branca

dell’etica, Primo Levi resta per me il più etico, cioè lo scrittore a cui non si

può rinunciare. Se il Novecento è stato il secolo delle dittature di destra e di

sinistra che sono culminate nei lager e nei gulag, Levi ne è stato il dolente

testimone. E se il Novecento è stato il secolo della più atroce impresa

concepita da una parte non indifferente della cosiddetta umanità, Levi ne è

stato lo spietato e coraggioso smascheratore. Purtroppo gli uomini, per

quieto vivere, dimenticano in fretta. Del resto, come si potrebbe continuare a

vivere se il ricordo dell’Olocausto ci visitasse giorno e notte? Sarebbe

impossibile per qualsiasi persona sana di mente. Ma l’Olocausto c’è stato, e

l’umanità non può più fare finta di niente. Non può più credere alle sciocche

teorie della fondamentale bontà dell’uomo. E non può più credere allo

sguardo tragico e pietoso di un Dio biblico. Dio, se esiste, è indifferente al

destino umano. Questa squassante verità uscita dall’Olocausto è il lascito

tremendo che l’ideologia nazista ha insinuato nel cuore degli uomini. Lo

sbandamento morale dell’Occidente nasce da lì, e ne portiamo il peso, come

una colpa che non si cancellerà mai. Di tutto questo Levi è stato il diarista e

lo scrittore, e la sua fine dimostra che la verità ci uccide (BONURA, 2004: 9).

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1 - Introdução

Os testemunhos sobre a Shoah, termo iídiche que significa catástrofe e

destruição, utilizado em alternativa ao termo Holocausto, para definir o período do

concentracionismo e da eliminação dos judeus durante o regime nazista, são

numerosos e tratados nas mais diversas áreas das Ciências Humanas. Esses

testemunhos devem-se, de certa maneira, ao chamado “dever da memória”, dever

esse que constitui um falar sobre o passado a fim de que ele não mais aconteça.

Shoah, Holocausto, Churban? Danziger se pergunta qual o melhor termo para

definir a tragédia da eliminação dos judeus e afirma que

ao recusarmos o termo genocídio, incapaz de fazer face à complexidade desse evento-limite, nos deparamos com as denominações Holocausto, Churban, Shoah, Solução Final e, muitas vezes, a terrível contundência do substantivo próprio Auschwitz. Todos os termos são parciais e insatisfatórios, impregnados de concepções históricas, políticas, filosóficas ideológicas e teológicas (DANZIGER, 2007:50).

No campo da História, os chamados Holocaust Studies discutem e analisam

os problemas pertinentes ao tema e, inclusive, os limites da sua representação. Da

mesma forma, os Estudos Literários abordam o tema, em grande número dos casos,

à luz da questão do trauma, como observamos nos estudos de Agambem (2008),

Arendt (2008), e no Brasil de Seligman-Silva (2000, 2005), entre outros.

Uma dimensão autenticamente humana anseia por salvar tudo aquilo que

aconteceu aos judeus, como experiências, encontros, pessoas caras, mesmo que

bem conscientes de que a salvação e a redenção do precário e do passageiro não

podem derivar deles mesmos, mas podem provir somente de fora, de algo

infinitamente maior do que a própria miséria. Essa consciência não elimina a

aspiração em conservar, em manter, em enovelar o fio da memória, em conservar a

impressão da imagem trêmula que vem à luz, do poço, como bem descreve Eugenio

Montale em sua poesia Cigola la carrucola nel pozzo.

Mas há um dado: quantos homens sentiram a necessidade de relatar aquele

evento após tê-lo vivido e de tentar a sua circulação e a possibilidade de torná-lo de

domínio público fazendo entrar, definitivamente, nos anais da cultura do século XX?

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Primo Levi, Paul Celan, Robert Antelme, Elie Wiesel, Jean Améry, Bruno Bettelheim,

Nelly Sachs e tantos outros deixaram um traço, para que dali se tomasse um novo

rumo, mas que por muitos anos a cultura ocidental recusou tal oferta, e defronte às

inúmeras experiências, preferiu fechar os olhos ou dirigir seu olhar em outra direção.

Mas a literatura, por si só, tem a capacidade de se impor, para além do

esquecimento que o próprio homem impõe, frente a uma necessidade histórica.

Nesse sentido, ela registra a experiência daquela existência que se torna história, a

partir do momento no qual se faz história. Qualquer evento, qualquer indivíduo ou

qualquer sentimento arrancado da privacidade de quem os viveu, torna-se um

discurso comum, palavra de todos porque pertence a todos, porque cada um tem o

direito de fazer próprias aquelas palavras, de revivê-las como se realmente as

tivesse vivenciado, de experimentar aquelas sensações como se fossem suas desde

o início.

A literatura torna coletivo aquilo que é privado, coloca a disposição de todos

aquilo que, de outro modo, permaneceria uma muda experiência individual. Nesse

sentido, a literatura é memória, não apenas porque ela relembra para além dos

tempos aquilo que podemos recordar, aquilo que, deixando de lado os

protagonistas, não saberíamos como fazê-la viver, mas principalmente porque nos

oferece uma memória carregada de sabedoria, de paixão, de emoção, e não um

mero arquivo de dados recolhidos, numerados e cadastrados; oferece sim uma

paisagem variada e complexa a disposição de quem quiser usufruir dela.

Nesse sentido, a literatura nos ajuda a compartilhar daquele coro de

sobreviventes, e que, através de seus escritos percebemos traços de humanidade:

como por exemplo, a experiência da fome, que constitui uma nova imagem de

materialidade. O papel da literatura após o Holocausto é aquele de encontrar

palavras para comunicar o quanto de indestrutível há no humano, aquilo que

violência alguma pode cancelar.

As obras de arte que envolvem a representação dos eventos traumáticos

demonstram a necessidade que os sujeitos possuem de, narrando aquilo que

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vivenciaram, adquirir forças para se colocar em condições de resgatar e superar a

violência sofrida. Os fatos precisam ser lembrados: calar e esquecer não se

constituem em saídas possíveis. No prefácio de Se questo è un uomo, Primo Levi

expressou o impulso e a necessidade absoluta “de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os

outros’ participantes” dos horrores dos campos de concentração (LEVI, 2000: 8).

Nesse sentido, a narrativa tem, como observa Seligmann-Silva, entre os motivos que

a tornavam elementar e absolutamente necessária, este desafio de estabelecer uma

ponte com “os outros”, de conseguir resgatar o sobrevivente do sítio da “outridade” e

de romper com os muros do Lager (SELIGMAN-SILVA, 2008: 66).

Assim sendo, a “memória” tem uma valência social, coletiva, pública; a

“recordação”, ao contrário, tem um valor mais circunscrito, é um elemento individual,

subjetivo. Portanto, o uso consciente da palavra “memória” registra a exigência de

deixar o testemunho às novas gerações.

Igualmente, a chamada narrativa memorialística de ex-detentos dos Lager

nazistas nasce como um impulso de instância moral e civil. Essas narrativas

oferecem a ocasião de comparar a escrita e o seu código particulares com os fluxos

narrativos orais. A narrativa escrita é rígida em suas formas, estilisticamente

cuidada. Aquela oral, por sua vez, é fluida e informal. Em geral, as narrativas

escritas anos após a liberação de ex-detentos, oferecem ao leitor um novo ponto de

vista do seu autor, mais essencial e mais destacado, além de mais lúcido, como é o

caso das obras de Levi.

Dessa forma, esta dissertação aborda a questão da memória alimentar em

Primo Levi. O corpus de análise é composto, principalmente, por Se questo è un

uomo (1989), La Tregua (1989), I sommersi e i salvati (1991) – a chamada Trilogia

do Lager-, além de Il Sistema Periodico (2005), Lilith e altri racconti (2005), Assim foi

Auschwitz (2015) e A assimetria e a vida (2016).

No Capítulo 2, faz-se uma análise dos conceitos de memória. Inicialmente são

apontados de maneira geral para, posteriormente analisar o seu papel na narrativa

de Primo Levi. Verificada a abrangência do tema – debatido em diversas áreas do

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saber –, interessam para esta investigação tanto visões já consagradas na Filosofia,

na Sociologia e na História quanto pesquisas mais recentes. São revistos os

conceitos de Jacques Le Goff (2003), de Paul Ricoeur (2007), Henri Bergson (1999),

Gianpaolo Iannicelli (2005), Dominique LaCapra (2009), Maurice Halbwachs (2003),

Michel Pollak (1992) e de Jeanne Marie Gagnebin (2006).

Os capítulos subsequentes dedicam-se a análise do corpus desta pesquisa.

Dessa forma, o Capítulo 3 discorre, em forma de digressão, sobre duas

personagens importantes na narrativa leviana: i sommersi e i salvati, ou, os

afogados e os sobreviventes. Essa discussão sobre as personagens recai sobre a

primeira obra ficcional de Primo Levi, Se questo è un uomo (1947). São esboçados,

inclusive, alguns aspectos da obra mencionada referentes a contexto de produção e

recepção crítica.

Já o Capítulo 4 inicia com uma reflexão acerca de memória ligada à

alimentação. Dessa forma, as memórias da fome e da abundância serão tratadas

em subcapítulos específicos. Nele se analisa, à luz dos escritos de Levi, como o

escritor aborda a questão da memória alimentar em sua narrativa. Para isso, além

de Se questo è un uomo, são abordadas outras narrativas memorialísticas de Primo

Levi.

O Capítulo 5 trata a questão da fome da memória, daquele “impulso violento”

de narrar o fato traumático vivenciado pelos prisioneiros dos Lager nazistas. A

discussão volta-se para as motivações desse “impulso”, sinalizado para a questão

da incomunicabilidade e da necessidade de recordar os eventos de Auschwitz.

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2 – Sobre o conceito de memória

Recorremos a testemunhos para reforçar ou enfraquecer, e também para completar o que sabemos de um evento sobre o qual já temos alguma informação, embora muitas circunstâncias a ele relativas permaneçam obscuras para nós (HALBWACHS, 2003: 29).

O presente capítulo aborda considerações acerca do conceito de memória.

Em se tratando de uma unidade teórica desta dissertação, tem-se como finalidade

apontá-las neste momento para analisar posteriormente a narrativa de Primo Levi.

Verificada a abrangência do tema – debatido em diversas áreas do saber –,

interessam para esta investigação tanto visões já consagradas na Filosofia, na

Sociologia e na História quanto pesquisas mais recentes.

A questão da memória assume papel fundamental em narrativas surgidas

após a liberação dos campos de concentração nazistas. O crítico literário Natalino

Sapegno sinaliza um novo rumo do panorama literário europeu no contexto do pós-

guerra: nota-se uma literatura que vai ao encontro das exigências de progresso da

sociedade, inclinada aos problemas e às necessidades de novos estratos populares

(SAPEGNO, 1990: 821). Consequentemente, aparece uma quantidade significativa

de escritos que tem o evento de Auschwitz como matéria literária. Dentre eles, está

Se questo è un uomo (1947), livro reconhecido atualmente como obra de máxima

expressão no campo memorialístico. Segundo a pesquisadora Anna Baldini, a

representatividade do livro dá-se pela razão de o mesmo ter sido incluído no cânone

global do Holocaust Discourse (BALDINI, 2005).

Nele, o ato de narrar o vivido equipara-se a uma necessidade fisiológica.

Mais do que isso, lembrar o que ocorreu no passado é crucial na medida em que

possibilita o despertar de consciências daqueles que não experienciaram o horror do

Lager. Conforme as palavras do próprio Levi, “la storia dei campi di distruzione

dovrebbe venire intesa da tutti come un sinistro segnale di pericolo” (LEVI, 1989: 9)1,

1 A história dos campos de extermínio deveria ser compreendida por todos como sinistro sinal de

perigo (LEVI, 1988, p. 7, tradução de Luigi Del Re).

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dado o fato de homens terem arquitetado um projeto de destruição em massa que

aniquilou milhares de vidas até meados da década de 1940. Ora, tendo em vista a

razão de a memória ser um leitmotiv do livro, é essencial rever alguns conceitos a

respeito da temática.

Para dar início a essa reflexão, verifica-se a noção geral de memória. De

acordo com o Dicionário Houaiss (2007), o termo define-se por “faculdade de

conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache

associado ao mesmo” (HOUAISS, 2007: 1890). Imediatamente, depreende-se dessa

acepção a ideia de a memória ser uma capacidade, portanto uma qualidade restrita

aos seres humanos. Aqui, o passado representa uma peça-chave em sua

constituição. Corriqueiramente, quando se diz que alguém “perdeu a memória” ou

“tem (ou não) boa memória”, o entendimento desse discurso direciona-se à

concepção de um fenômeno puramente subjetivo, individual.

Em seguida, encontra-se no dicionário a indicação do sentido de “memória

coletiva”: trata-se de um “conhecimento misterioso que um grupo de indivíduos tem

de algo e que se supõe inerente a esse grupo” (HOUAISS, 2007: 1890-1891). Ora,

tal definição apresenta uma significação diferente da anterior: nela, a memória limita-

se a uma espécie de conhecimento, que pode ser traduzido por práticas, costumes e

tradições de uma comunidade. De certo modo, esse conhecimento pode ser,

inclusive, uma condição necessária para a manutenção de um grupo específico.

Embora superficiais essas noções preliminares, elas norteiam a nossa

reflexão quanto à complexidade do tema em relevo. A princípio, são dois conceitos

que, aparentemente, caminham em paralelo. Ambos serão aprofundados a seguir.

O filósofo francês Henri Bergson deixou importantes contribuições acerca da

memória. Em sua obra Matéria e memória (1896), ele traz o dualismo entre corpo e

espírito e atesta a realidade de ambos. Nela, a imagem apresenta-se como

elemento fundamental e, dentre as suas várias formas, há o corpo, o centro da ação

(BERGSON, 1999: 14). Aqui, a lembrança é vista como ponto intermediário entre o

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espírito e a matéria (BERGSON, 1999: 5). Aliás, matéria é pensada na teoria

bergsoniana como “um conjunto de imagens” (BERGSON, 1999: 1).

Bergson estabelece uma inter-relação entre a percepção e a lembrança. Isso

porque não existem, a seu ver, percepções que não estejam impregnadas de

lembranças (BERGSON, 1999: 30). Mais adiante, afirma que a lembrança, para se

fazer presente, toma emprestado o corpo de alguma percepção em que está

inserida (BERGSON, 1999: 70).

A memória, como destaca Bergson, – tanto aquela que recobre um fundo de

percepção imediata com lembranças, quanto a que contrai uma multiplicidade de

momentos – é a principal contribuição da consciência individual na percepção

(BERGSON, 1999: 31). A seu ver, enquanto que na percepção pura o objeto

percebido é um objeto presente, na memória a lembrança é a representação do

objeto ausente (BERGSON, 1999: 275). Dentre os estados psicológicos que formam

imagens, a memória exerce o papel principal (BERGSON, 1999: 42). E acrescenta:

A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o passado no presente, condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da duração, e assim, por sua dupla operação, faz com que de fato percebamos a matéria em nós, enquanto de direito a percebemos nela (BERGSON, 1999: 77).

Julga como “função primeira [da memória] evocar todas as percepções

passadas análogas a uma percepção presente, recordar-nos o que precedeu e o

que seguiu, sugerindo-nos assim a decisão mais útil” (BERGSON, 1999: 266). Além

disso, alega que a memória tende a medir a capacidade de sua ação sobre as

coisas (BERGSON, 1999: 267).

Contudo, a memória não é única. De acordo com o filósofo, há dois tipos de

memória, sendo ambas independentes. A primeira registra as ocorrências da vida

cotidiana sob a forma de imagens-lembranças sem negligenciar qualquer detalhe

(BERGSON, 1999: 88). Atribui-se a ela a denominação de “lembrança-imagem”.

Quanto à segunda, trata-se de uma memória voltada para a ação, que se pauta no

presente, tem em vista apenas o futuro e retêm do passado apenas movimentos

indicadores de seu esforço (BERGSON, 1999: 89). Essa é chamada de “lembrança-

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hábito”. Dentre essas duas categorias, a lembrança-imagem vem a constituir a

memória por excelência. Em contrapartida, a lembrança-hábito trata-se do “hábito

esclarecido pela memória do que a memória propriamente” (BERGSON, 1999: 91).

Bergson ressalta a possibilidade de a recordação ser uma característica

particularmente humana ao declarar que "para evocar o passado em forma de

imagem, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao

inútil, é preciso querer sonhar. Talvez apenas o homem seja capaz de um esforço

desse tipo" (BERGSON, 1999: 90). Leva em conta o fato de grande parte das

lembranças basearem-se em acontecimentos e detalhes da vida. Inclusive, essas

lembranças são situadas precisamente no tempo e tendem a não reproduzirem mais

(BERGSON, 1999: 90). A lembrança pura, a lembrança-imagem e a percepção –

atenta Bergson – são elementos que não se produzem isoladamente, sendo

impossível indicar com exatidão quando começa uma ou termina outra (BERGSON,

1999: 155-156).

Inclusive, fala sobre o corpo – considerado por ele como um instrumento de

seleção, cuja principal função é limitar a vida do espírito – e a sua relação com a

memória. O seu papel não é somente o de guardar lembranças, mas sim de

selecionar a lembrança útil, a qual completa e esclarece a situação presente em

vista da ação final (BERGSON, 1999: 209). O corpo vem a conservar hábitos

motores capazes de desempenhar novamente o passado. Ademais, retoma atitudes

em que o passado se insere ou fornece à lembrança um ponto de ligação com o

presente (BERGSON, 1999: 263-264).

À luz dos posicionamentos de Bergson, entende-se que se trata de uma

memória enquanto faculdade humana, portanto em nível individual. Muito além da

definição exposta no início, a memória encontra-se em nível do espírito (BERGSON,

1999: 231) e não se limita apenas à regressão do presente ao passado, mas

também abrange o progresso do passado ao presente (BERGSON, 1999: 280).

Outra das clássicas concepções sobre a memória é aquela do sociólogo

francês Maurice Halbwachs. De acordo com a socióloga Maria Sepúlveda dos

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Santos, a obra de Halbwachs é encarada como “radicalização das primeiras

tentativas de Bergson de ‘des-subjetivar’ a noção de memória”. (SANTOS, 2003:

25). Além disso, a sua produção contribuiu significativamente para a compreensão

da memória coletiva, visto que ele escreve num momento em que a memória era

compreendida como fenômeno individual e subjetivo (SANTOS, 2003: 35), como se

verifica na teoria de Bergson exposta anteriormente. Na mesma direção Gianpaolo

Iannicelli reconhece a grande contribuição deixada por Halbwachs e assegura que

os conceitos e categorias criados pelo sociólogo francês são ainda um ponto de

referência nos estudos da sociologia da memória (IANNICELLI, 2005: 21).

Em seu livro A memória coletiva, Halbwachs defende que a memória não se

dissocia do pensamento social. A seu ver, os indivíduos utilizam-se de testemunhos

no que se refere às lembranças pessoais: “Recorremos a testemunhos para reforçar

ou enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento sobre o qual

já temos alguma informação, embora muitas circunstâncias a ele relativas

permaneçam obscuras para nós”. Desses testemunhos, o primeiro será sempre

aquele pertencente ao próprio sujeito (HALBWACHS, 2003: 29).

Para o sociólogo, quando os indivíduos evocam lembranças em conjunto, os

acontecimentos passados adquirem maior relevância e parecem ser revividos mais

intensamente. Desse modo, acrescenta: “Nossas lembranças permanecem coletivas

e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós

estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque

jamais estamos sós” (HALBWACHS, 2003: 30).

Entretanto, a confirmação ou a recordação de uma lembrança não necessita

de testemunhos, ou seja, de sujeitos presentes, visto que os mesmos podem não

ser suficientes para reconstitui-la, conforme observa Halbwachs (HALBWACHS,

2003: 31). Isso significa dizer que um acontecimento pode parecer estranho a um

indivíduo, muito embora ele tenha participado do mesmo e haja relatos de outros

participantes que confirmem a sua presença. Assim, para um indivíduo tirar proveito

da memória dos outros, é primordial que haja pontos em comum entre ambas as

memórias:

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Para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser reconstruída sobre uma base comum (HALBWACHS, 2003: 39).

Ele ainda afirma que é possível falar de memória coletiva mesmo quando

indivíduos não estejam presentes. Tal situação ocorre quando se evoca um fato da

vida de um grupo sob o ponto de vista desse próprio grupo (HALBWACHS, 2003:

41).

No que concerne à memória de um grupo, Halbwachs indica dois planos. O

primeiro traz as lembranças dos eventos e das experiências relativas à maior parte

dos membros. No tocante ao segundo plano, há aquelas em menor número e

relacionadas a um único conjunto de pessoas (HALBWACHS, 2003: 51). Pela razão

de grupos manterem relações uns com os outros e terem eventualmente contatos

permanentes por um longo tempo, é possível o surgimento de lembranças comuns

aos membros de ambos os grupos (HALBWACHS, 2003, 52).

Um paradoxo interessante levantado pelo sociólogo refere-se às lembranças

de difícil evocação. Conforme suas palavras, “por mais estranho e paradoxal que

isto possa parecer, as lembranças que nos são mais difíceis de evocar dizem

respeito somente a nós, constituem nosso bem mais exclusivo...” (HALBWACHS,

2003: 63).

Apesar de a memória coletiva estabelecer-se com base num grupo, são os

indivíduos que detêm as lembranças. Dessa forma, é possível dizer que “cada

memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva”, (HALBWACHS,

2003: 69) o qual pode mudar conforme o lugar ocupado ou relações mantidas em

outros ambientes.

Aliás, os indivíduos participam tanto da memória individual, quanto da

memória coletiva. As duas apresentam diferentes comportamentos. A primeira ocupa

o contexto de personalidade dos indivíduos ou de suas vidas pessoais. Na segunda,

os indivíduos comportam-se como membros de um grupo que contribuiu para evocar

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e manter lembranças pessoais (HALBWACHS, 2003: 71). Ao analisar a memória

individual, considera que ela não é um fenômeno isolado por completo e a mesma

apropria-se de instrumentos já enraizados no meio:

Examinemos agora a memória individual. Ela não é inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transporta a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente. (HALBWACHS, 2003: 72).

Quanto à relação entre memória histórica e memória coletiva, Halbwachs

sustenta que a memória dos indivíduos baseia-se na história vivida. A seu ver, a

história deve ser entendida como “tudo o que faz com que um período se distinga

dos outros” (HALBWACHS, 2003: 79) e não apenas como uma sucessão

cronológica de datas e eventos. Considera, inclusive, que a memória coletiva e a

história não devem se confundir (HALBWACHS, 2003: 100), uma vez que são

categorias que se opõem.

Ele ainda diferencia a memória coletiva da história em dois aspectos. Em

primeiro lugar, a memória caracteriza-se por ser uma

corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, pois não retém do passado senão o que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém (HALBWACHS, 2003: 102).

Nela, os limites são irregulares e incertos, e presente e passado não se opõe

(HALBWACHS, 2003: 105). Já a história segue um caminho inverso, uma vez que

divide a sequência do século em períodos e deixa a impressão de renovação de um

momento a outro (HALBWACHS, 2003: 102).

Em segundo lugar, a memória coletiva apresenta certa pluralidade: a história,

ao contrário, é única (HALBWACHS, 2003: 105). Além disso, atenta para o fato de a

memória coletiva abranger um “grupo limitado no tempo e no espaço”

(HALBWACHS, 2003: 106).

Halbwachs discorre sobre a questão do tempo apontando que a memória

coletiva tende a retroceder no passado até certo ponto, não atingindo diretamente

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acontecimentos e pessoas (HALBWACHS, 2003: 133). De acordo com o sociólogo,

os tempos mostram-se mais ou menos vastos e possibilitam que a memória

retroceda ao passado (HALBWACHS, 2003: 153). Além do mais, o tempo é real

quando oferece ao pensamento uma matéria de acontecimentos. Está propenso a

ser limitado e relativo, tendo, porém, uma realidade plena (HALBWACHS, 2003:

156).

O espaço também tem um papel importante na memória coletiva. Segundo

Halbwachs, “não há memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial”

(HALBWACHS, 2003: 170). Ele ressalta a durabilidade do espaço e alega que, para

que determinada lembrança retorne, a atenção deve se fixar neste espaço. Afirma

que “a maioria dos grupos [...] imprimem de algum modo sua marca sobre o solo e

evocam suas lembranças coletivas no interior do quadro espacial assim definido”

(HALBWACHS, 2003: 187-188). E prossegue:

Portanto, não é exato dizer que, para lembrar, é preciso que nos transportemos em pensamento fora do espaço, pois ao contrário é justamente a imagem do espaço que, em função de sua estabilidade, nos dá a ilusão de não mudar pelo tempo afora e encontrar o passado no presente – mas é exatamente assim que podemos definir a memória e somente o espaço é estável o bastante para durar sem envelhecer e sem perder nenhuma de suas partes (HALBWACHS, 2003: 189).

Por sua vez, o sociólogo Michel Pollak aproxima a memória da identidade

social em seu artigo “Memória e identidade social” (1992). Para ele, a memória

aparenta ser, num primeiro momento, um fenômeno individual. Contudo, aponta

para a importância dos estudos de Halbwachs relativos à memória como um evento

coletivo ou social. Ainda leva em conta que a memória, tanto individual quanto

coletiva, caracteriza-se por ser flutuante e mutável. No entanto, ressalta que “na

maioria das memórias existem marcos ou pontos relativamente invariantes,

imutáveis” (POLLAK, 1992: 202).

Quanto aos elementos constitutivos da memória, chega à conclusão de que

se tratam dos acontecimentos vividos e “acontecimentos vividos por tabela”

(POLLAK, 1992, p. 202-203). A seu ver, esses critérios podem se referir tanto a

acontecimentos, personagens e lugares, baseados tanto em fatos concretos, quanto

podem se tratar de projeções de outros eventos (POLLAK, 1992: 203).

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Pollak aponta para o fato de a memória ser seletiva, pois “nem tudo fica

registrado” (POLLAK, 1992: 203). A mesma não se refere à vida física de uma

pessoa e é, em parte, herdada. Além disso, é passível de sofrer flutuações que são

função do momento em que ela se articula e se expressa, sendo as preocupações

do momento um elemento de sua estruturação (POLLAK, 1992: 203). Sustenta a

possiblidade de haver um elo entre a memória e sentimento de identidade:

Se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social e individualmente, quando se trata da memória herdada, podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade. Aqui o sentimento de identidade está sendo tomado no seu sentido mais superficial, mas que nos basta no momento, que é o sentido da imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros (POLLAK, 1992: 204).

Para ele, a construção da identidade fundamenta-se em três elementos, a

saber a unidade física, a continuidade dentro do tempo e o sentimento de coerência.

Dessa forma, a memória é vista como elemento constituinte do sentimento de

identidade (POLLAK, 1992: 204).

Seguindo a proposta halbwachsiana, Myrian Santos analisa a memória como

um “processo de construção social” em seu artigo O pesadelo da amnésia coletiva

(1993). Para a socióloga, a memória não se limita apenas à reconstrução do

passado no presente, mas pode denotar tanto controle como emancipação.

De imediato, ressalta que há um consenso em definir a memória como uma

“capacidade de lembrar o passado” e tal definição abrange diferentes significados

(SANTOS, 1993:125). Em seu livro Memória coletiva e teoria social (2003), ela

apresenta uma visão mais aprofundada relativa à memória:

A memória não é só pensamento, imaginação e construção social; ela é também uma determinada experiência de vida capaz de transformar outras experiências a partir de resíduos deixados anteriormente. A memória, portanto, excede o escopo da mente humana, do corpo, do aparelho sensitivo e motor e do tempo físico, pois ela também é o resultado em si mesma; ela é objetivada em representações, rituais, textos e comemorações (SANTOS, 2003: 25-26).

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Ainda que a ênfase esteja nos estudos sobre a memória coletiva, essa

síntese estabelecida pela pesquisadora é fundamental, uma vez que abarca grande

parte dos significados relativos à memória.

Ela destaca dois grupos, dentre os estudiosos, que analisam a memória como

um fenômeno coletivo. Com relação ao primeiro deles, as memórias individuais são

definidas por construções coletivas. Quanto ao segundo grupo, entende-se a

memória coletiva como resultante da ação do indivíduo na sociedade (SANTOS,

1993: 126).

Explica que “a construção social da memória pode ser compreendida seja

pelo seu processo de formação seja pelo processo de manutenção social, de acordo

tanto com contextos herdados, situações históricas específicas como com diferentes

intenções do investigador” (SANTOS, 1993: 135).

Aspectos do passado - afirma Santos - podem se repetir no presente, ser

reconstruídos ou indicar a passagem desse passado, e nenhum deles é coercitivo

ou emancipador. Podem representar, no entanto, tanto liberdade quanto dominação.

Ela entende a memória como “reminiscências, [...], repetição de atitudes e

sentimentos [...], construção e reconstrução de nossas identidades ao longo de

nossas vidas, e até mesmo o inexplicável saber” (SANTOS, 1993: 145-146).

Também nas ciências sociais, Gianpaolo Iannicelli apresenta em seu trabalho

Una, nessuna e centomila memorie (2005) uma abordagem que alia os paradigmas

da sociologia da memória às categorias clássicas. O estudioso destaca que a noção

de memória mostra-se ambígua quando utilizada com várias finalidades e para

designar objetos de naturezas diversas. Tendo em vista esse fato, a memória pode

ser vista como uma representação ou um conceito operativo. Inclusive, pode ser

uma faculdade humana (IANNICELLI, 2005: 15).

Como consequência desse fato, é possível distinguir ao menos três

manifestações da memória, a saber: a protomemória, a memória de alto nível (ou de

reconhecimento) e a metamemória. A primeira abrange a parte da consciência

procedimental, que se encontra no fundo da consciência e que os indivíduos não

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conseguem verbalizar, embora a usem inconscientemente no cotidiano. A segunda

faz alusão às evocações involuntárias de lembranças autobiográficas e deve ser

pensada como faculdade humana por trazer à tona um momento do passado. A

terceira refere-se às representações feitas pelos indivíduos em torno da própria

memória e está relacionada à construção da identidade. Trata-se, pois, de uma

metarepresentação (IANNICELLI, 2005: 16-17).

Ele entende que a memória coletiva não pode ser resumida a uma soma de

lembranças pessoais, pois consiste numa representação impregnada de sentido

identitário que um grupo faz de um passado comum (IANNICELLI, 2005: 43). Trata-

se da representação de um determinado passado, uma narração provida de sentido

para alguns grupos (IANNICELLI, 2005: 74). Considera que a função primordial da

memória não é a de registrar e conservar o passado, mas sim de fazer o passado

interagir dialeticamente com o presente com o intuito de dar sentido e inteligibilidade

ao último e robustez às identidades singulares e coletivas (IANNICELLI, 2005: 47).

Além da existência da memórias individual e coletiva, há ainda a memória

social. Mais ampla do que a memória coletiva, a memória social consiste numa

espécie de traços do passado que se oferecem aos grupos como um material para a

construção de várias memórias coletivas e de suas respectivas identidades. Essa

assemelha-se mais à memória histórica do que à memória coletiva. Inclusive, pode

ser entendida como um “fundo” em que diferentes grupos competem para afirmar as

suas versões (IANNICELLI, 2005: 28).

Iannicelli sinaliza a existência de certas lembranças que não integram a

memória coletiva, embora possam ser consideradas comuns entre os indivíduos.

Essas lembranças, sustenta o estudioso, não pertencem à nenhuma comunidade

específica, porém são lembranças que os indivíduos têm em comum por estarem

submetidos às mesmas mensagens midiáticas. Essa memória é definida por

“memória comum”. Embora não se trate de uma memória coletiva, mostra-se

estável, firme, “viva” por conta da constante atualização (IANNICELLI, 2005: 33). Ele

fala inclusive de uma “memória pública”. Tal memória possibilita uma situação em

que diversas memórias coletivas se confrontam e que permite o reconhecimento das

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diversas narrações do passado. Aliás, essa oferece critérios com os quais as

representações memoriais dos grupos devem se confrontar e devem se colocar para

serem consideradas relevantes, legítimas e admissíveis (IANNICELLI, 2005: 34-35).

A memória e a identidade são, como sustenta Iannicelli, elementos indissociáveis e

reforçam-se reciprocamente (IANNICELLI, 2005: 41). A relação entre ambas dá-se

em um único movimento dialético (IANNICELLI, 2005: 42).

Outro aspecto também apontado por Iannicelli é a relação entre memória e

identidade. Para ele, memória permite a construção e a manutenção de uma

identidade no tempo mesmo com as mudanças contínuas. A identidade aqui é

considerada como a percepção que um indivíduo possui de ser sempre o mesmo.

Por causa de sua função "adesiva", a memória possibilita essa impressão de

continuidade. Ademais, é decisiva no senso de identidade, uma vez que recordar o

passado permite que os sujeitos confirmarem quem são (IANNICELLI, 2005: 36-37).

O sociólogo italiano fala, inclusive, sobre o processo de exteriorização, o qual

se relaciona com a existência humana. Para ele, é graças a esse processo que o

homem deixou as suas marcas no mundo desde a sua origem. Essas não se tratam

de memórias de fatos ou eventos específicos, mas sim de sinais da presença

humana no mundo. Ele ressalta que a exteriorização da memória é construída por

meio de um ato comunicativo. Além disso, reconhece que - dentre as extensões da

memória, instrumentos e meios de arquivamento - a escrita possui um papel

importante, uma vez que é a partir dela que se percebe a preocupação em

conservar vestígios e sinais do patrimônio cultural e social (IANNICELLI, 2005: 45).

Apresentando uma perspectiva histórica, Jacques Le Goff propõe em História

e memória (1988) um estudo direcionado à memória coletiva, estabelecendo

relações entre memória e história. De imediato, ele distingue a primeira da segunda,

ressaltando a sua característica mítica e não linear. Para Le Goff, a memória acaba

por constituir o vivido devido a relação constante entre passado e presente (LE

GOFF, 1990: 29). Em contraponto com a história, a memória permite uma maior

liberdade aos sujeitos, uma vez que ela não tem o compromisso rigoroso em relação

a fatos e a datas.

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Em seguida, parte do princípio de que a memória remete ao conjunto de

funções mentais e, devido a elas, o homem pode atualizar impressões e

informações passadas. Sob essa perspectiva, o estudo da memória abrange a

psicologia, a psicofisiologia, a neurofisiologia, a biologia e a psiquiatria (LE GOFF,

1990: 423).

O historiador aponta que a memória coletiva reserva-se aos povos sem

escrita, diferindo-se da visão de maior abrangência proposta por Halbwachs. Para

ele, o primeiro domínio da memória coletiva reside nos fundamentos à existência

das famílias ou etnias, os quais são os mitos de origem. Essa memória coletiva

desses povos dá relevância, sobretudo, pelos conhecimentos práticos, técnicos e de

saber profissional (LE GOFF, 1990: 428). Nessas sociedades, funciona como uma

“reconstrução generativa”, observa Le Goff (LE GOFF, 1990: 428).

A partir do surgimento da escrita, a memória coletiva enfrenta transformações

significativas e passa a ter duas formas de memória: a comemoração e a epigrafia

(LE GOFF, 1990: 431). Durante a Idade Média, o cristianismo e o quase-monopólio

da Igreja traz mais transformações na memória coletiva (LE GOFF, 1990: 443). A

imprensa é um fator que revoluciona a memória ocidental durante a Renascença (LE

GOFF, 1990: 457). O historiador ainda afirma que a memória sofreu grandes

transformações com a constituição das ciências sociais e desempenha um papel

relevante na interdisciplinaridade que tende a instalar-se entre elas (LE GOFF, 1990:

472).

Ele fala sobre a importância da memória coletiva na evolução das sociedades

na segunda metade do século XX, tendo em vista que a mesma “faz parte das

grandes questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de

desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando todas

pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção” (LE GOFF, 1990:

475). Acrescenta que a memória é um elemento essencial da identidade, seja ela

individual ou coletiva. Ademais, considera a memória como um instrumento e um

objeto de poder, circunstância observada em sociedades das quais a memória social

é oral (LE GOFF, 1990: 476).

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Por fim, afirma que “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a

alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. A memória

coletiva deve servir para a libertação e não para a servidão dos homens” (LE GOFF,

1990: 477).

Já o historiador Paul Ricoeur embasa-se na fenomenologia da memória ao

analisá-la em seu livro A memória, a história e o esquecimento (2007). De início,

expõe o problema enfrentado pela memória, que diz respeito à confusão entre

representação do passado e imagem. Considera que a memória, enquanto restrita à

rememoração, segue os rastros da imaginação – encontrada na parte inferior das

escalas dos modos de conhecimento (RICOEUR, 2007: 25). O problema gerado por

essa constante confusão entre memória e imagem abala a função veritativa da

primeira, problema herdado das filosofias platônica e aristotélica (RICOEUR, 2007:

26). No entendimento de Ricoeur, a memória e a imagem têm o aspecto do ausente

como ponto em comum. O diferencial entre elas reside, por um lado, na suspensão

de qualquer posição de realidade e a visão do irreal e, por outro, na posição de uma

realidade anterior (RICOEUR, 2007: 61).

A memória, observa Ricoeur, visa ser fiel ao passado. Mais adiante, ele

reconhece que, apesar de a mesma ser criticada por sua escassa confiabilidade, a

memória torna-se o único recurso para significar o caráter passado daquilo que se

recorda (RICOEUR, 2007: 40). Para ele, as características da pretensão veritativa da

memória precisam ser reconhecidas antes de qualquer deficiência patológica e de

qualquer debilidade não patológica (RICOEUR, 2007: 40). Ele fala ainda que “não

temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu, se

passou antes que declarássemos nos lembrar dela” (RICOEUR, 2007: 40).

Ele estabelece diferenças entre a memória e a recordação, as quais, na

esfera da linguagem, estão para o objetivo e para a coisa pretendida. A primeira é

única tanto como capacidade quanto como efetuação (RICOEUR, 2007: 41). Em

contrapartida, a segunda caracteriza-se pela multiplicidade e por seus variados

graus de distinção. Além disso, as lembranças podem ser vistas como “formas

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discretas com margens mais ou menos precisas, que se destacam contra aquilo que

poderíamos chamar de fundo memorial” (RICOEUR, 2007: 41).

Ricoeur retoma a proposta de Bergson em relação ao binômio memória e

hábito e propõe que o que constitui a unidade de ambas é o nexo com o tempo, isso

porque se pressupõe alguma experiência adquirida previamente. Entretanto, a

experiência relativa ao hábito está vinculada à vivência do presente; no caso da

memória, a ligação é com aquilo que vem antes (RICOEUR, 2007: 43).

Outro par de opostos também mencionado pelo historiador é a evocação e a

busca. A primeira (mneme) é definida como advento atual de uma lembrança,

caracterizada por Aristóteles como pathos. Desse modo, trata-se de uma afecção

em oposição à busca. Já a segunda, Ricoeur a relaciona com a rememoração

(RICOEUR, 2007: 45).

Ulterior aspecto apontado por Ricoeur é o valor do testemunho para a

memória. Tido como “estrutura fundamental de transição entre a memória e a

história” (RICOEUR, 2007: 41), o testemunho inicia um processo epistemológico,

partindo da memória declarada, passando pelo arquivo e pelos documentos e

chegando à prova documental (RICOEUR, 2007: 170).

Ao falar sobre os usos e abusos da memória, distingue a memorização da

rememorização. Por rememorização, compreende o retorno à consciência de um

acontecimento reconhecido. A marca temporal do momento anterior constitui o ponto

distintivo da rememoração, sob a dupla forma de evocação simples e de

reconhecimento. Já a memorização são modos de aprender que tem como alvo

saberes. Considera que se trata de uma forma de lembrança-hábito (RICOEUR,

2007: 73).

Ainda sob essa perspectiva, Ricoeur toca a problemática da memória e da

identidade. Ele considera a identidade frágil e aponta três causas dessa fragilidade.

A primeira delas remete à difícil relação da identidade com o tempo graças à própria

noção do termo, cujo significado gira em torno de uma estabilidade (RICOEUR,

2007: 94). A segunda aponta para a confrontação com o outro, o que reflete numa

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possível ameaça. Por fim, a terceira causa fala sobre uma herança de violência

(RICOEUR, 2007: 94). Além disso, fala sobre o nível ético-político da memória,

mencionando a questão do “dever da memória”. O dever da memória, sustenta

Ricoeur, oscila entre o uso e abuso pelo fato de permanecer atrelado à obsessão

(RICOEUR, 2007: 102).

Ricoeur considera como categoria intermediária da memória coletiva e da

memória individual a relação com os “próximos”. Esses últimos estão situados numa

gama de variação entre si e os outros. A aproximação deles seria uma réplica da

amizade (RICOEUR, 2007: 141). Há uma recíproca entre os “próximos” e os

sujeitos: um acaba por comprovar a existência do outro. Assim, o historiador julga

relevante considerar não a polaridade entre memória coletiva e individual, mas sim

essas três categorias da memória (RICOEUR, 2007: 142).

Por sua vez, o historiador Dominick LaCapra, em seu livro Historia y memoria

después de Auschwitz (2009), debruça-se nas interações entre história, memória e

preocupações ético-políticas após o evento de Auschwitz. Considera que a relação

entre memória e história gira em torno do trauma e do interesse dos lieux de la

mémoire. Em relação ao trauma, ele provoca uma espécie de lapso ou ruptura na

memória que cessa a continuidade com o passado, abalando a questão da

identidade (LACAPRA, 2009: 22).

Pierre Nora também faz claras distinções entre memória e história, e no seu

entendimento, a memória deixa de existir quando é assimiliada, apropriada pela

história, cujo resultado são os “lugares da memória”:

Os lugares da memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa pelas minorias, de uma memória refugiada pelos focos privilegiados e enciumadamente guardados, nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares da memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa as varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de constituí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que elas envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse delas para deformá-los, transformá-los, sová-

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los e petrificá-los eles não se tornariam lugares da memória (NORA, 1993:13).

LaCapra aponta, ainda, para a tendência atual de estudiosos de se manterem

no risco do perigo de uma obsessão ou fixação com a memória (LACAPRA, 2009:

26), onde, nesse caso, a memória gera uma fixação com o passado que inibe no

presente aquelas ações que estão direcionadas a um futuro desejável (LACAPRA,

2009: 27).

Inclusive, afirma que os estudos têm se debruçado na oposição entre

memória e história. Considera que a história é uma forma de desmitificar o

pensamento secular e que a mesma destrói a memória vivente (LACAPRA, 2009:

30).

Em relação aos testemunhos dos sobreviventes de Auschwitz, considera que

eles possuem um lugar especial de significação entre os lugares da memória e do

trauma. Assim, ressalta a importância dos testemunhos para a história:

El testimonio es una fuente fundamental para la historia. Y es más que una fuente. Le plantea a la historia desafíos diferentes. Pues pone en evidencia que los historiadores u otros analistas se convierten en testigos secundarios, que allí hay una relación transferencial y que debe elaborarse una posición subjetiva adecuada respecto del testigo en su testimonio (LACAPRA, 2009: 24)2.

Inclusive, afirma que o testemunho é uma condição necessária da ação,

sendo tudo o que se espera de indivíduos que passaram por uma experiência-limite

(LACAPRA, 2009: 25).

Assim como o testemunho, a memória é também uma fonte fundamental para

a história. Ela mantém uma relação complicada com as demais fontes fundamentais,

chegando a ser informativa em termos de recepção e assimilação. A memória e a

história têm uma relação de complementariedade, o que é base para uma relação

questionadora ou um intercâmbio dialético (LACAPRA, 2009: 33). Para LaCapra o

2 O testemunho é uma fonte fundamental para a história. E é mais do uma fonte. Traça para a história diferentes desafios. Pois coloca em evidência o que os historiadores ou outros estudiosos transformam em testemunhas secundárias, que ali há uma relação de transferência e que deve se elaborar uma posição subjetiva adequada a respeito da testemunha em seu testemunho (tradução nossa).

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sentimento de uma experiência e a intensidade da alegria ou do sofrimento são

alguns dos elementos que a história não abarca (LACAPRA, 2009: 34).

O historiador estabelece, também, uma distinção entre aquilo que ele chama

de memória primária e secundária. Explica que a primeira é a do sobrevivente,

enquanto que a segunda advém de um trabalho crítico com a memória primária:

Aquí habría que distinguir entre memoria primaria y secundaria. La primaria es la de una persona que ha pasado por acontecimientos y los recuerda de una determinada manera. La memoria implica casi invariablemente lapsus que se relacionan con formas de negación, represión, supresión y evasión, pero que posee también una inmediatez y poder que puede ser impresionante. La memoria secundaria es resultado de un trabajo crítico con la memoria primaria, ya sea a cargo de la persona que pasó por las experiencias relevantes o, lo que es más habitual, por un analista, observador o testigo secundario como el historiador. El participante y el observador-participante se encuentran en el terreno de la memoria secundaria, en la que probablemente acuerden en algunas cosas que constituyen los recuerdos exactos (LACAPRA, 2009: 35)3.

Segundo LaCapra, para que a memória seja efetiva em nível coletivo, é

preciso que ela alcance uma grande quantidade de público (LACAPRA, 2009: 161).

Considera ainda que a questão da memória deve ocupar um lugar elevado em

qualquer acontecimento e que, além disso, pode ocupar o lugar da imaginação em

eventos pós-traumáticos (LACAPRA, 2009: 209).

A melancolia e a dor, como observa LaCapra, são duas ideias fundamentais

para relacionar a história e a memória. A melancolia consiste numa esperiência que

isola, possibilitando uma intersubjetivdade especular que enclausura o eu em seu

desesperado isolamento. Poder ser necessária para registrar uma perda, além de

poder ser um pré-requisito para a dor. Já a dor pode permitr o reconhecimento do

outro enquanto tal e estabelecer condições para a dissolução ou uma atenuação da

3 Aqui seria necessário distinguir a memória primária da secundária. A primária é aquela de um indivíduo que passou por acontecimentos e os recorda de um determinado modo. A memória implica invariavelmente lapsos que se relacionam com formas de negação, repressão, supressão e evasão, mas que possui uma urgência e poder que pode ser impressionante. A memória secundária é resultado de um trabalho crítico com a memória primária, seja a cargo do indivíduo que passou pelas experiências relevantes ou - o que é mais habitual - por um analista, observador ou testemunha secundária como o historiador. O participante e o observador-participante encontram-se no terreno da memória secundária, naquela que provavelmente estão de acordo em algumas coisas que constituem as recordações exatas (tradução nossa).

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identificação narcisística. E a partir dela que se reconhece uma perda (LACAPRA,

2009: 210-211).

É importante reservar brevemente para esta discussão um espaço para a

questão do esquecimento. Ricoeur traça uma relação entre o esforço da

rememoração e o esquecimento. Afirma que uma parte significativa do retorno ao

passado submete-se ao objetivo de não esquecer (RICOEUR, 2007: 48). O

esquecimento, sinaliza Ricoeur, é visto como um “dano à confiabilidade da

memória”. Nesse sentido, a memória acaba por uma “luta contra o esquecimento”

(RICOEUR, 2007: 424).

Segundo Iannicelli, o esquecimento não é um elemento passivo que se coloca

contra a memória. Ele afirma que o mesmo pode ser útil para se evitar viver o

presente oprimido por um passado demasiadamente vivo (IANNICELLI, 2005: 65). O

esquecimento não é absoluto nem mesmo definitivo, pois fragmentos do passado

tornam-se perigosos e imprevisíveis (IANNICELLI, 2005: 67). Em seguida, menciona

a relação que Primo Levi estabelece entre as virtudes e os limites do esquecimento:

Primo Levi ci ha descritto con lucidità estrema e toccante le virtù e i limiti dell’oblio: il deportato, indebolito dagli stenti, sofferente per il lavoro, sfibrato e dolente per la vita nel campo, non ha il tempo di pensare durante la giornata; e così, perdendo se stesso, dimenticandosi di sé, in un certo senso, riesce in parte a schermirsi. Ma, inevitabilmente, pare, giunge il momento in cui tutto riaffiora alla mente, magari durante la permanenza nel Ka-Be, l’infermeria (IANNICELLI, 2005: 67-68)4.

Fala-se, inclusive, na concepção de “amnésia coletiva”. Le Goff afirma que

compreende, em nível metafórico, “a falta ou perda, voluntária ou involuntária, da

memória coletiva nos povos e nas nações que pode determinar perturbações graves

na identidade coletiva” (LE GOFF, 1990: 425). Iannicelli sinaliza que esse conceito

aplica-se às culturas orais. Para as sociedades contemporâneas, deve-se falar em

“amnésia cultural” (IANNICELLI, 2005, p. 73). Em contrapartida, Santos argumenta

4 Primo Levi descreveu-nos com extrema e tocante lucidez as virtudes e os limites do esquecimento: o deportado, enfraquecido pelo cansaço, sofrido pelo trabalho, sem forças e adoecido pela vida no campo, não tem tempo de pensar durante o dia; e, assim, perdendo-se, esquecendo-se de si, em centro sentido, consegue em parte se proteger. Entretanto, inevitavelmente, parece, chega o momento em que tudo renasce à mente, talvez durante a permanência na Ka-Be, a enfermaria (tradução nossa).

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que o universo da amnésia coletiva tomado pela competividade, racionalidade e

informatização em detrimento de sentimentos, práticas coletivas e vínculos

interpessoais. Em vista disso, “homens e mulheres, portanto, desprovidos de

conhecimento e experiências do passado, se tornam incapazes de sentir, julgar e

defender os seus direitos” (SANTOS, 1993: 123).

Diante dos posicionamentos expostos, percebe-se que a memória abrange

diferentes perspectivas. Se, por um lado, ela representa uma faculdade humana –

fala-se de uma memória individual –, por outro, ela consiste num conjunto de

práticas e costumes de um grupo. Trata-se de uma memória coletiva.

Pensando tanto do ponto de vista individual, quanto coletivo, a memória é

fundamental na construção da identidade. Conforme afirma Iannicelli, a perda da

memória implica a perda da identidade, pois um indivíduo sem memória vive apenas

no instante e perde a sua capacidade necessária ao conhecimento e consciência de

si mesmo (IANNICELLI, 2005: 39)

Muito mais do que um simples retorno ao passado, a memória atua

incisivamente na construção da identidade. É fundamental dizer também que ela

funciona, de fato, como um instrumento de poder. Concluindo com uma afirmação

dos irmãos Tadié, “c’est la memórie qui fait l’homme” (TADIÉ; TADIÉ, 1999: 9)5.

Concluimos com um trecho do polêmico artigo do historiador judeu Yehuda

Elkana, publicado em um jornal israelense em 1988 onde ele indaga o papel da

história e da memória coletiva em relação ao evento de Auschwitz:

A história e a memória coletiva são parte inseparável de toda cultura, mas o passado não deve se tornar o elemento determinante do futuro de uma sociedade e de um povo (...). Na crença difusa de que o mundo inteiro esteja contra nós, vejo uma trágica e paradoxal vitória de Hitler. Falando metaforicamente, duas nações emergiram das cinzas de Auschwitz: uma minoria que afirma “isso não deverá acontecer nunca mais”, e uma minoria aterrorizada e obcecada que afirma “isso não deverá acontecer conosco nunca mais” (...). Uma democracia se nutre de presente e de futuro; e um excesso de dedicação ao passado mina os fundamentos de uma democracia (...). No que diz nos respeito, penso que temos de aprender a esquecer. Não creio que exista hoje para os governantes desta nação tarefa

5 É a memória que faz o homem (tradução nossa).

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educativa e política mais importante do que escolher a vida, dedicarem-se eles próprios à construção de nosso futuro. (...) Chegou o momento de arracar de nossas vidas a opressão da lembrança (ELKANA apud ROSSI, 2007: 37).

Ressaltamos que o desejo, surgido já no Lager, de narrar ao mundo através

de seus escritos, legando um documento sobre os horrores vividos, ainda não foi

completamente levado em consideração. A possibilidade de um testemunho da

Shoah foi problematizada no âmbito de uma discussão teórico-filosófica, e a figura

da testemunha foi discutida no interior do conflito entre o discurso jurídico e aquele

histórico. Entrementes, as manifestações literárias forma deixadas sempre de lado.

Além do mais, a historiografia posicionou-se como autoridade interpretativa do

acontecido, e colocou em discussão a validade do testemunho individual, escrita ou

narrada como fonte histórica. Apenas no quadro do New Historicism e da Oral

History os testemunhos dos sobreviventes adquiriram importância como fontes

históricas, sendo reconhecido o seu potencial historiográfico inerente à subjetividade

das testemunhas.

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3 – I sommersi e i salvati: uma digressão

La memoria umana è uno strumento meraviglioso ma fallace. [...] I ricordi che giacciono in noi non sono incisi sulla pietra; non solo tendono a cancellarsi con gli anni, ma spesso si modificano, o addirittura si accrescono, incorporando lineamenti estranei. [...] Questa scarsa affidabilità dei nostri ricordi sarà spiegata in modo soddisfacente solo quando sapremo in quale linguaggio, in quale alfabeto essi sono scritti, su quale materiale, con quale penna: a tutt’oggi, è questa una meta da cui siamo lontani. Si conoscono alcuni meccanismi che falsificano la memoria in condizioni particolari: i traumi, non solo quelli cerebrali; l’interferenza da parte di altri ricordi “concorrenziali”; stati abnormi della coscienza; repressioni; rimozioni. Tuttavia, anche in condizioni normali è all’opera una lenta degradazione, un offuscamento dei contorni, un oblio per così dire fisiologico, a cui pochi ricordi resistono (LEVI, 1991:14)6.

Antes da publicação de Se questo è un uomo, Primo Levi, após o longo

itinerário desde a saída de Auschwitz até a chegada à Itália, descrito em La Tregua,

o ex-detento publicou na revista turinense Minerva Medica uma versão enriquecida

do relatório encomendado pela Armada Vermelha russa, redigido na primavera de

1945 com Leonardo De Benedetti, no campo de trânsito de Katowice. Foi

recentemente traduzido no Brasil junto a outros textos de Levi, organizados por

Fabio Levi e Domenico Scarpa7.

Este texto constitui, sem dúvida, uma das fontes do primeiro livro publicado

por Levi, Se questo è un uomo, de agora em diante SQU, escrito após a sombria era

6 A memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falaz. [...] As recordações que jazem em

nós não estão inscritas na pedra; não só tendem a apagar-se com os anos, mas muitas vezes se modificam ou mesmo aumentam, incorporando elementos estranhos. [...] Esta escassa confiabilidade de nossas recordações só será explicada de modo satisfatório quando soubermos em qual linguagem, em qual alfabeto elas são escritas, sobre qual material, com qual instrumento: ainda hoje, é uma meta de que estamos longe. Conhecem-se alguns mecanismos que falsificam a memória em condições particulares: os traumas, não apenas os cerebrais; a interferência de outras recordações “concorrentes”; estados anormais da consciência; repressões, recalques. Todavia, mesmo em condições normais, desenrola-se uma lenta degradação, um ofuscamento dos contornos, um esquecimento por assim dizer natural, a que poucas recordações resistem (LEVI, 1990: 9, tradução de Luiz Sérgio Henriques).

7 LEVI, Primo; DE BENEDETTI, Leonardo. Relatório sobre a organização higiênico-sanitária do campo de concentração para judeus de Monowitz (Auschwitz – Alta Silésia). In: ______. Assim foi Auschwitz: testemunhos 1945-1986. Org. Fabio Levi e Domenico Scarpa. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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dos campos de concentração: é, inclusive, a primeira obra italiana a tratar sobre a

deportação dos judeus para os campos de extermínio nazistas. O manuscrito,

inicialmente chamado I sommersi e i salvati – e que acaba por se transformar no

título de um dos capítulos da obra inicial e no título de outra obra, publicada em 1986

- foi recusado algumas vezes até ser apresentado à editora De Silva. Franco

Antonicelli, então administrador do estabelecimento, o aceita e o publica em

novembro de 1947, com tiragem de 2500 exemplares, sob o título Se questo è un

uomo, frase essa extraída do poema Shemà - também de autoria de Levi que nas

edições posteriores aparece como a epígrafe do livro.

Shemà deriva de hebraico ישראל שמע, “Ouça, Israel”, as duas primeiras

palavras da Torá, título dado mais tarde à poesia. É a primeira oração do hebraísmo

onde se afirma a unidade de Deus (RASTIER. 2009: 8), e a escolha é, talvez, um

pouco surpreendente considerando que Levi se dizia absolutamente não crente, e

não praticante da religião. Talvez uma digressão, mas é relevante o fato que Levi

refira-se a si mesmo como “judeu”, na edição original, definição esta suprimida na

edição de 1958 provavelmente porque os sofrimentos descritos são universais e não

apenas vividos pelo povo judeu (THOMSON. 2002: 231).

“Le poesie vengono prima, ero appena tornato in Italia”, indica Levi.

(NASCIMBENI, 1997: 137)8. Entre 28 de dezembro de 1945 e 28 de junho de 1946

compôs quinze delas, ligadas na sua maioria ao tema da guerra e do Lager. Antes

de narrar a sua experiência em prosa, os seus sentimentos encontram uma

expressão na poesia, frequentemente com palavras descritivas muito mais amargas

e contundentes do que aquelas escolhidas para a narração em prosa (ROSATO,

1997: 415).

Rastier, no livro Ulisse ad Auschwitz, assevera que na obra leviana “la poesia

permette di interpretare la testimonianza e procede, in qualche modo, dalla

spiegazione alla comprensione: lì dove la prosa spiega, la poesia comprende”

(RASTIER, 2009: 77)9. Rosato também partilha essa opinião ao afirmar que “le

8 As poesias vieram primeiro, eu tinha recém voltado para a Itália (tradução nossa).

9 A poesia permite interpretar o testemunho e de algum modo precede, da explicação à compreensão: lá onde a prosa explica, a poesia compreende (tradução nossa).

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poesie contengono la quintessenza dell’opera, con qualcosa in più, l’elemento

parenetico” (ROSATO, 1997: 416)10.

A alteração foi fundamental, pois, concordando com a afirmação de Cesare

Segre, o novo título expressa a máxima potência da obra, visto que a interrogação

chama à reflexão sobre a ofensa ao homem exercida pelo Lager. Ademais, reflete

sobre a desumanização dos escravos pelos torturadores bestializados (SEGRE,

1997: 57).

Embora tenha despertado a atenção de críticos e escritores tais como Antonio

Cajumi – que publicou um artigo em 27 de novembro de 1947 no jornal La Stampa –

e Italo Calvino – que escreveu uma crítica nas páginas de L’Unità em maio de 1948

– (FERRERO, 1997: 306), a obra permaneceu ignorada pelo grande público por

mais de uma década até ter uma segunda edição, em 1958, lançada pela editora

Einaudi, de Turim, a qual acrescentou o capítulo Iniziazione. Da primeira, edição

existem poucos exemplares a disposição, pois, graças a uma enchente em Florença,

em 1966, os exemplares não vendidos que estavam armazenados em um depósito

foram completamente destruídos. Talvez o ato de ignorar a obra, por parte do

público leitor, tenha se dado, também pelo fato que “il pubblico non era ancora in

condizioni di comprendere e misurare la qualità e l’importanza del fenomeno Lager”

(LEVI, 1966: 6)11.

A rejeição à publicação e à leitura de obras que tratavam dos campos de

extermínio encontra, porém, uma justificativa no contexto histórico. Eram os anos da

reconstrução da pátria destruída pelo conflito bélico e observava-se um tendência

geral “a considerare chiuse le vicende della guerra e archiviate le sofferenze”12

(BRAVO, 1994: 35). Domenico Scarpa considera como provável causa dessa

rejeição o traço testemunhal de Levi, característica comum dos jovens escritores do 10 As poesias contêm a quintessência da obra, com algo a mais, o elemento parenético (tradução nossa).

11 O público ainda não estava em condições de compreender e dimensionar a qualidade e a

importância do fenômeno campo de concentração (LEVI, 2016: 41, tradução de Ivone Benedetti).

12 Em considerar conclusos os acontecimentos da guerra e arquivados os sofrimentos (tradução nossa).

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período pós-guerra (SCARPA, 2014: 17). O próprio Levi, em 1955 tenta encontrar

uma resposta ao afirmar que “hoje é indelicado falar dos campos de concentração.

Corremos o risco de ser acusados de vitimização ou de amor gratuito ao macabro,

na melhor das hipóteses; na pior, de mentira pura e simples, qu quem sabe de

atentado ao pudor” (LEVI, 2016e: 3).

Atualmente, SQU enquadra-se no rol da chamada literatura de testemunho,

sendo considerado como máxima referência memorialista da Shoah publicada na

Itália. Segundo Seligmann-Silva, literatura de testemunho é um conceito compilado

da linha de estudos anglo-saxônicos, e que nos estudos germânicos, costuma-se

utilizar a noção de Holocaust-Literatur. Nessa vertente, a atenção volta-se ao

conceito de testemunho e a presença de elementos testemunhais dos supérstites de

eventos como guerras, campos de concentração, entre outros durante o século XX,

(SELIGMANN-SILVA, 2002: 73-74). Já na Itália, fala-se de letteratura

concentrazionaria, expressão que define a produção de escritos nascidos da

experiência dos campos de concentração nazistas, e que pode ser subdividida em

três categorias: a primeira refere-se aos diários ou memoriais dos deportados; a

segunda, às suas elaborações literárias; a terceira, às obras de cunho sociológico e

histórico (LEVI, 1984: 5). Essa categorização foi proposta pelo próprio Primo Levi no

Prefácio de Uomini ad Auschwitz de Hermann Langbein. Mas o debate sobre essa

categorização não é um consenso e encontramos pareceres muito discordantes a

seu respeito. De toda forma, uma opinião é unânime: Se questo è un uomo é um

marco na literatura ocidental, e na opinião de Cereja o livro deve ser considerado

uma summa, uma verdadeira enciclopédia do Lager (CEREJA, 1989: 298).

No que concerne à obra em si, SQU é estruturada numa alternância entre

uma primeira pessoa autobiográfica ou julgadora, uma primeira pessoa plural de

valor coletivo, uma segunda pessoa voltada a um “si mesmo generalizado” e uma

terceira pessoa descritiva e aparentemente neutra, adornada, porém, de

considerações morais ou apelos ao leitor. Dentre elas, a primeira pessoa (singular e

plural) é significativa à obra, pois vem a corroborar a existência de dois níveis de

memória. O primeiro é aquele individual e subjetivo, que é ligado ao “eu” e é

atribuído somente ao narrador. Já o segundo nível, pautado na coletividade (“nós”),

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traz voz do narrador a partir da perspectiva do grupo, no qual ele se insere (SEGRE,

1997: 68-69). Em ambos os níveis, observa-se como ponto em comum a

predominância de uma memória primária, ou seja, a memória daqueles que

passaram por certos acontecimentos e que os recordam de determinado maneira,

noção essa defendida por Dominick LaCapra e mencionada no capítulo anterior

(LACAPRA, 2009: 35): enquanto sobrevivente (testis) de uma experiência lancinante

- marcada por uma rotina de punições severas, pela incessante ameaça da morte e

pela luta desesperada pela vida – esse narrador em primeira pessoa (tanto singular,

quanto plural) a recorda e a narra.

Em SQU o complexo concentracionário de Auschwitz, sobretudo o campo de

trabalho de Monowitz-Buna, é o cenário onde a trama se desenrola. De acordo com

o historiador Alberto Cavaglion, esse universo concentracionário, termo que segundo

o próprio Levi foi cunhado pelo escritor francês e ex-deportado David Rousset (LEVI,

2016b: 69) possui as suas coordenadas topográficas modeladas conforme o mapa

do inferno dantesco e representa a descida em direção ao anus mundi (LEVI, 1989:

16, nota 11). Auschwitz, ou melhor o Lager, constitui-se num espaço nascido de

mãos humanas para enclausurar homens. A sua natureza inóspita subtrai qualquer

vestígio de esperança: lugar isolado do mundo através de cercas de arame farpado,

dominado por uma aura cinzenta, repleto de lama e privado de menor traço de

beleza, o Lager é propriamente uma outra dimensão que ressalta toda a fragilidade

humana. Como bem define Levi, é “uma notável experiência biológica e social”

(LEVI, 2003: 79), dado que nesse espaço grotesco, homens, mulheres, idosos e

crianças são personagens condenadas ao sofrimento e à morte sem qualquer

distinção. Diferentes personagens, destino comum: fome, frio, sofrimento e morte.

A clássica categorização em personagens planas e redondas pouco se aplica

a elas. Entretanto, Segre declara que

Se questo è un uomo offre una galleria di personaggi, talora brevi apparizioni, talora figure a tutto tondo. Essi acquistano quasi sempre una funzione esemplare, positiva o negativa [...]. In sostanza, dice Levi, nel Lager o si diventa un “Muselmann”, un vinto, un sommerso, o ci si salva

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improvvisandosi, o fingendosi, un “Organisator”, un “Kombinator”, meglio ancora un “Prominent” (SEGRE, 1997: 60)13.

Para ilustrar essa ideia, o capítulo I sommersi e i salvati de SQU mostra a

“vida ambígua dos campos de concentração” (LEVI, 1989: 79). O Lager possui como

principal característica a presença maciça de duas espécies de homens: i sommersi

e i salvati, os “afogados” e os “sobreviventes”.

O termo sommersi é uma clara alusão ao poema dantesco, especificamente

ao canto XX do Inferno, onde lemos logo nas primeiras estrofes: “Di nova pena mi

conven far versi/ e dar matera al ventesimo canto/ de la prima canzon, ch'è di

sommersi” (ALIGHIERI, 1998: 139)14. Da mesma forma salvati se refaz ao canto IV

onde lemos que “E vo’ che sappi che, dinanzi ad essi,/ spiriti umani non eran salvati”

(ALIGHIERI, 1998: 45)15.

Dentre os primeiros, eis que surge aqui a figura do muçulmano, isto é,

daqueles prisioneiros mais debilitados, os quais sucumbem por causa da dificuldade

de adaptação ao espaço concentracionário. Gagnebin, em nota na Apresentação de

O que resta de Auschwitz, de Giorgio Agambem, indica que a etimologia da

expressão “é obscura; da minha parte não consigo não ouvir, em todas as laboriosas

explicações, como que uma certa desforra de caráter racista na boca das vítimas do

antissemitismo” (GAGNEBIN, 2008: 13). Para Consonni, o muçulmano é a presença

mais abjeta no campo de concentração que ela define como o lugar da abjeção total

(CONSONNI, 2009: 246). Ela ainda aponta que no Lager alemão eram chamados

por muitos sobreviventes em termos similares: “Aldo Carpi defined them as the ‘living

13 Se questo è un uomo oferece uma galeria de personagens, ora breves aparições, ora figuras completas. Elas adquirem uma função exemplar, positiva ou negativa [...]. Efetivamente, diz Levi, no Lager ou se torna um “Muselmann”, um vencido, um afogado, ou se salva dele improvisando-se ou fingindo-se, um “Organisator”, un “Kombinator”, melhor ainda um “Prominent” (tradução nossa).

14 A nova pena vou votar meus versos/ e dar matéria ao vigésimo canto/ da primeira canção, que é dos submersos (ALIGHIERI, 1998: 139, tradução de Italo Eugenio Mauro).

15 Espíritos humanos antes dessa/ uma ocasião não foram salvados (ALIGHIERI, 1998: 45, tradução de Italo Eugenio Mauro).

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dead’ and ‘mummy men’ (1993:17); Bruno Bettleheim called them walking corpses,

empty shells (1960: 15ff)” (CONSONNI, 2009: 247)16. E Levi assim os descreve:

sono loro, i Muselmänner, i sommersi, il nerbo del campo; loro, la massa anonima, continuamente rinnovata e sempre identica, del non-uomini che marciano e faticano in silenzio, spenta in loro la scintilla divina, già troppo vuoti per soffrire veramente. Si esita chiamarli vivi, si esita a chiamar morte la loro morte, davanti a cui essi non temono perché sono troppi stanchi per comprenderla. Essi popolano la mia memoria della loro presenza senza volto, e se potessi racchiudere in una immagine tutto il male del nostro tempo, sceglierei questa immagine, che mi è familiare: un uomo scarno, dalla fronte china e dalle spalle curve, sul cui volto e nei cui occhi non si possa leggere traccia di pensiero (LEVI, 2003: 81-82)17.

Essas frágeis figuras, tão vivas na memória de Levi, retratam a realidade

perversa dos campos de concentração, cuja regra é privar, pouco a pouco, os

homens de seus vestígios de humanidade e regalá-los a nada. A esse muçulmano

apático, sem rosto e rechaçado pelos demais detentos cabe somente uma morte

solitária, sem deixar qualquer rastro de sua existência na memória dos outros,

cumprindo assim o terrível objetivo da “solução final”:

E infine, si sa che sono qui di passaggio, e fra qualche settimana non ne rimarrà che un pugno di cenere in qualche campo non lontano, e su un registro un numero di matricola sputato. Benché inglobati e trascinati senza requie dalla folla innumerevole dei loro consimili, essi soffrono e si trascinano in una opaca intima solitudine, e in solitudine muoiono o scompaiono, senza lasciar traccia nella memoria di nessuno (LEVI, 2003: 80-81)18.

16 Aldo Carpi os define como ‘morte vivente’ e ‘homens-múmia’ (1993:17); Bruno Bettleheim chama-os

de cadáveres ambulantes, conchas vazias (1960:15ff) (tradução nossa).

17 São eles, os "muçulmanos", os submersos, são eles a força do Campo: a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não-homens que marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamá-los vivos; hesita-se em chamar "morte" à sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para poder compreendê-la. Eles povoam minha memória com sua presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar numa imagem todo o mal do nosso tempo, escolheria essa imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar não se possa ler o menor pensamento (LEVI, 1988: 91, tradução de Luigi Del Re).

18 E, por fim, sabe-se que eles estão aqui de passagem; que, dentro de umas semanas, deles sobrará apenas um punhado de cinzas em outro Campo próximo e, no Registro, um número de matrícula riscado. Embora englobados e arrastados sem descanso pela multidão inumerável de seus semelhantes, eles sofrem e se arrastam numa opaca solidão Íntima, e nessa solidão morrem ou desaparecem sem deixar lembrança alguma na memória de ninguém (LEVI, 1988: 90, tradução de Luigi Del Re).

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Em contraponto ao muçulmano, há outras personagens – os salvos - que

resistem às adversidades diárias, tais como o prisioneiro Henri:

Henri è invece eminentemente civile e consapevole, e sui modi di sopravvivere in Lager possiede una teoria completa e organica. [...] Secondo la teoria di Henri, per sfuggire all’annientamento, tre sono i metodi che l’uomo può applicare rimanendo degno del nome di uomo: l’organizzazione, la pietà e il furto. Lui stesso li pratica tutti e tre (LEVI, 2003: 89)19.

As atitudes de Henri e de outros “salvos” não passam de uma estratégia para

se adaptar a um meio hostil, visto que o Lager é, inclusive, - diz Primo Levi - um

lugar onde não há criminosos e loucos pelo fato de não haver ali lei morais e de os

prisioneiros estarem condicionados às circunstâncias do local (LEVI, 2003: 88).

Portanto, seguir as suas regras e deveres significa a completa destruição, a qual

Henri deseja escapar a todo custo.

Além dos detentos, a crítica de Segre atenta para as personagens civis. A seu

ver, elas são conscientes dos procedimentos cruéis do Lager e mantêm-se

tranquilas e indiferentes aos acontecimentos (SEGRE, 1997: 61). Agem desse modo

as três jovens alemães que trabalham no laboratório de química e mais Fräulein

Liczba e Frau Mayer: “A noi queste ragazze sembrano creature ultraterrene. [...] Con

noi non parlano, e arricciano il naso quando ci vedono trascinarci per il laboratorio,

squallidi e sudici, disadatti e malfermi sugli zoccoli” (LEVI, 2003: 127)20.

Logo no prefácio de SQU, Levi descreve a sua prisão no ano de 1944. Nesse

primeiro momento, ele deixa claro que sua intenção ao escrever não é fazer

acusações. De modo lúcido, afirma que seu livro pode servir de documento para

estudos de aspectos da alma humana. Consciente dos seus possíveis “defeitos”, ele

expressa a necessidade de contar aos “outros” a sua terrível experiência:

19 Henri, pelo contrário, é eminentemente civilizado e consciente e possui uma teoria completa e orgânica quanto às maneiras de sobreviver no Campo [...] De acordo com a teoria de Henri, para fugir à destruição existem três métodos que o homem pode aplicar continuando digno do nome de homem: o "jeito", a compaixão, o roubo. Ele aplica os três (LEVI, 1988: 99-100, tradução de Luigi Del Re).

20 Estas moças nos parecem criaturas sobrenaturais. [...] Nunca falam conosco e torcem o nariz ao ver-nos arrastando-nos pelo Laboratório, miseráveis, sujos, desajeitados, vacilantes sobre os tamancos (LEVI, 1988: 144-145, tradução de Luigi Del Re).

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Per mia fortuna, sono stato deportato ad Auschwitz solo nel 1944... Perciò questo mio libro [...] non aggiunge nulla a quanto è ormai noto ai lettori di tutto il mondo sull’inquietante argomento dei campi di distruzione. Esso non è stato scritto allo scopo di formulare nuovi capi di accusa; potrà piuttosto fornire documenti per uno studio pacato di alcuni aspetti dell’animo umano. [...] Mi rendo conto e chiedo venia dei difetti strutturali del libro. Se non di fatto, come intenzione e come concezione esso è nato già fin dai giorni di Lager. Il bisogno di raccontare agli “altri”, di fare gli altri partecipi, aveva assunto fra noi, prima della liberazione e dopo, il carattere di un impulso immediato e violento, tanto da rivaleggiare con gli altri bisogni elementari: il libro è stato scritto per soddisfare a questo bisogno; in primo luogo quindi a scopo di liberazione interiore. Di qui il suo carattere frammentario: i capitoli sono stati scritti non in successione logica, ma per ordine di urgenza (LEVI, 2003: 9-10)21.

Sobre a dificuldade de narrar dos sobreviventes, Helenice Rodrigues assim se

pronuncia:

Se, então, testemunhar é tentar preservar uma memória, para as testemunhas e/ou sobreviventes dos campos de concentração, narrar esta “experiência limite” é atestar a impossibilidade de dizer e de traduzir o indizível. Essa incapacidade de descrever o inimaginável, de nomear o indescritível, encontra-se presente na introdução do livro de um deportado, resistente (RODRIGUES, 2008: 226).

Em outras palavras, o ato de narrar nasce com o intuito de tornar os “outros”

participantes desse mesmo acontecimento. E o testemunho adquire uma função

primordial: e não só constitui uma fonte documental, mas também é através dele que

o narrador realiza o seu desejo de compartilhar aquilo que viu e vivenciou.

Corroborando aquilo que afirma LaCapra, testemunhar é um atitude esperada de

alguém que passou por uma situação-limite (LACAPRA, 2009: 25), tal qual é a do

narrador. Inclusive, como bem observa Jacques Le Goff sobre a finalidade da

memória (LE GOFF, 1990: 477), a atitude dele expressa uma tentativa de resgatar

um passado atroz, pois um evento tão singular quanto Auschwitz necessita ser

21 Por minha sorte, fui deportado para Auschwitz só em 1944... Este meu livro, portanto, nada acrescenta, quanto a detalhes atrozes, ao que já é bem conhecido dos leitores de todo o mundo com referência ao tema doloroso dos campos de extermínio. Ele não foi escrito para fazer novas denúncias; poderá, antes, fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana. Sou consciente dos defeitos estruturais do livro e peço desculpas por eles. Se não de fato, pelo menos como intenção e concepção o livro já nasceu nos dias do Campo. A necessidade de contar "aos outros", de tornar "os outros" participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa' necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior. Daí, seu caráter fragmentário: seus capítulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência (LEVI, 1988: 7-8, tradução de Luigi Del Re).

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lembrado. Barenghi afirma que a memória em Levi adquiriu um valor em si, como

registro do ocorrido, como relato de uma infâmia tão memorável em sua tragicidade

a ponto de assumir o “valor de anúncio”. O termo “valor de anúncio” quer dizer que a

obra memoralística de Levi possui um valor em si, isto é, “não depende mais do

processo cognitivo que alimenta”, uma vez que “não se trata da revelação de

eventos exteriores, mas da recordação de experiências vividas de forma direta”

(BARENGHI, 2005: 181).

Em 1978, ao conceder uma entrevista a Marco Viglino, Levi afirma que ânsia

em contar a sua experiência

del resto comune a molti, mi è nato nel Lager. Volevamo sopravvivere anche e soprattutto per raccontare ciò che avevamo visto: questo era un discorso comune, nei pochi momenti di tregua che ci erano concessi. Del resto è un desiderio umano: lei non troverà mai un reduce che non racconti (VIGLINO, 2009: on-line)22.

No primeiro capítulo de SQU, Il viaggio (A viagem), inicia-se o drama do

narrador e de outras personagens, seus companheiros. Todos de origem judaica,

em sua maioria famílias inteiras, são enviados ao campo de Fóssoli (província de

Módena), na Itália, o “limbo e antecâmara de Auschwitz” (CAVAGLION, 1997: 76),

onde ficam sob a custódia da polícia fascista, em mais uma referência dantesca,

entre tantas outras, presentes em sua obra. No entanto, eles descobrem que logo

partirão dali e que precisarão enfrentar uma longa e terrível viagem de trem rumo a

um destino num primeiro momento incerto: Auschwitz. Após os preparativos, todos

são inspecionados friamente por oficiais alemães e conduzidos até a estação de

Capri: “(...) Ognuno si congedò dalla vita del modo che più gli si addiceva. Alcuni

pregarono, altribevvero oltre misura, altri si inebriarono di nefanda ultima passione”

22 De resto comum a muitos, nasceu-me no Lager. Queríamos sobreviver também e principalmente para contar aquilo que havíamos visto: este era um discurso comum, nos poucos momentos de trégua que nos eram concedidos. De resto, é um desejo humano: você jamais encontrará algum sobrevivente que não conte (tradução nossa).

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(LEVI, 2003: 13)23. Ao chegarem ali, são trancafiados em claustrofóbicos vagões de

carga:

É preciso pensar o que significava ser posto num trem, no caso em vagões de carga; significava cinquenta a sessenta pessoas, homens, mulheres e crianças, obrigados a ficar cinco dias, dez dias, quinze dias até, quando os trens vinham de Salônica e iam para Auschwitz, sem comer, sem beber, com a promiscuidade que podem imaginar, sem dormir, com um frio intenso no inverno e um calor atroz no verão, com vagões que nunca eram abertos, para que, antes da morte, que ocorria depois nos campos de concentração ou no próprio vagão na maioria dos casos, ocorresse um processo de brutalização; ou seja, havia a vontade expressa de demolir o humano no homem antes ainda de matá-lo (LEVI, 2006d: 194).

Atormentados pelo frio, pela fome e pela sede, os futuros detentos sentem

tão logo as agruras de sua condenação tal como as almas malditas conduzidas ao

inferno pelo barqueiro Caronte, no Canto III do Inferno na Divina Comédia de Dante

Alighieri: “Il treno viaggiava lentamente, con lunghe soste snervanti. [...] Soffrivamo

per la sete e il freddo: a tutte fermate chiedevamo acqua a gran voce, o almeno un

pugno di neve, ma raramente fummo uditi...” (LEVI, 2003: 15)24. Da mesma forma

que nos portões do Inferno havia uma frase que exortava as almas sobre a natureza

do local e sobre aquilo que encontrariam após terem atravessado, também nos

portões de Auschwitz havia outra: Arbeit macht frei (LEVI, 2003: 19): “Seu

significado literal é ‘o trabalho liberta’; seu significado profundo é bem menos claro,

só pode causar perplexidade” (LEVI, 2016a: 11).

A essa primeira etapa da viagem, segue-se um rápido processo de seleção:

aqueles que estão aptos para o trabalho continuam em direção ao trágico destino

para suprir a necessidade de mão-de-obra dos campos; já os demais, não aptos,

são levados à câmera de gás: “Entravano in campo quelli che il caso faceva

scendere da un lato del convoglio; andavano in gas gli altri” (LEVI, 2003: 17)25. Os

23 Cada um se despediu da vida da maneira que lhe era mais conveniente. Uns rezaram, outros se

embebedaram; mergulharam alguns em nefanda, derradeira paixão (LEVI, 1988: 13, tradução de

Luigi Del Re).

24 O trem viajava devagar, com longas e enervantes paradas. [...] Sofríamos com a sede e o frio; a cada parada, gritávamos pedindo água, ou ao menos um punhado de neve, mas raramente fomos ouvidos... (LEVI, 1988: 16, tradução de Luigi Del Re).

25 Entravam no campo os que, casualmente, tinham descido por um lado "certo"; os do outro lado, iam para a câmara de gás (LEVI, 1988: 18, tradução de Luigi Del Re).

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soldados nazistas agiam de forma semelhante àquela de Minós que “orribilmente, e

ringhia” (ALIGHIERI, 1998: 49), no canto V do Inferno de Dante, “quel conoscitor de

le peccata/ vede qual loco d’inferno è da essa;/ cignesi con la coda tante volte/

quantunque gradi vuol che giù sia messa”26 (ALIGHIERI, 1998: 49-50), que se

enrolava sua cauda tantas vezes indicando para qual dos círculos as almas

deveriam ser conduzidas. Szuman, em 1944, anota que “la Divina Commedia

sarebbe um’opera di grande sensazione, se Dante, invece che all’Inferno, fosse stato

nei campi di concentramento” (SZUMAN, 2016: 34).

Mas voltemos rapidamente para a viagem: a viagem de trem constitui um

topos muito comum em obras sobre a Shoah. Para Miglianti, através dos trilhos

ferroviários de metade da Europa

si compie il “viaggio insensato” della deportazione, momento liminare che separa e congiunge la cattura e il Lager. Il trasferimento coatto dall'Italia ai campi del sistema concentrazionario nazista (centoventitré trasporti fra il settembre 1943 e l'aprile 1945) si svolge, in genere, su convogli ferroviari originariamente adibiti al trasporto di merci o bestiame, i cui vagoni, chiusi dall'esterno e piombati, ospitano prigionieri stipati fra loro e sono accompagnati da una scorta composta da SS e, almeno in diverse occasioni, da fascisti. Non a caso, quindi, il treno è uno degli elementi – uno dei luoghi (in senso proprio e figurato) – più ripresi dalle opere letterarie e cinematografiche che si sono confrontate con il tema della deportazione (MIGLIANTI, 2013, on-line)27.

Sousa Ribeiro vê o tema da viagem como uma cartografia do não-espaço, ou

seja,

não é a cartografia do próprio campo de concentração ou de extermínio, mas sim da viagem para o campo. Nesta viagem, a sucessão de lugares é

26 E ele, que bem conhece, para cada/ culpa, o lugar do inferno que a mereça,/ tantas vezes co’ a cauda então se enrola/ quantos graus determina que ela desça (ALIGHIERI, 1998: 49-50, tradução de Ítalo Eugenio Mauro).

27 Completa-se a “viagem insensata” da deportação, momento limiar que separa e agrega a captura e

o Lager. A transferência coata da Itália para os campos do sistema concentracionário nazista (cento e

vinte e três transportes entre setembro de 1943 e abril de 1945) se desenvolve, em geral, em

comboios ferroviários originalmente adequados ao transporte de mercadorias e animais, cujos

vagões, fechados no exterior e chumbados, hospedavam os prisioneiros amontoados entre si e são

acompanhados por uma escolta composta de SS e, pelo menos em diversas ocasiões, de fascistas.

Não por acaso, portanto, o trem é um dos elementos, um dos lugares (em sentido próprio e figurado)

– mais retomados pelas obras literárias e cinematográficas que se confrontaram com o tema da

deportação (tradução nossa).

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apenas aparente; na verdade, a própria noção de movimento é apenas aparente, já que acontece, não no tempo, mas num espaço estagnado, rigidamente estruturado, de que estão ausentes todos os pontos de referência familiares e que é, assim, percebido pelo sujeito como um não-espaço (RIBEIRO, 2008: 8).

A viagem é, concomitantemente, um tropo central da eficácia industrial do

genocídio e uma estratégia utilizada pelo nazismo para manter a docilidade dos

detentos. Essa viagem atribulada, que confina pessoas como animais por dias e que

as mantém sem água ou comida, acaba por ser posteriormente uma experiência

disciplinadora, de desumanização literalmente descivilizadora (RIBEIRO, 2008: 8-9).

“Era nos comboios que a pergunta formulada por Primo Levi – Se isto é um

homem? – podia ser suscitada pela primeira vez no seu pleno e aterrador

significado” (RIBEIRO, 2009: 9).

Primo Levi comenta que “non c'è diario o racconto, fra i molti nostri, in cui non

compaia il treno, il vagone piombato, trasformato da veicolo commerciale a vagone

ambulante o addirittura in strumento di morte” (LEVI, 1991: 80). Para Miglianti, a

viagem de ida, “unico momento comune all'esperienza tanto dei ‘sommersi’ quanto

dei ‘salvati’ – compare in moltissimi dei racconti dei superstiti, e sovente li apre”.

(MIGLIANTI, 2013, on-line)28.

Um efeito prévio dessa experiência é o silêncio quase absoluto dos

deportados após a primeira etapa da viagem. Os berros de ordem dos oficiais

alemães não provocam qualquer reação nos novos detentos, os quais, por medo,

agem acanhadamente para evitar romper o silêncio: “In un momento la banchina fu

brulicante di ombre: ma avevamo paura di rompere quel silenzio, tutti si

affaccendavano intorno ai bagagli, si cercavamo, si chiamavan l’un l’altro, ma

timidamente, a mezza voce [...]” (LEVI, 2003: 16)29.

28 Único momento comum tanto à experiência dos ‘afogados’ quanto à dos ‘sobreviventes’ – aparece

em muitíssimas histórias dos sobreviventes, e frequentemente as abre (tradução nossa).

29 Num instante, a plataforma fervilhou de sombras, mas receávamos quebrar esse silêncio, todos lidavam com a sua bagagem, procuravam-se, chamavam-se, timidamente, porém, e em voz baixa (LEVI, 1988: 17, tradução de Luigi Del Re).

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Auschwitz, que na perspectiva do narrador-testemunha não é “un luogo di

questa terra” (LEVI, 2003: 15), é delineada através de imagens reconduzíveis, mais

uma vez, ao Inferno dantesco, e é explicitamente definido como um “mondo infero”

(LEVI, 2003: 36), “un inferno indecifrabile” (LEVI, 1991: 43) no qual os deportados se

sentem “fuori del mondo” (LEVI, 2003: 138). Os prisioneiros de Auschwitz são

comparados às sombras dos mortos que Ulisses encontrou no Hades, pois segundo

Levi, estão “fuori del mondo, uomini e donne d’aria” (LEVI, 1991: 116) aos quais ele

se refere várias vezes como “larve” ou um “esercito di larve” (LEVI, 2003: 152; LEVI,

2003: 30; LEVI, 1991: 7); são “la folla dei semivivi” (LEVI, 2003: 145), “uomini spenti”

(LEVI, 2003: 45), “vermi vuoti di anima” (LEVI, 2003: 63), “fantasmi” (LEVI, 2003: 11,

23, 56), “spettri affamati” (LEVI, 2003: 143), “fantocci” (LEVI, 2003: 26, 118) que

“partono in marcia come automi; le loro anime sono morte [...] Non c’è piú volontà [...]

non pensano e non vogliono, camminano” (LEVI, 2003: 45)30. Na opinião de

Domenico Scarpa, na obra de Levi o campo de Auschwitz

è un’esperienza materiale prima ancora che intellettuale. Più precisamente è un’esperienza corporea, tattile, un’avventura percettiva. Al fondo della sua condizione di reduce, alla base del suo impegno a ricordare e a testimoniare, alla radice della sua opera di scrittore troviamo questa concretezza: tangibile, ma tutt’altro che semplice (SCARPA, 2014:13)31.

A transformação de homem livre a homem do Lager manifesta-se no capítulo

Sul fondo (No fundo) de SQU. Nesse momento, o narrador - ao lado de seus

companheiros – está às portas do inferno terreno de Auschwitz. Sedento e esgotado

da viagem atribulada, é obrigado a se desfazer de todos os seus pertences e é

imerso com seus companheiros numa grande câmara cuja torneira goteja água

poluída. Ali, todos passam por um processo de desinfestação e são obrigados a

enfrentar o constrangimento de ficarem completamente nus, para, então, ter os seus

cabelos tosquiados. Até mesmo o direito de falar e de ser ouvidos não lhes é

permitido:

30 [...] partem em marcha como autômatos; a alma deles está morta [...]. Não há mais vontade [...] não pensam e não querem, caminham (tradução nossa).

31 É uma experiência material antes mesmo que intelectual. Mais precisamente, é uma experiência corpórea, tátil, uma aventura perceptiva. No fundo da sua condição de sobrevivente, na base do seu empenho em recordar e em testemunhar, na raiz de sua obra de escritor encontramos esta concretude: tangível, mas nada simples (tradução nossa).

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In un attimo, con intuizione quasi profetica, la realtà ci si è rivelata: siamo arrivati al fondo. Più giù di così non si può andare: condizione umana più misera non c’è, e non è possibile. Nulla più è nostro: ci hanno tolto gli abiti, le scarpe, anche i capelli; se parleremo, non ci ascolteranno, e se ci ascoltassero, non ci capirebbero (LEVI, 2003: 23)32.

Relato semelhante é oferecido pelo professor de neurologia Viktor E. Frankl,

ex-detento de Auschwitz, em seu livro Em busca de sentido: “Enquanto ainda

esperamos pelo chuveiro, experimentamos integralmente a nudez: agora nada mais

temos senão este nosso corpo nu (sem cabelos). Nada possuímos a não ser,

literalmente, nossa existência nua e crua.” (FRANKL, 2015: 29). Os relatos de Levi e

de Frankl evidenciam o embaraço dos recém-deportados ao se depararem com uma

carência jamais vivida.

A nova morada de Levi, o Block 30, é um espaço pouco convidativo para o

convívio diário, como se verifica no capítulo Iniziazione (Iniciação), não por acaso

adicionado à versão de 1958, onde o conceito de testemunho é introduzido pelo

personagem Steinlauf, pela primeira vez, a um incrédulo e extenuado Levi. Privado

de mínimas garantias de dignidade, faminto e vivendo num ambiente em condições

precárias de higiene, o narrador adapta-se a sua nova vida de homem do Lager. Em

pouco tempo, deixa-se tomar pela apatia, a qual se mostra na sua falta de vontade

em manter o rito de limpeza diário:

In questo luogo, lavarsi tutti i giorni nell’acqua torbida del lavandino immondo è praticamente inutile ai fini della pulizia e della salute; e invece importantissimo come sintomo di residua vitalità, e necessario come strumento di sopravvivenza morale. Devo confessarlo: dopo una settimana di prigionia, in me l’istinto della pulizia è sparito (LEVI, 2003: 35)33.

Entretanto, é encorajado pelo personagem Steinlauf, a não se deixar abater

pelas adversidades: “il Lager è una gran macchina per ridurci a bestie, noi bestie non

dobbiamo diventare; che anche in questo luogo si può sopravvivere, per raccontare

32 Num instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível. Condição humana mais miserável não existe, não dá para imaginar. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão – e se nos escutarem, não nos compreenderão (LEVI, 1988: 24-25, tradução de Luigi Del Re).

33 Neste lugar, lavar-se cada dia na água turva da pia imunda, bem pouco adianta quanto ao asseio e à saúde; é extremamente importante, porém, como sintoma de resídua vitalidade, e essencial como meio de sobrevivência moral. Tenho que confessar: bastou uma semana de cativeiro para sumir o meu hábito de limpeza (LEVI, 1988: 38, tradução de Luigi Del Re).

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per portare testimonianza” (LEVI, 2003: 35)34. E sobreviver para contar adquire uma

conotação existencial. “A figura do narrador-Levi nasce do testemunho dos campos

de extermínio, do autor-protagonista de Se questo è un uomo: o sobrevivente da

“solução final” que sente a urgência improrrogável de contar as experiências vistas e

as atrocidades sofridas” (BALDASSO, 2007: 22). Pois como também confirma

Consonni,

Shoah survivors fell that they possess an infinite knowledge that cannot be communicated to the uninitiated: the gulf between the event and its representations can perhaps be bridged pragmatically but not cognitively. According to Agambem, this discrepancy is related to the same essence of concentration-camp experience that belongs to the nature of the representation itself – the experience cannot be reduced to indicators that represent it (CONSONNI, 2009: 248)35.

O relato anterior descreve a situação-limite vivenciada tanto pelos detentos de

Auschwitz, onde a questão do trauma ocupa o centro nas discussões, como se pode

constatar nos estudos de Seligmann-Silva (2008) e Lucíola Macêdo (2014). O

trauma e a dificuldade de compreensão de quem perdeu tudo e está prestes a

perder si mesmo:

Poiché accade facilmente, a chi ha perso tutto, di perdere se stesso: tale quindi, si potrà a cuor leggero decidere della sua vita o morte al di fuori di ogni senso di affinità umana; nel caso più fortunato, in base ad un puro giudizio di utilità. Si comprenderà allora il duplice significato del termine “campo di annientamento”, e sarà chiaro che cosa intendiamo esprimere con questa frase: giacere sul fondo (LEVI, 2003: 23)36.

34 O Campo é uma grande engrenagem para nos transformar em animais, não devemos nos transformar em animais; até num lugar como este, pode-se sobreviver, para relatar a verdade, para dar nosso depoimento (LEVI, 1988: 39, tradução de Luigi Del Re).

35 Os sobreviventes da Shoah sentem que eles possuem um infinito conhecimento que não pode ser comunicado aos não iniciados: o abismo entre o evento e suas representações pode, talvez, ser superado de forma pragmática, mas não cognitivamente. Segundo Agambem, esta discrepância está relacionada com a mesma essência da experiência do campo de concentração que pertence à natureza da própria representação – a experiência não pode ser reduzida a indicadores que a representam (tradução nossa).

36 Pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo; transformado em algo tão miserável, que facilmente se decidirá sobre sua vida e sua morte, sem qualquer sentimento de afinidade humana, na melhor das hipóteses considerando puros critérios de conveniência. Ficará claro, então, o duplo significado de “Campo de extermínio”, bem como o que desjo expressar quando digo: chegar ao fundo (LEVI, 1988: 25, tradução de Luigi Del Re).

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O Lager nazista fora concebido em função de um extermínio de massa, aquilo

que Hannah Arendt, referindo-se a Heidegger, denominava come “fabricação de

cadáveres” (ARENDT, 2008: 271). Mas antes da fabricação de corpos mortos

ocorria, como observamos na obra de Levi, o extermínio da individualidade. Arendt

vê os campos como “experimento do domínio total” (ARENDT, 2013: 486) no qual se

efetuava a desintegração da personalidade, processo pertencente ao plano de

destruição da individualidade. Para poder sem completamente anulado, annientato

nas palavras de Levi, o deportado era reduzido, literalmente, à sua nua corporeidade

e, por isso, o corpo torna-se motivo central dos testemunhos da Shoah. A

desumanização, que culminava com o extermínio, é visualizada através do corpo.

Na perspectiva de Michaels,

a política nazista ia além do racismo, era antimatéria, pois os judeus não eram considerados humanos. Um velho truque de linguagem, usado muitas vezes no curso da história. Os não-arianos não deviam nunca ser mencionados como humanos, mas como Figuren, Stücke – “bonecos”, “madeira”, “mercadoria”, “trapos”. Nenhum humano estava sendo morto na câmara de gás, só Figuren, de forma que não havia violação ética. Ninguém podia ser acusado de crime por queimar lixo, por queimar trapos e restos no sujo porão da sociedade. Tudo isso é que era, na verdade, um risco de incêndio! Que fazer senão queimar antes que significassem uma ameaça a você... (MICHAELS, 1997: 127).

Pensemos às descrições do corpo de Robert Antelme, sobrevivente de

Buchenwald, que Marguerite Duras, sua mulher, faz em La Douleur.37 Duras

descreve o aspecto e as funções psicológicas do corpo do marido após seu retorno

a Paris, um corpo onde havia muito pouco de humano. Como alguém estranha ao

evento, a escritora francesa observa como o corpo de Antelme testemunhe algo de

desumano, mas também, e principalmente, nas relações autobiográficas dos

sobreviventes onde a experiência desumana é transmitida através do tema do corpo.

37 Per diciassette giorni l’aspetto della merda restò lo stesso. Inumano. Ci separava da lui più della febbre, della magrezza, delle dita prive d’unghie, delle tracce che i colpi delle SS avevano lasciato sul suo corpo. Gli davamo brodo giallo-oro, brodo per neonati; veniva fuori da lui verdescuro, come fanghiglia di palude. Richiuso l’asse del gabinetto, si udivano bolle d’aria scoppiettare alla superficie. Quella merda faceva pensare, così viscida e mucillaginosa, a un grosso scaracchio. Non appena era fuoriuscita, il gabinetto si empiva di un odore non di putrefazione, di cadavere – e tuttavia c’era ancora nel suo corpo materia di cadavere – spesso. Era un odore scuro e spesso, quasi il riflesso della spessa notte dalla quale era uscito, e che non avremmo conosciuto mai (DURAS, Marguerite. Il dolore. Tradução de Giovanni Mariotti. Milano: Feltrinelli, 1985: 52).

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O corpo do sobrevivente, portanto, é o lugar que conserva o trauma e garante o

testemunho, além de ser usado como motivo central para transmitir a memória em

testemunho literário.

Zampieri elucida que

La fame determina nella vittima la scoperta de uma tale separazione, ma dal lato imprevisto, dal lato oposto rispetto a quello tentato per secoli nella nostra cultura, dal lato del corpo: noi ci siamo pensati prima di tutto come anima e spirito e coscienza e ragione e ci scopriamo corpo, pura sostanza, carne ed ossa, senza spiriti, senza coscienza, senza ragione, senza volontà (ZAMPIERI, 1996:17)38.

No entanto, para além da questão do trauma, a memória, na obra leviana,

pode ser pensada também sob a perspectiva alimentar.

38 A fome determina uma descoberta de uma tal separação na vítima, mas do lado imprevisto, do lado oposto em relação àquele tentado por séculos na nossa cultura, do lado do corpo: nós nos pensamos antes de tudo como alma e espírito e consciência e razão e nos descobrimos corpo, pura substância, carne e osso, sem espírito, sem consciência, sem razão, sem vontade (tradução nossa).

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4 – Memórias da abundância e da fome

Fazendo um breve recuo às palavras da epígrafe do capítulo anterior,

retiradas do primeiro capítulo de I sommersi e i salvati, de agora em diante SES,

Levi afirma que “a memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falaz”

(LEVI, 1991: 14). Continua afirmando que nossas recordações se modificam com o

passar do tempo, que aumentam à medida que incorpora novos elementos, que

pode ser falsificada por traumas e não penas cerebrais, que seus contornos se

ofuscam, enfim, que sofrem inúmeras interferências inclusive de recordações que

ele chama de “concorrentes”. Outrossim, afirma que “è anche vero che un ricordo

troppo spesso evocato, ed espresso in forma di racconto, tende a fissarsi in uno

stereotipo, in una forma collaudata dall’esperienza, cristallizzata, perfezionata,

adorna, che si installa al posto del ricordo greggio e cresce a sue spese” (LEVI,

1991: 15)39. Uma dentre as tantas recordações de Levi, estas memórias evocadas

com excessiva frequência, cristalizadas e aperfeiçoadas com o passar do tempo e,

obviamente, com a já citada influência de outras delas, são as memórias ligadas à

fome e ao tema da comida.

Ao longo de SQU e de outras tantas obras levianas, diversas são as menções

em torno da comida. Tal fato não se dá por mero acaso, pois na opinião de Frankl, o

instinto de alimentação “face ao estado de extrema subnutrição em que se

encontravam os prisioneiros, é compreensível que, entre os instintos primitivos que

representam a ‘regressão’ da vida psicológica no campo, o instinto de alimentação

ocupasse o lugar principal” (FRANKL, 2015: 45).

Zuccarello sugere que o modo como Levi aborda o tema da comida consegue

ser um bom condutor de cenas de aventuras trágicas, cômicas, patéticas e

picarescas (ZUCCARELLO, 2010: 181). A começar pela poesia de abertura do livro,

Shemà, que oferece um primeiro indício de uma memória ligada à alimentação, tema

desta dissertação.

39 Mas também é verdade que uma recordação evocada com excessiva frequência, e expressa em forma narrativa, tende a fixar-se num estereótipo, numa forma aprovada pela experiência, cristalizada, aperfeiçoada, ataviada, que se instala no lugar da recordação não trabalhada e cresce à sua custa. (LEVI, 1990: 9, tradução de Luiz Sérgio Henriques).

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Sendo uma clara referência à Torá, o seu eu-lírico convida o leitor acolhido na

segurança de seu lar a refletir sobre a condição desumana vivenciada pelo homem

do Lager. Nesse momento, ele exprime a contraposição entre aqueles que

“encontram a comida quente” e os que “lutam por um pedaço de pão”, ou seja, entre

abundância e a fome – elementos simultaneamente antagônicos e complementares

(CONTRERAS, 2015):

Voi che vivete sicuri Nelle vostre tiepide case, Voi che trovate tornando a sera Il cibo caldo e visi amici: Considerate se questo è un uomo Che lavora nel fango Che non conosce pace Che lotta per mezzo pane Che muore per un sì o per un no (LEVI, 1989: 2)40.

A felicidade do homem, para o poeta, aqui, está encerrada em duas palavras:

casa e cibo Quando não é preciso temer a própria existência porque se está

circundado por “visi amici”, quando se tem um teto sob o qual refugiar-se e quando a

fome não atormenta o estômago, não se pode desejar outra vida. Certamente, antes

da deportação para Auschwitz, outras deveriam ser as exigências, mas após a

experiência do Lager, mesmo uma existência simples, mas tranquila, se lhe

apresentava como um precioso dom. Portanto, ele convida toda a humanidade feliz,

que não viveu o horror dos campos, a tomar consciência da realidade deles -

“Considerate se questo è un uomo...” - e as “tiepide case” contrapõem-se à “lama”

de Buna, ao “cibo caldo” e “mezzo pane” conquistado a duras penas estão

contrapostos aos homens que vivem “sicuri” entre “visi amici”, o prisioneiro “che non

conosce pace” e “che muore per un sì o per un no”41.

40 Vocês que vivem seguros/ em suas cálidas casas,/ vocês que, voltando à noite, encontram comida quente e rostos amigos,/ pensem bem se isto é um homem/ que trabalha no meio do barro,/ que não conhece paz,/ que luta por um pedaço de pão,/ que morre por um sim ou por um não [...] (LEVI, 1988: 8, tradução de Luigi Del Re).

41 Considerem se isto é um homem; tépidas casas; comida quente e rostos amigos; que não conhece

paz e que morre por um sim e um não (tradução nossa).

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A seguir, abordar-se-ão detalhadamente essas memórias de abundância e

fome.

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4.1 – As memórias de abundância

Sei o que é passar necessidade e sei o que é ter fartura. Aprendi o segredo de viver contente em toda e qualquer situação, seja bem alimentado, seja com fome, tendo muito, ou passando necessidade (Filipenses 4:12).

Todo ser vivente é caracterizado por certo número de necessidades, e elas

expressam a sua dependência em relação ao ambiente externo. Querendo limitar a

nossa observação apenas aos seres humanos, percebemos um comportamento de

busca quando devem se nutrir, se refugiar e se reproduzir. A conquista dos meios

necessários a essas necessidades é fonte de prazer e de satisfação. Já a privação

pode ser acompanhada de comportamentos agressivos contra obstáculos reais ou

presumidos e que impedem o acesso a tais meios. Portanto, a satisfação das

necessidades pode-se dar de maneira mais ou menos fácil. Por exemplo, quando a

gama de alimentos disponíveis é adequada à demanda, quando tais alimentos estão

disponíveis em quantidades tais que qualquer um pode fazer estoque deles, sem ter

que subtrair nada aos outros, fala-se, então, de uma situação de abundância.

Perguntamo-nos, então, por que a abundância ao invés de ser uma situação natural,

é uma meta que os nossos esforços buscam constantemente e que, em muitos

momentos não conseguimos alcançá-la? Trova responde que “se lo stomaco non ha

ideali ed è conservatore se è sazio, è anarchico se è vuoto” (TROVA, 1993: 189) 42.

Já Dias afirma que alimentar-se é, provavelmente, o mais primordial e mais

humano dos comportamentos, na medida em que a supressão deste agir é

incompatível com a vida. Aponta também que dentre os modos de relação com o

mundo exterior proporcionados pelos sentidos de que o homem está dotado, a

alimentação é o menos nobre, porém o mais vital e o mais necessário à mecânica

da vida, ao lado da respiração. É possível para o homem viver, por exemplo, sem os

estímulos proporcionados pelo sentido da visão, por aqueles da audição, sem os

42 Se o estômago não tem ideais, e é conservador se está saciado, é anárquico se está vazio (tradução nossa).

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movimentos ou até mesmo sem o sentido do tato, porém, sublinha que a privação de

água e de alimentos ocasiona a morte rapidamente (DIAS, 2008: 162).

Toquemos então o tema da abundância. Antes de tudo, ela simboliza o maior

dos desejos humanos porque ela implica um ideal de vida e de conduta que nem

sempre corresponde com a realidade de inúmeras sociedades.

A sua semântica – que, em tese, significa “grande porção; quantidade mais

que suficiente para suprir as necessidades; profusão, fartura, abastança” (HOUAISS,

2007: 33) – mostra-se ampla, visto que abrange fatores econômicos, sociais e

alimentares. Entretanto, pode oferecer um direcionamento ao que se propõe para

esta dissertação em relação à questão alimentar.

Na Idade Média, muitas utopias surgiram na tentativa de superar a ameaça

real da fome, sendo a mais expressiva delas, a do mítico País da Cocanha, lugar de

riquezas e prazeres inesgotáveis. Dentre essas riquezas e prazeres, o alimento

encontra uma posição de destaque. Assim é descrito o lugar no Fabliau de Cocagne:

Os caibros lá são esturjões Os telhados de toicinho, As cercas são de salsichas. [...] Pois de carne assada e presunto São cercados os campos de trigo; Pelas ruas vão se assando Gordos gansos que giram Sozinhos, regados Com branco molho de alho. Digo ainda a vocês que por toda parte, Pelos caminhos e pelas ruas, Encontram-se mesas postas Com toalhas brancas. Onde se pode beber e comer Tudo o que quiser sem problema (FRANCO JR., 1998: 29).

Franco Júnior afirma que o país imaginário rompe com as hierarquias sociais

e permite que todos possam comer e beber gratuitamente aquilo que querem. Na

terra da abundância absoluta, a garantia da sobrevivência não é o único objetivo:

alia-se a sequência biológica da necessidade-desejo-satisfação a outra de teor mais

cultural do que natural, baseada na relação “desejo-necessidade indeterminada-

satisfação imediata” (FRANCO JR, 2009, on-line).

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Numa perspectiva concreta da abundância, há a imagem da casa, “tópico das

recordações de infância” e “sítio de uma memória fundamental” (PERROT, 2005:

299). Das recordações mais marcantes ligadas à casa, parte delas gira em torno da

comida. As refeições à mesa, os odores que atiçam o paladar, a mãe a preparar os

alimentos e a companhia de familiares estão entre as lembranças mais comuns,

tanto que a primeira referência ao alimento aparece com as mães que preparam a

comida a seus filhos para a viagem (ZUCCARELLO, 2010: 182).

Aquelas mães hebraico-italianas retratadas em SQU, ainda que aprisionadas

no campo de Fóssoli, conservam os mesmos rituais da casa numa rotina de

aparente normalidade. Ao descrever a ação delas, Levi interpela o leitor a emitir um

juízo sobre a sua conduta: “Ma le madri vegliarono a preparare con dolce cura il cibo

per il viaggio [...] Non fareste voi altrettanto? Se dovessero uccidervi domani col

vostro bambino voi non gli daresti oggi da mangiare? (LEVI, 2003: 13)43. Este

aspecto do cuidado no preparo do alimento, é uma tradição da cultura hebraica e

que, na opinião de Valabrega é um emblema da ternura maternal, do calor humano

da família e cuja unidade "vale mais do que o nome de Deus", de acordo com uma

lenda de derivação talmúdica (VALABREGA, 1997: 268-269). Em seguida, são das

mulheres da família do personagem Gattegno que se dedicam ao mesmo ritual de

preparo de alimento para a viagem seguido do ritual do luto:

Le loro donne furono le prime fra tutte a sbrigare i preparativi per il viaggio, silenziose e rapide, affinché avanzasse tempo per il lutto; e quando tutto fu pronto, le focacce cotte, i fagotti legati, allora si scalzarono, si sciolsero i capelli, e disposero al suolo le candele funebri, e le accesero secondo il costume dei padri, e sedettero a terra a cerchio per lamentazione, e tutta notte pregarono e piansero (LEVI, 2003: 13)44.

As memórias de abundância aparecem em SQU em menor proporção do que

aquelas ligadas à fome. No entanto, sua relevância advém do fato de elas estarem

43 Mas as mães, porém, ficaram acordadas para preparar com esmero as provisões para a viagem. [...] E estivessem para ser mortos, amanhã, junto com seus filhos, será que hoje não lhes dariam de comer? (LEVI, 1988: 14, tradução de Luigi Del Re).

44 As mulheres foram as primeiras a ocupar-se dos preparativos da viagem, caladas e rápidas, para que não faltasse tempo para o luto e, quando tudo ficou pronto, assado o pão, amarradas as trouxas, então tiraram os sapatos, soltaram o cabelo, fincaram no chão as velas fúnebres e as acenderam, conforme o uso de seus antepassados; sentaram em círculo para a lamentação; rezaram e choraram durante toda a noite (LEVI, 1988: 14, tradução de Luigi Del Re).

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em nível individual e de sugerirem a vida pregressa daqueles prisioneiros, Levi

incluso.

Viktor Frankl menciona o costume recorrente entre os prisioneiros de falar

sobre a comida:

a primeira coisa de que começam a falar é comida. Imediatamente alguém começará por perguntar ao colega que trabalha a seu lado na vala qual seu prato favorito. Começam a trocar receitas e compor menus para o dia em que pretendem convidar-se mutuamente para um reencontro, futuramente, depois de libertos e de volta em casa (FRANKL, 2015: 45).

Falar sobre a comida predileta ou trocar receitas implica trazer à tona um

aspecto propriamente subjetivo, podendo, inclusive, relevar uma característica

identitária do sujeito que fala. Em SQU, o diálogo entre os prisioneiros Sigi e Béla

exemplifica essa reflexão. Após terem assistido ao espetáculo da escavadeira, que

será analisado mais adiante, começam a falar sobre as suas práticas alimentares

anteriores à reclusão:

Sigi ha diciassette anni, ed ha più fame di tutti quantunque riceva ogni sera un po’ di zuppa da un suo protettore, verosimilmente non disinteressato. Aveva cominciato col parlare della sua casa di Vienna e di sua madre, ma poi è scivolato nel tema della cucina e ora racconta senza fine di non so che pranzo nuziale, e ricorda con un genuino rimpianto, di non aver finito il terzo piatto. E tutti lo fanno tacere e non passano dieci minuto, che Béla ci descrive la sua campagna ungherese, e i campi di granoturco, e una ricetta per fare la polenta dolce, con la meliga tostata, e il lardo, e le spezie, e viene maledetto, insultato, e comincia un terzo a raccontare... (LEVI, 2003: 67)45.

Nas descrições acima a riqueza de detalhes causa incômodo àqueles que

provam da “fome desconhecida”. Porém, funcionam como um estímulo para que

outros comecem a falar sobre as suas lembranças em torno do alimento. Frankl

considera as imagens de iguarias “muito intensas e carregadas de sentimento” para

alguém já adaptado a reduzidas porções de ração (FRANKL, 2015: 46).

45 Sigi tem dezessete anos e mais fome que todos, embora a cada noite receba um pouco de sopa de seu protetor, presumivelmente não desinteressado. Começou falando de sua casa em Viena, e de sua mãe; logo descambou para o tema da comida; agora conta sem parar a história de não sei qual jantar de núpcias e lembra, com sincero pesar, que não acabou seu terceiro prato de sopa de feijão. Todos mandam que cale a boca, mas não passam dez minutos e já Bela nos descreve a sua campina húngara, e os milharais, e uma receita para cozinhar polenta doce, com as espigas torradas, o toucinho, as especiarias, e. "e é amaldiçoado, insultado, e mais outro começa a contar...” (LEVI, 1988: 74, tradução: Luigi Del Re).

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Mas era impossível para aqueles homens esquecer o que outrora comiam,

pois “nessun maggior dolore/ che ricordarsi del tempo felice/ ne la miseria”

(ALIGHIERI,1998: 53)46. Na opinião dos irmãos Jean-Yves e Marc Tadiè tal tipologia

de recordação pode ser enquadrada no tipo de memória que eles chamam de

“memória dos cinco sentidos” (TADIÈ, 199: 195). Classificam-na como uma memória

involuntária quando, por exemplo, no romance de Marcel Proust, Em busca do

tempo perdido, a cidade de Combray, esquecida pelo narrador, é relembrada graças

ao sabor da madeleine (TADIÉ, 1999: 196-197):

Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saia antes da hora da missa) minha tia Leôncia me oferecia, depois de o ter mergulhado no seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto. [...] Mas quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, - sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, - o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando, sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação (PROUST, 1958: 46-47).

Mas reflitamos um pouco mais com Proust quando ele considera “razoável” a

ideia céltica de que as almas daqueles que já perdemos encontram-se cativas em

outro ser inferior, animal, vegetal, qualquer coisa inanimada, e que, assim que as

reconhecemos elas são libertadas do objeto que lhes aprisiona, e ainda, libertas por

nós triunfam sobre a morte e retornam ao nosso convívio:

É assim com o nosso passado. Trabalho perdido é procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora do seu domínio e do seu alcance, nalgum objeto material (na sensação que nos daria este objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca (PROUST, 1956: 45).

Levi recorda, com comiseração, a última refeição feita antes de sua

deportação para o Lager:

mi danza davanti agli occhi la pasta asciutta che avevamo appena cucinata, Vanda, Luciana, Franco ed io, in Italia al campo di smistamento, quando ci è giunta a un tratto la notizia che all’indomani saremmo partiti per venire qui; e

46 Não há tão grande dor/ qual da lembrança de um tempo feliz/ quando em miséria (ALIGHIERI, 1998: 53, tradução de Ítalo Eugenio Mauro).

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stavamo mangiandola (era così buona, gialla, solida) e abbiamo smesso, noi sciocchi, noi insensati: se avessimo saputo! (LEVI, 1989: 127)47.

Levi descreve uma experiência sensorial que sintetiza a visão, o paladar e o

tato, e como numa espécie de miragem, vê diante dos seus olhos a imagem do

macarrão. Destarte, Marco Belpoliti, um dos maiores estudiosos do escritor

turinense, compartilha a opinião dos irmãos Tadiè ao afirmar que

un po’ come il Proust della Recherche, Levi racconta il potere evocativo che possiede l’odorato, uno dei sensi prossimali, di cui sono dotati gli esseri umani e non solo loro, visto che i mammiferi come gli insetti odorano tutto. Semmai proprio gli umani hanno degradato l’odore da fonte di conoscenza a senso minore, a vantaggio della vista e dell’udito, sensi distali, che colgono appunto le cose poste a distanza (BELPOLITI, 2016: on-line)48.

Mas vejamos também, para além da explicação literária, o que nos informam

os irmãos Tadiè a respeito da memória no trecho proustiano e que bem se adapta

àquele leviano. Afirmam que “dans l’example de la madeleine de Proust, le stimulus

de forte intensité est constitué par la joie ressentie en mangeant cette friandise dans

un contexte à forte connotation affective”49 (TADIÈ, 1999: 203). Já para Levi, essa

mesma conotação afetiva está ligada a um episódio menos alegre do que aquele

narrado por Proust. E seguem os irmãos informando que

des années plus tard, le simple goût de cette Madeleine stimule une façon moins intense de neurones à potentialisation à long terme qui avaient engrammé la scène d’autrefois avec tout son context émotionnel ; ce goût fait décharger à ses neurones la même onde qu’autrefois, et l’on ressent la sensation elle-même (TADIÈ, 1999 : 203)50.

47 Dança na frente de meus olhos o macarrão que tínhamos recém-cozinhado, Vanda, Luciana, Franco e eu, na Itália, no campo provisório, quando, de repente, soubemos que no dia seguinte viríamos para cá; estávamos comendo a massa (tão gostosa, amarela, no ponto) e paramos, burros, insensatos: se soubéssemos! (LEVI, 1988: 74-75, tradução de Luigi Del Re).

48 Um pouco como o Proust da Recherche, Levi conta o poder evocativo que o olfato possui, um dos sentidos proximais, do qual são dotados os seres humanos e não apenas eles, visto que os mamíferos, como os insetos, cheiram tudo. Quando muito os humanos degradaram o odor de fonte de conhecimento a sentido menor, em vantagem da visão e da audição, sentidos distais, que, exatamente, percebem as coisas a distância (tradução nossa).

49 [...] no exemplo da madeleine de Proust, o estímulo de forte intensidade é constituido pela alegria

sentida ao comer essa iguaria num contexto de forte conotação afetiva (tradução nossa).

50 Anos mais tarde, o simples gosto desta Madeleine estimula uma maneira menos intensa de

neurônios à potencialização a longo prazo que tinham deixado sua marca na lembrança da cena de outrora, com todo o seu contexto emocional; este gosto faz descarregar sobre seus neurônios a mesma onda de outrora, e a própria sensação é sentida novamente (tradução nossa).

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Dentre as tipologias de memória sensorial, além daquela gustativa, a olfativa,

como sublinhada por Belpoliti, também se revela de grande importância: é através

da percepção de um odor que a mente retorna aos dias terríveis do Lager vividos

por Levi e reevoca momentos trágicos, trazendo à tona o odor daquela não-vida dos

campos, dos fornos crematórios, da morte que governava e imperava naqueles

lugares geograficamente remotos para os prisioneiros, mas mentalmente próximos a

eles após a liberação. No ensaio denominado Il linguaggio degli odori presente em

L’altrui mestiere, Levi, retornando para Auschwitz três décadas depois de sua

liberação, repercorre um caminho semelhante ao de Proust através da experiência

da percepção do odor exalado, entre outras coisas, pelo carvão fóssil do

aquecimento das casas daquele campo:

sono diventato chimico […] per trovare o costruirmi un’occasione di esercitare il mio naso […] e tutti gli odori, gradevoli o no, sono straordinari suscitatori di memorie. […] Quando ho rivisitato Auschwitz dopo quasi quarant’anni, lo scenario visivo mi ha dato una commozione reverente ma lontana, per contro, l’”odore di Polonia”, innocuo, sprigionato dal carbon fossile usato per il riscaldamento delle case mi ha percosso come una mazzata: ha risvegliato a un tratto un intero universo di ricordi, brutali e concreti, che giacevano assopiti, e mi ha mozzato il respiro (LEVI, 1985: 229)51.

Tal procedimento, involuntário, torna-se violento por sua própria natureza:

Levi, de fato, estabelece um paralelo, através do longo eixo da memória, entre o

campo de concentração e um normal momento de sua juventude em Turim. Através

das contaminações agressivas de lembranças e odores, se encontram e se

embatem dois mundos opostos, segundo a direção da perspectiva assumida: o

presente pode parecer um símbolo de morte ou desolação, e o passado, uma cifra

repleta de esperanças afinal perdidas.

Belpolitti comenta ainda que para Levi o olfato

ha un valore positivo, come avviene in certe pagine di La strada di Swann, che forse Levi all’epoca non aveva ancora letto, ma che entra nel suo

51 Tornei-me químico [...] para encontrar ou construir-me uma ocasião de exercitar meu nariz [...] e todos os odores, agradáveis ou não, são extraordinários suscitadores de memória. [...] Quando revisitei Auschwitz depois de quase quarenta anos, o cenário visual me deu uma comoção reverente, mas distante, ao contrário, o “odor de Polônia”, inócuo, exalado pelo carvão fóssil usado para o aquecimento das casas, me golpeiam como uma paulada: despertou, de repente, um inteiro universo de recordações, brutais e concretas, que jaziam adormentadas, e me deixou sem ar (tradução nossa).

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patrimonio genetico. Nel romanzo di Proust l’intero edificio narrativo non solo poggia sul ricordo, ma proprio sull’odorato e sul gusto, sensi strettamente connessi. Ma non c’è solo questa forza evocativa legata ai ricordi. A scorrere le pagine dell’intera opera dell’ex deportato si scopre che esistono ampi paesaggi olfattivi, spesso riferiti a medesimi oggetti odorosi e alle stesse materie: funghi, palude, muffa, fieno, neve; al cibo: rape, aglio, incenso, cannella; e alla chimica, che è una delle fonti olfattive più presenti nelle sue pagine (BELPOLITI, 2016: on-line)52.

O próprio Levi escreve que “os cheiros de ‘lá’ ainda hoje me sobressaltam”

(LEVI, 2016c: 153). Gordon assevera que Levi “registra lucidamente as contínuas

transações entre atos de memória sensoriais e intelectuais, involuntários e

voluntários” (GORDON, 2004: 56). Assim as memórias sensorial e involuntária

constituem outro leitmotiv da narrativa leviana, e são recorrentes em três temas: os

sonhos, os odores e a música, sendo que este último, embora importante, distancia-

se da perspectiva da análise da presente pesquisa. Di Castro comenta que para Levi

é

come se questa memoria involontaria, inutile senza significato, forse proprio perché involontaria, inutile e insensata, fosse paradossalmente il ricordo o l’immagine, della memoria stessa, che mostra la non perfetta coincidenza tra memoria come condizione e ricordi specifici, tra memoria e percezione, tra la memoria come possibilità e il tentativo nazista di distruggerla (DI CASTRO, 2014: 106)53.

Os sonhos desempenham um papel fundamental na representação leviana

das experiências do Lager. Nas pausas do sono, retornam as recordações da vida

pregressa aos campos daqueles homens ali aprisionados, e com o sono e o sonho

retorna também, na vida após os campos, o temor que o presente possa contaminar

e anular aquilo que lhes é conhecido e que realizaram antes de sua deportação. Em

um dos trechos mais conhecidos de SQU, o escritor explica como todos os 52 Tem um valor positivo, como acontece em certas páginas de A estrada de Swann, que à época, talvez Levi ainda não havia lido, mas que entra em seu patrimônio genético. No romance de Proust todo o edifico narrativo não se apoia apenas na lembrança, mas exatamente no olfato e no paladar, sentidos estritamente conexos. Mas não há apenas esta força evocativa ligada às lembranças. A percorrer as páginas da inteira obra do ex-deportado descobre-se que existem amplas paisagens olfativas, frequentemente referidas aos mesmos objetos odorosos e às mesmas matérias: cogumelos, pântano, mofo, feno, neve; à comida: nabos, alho, incenso, canela; e à química, que é uma das fontes olfativas mais presentes nas suas páginas (tradução nossa).

53 Como se essa memória involuntária, inútil, sem significado, talvez exatamente porque é involuntária, inútil e insensata, fosse paradoxalmente a recordação ou a imagem, da própria memória, que mostra a não perfeita coincidência entre memória como condição e recordações específicas, entre memória e percepção, entre a memória como possibilidade e a tentativa nazista de destruí-la (tradução nossa).

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prisioneiros maturaram, na sua maioria, dois recorrentes sonhos dentro de si. O

primeiro é aquele do retorno à vida, à normalidade, à cotidianidade deixada para trás

quando da entrada no outro mundo do campo de concentração, além do medo de

não encontrar interlocutores capazes de ouvir e de acreditar na verdade de seus

testemunhos:

Qui c’è mia sorella, e qualche amico non precisato, e molta altra gente. Tutti mi stanno ascoltando, e io sto raccontando proprio questo: il fischio su tre note, il letto duro, il mio vicino che io vorrei spostare, ma ho paura di svegliarlo perché è più forte di me. Racconto anche confusamente della nostra fame, e del controllo dei pidocchi, e del Kapo che mi ha percosso sul naso e poi mi ha mandato a lavarmi perché sanguinavo. È un godimento intenso, fisico, inesprimibile, essere nella mia casa, fra persone amiche, e avere tante cose da raccontare: ma non posso non accorgermi che i miei ascoltatori non mi seguono. Anzi, essi sono del tutto indifferenti: parlano confusamente d’altro tra di loro, come se io non ci fossi. Mia sorella mi guarda, si alza e se ne va senza far parola (LEVI, 2003: 53).54

O segundo é um sonho de caráter explicitamente culinário, caracterizado

pela impossibilidade de se obter comida e bebida, dos quais percebem “um odor rico

e violento” (LEVI, 2003, 54). Freitas assevera que o homem faminto “interpreta e

compreende sua fome desvelando-a como uma figuração, uma qualidade ou um

julgamento, sem uma estrutura de fundo e sem uma definição clara” (FREITAS,

2003: 38). O sonho igualmente se apresenta na epígrafe de La tregua, também aqui

ligado à comida:

Sognavamo nelle notti feroci Sogni densi e violenti Sognati con anima e corpo: Tornare; mangiare; raccontare. Finché suonava breve sommesso Il comando dell’alba: “Wstawac”; e si spezzava in petto il cuore. (LEVI, 2003: 155)55

54 Aqui está minha irmã, e algum amigo (qual?), e muitas outras pessoas. Todos me escutam, enquanto conto do apito em três notas, da cama dura, do vizinho que gostaria de empurrar para o lado, mas tenho medo de acordá-lo porque é mais forte que eu. Conto também a história da nossa fome, e do controle dos piolhos, e do Kapo que me deu um soco no nariz e logo mandou que me lavasse porque sangrava. É uma felicidade interna, física, inefável, estar em minha casa, entre pessoas amigas, e ter tanta coisa para contar, mas bem me apercebo de que eles não me escutam. Parecem indiferentes; falam entre si de outras coisas, como se eu não estivesse. Minha irmã olha para mim, levanta, vai embora em silêncio. (LEVI, 1988: 60, tradução de Luigi Del Re)

55 Sonhávamos nas noites ferozes/ sonhos densos e violentos/ sonhados de corpo e alma:/ voltar; comer; contar./ Então soava breve e submissa/ a ordem do amanhecer "Wstavzch";/ E se partia no peito o coração (LEVI, 2010: 5, tradução de Marco Lucchesi).

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E o mesmo sonho conclui o livro. Segundo Feliciotti, o tema análogo, proposto

na epígrafe e na conclusão, demonstra a simetria narrativa tão cara a Levi:

Wstawac! Questo sogno si trova nell’ultimo capitolo de La tregua, significativamente intitolato “Il risveglio”, dove in quattro pagine è descritto il tratto finale del ritorno da Auschwitz: da Monaco al Brennero, alla sua casa di Torino. Nel complesso, per chi sta terminando il bildungsroman e ha seguito i suoi tempi della sua Iliade e della sua Odissea, un ciclo sembra chiudersi: viaggio dantesco che a vent’anni l’ha precipitato dentro l’inferno; esilio della deportazione, e nostos che l’ha condotto a peregrinare per mezz’Europa. È la fine de un incubo, l’inizio di un’esistenza normale, il risveglio alla vita (FELICIOTTI, 2001:23-24)56.

Uma importante figura que detém aspectos de uma vida pregressa aos

campos é a do muçulmano, “ma ai mussulmani, agli uomini in dissolvimento, non

vale la pena di rivolgere la parola, poiché già si sa che si lamenterebbero, e

racconterebbero quello che mangiavano a casa loro” (LEVI, 2003: 80)57.

Falamos aqui de uma angústia, angustia essa que se mostra constantemente

nos sonhos das personagens. O sonho representa uma passagem da barreira entre

a vida normal e a vida no Lager e vice-versa (SEGRE, 1997: 72). Na visão dos

irmãos Tadié, os sonhos revelam-se como uma forma de ação e percepção cerebral

que pode reativar antigas lembranças, e constituem a transposição de cenas

vivenciadas num passado recente ou mais remoto. (TADIÉ, 1999: 146-147)

Frankl afirma que os sonhos com a comida resultam do fato que a

necessidade de se alimentar não era satisfeita e, portanto, levava os indivíduos a

experimentá-la em seus sonhos (FRANKL, 2015: 44). Da mesma forma, Levi os

descreve:

56 Wstawac! Este sonho encontra-se no último capítulo de La tregua, significativamente intitulado “O Despertar” onde, em quatro páginas, é descrito o trecho final do retorno de Auschwitz: de Munique a Brennero, para a sua casa de Turim. No complexo, para quem está terminando o seu bildunsroman e seguiu os seus tempos da sua Ilíada e da sua Odisseia, um ciclo parece se fechar: viagem dantesca que há vinte anos o precipitou dentro do inferno, exílio da deportação e nostos que o conduziu a peregrinar por meia Europa. É o final de um pesadelo, o início de uma existência normal, o despertar para a vida (tradução nossa).

57 Quanto aos "muçulmanos", porém, aos homens próximos do fim, nem adianta dirigir-Ihes a palavra; já se sabe que eles só se queixariam, ou contariam como comiam bem em sua casa (LEVI, 1988: 90, tradução de Luigi Del Re).

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Si sentono i dormienti respirare e russare, qualcuno geme e parla. Molti schioccano le labbra e dimenano le mascelle. Sognano di mangiare: anche questo è un sogno collettivo. È un sogno spietato, chi ha creato il mito di Tantalo doveva conoscerlo. Non si vedovo soltanto i cibi, ma si sentono in mano, distinti e concreti, se ne percepisce l’odore ricco e violento; qualcuno ce li avvicina fino a toccare le labbra, poi una qualche circostanza, ogni volta diversa, fa sì che l’atto non vada a compimento. Allora il sogno si disfa e si scinde nei suoi elementi, ma si ricompone subito dopo, e ricomincia simile e mutato: e questo senza tregua, per ognuno di noi, per ogni notte e tutta la durata del sonno (LEVI, 2003: 54)58.

O mesmo núcleo inerente aos medos primários e aos desejos expressos de

modo onírico pode ser lido no já citado capítulo Il risveglio, na seção conclusiva de

La tregua, onde Levi retoma elementos já indicados em SQU, como os amigos, a

família e a comida:

É un sogno entro un altro sogno, vario nei particolari, unico nella sostanza. Sono a tavola con la famiglia, o con amici, o al lavoro, o in una campagna verde […] eppure provo un’angoscia sottile e profonda, la sensazione definita di una minaccia che incombe. E infatti, al procedere del sogno, a poco a poco o brutalmente, ogni volta in un modo diverso, tutto cade e si disfa intorno a me. […] Tutto è ora volto in caos: sono solo al centro di un nulla grigio e torbido, ed ecco: io so che cosa questo significa, ed anche so di averlo sempre saputo: sono di nuovo in Lager, e nulla era vero all’infuori del Lager. Il resto era breve vacanza, o inganno dei sensi, sogno: la famiglia, la natura in fiore, la casa. Ora questo sogno interno, il sogno di pace, è finito, e nel sogno esterno, che prosegue gelido, odo risuonare una voce, ben nota: una sola parola, non imperiosa, anzi breve e sommessa. È il comando dell’alba in Auschwitz, una parola straniera, temuta e attesa: alzarsi, “Wstawac” (LEVI, 2003a: 325)59.

58 Os companheiros dormem. Respiram, roncam, alguns se queixam e falam. Muitos estalam os lábios e mexem os maxilares. Sonham que comem; esse também é um sonho de todos, um sonho cruel; quem criou o mito de Tântalo devia conhecê-la. Não apenas se vê a comida; sente-se na mão, clara, concreta; percebe-se seu cheiro, gordo e penetrante; aproximam-na de nós, até tocar nossos lábios; logo sobrevém algum fato, cada vez diferente, e o ato se interrompe. Então o sonho se dissolve, cinde-se em seus elementos, mas recompõe-se logo, recomeça, semelhante e diverso; e isso sem descanso, para cada um de nós, a cada noite enquanto a alvorada não vem (LEVI, 1988: 61, tradução de Luigi Del Re).

59 É um sonho dentro de outro sonho, plural nos particulares, único na substância. Estou á mesa com a família, ou com amigos, ou no trabalho, ou no campo verdejante [...] mas, mesmo assim, sinto uma angústia sutil e profunda, a sensação definida de uma ameaça que domina. E, de fato, continuando o sonho, pouco a pouco ou brutalmente, todas as vezes de forma diferente, tudo desmorona e se desfaz ao meu redor. [...] Tudo agora tornou-se caos: estou só no centro de um nada turvo e cinzento. E, de repente, sei o que isso significa, e sei também que sempre soube disso: estou de novo no Lager, e nada era verdadeiro fora do Lager. De resto, eram férias breves, o engano dos sentidos, um sonho: a família, a natureza em flor, a casa. Agora esse sonho interno, um sonho de paz, terminou, e no sonho externo, que prossegue gélido, ouço ressoar uma voz, bastante conhecida; uma única palavra, não imperiosa, aliás breve e obediente. É o comando do amanhecer em Auschwitz, uma palavra estrangeira, temida e esperada: Levantem, "Wstavach" (LEVI, 2010: 212-213, tradução de Marco Lucchesi).

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Aludindo ao mito de Tântalo, o sonho com a comida é cruel porque a rotina

dos reclusos é miserável. A mitologia narra como o titã capturou seu filho Pélope,

matou-o e o apresentou-o aos deuses assado e servido como iguaria em um

banquete. Revoltados os deuses infligem a condenação de Tântalo à eterna tortura

da fome e da sede no Hades, permanecendo mergulhado num lago até os joelhos,

sem poder beber da água, e impossibilitado de alcançar os frutos pendurados nos

galhos de uma árvore (DICIONÁRIO DE MITOLOGIA GRECO-ROMANA, 1976:

172). O mesmo Tântalo é indiretamente evocado por Alighieri no canto XXIV do

Purgatório: na VI cornija, onde os gulosos expiam as suas penas, Dante, Virgílio e

Estácio se deparam com uma árvore carregada de frutos, inacessíveis para aquelas

almas que ali estão; ao lado da árvore correm riachos de águas límpidas, mas cujo

acesso à água também lhes é negado:

parvemi i rami gravidi e vivaci d’un altro pomo, e non molto lontani per essere pur allora vòlto in laci. Vidi gente sott’esso alzar le mani e gridar non so che verso la fronde, quasi bramosi fantolini e vani che pregano, e ‘l pregato non risponde, ma, per fare esser ben la voglia acuta, tien alto lor disio e nol nasconde. (ALIGHIERI, 1998: 158-159)60.

As almas são irreconhecíveis graças à excessiva magreza causada pela fome

e pela sede. Na lógica da lei do contrapasso dantesco, a pena deriva diretamente do

suplício de Tântalo, não casualmente descrito por Virgílio na Eneida. Como Tântalo

e as almas do purgatório dantesco, os deportados sonham, veem e tocam a comida

abundante apenas no sonho.

Em texto de 1961, Levi parafraseia suas próprias palavras sobre o sonho com

a comida ao indicar que

Dizemos fome, mas é uma coisa diferente do que todos conhecem, é uma fome crônica que não reside mais nas vísceras, mas no cérebro,

60 Me pareceu, de frutos carregado/ de uma outra árvore o tope, nos desvãos/ da encosta aonde eu não tinha ainda olhado./ Vi gente embaixo dela alçar as mãos,/ não sei que mais gritando para a fronde,/ tais como infames ávidos e vãos,/ que rogam, e o rogado não responde/mas para manter a vontade sujeita,/ segura alto o seu alvo e o não esconde (ALIGHIERI, 1998: 158-159, tradução de Ítalo Eugenio Mauro).

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transformou-se em obsessão, que não se esquece em nenhum instante do dia ou da noite, do início ao fim do sono, só se sonha em comer ou, melhor, que se está prestes a comer, mas como no mito de Tântalo, no último instante alguma coisa faz com que o alimento desapareça (LEVI; DEBENEDETTI, 2015: 96-97).

Também no conto Capaneo, do livro Lilit de Primo Levi, o sonho igualmente

se faz presente no diálogo entre as personagens Rappoport e Valerio: “- Sveglia,

ragazzo: che cosa hai sognato? Ravioli, vero? E vino di Chianti: alla mensa di via dei

Mille, per lire sei e cinquanta. E le bistecche, pza crew, bistecche di borsa nera che

coprivano il piatto; gran paese l’Italia. E poi la Margherita...” (LEVI, 2005: 585)61.

As palavras de encorajamento ao prisioneiro húngaro Kraus, em SQU,

relevam um sonho inventado, descrito por Levi ao homem, onde ele fala de um

encontro imaginário entre os dois no pós-guerra, de uma visita de Kraus à casa de

Levi que recebe-o com hospitalidade; o sonho, para o autor, tema recorrente em

toda a sua obra, acaba por representar um refúgio do mundo real:

Gli raccontai che avevo sognato di essere a casa mia, nella casa dove ero nato, seduto con la mia famiglia, con le gambe sotto il tavolo, e sopra molta, moltissima roba da mangiare. Ed era estate, ed era in Italia: a Napoli?... ma sì, a Napoli, non è il caso di sottilizzare. Ed ecco, a un tratto suonava il campanello, e io mi alzavo pieno di ansia, e andavo ad aprire, e chi si vedeva? Lui, il qui presente Kraus Páli, coi capelli, pulito e grasso, e vestito da uomo libero, e in mano una pagnotta. Da due chili, ancora calda. Allora "Servus, Páli, wie geht's?" e mi sentivo pieno di gioia, e lo facevo entrare e spiegavo ai miei chi era, e che veniva da Budapest, e perché era così bagnato: perché era bagnato, così, come adesso. E gli davo da mangiare e da bere, e poi un buon letto per dormire ed era notte, ma c'era un meraviglioso tepore per cui in un momento eravamo tutti asciutti (sì, perché anch'io ero molto bagnato) (LEVI, 2003: 120)62.

61 “- Acorde, rapaz: com que sonhou? Ravioli, certo? E vinho de Chianti, no restaurante da rua dos Mille, por seis liras e cinquenta. E os bifes, pza crew, bifes de bolsa negra que cobriam o prato.

Grande país a Itália. E, depois, a Margherita!” (tradução nossa).

62 Contei que sonhara estar na minha casa, na casa onde nasci, sentado junto com a minha família, com as pernas embaixo da mesa e, na mesa, muita, muitíssima comida. Era verão, na Itália. Em Nápoles? Pois sim, em Nápoles, não vamos complicar. Tocou a campainha, eu levantava ansioso, abria a porta, e quem aparecia? Ele, o nosso Kraus Páli, com seus cabelos, limpo, gordo, numa roupa de homem livre e com um pão na mão - um pão de dois quilos, ainda quentinho. Então, Servus, Páli, wie geht's? (Oi, Páli, como é que vai?), e eu me sentia feliz, fazia-o entrar, explicava aos meus familiares quem era, que ele vinha de Budapest e por que estava tão molhado. E dava-lhe de comer e de beber, e logo uma boa cama para dormir, e era noite, mas havia um calor maravilhoso, num instante ficávamos secos, eu também que, como ele, tinha estado bem molhado (LEVI, 1988: 136, tradução de Luigi Del Re).

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E conclui, triste e tragicamente, confessando a invenção do sonho e a

afirmação da fome:

Se sapesse che non è vero, che non ho sognato proprio niente di lui, che per me anche lui è niente, fuorché in un breve momento, niente come tutto è niente quaggiù, se non la fame dentro, e il freddo e la pioggia intorno (LEVI, 2003: 120)63.

As poucas lembranças em relação à comida abundante também revelam o

outro viés da memória: o desejo de esquecer. O silêncio ao longo da narrativa não é

proposital, uma vez que, em meio a tanta escassez alimentar, trazer à memória as

recordações em torno da mesa, certamente, causaria mais angustia. Corroborando a

ideia de Iannicelli, que considera o esquecimento como um elemento importante

quanto a um passado opressor, o ato de esquecer acaba por livrar o detento das

lembranças de homem livre (IANNICELLI, 2005: 65), e, portanto, daquelas

lembranças ligadas aos momentos de alimentação abundante.

Em entrevista concedida a dois universitários italianos, Anna Bravo e Federico

Cereja, Levi - ao ser questionado sobre o que era considerado um tabu nos campos

de concentração - responde que o assunto evitado entre os prisioneiros era

referente aos crematórios existentes no local. Em contrapartida, o tema que se

repetia obsessivamente era o da comida:

Falar de ementas refinadas em tais condições traía uma pulsão imperiosa e suscitava uma reação de... como dizer?... de irritação, de nervosismo, mas todos nós fazíamos isso. Conheci poucos homens suficientemente fortes para resistir a essa tentação: falar do que comiam em suas casas, idealizando, sim idealizando. Era verdadeiramente o assunto principal, não saíamos dele; era o tema da conversa por excelência (LEVI, 2010: 21-22).

A abundância, assim como veremos com a fome, assume diferenças

valências na obra de Levi. Mesmo na penúria existem momentos de maior

satisfação (de abundância?) como no seguinte trecho:

63 Se ele soubesse que não é verdade, que não sonhei nada com ele, que, para mim, ele também

não vale nada, a não ser este breve instante – nada, assim como tudo aqui é nada, a não ser a fome

que temos dentro de nós e, fora, o frio e a chuva (LEVI, 1988: 137, tradução de Luigi del Re).

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Oggi i litri [de sopa] sono cinquenta, e noi siamo quindici, Kapo e Vorarbeiter compresi. Sono tre litri a testa; uno lo avremo a mezzogiorno, oltre al rancio normale, e per gli altri due, andremo a turno nel pomeriggio alla baracca, e ci saranno eccezionalmente concessi cinque minuti di sospensione del lavoro per fare il pieno. Che si potrebbe desiderare di più? Anche il lavoro ci pare leggero, con la prospettiva dei due litri densi e caldi che ci attendono nella baracca (LEVI, 2003: 68)64.

Também no trecho a seguir, que será repetido mais adiante e de maneira

mais completa, percebemos outro aspecto da abundância dentro do Lager, desta

vez ligada à morte:

Ho raccontato nei miei libri la storia di un compagno di prigionia condannato alla camera gas. Sapeva che per usanza, a chi stava per morire, davano una seconda razione di zuppa, siccome avevano dimenticato di dargliela, ha protestato: “Ma signor capo baracca io vado nella camera a gas quindi devo avere un’altra porzione di minestra” (BIAGGI, 2014, online)65.

Imediatamente nos vem em mente, por macabro contraste, a presença da

comida em abundância inclusive lá onde há a pena de morte nas sociedades

ocidentais: a última refeição do condenado. A sociedade replica o sentido de

abundância no estômago do sentenciado, proporcionando-lhe uma morte “civil”, de

estômago cheio. Mas no Lager, na maioria dos casos, salvo a citação acima, lemos

relatos de morte “incivil”, de barriga vazia.

Por conseguinte, pode-se dizer as memórias de abundância estão em nível

individual e revelam uma vida anterior aos campos de concentração seja do

narrador, seja das personagens. Na sequência, serão abordadas as memórias da

fome, visto que há entre ambas uma relação de complementariedade.

64 Hoje os litros são cinquenta e nós quinze, inclusive o Kapo e o capataz. Três litros por cabeça: um ao meio-dia, além do rancho normal, e, quanto aos outros dois, iremos por turnos ao galpão, à tarde; gozaremos, excepcionalmente, de cinco minutos de folga para encher a barriga. Que mais poderíamos desejar? Até o trabalho parece leve, hoje, frente à perspectiva dos dois litros espessos e quentes que nos esperam no galpão (LEVI, 1988: 76, tradução de Luigi Del Re).

65 Contei nos meus livros a história de um companheiro de prisão condenado à câmara de gás. Sabia que, de costume, para quem estava para morrer, davam uma segunda ração de sopa, e como haviam esquecido de dá-la, protestei: “Mas senhor chefe do galpão, eu vou para a câmara de gás, portanto devo receber uma segunda porção de sopa” (tradução nossa).

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4.2 – “Noi stessi siamo la fame, fame vivente”: as memórias da fome

Nenhuma calamidade é capaz de desagregar, tão profundamente e num sentido tão nocivo, a personalidade humana como a fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição (CASTRO, 1955: 95).

Como aqui nos propomos a analisar aquela literatura chamada de

testemunho, o tema de comida se transforma, na obra de Levi, em tema da fome e

da sobrevivência. Em SQU a palavra fome ocorre 53 vezes, em SES ocorre 28

vezes e em La tregua ocorre 24 vezes. Exatamente nesse âmbito é que se torna

significativa essa produção porque os prisioneiros sentem a necessidade de resistir

ao processo de desumanização imposto pelos nazistas, e essa resistência é feita,

dentre outros modos, através da comida. Como aponta Conti,

molta parte della letteratura ebraica più nota del Novecento appartiene, infatti, alla cosiddetta narrativa concentrazionaria. Nel Lager, il tema del cibo si trasforma in tema della fame e della sopravvivenza. Indimenticabili, in tal senso, il blocchetto di pane grigio e duro e la zuppa acquosa evocati da Primo Levi in Se questo è un uomo (1947), così come gli stratagemmi dei prigionieri per guadagnarsi una razione in grado di garantire loro anche un solo giorno di sopravvivenza in più (CONTI, 2011: 163-164)66.

A fome é um fenômeno cujo entendimento possui significados diversos. O

termo, derivado do latim fames, -is, é definido como “sensação que traduz o desejo

de comer; carência alimentar, subalimentação; escassez, míngua de víveres,

miséria”. (HOUAISS, 2007: 1367). Observa-se que a fome pode significar tanto uma

necessidade atrelada a um instinto de sobrevivência, quanto uma circunstância

vinculada à pobreza extrema. De qualquer forma, é um fenômeno presente na vida

de civilizações de todas as épocas. A história apresenta períodos marcantes nos

quais a fome imperou num cenário de desolação e aniquilou um grande número de

vidas, tais como a Grande Fome do continente europeu (1315-1317), a Grande

66 Grande parte da literatura hebraica mais conhecida do século XX pertence, de fato, à chamada narrativa concentracionária. No Lager, o tema da comida transforma-se em tema da fome e da sobrevivência. Inesquecíveis, neste sentido, o pedaço de pão cinza e duro e a sopa aquosa, evocados por Primo Levi em Se questo è un uomo (1947), assim como os estratagemas dos prisioneiros para conseguir uma ração capaz de garantir-lhes, também, apenas mais um dia de sobrevivência (tradução nossa).

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Fome na Irlanda (1845-1849) e os dois grandes conflitos bélicos mundiais no século

XX.

Para Contreras,

em primeiro lugar, a fome é um fenômeno fisiológico. Um estado do sistema nervoso central geralmente associado a uma sensação complexa reconhecida como “necessidade de comer”. Esta condição, na qual os alimentos são desejados, desaparece assim que são consumidos. É quando se alcança a saciedade, ou a ausência de fome. Alimento é uma categoria genérica, mas as necessidades humanas, do ponto de vista nutricional, podem ser bem específicas. Além do ar e da água, devemos ingerir uma variedade de substâncias: hidrato de carbono conversível em glicose, gordura que contenha ácido linoléico, dez aminoácidos que constituem os componentes fundamentais das proteínas, quinze minerais, trinta vitaminas e fibras não digeríveis que ajudem a limpar o intestino. Essas necessidades nutricionais comuns a todos podem, porém, ser satisfeitas de diversas formas. Uma ampla variedade de combinações e padrões, utilizando milhares de alimentos diferentes, é capaz de proporcionar o mesmo objetivo principal: a sobrevivência (CONTRERAS, 2015: 40-41).

No entanto, o discurso da fome nem sempre foi encarado com naturalidade, e

o silêncio em torno do assunto nasce em razão de aspectos próprios da civilização

ocidental. Interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem político-econômica

transformaram o tema da fome em algo proibido ou pouco desaconselhável a ser

abordado às claras. A fome, vista como um instinto primário é fator que choca uma

cultura racionalista que busca impor a hegemonia da razão sobre os instintos na

conduta humana. Por julgar o instinto como animalesco e a razão como social, a

sociedade tenta negar o poder criador dos instintos por considerá-los desprezíveis.

Portanto, a fome torna-se um assunto tabu. Nesse sentido, considerando apenas

episódios mais recentes como as duas grandes guerras e a revolução russa, por

exemplo, foram eventos fundamentais para que a fome merecesse a devida atenção

por parte da sociedade. Quanto às questões político-econômicas, os interesses

econômicos das minorias dominantes tentavam fazer desaparecer o fenômeno da

fome no panorama moderno, pois importava ao imperialismo econômico e ao

comércio internacional que a produção, a distribuição e o consumo de alimentos

continuassem a se dar como fenômenos puramente econômicos e não como fatos

ligados à saúde pública. Inglaterra, Holanda e outros países lucravam

significativamente com exportações para a Índia, mas ocultavam na Europa a fome

vivida naquele país asiático, fator que atrapalharia as suas negociações lucrativas.

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Além disso, os governos nazistas implantados em vários países não estavam de

acordo em mostrar para o mundo a extensão da fome a que seus povos estavam

submetidos (CASTRO, 1984: 30-31).

Castro ainda aponta que fazia parte da estratégia nazista uma política da

“fome organizada”, que juntamente com a política de discriminação racial previa “a

discriminação alimentar com a divisão da população da Europa em grupos bem

alimentados, grupos deficientemente alimentados, grupos de famintos e grupos de

mortos de fome” (CASTRO, 1955: 285). Obviamente o grupo dos bem alimentados

era o da “raça alemã”. Castro indica ainda que o plano de fome do Reich tinha uma

“sólida base científica e objetivos bem definidos. Tratava-se de poderosa arma de

guerra, de alto poder destrutivo, que devia ser usada na mais larga escala e com o

máximo de eficiência” (CASTRO, 1955: 286). O brasileiro destaca que na Europa,

após 1943,

Assim saqueada pelos gafanhotos nazistas, devastada pelas bombas, paralisada pelo pânico, minada pela quinta-coluna, pela desorganização administrativa e pela corrupção, foi-se instalando a fome a gosto em seu novo império, e a quase totalidade das populações europeias passou a viver como numa espécie de campo de concentração. Toda a Europa não passava de um vasto e sombrio campo de concentração (CASTRO, 1955: 289).

Fome. Uma palavra seca, de apenas quatro letras, dominava a mente dos

prisioneiros dos campos de concentração nazistas. Dentre as inúmeras formas de

degradação humana sofridas nos campos de extermínio, uma delas chama aqui a

nossa atenção. É aquela ligada ao fator da alimentação. Conhecer o próprio fim,

esperar o final do dia no compasso lento das horas na esperança de poder viver

mais um dia, como sabido, era rotina nos campos. Ser classificado através da

orientação política, da religião, da opção sexual e perder a própria identidade ao

entrar nos campos, trocando o nome, as roupas e o corte de cabelo por um simples

número são fatos, também, muito conhecidos. Trabalhar até 14 horas/dia, idem. Mas

o trabalho pesado aliado a uma alimentação deficitária, além de reduzir o corpo a

um aspecto de esqueleto vivente, esfacelava também a moral. Como se falar de

satisfação, ou até mesmo de nutrição, quando se está sujeito a uma dieta alimentar

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com um valor inferior às 1000 Kcal/dia? Castro elucida que na verdade as dietas

giravam entorno de 700 a 800 calorias (CASTRO, 1955: 289).

No contexto da II grande guerra, os campos de concentração retratam a face

extrema da fome. Muitos são os registros fotográficos e cinematográficos que

expõem a situação calamitosa dos prisioneiros: em geral, são indivíduos

extremamente magros, prostrados e em estado cadavérico, resultado de privações

severas de alimento e de excessivos trabalhos forçados. Era principalmente a falta

de três elementos fundamentais da alimentação (gordura, albumina e farináceos),

que chegavam a suprir apenas ¼ do consumo diário necessário de comida, que

debilitava os prisioneiros. A ração média diária oscilava entre 980 e 1250 Kcal: um

ser humano em repouso utiliza de 30 a 32 calorias para cada quilo de seu peso.

Portanto, um homem de sessenta quilos necessita, em média, de 1800 Kcal/dia. É

sempre Castro a esclarecer que “a fome constituiu um dos meios prediletos dos

nazistas para o extermínio dos judeus” e que “a colheita de mortos por este

processo foi dezenas de vezes mais abundante do que a obtida com as câmaras de

gás e com os pelotões de fuzilamento” (CASTRO, 1955: 291). O médico brasileiro

refere-se àquilo que “Boris Schub chama, com muita propriedade, de ‘estatísticas da

fome’” (CASTRO, 1955: 291).

Segundo os relatos dos sobreviventes, os prisioneiros “comiam”, ou melhor,

recebiam a ração três vezes ao dia: pela manhã, ao meio-dia e à noite:

A alimentação, de quantidade insuficiente, era de má qualidade. Resumia-se a três refeições: ao despertar de manhã, eram distribuídos 350 gramas de pão quatro vezes por semana e setecentos gramas três vezes por semana, portanto, uma média diária de quinhentos gramas – quantidade que seria razoável, se o próprio pão não trouxesse uma quantidade de resíduos, entre eles, muito visível, serragem de madeira -; além disso, ainda de manhã, 25 gramas de margarina com cerca de vinte gramas de salame ou uma colherada de geleia ou ricota. A margarina era distribuída somente seis dias por semana; mais tarde, essa distribuição se reduziria a três dias (LEVI; DEBENEDETTI, 2015: 19).

O almoço, quatro vezes por semana, era composto de uma sopa com baixo

teor de gordura, e nos outros três dias, outra sopa (3/4 de litro) de verduras como

nabos, batatas, cevada ou semolina, muito líquida além de ter reduzido valor

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calórico: “Ao meio-dia, os deportados recebiam um litro de sopa de nabo ou de

couve, absolutamente insípida devido à falta de qualquer tempero” (LEVI;

DEBENEDETTI, 2015:19).

No jantar eram distribuídas 300 gramas de pão, ração destinada também ao

café da manhã do dia seguinte, mais 25 gramas de margarina e, às vezes, uma

colher de geleia ou um pedaço de queijo. Recebiam, também, uma porção de líquido

ralo e negro, sucedâneo do café. O aporte calórico girava entorno de 1000/1200

Kcal/dia, quando tudo ia bem. Mas com a superpopulação de alguns campos no

transcorrer da guerra, essa taxa caiu vertiginosamente, atingindo valores de, no

máximo, 600 Kcal/dia:

e à noite, no final do trabalho, outro litro de sopa um pouco mais consistente, com algumas batatas ou, às vezes, ervilhas ou grão-de-bico; mas ainda assim totalmente desprovida de componentes gordurosos. Raramente se podia encontrar um fio de carne. Como bebida, de manhã e à noite, distribuía-se meio litro de uma infusão de sucedâneo de café, sem açúcar; somente aos domingos vinha adoçado com sacarina (LEVI; DEBENEDETTI, 2015: 19-20).

Levi e De Benedetti ainda lembram que “para aplacar as pontadas de fome,

[os prisioneiros] ingeriam cascas de batata, folhas de couve cruas, batatas e nabos

podres que recolhiam entre os refugos da cozinha” (LEVI; DEBENEDETTI, 2015:

23).

O relato do ex-detento Stefan Heymann, presente no livro O relatório de

Buchewald, aponta para um racionamento dos poucos víveres, nos citados tempos

mais difíceis, dentro dos campos de concentração:

Desde o primeiro dia, fomos lesados na comida. Os cozinheiros, que eram escolhidos entre os criminosos profissionais poloneses e alemães, apossavam-se, junto com os SS, de centenas de quilos da comida dos prisioneiros. Em 1944, depois que as rações foram ainda mais reduzidas, os SS, especialmente o chefe da cozinha Beiersdorfer, estabeleceram dias sem margarina para os prisioneiros, para esticar o estoque restante do produto. As coisas melhoraram um pouco em julho de 1944, quando um prisioneiro político austríaco, Fiala, assumiu a cozinha e passou a assegurar que as porções prescritas fossem equitativamente distribuídas entre os prisioneiros (HACKETT, 1988: 478).

Em todos os campos, como sabido, havia armazéns, e quem dispunha de

dinheiro (requisito para a entrada nos campos), ou quem organizava o local, poderia

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adquirir alguma verdura ruim ou pão mofado. Mas a penúria dos alimentos durante a

guerra fez com que, a partir de 1942, fossem usados para o preparo da sopa,

aqueles alimentos sequestrados já na chegada dos novos deportados.

De todas as torturas sofridas nos campos de concentração, a fome é, sem

sombra de dúvida, a mais cruel delas. Submeter diariamente homens a uma parca

refeição - composta basicamente de um pedaço de pão de má qualidade e uma

gamela de sopa rala, incapaz para a manutenção de uma vida sadia - é um dos

castigos mais abomináveis que os nazistas foram capazes de impingir aos

prisioneiros dos campos. Logo, o discurso da fome não poderia passar despercebido

em SQU, discurso esse a que Levi dedica várias páginas. Segre considera SQU

como o “livro da fome” e afirma que a fome é o leimotiv da obra e que “mai la fame fu

rappresentata così icasticamente come da Levi” (SEGRE, 2001: 40)67. Já para

Barenghi, que comenta a crítica de Segre, SQU “è il libro della fame e non della

morte” (BARENGHI, 2013:59)68.

La Fauci acrescenta que o discurso da fome em Primo Levi parte da

perspectiva daquele que prova da fome. Concomitantemente, Levi a observa e a

vivencia:

Levi disse (del)la fame per averla osservata provandola. Tra il 1944 e il 1945, nel campo di Buna-Monowitz, egli fu in proposito partecipe di un esperimento. Di esperimenti simili furono cavie innumerevoli altri – nella quasi totalità messi nella condizione di non poterne mai più riferire (LA FAUCI, 2009: 408)69.

Mais ainda, o narrador leviano traz a fome coletiva sentida pelos homens não

livres, ou melhor, pelas cobaias do experimento de destruição apontado por La

Fauci. Ao longo da obra, esta fome manifesta-se como uma constante e sofre

transformações à medida que seus personagens passam da condição de homens

67 Jamais a fome foi representada tão icasticamente como por Levi (tradução nossa).

68 É o livro da fome e não da morte (tradução nossa).

69 Levi disse (d)a fome por tê-la observado, experimentando-a. Entre 1944 e 1945, no campo de Buna-Monowitz, ele foi, de fato, partícipe de um experimento. De semelhantes experimentos inúmeros outros – na quase totalidade, postos na condição de jamais poderem referir-se a ela (tradução nossa).

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livres a homens do Lager. Pouco antes do ingresso nos campos de concentração,

mas já a caminho deles, a fome é como uma necessidade básica, fisiológica,

necessidade essa sentida por todos:

Soffrivamo per la sete e il freddo: a tutte le fermate chiedevamo acqua a gran voce, o almeno un pugno di neve, ma raramente fummo uditi: i soldati della scorta allontanavano chi tentava di avvicinarsi al convoglio. Due giovani madri, coi i figli ancora al seno, gemevano notte e giorno implorando acqua. Meno tormentose erano per tutti la fame, la fatica e l’insonnia, rese meno penose dalla tensione dei nervi: ma le notti erano incubi senza fine (LEVI, 1989: 25)70.

Fala-se aqui da sensação física da fome própria do homem livre. Como já

mencionado, a entrada nos campos nazistas equipara-se à descida ao inferno, e

nesse lugar os homens têm a sua identidade suprimida passando a ser apenas um

Häfting, ou seja, um mero número de matrícula que é tatuado obrigatoriamente no

braço dos recém-chegados. Somente se submetendo a esse processo doloroso,

passam a receber a alimentação diária, cujo cardápio compõe-se apenas da já

mencionada gamela de sopa rala e de um pedaço de pão:

Häfting: ho imparato che io sono uno Häftling. Il mio nome è 174 517; siamo tutti battezzati, porteremo finché vivremo il marchio tatuato sul braccio sinistro. [...] Pare che questa sia l’iniziazione vera e propria: solo “mostrando il numero” si riceve il pane e la zuppa. Sono occorsi vari giorni, e non pochi schiaffi e pugni, perché ci abituassimo a mostrare il numero prontamente, in modo da non intralciare le quotidiane operazione annonarie di distribuzione; ci son voluti settimane e mesi perché ne apprendessimo il suono in lingua tedesca .(LEVI, 2003: 23-24)71.

Como já dito anteriormente, Frankl destaca o instinto de alimentação como o

principal dentre os instintos primitivos do homem do Lager. Ele ainda diz que “quem

não passou por isso [fome extrema] dificilmente poderá imaginar o desgaste interior

70 Sofríamos com a sede e o frio; a cada parada, gritávamos pedindo água, ou ao menos um punhado de neve, mas raramente fomos ouvidos; os soldados da escolta afastavam quem tentasse aproximar-se do comboio. Duas jovens mães, com crianças de peito, queixavam-se dia e noite implorando por água. Havia também a fome, a fadiga, a falta de sono, mas a mesma tensão nervosa as mitigava. As noites, porém, eram pesadelos sem fim (LEVI, 1988: 16, tradução de Luigi Del Re).

71 Häftling: aprendi que sou um Häftling. Meu nome é 174.517; fomos batizados, levaremos até a morte essa marca tatuada no braço esquerdo. [...] Ao que parece, esta é a verdadeira iniciação: só "mostrando o número" recebe-se o pão e a sopa. Necessitamos de vários dias e de muitos socos e bofetadas, até criarmos o hábito de mostrar prontamente o número, de modo a não atrapalhar as cotidianas operações de distribuição de víveres; necessitamos de semanas e meses para acostumarmo-nos ao som do número em alemão (LEVI, 1988: 25-26, tradução de Luigi Del Re).

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causado pelos conflitos da força de vontade que se desenrolam na pessoa do

faminto” (FRANKL, 2015: 47). Com o passar do tempo, a fome adquire uma nova

conotação. Não é mais a necessidade de nutrir-se, mas sim um elemento

desconhecido que homens livres não experenciam e que causa o desgaste descrito

por Frankl, e sobre essa nova experiência Levi se pronuncia da seguinte forma:

Eccomi dunque sul fondo. A dare un colpo di spugna al passato e al futuro si impara assai presto, se il bisogno preme. Dopo quindici giorni dall’ingresso, già ho la fame regolamentare, la fame cronica sconosciuta agli uomini liberi, che fa sognare di notte e siede in tutte le membra dei nostri corpi; già ho imparato a non lasciare derubare, e se anzi trovo in giro un cucchiaio, uno spago, un bottone di cui mi possa appropriare senza pericolo di punizione, li intasco e li considero miei di pieno diritto (LEVI, 1989: 31-32) 72.

À proporção que o tempo passa, o homem do Lager fica cada vez mais

bestializado. Tão logo pela manhã, quando acionado o alarme do campo, inicia a

tentativa desesperada em busca do pão, ou da cosa-pane como é definido por

Zampieri, aquele “pedaço cinzento que outro homem produziu e dividiu” (1996: 19):

L’intera baracca si squassa dalle fondamenta, le luci si accendono, tutti intorno a me si agitano in una repentina attività frenetica: scuotono le coperte suscitando nembi di polvere fetida, si vestono con fretta febbrile, corrono fuori nel gelo dell’aria esterna vestiti a mezzo, si precipitano verso le latrine e il lavatoio; molti, bestiamente, orinano correndo per risparmiare tempo, perché entro cinque minuti inizia la distribuzione del pane, del pane-Brot-Broit-chleb-pain-lechem-kenyér, del sacro blocchetto grigio che sembra gigantesco in mano del tuo vicino, e piccolo da mangiare in mano tua (LEVI, 2003: 33-34)73.

Percebemos no trecho anterior que a macabra ironia de Levi coloca em

dúvida “sulla relazione tra parola e cosa: qui la parola dice in mille modi diversi, nella

girandola delle voce, nella molteplicità delle gole, delle bocche affamate, la stessa

72 Aqui estou, então: no fundo do poço. Quando a necessidade aperta, aprende-se em breve a apagar da nossa mente a passada e o futuro. Quinze dias depois da chegada, já tenha a fome regulamentar, essa fome crônica que as homens livres desconhecem; que faz sonhar, à noite; que fica dentro de cada fragmenta de nossas carpas. Aprendi a não deixar que me roubem; aliás, se veja par aí uma colher, um barbante, um botão das quais consiga tomar posse sem risco de punição, embolso-os, considero-as meus, de pleno direito (LEVI, 1988: 35, tradução de Luigi Del Re).

73 O Bloco inteiro estremece desde os alicerces, acendem-se as luzes, todos ao redor de mim agitam-se numa repentina, frenética atividade: sacodem os cobertores, levantando nuvens de fétido pó, vestem-se com pressa febril, correm para fora, no ar gelado, ainda meio nus, precipitam-se rumo às latrinas e aos lavatórios; muitos, como bichos, urinam enquanto correm, para poupar tempo, porque dentro de cinco minutos começa a distribuição do pão - do pão, Brot, Broit, chleb, pain, lechem, kenyér -, do sagrado tijolinho cinzento, que parece gigantesco na mão do teu vizinho e, na tua, pequeno de fazer chorar (LEVI, 1988: 37, tradução de Luigi Del Re).

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cosa che è il cibo per chi ha fame”74 (ZAMPIERI, 1996: 19). Ele fala ainda da cosa-

pane como um “oggetto d’un Desiderio illimitato, in quanto fonte di vite di speranze,

assume metaforicamente il connotato di sacralità che dice bene il rapporto profondo

e drammatico tra l’uomo ed il suo alimento”75 (ZAMPIERI, 1996: 19).

Também do trecho acima apreendemos que os prisioneiros dos campos eram

convocados, ou melhor, amestrados a comer não quando tinham fome, mas sim

quando soava o alarme do alojamento, numa operação quase pavloviana. A mesma

sensação está presente em SES, quando Levi descreve o momento de distribuição

da comida: “Quello ‘stergisci stèri’ funzionava anzi come il campanello che

condizionava i cani di Pavlov: provocava uma subitânea secrezione di saliva” (LEVI,

1991: 69-70)76.

Ademais o pão, para além da tentativa de satisfação da fome, funciona

inclusive como uma espécie de moeda de troca entre os detentos. A palavra pão

ocorre 50 vezes em SQU, 21 vezes em La Tregua e 14 vezes em SES. É com ele e

por ele que ocorre, inclusive, toda a corrupção nos campos:

Il pane è anche la nostra sola moneta: nei pochi minuti che intercorrono fra la distribuzione e la consumazione, il Block risuona di richiami, di liti e di fughe. Sono i creditori di ieri che pretendono il pagamento, nei brevi istanti in cui il debitori è solvibile. Dopo di che, subentra una relativa quiete, e molti ne approfittano per recarsi nuovamente alle latrine a fumare mezza sigaretta, o al lavatoio per lavarsi veramente (LEVI, 2003: 34)77.

74 Sobre a relação entre palavra e coisa: aqui a palavra fala em mil modos diversos, na girândola das vozes, na multiplicidade das gargantas, das bocas famintas, a mesma coisa que é a comida para quem tem fome (tradução nossa).

75 Objeto de um desejo ilimitado, enquanto fonte de vidas, de esperanças, assume metaforicamente o conotado de sacralidade que bem representa a profunda e dramática relação entre o homem e o seu alimento (tradução nossa).

76 Aquele ‘stergishi stèri’ funcionava como a campainha que condicionava os cães de Pavlov: provocava uma imediata secreção de saliva (LEVI, 1990: 55, tradução de Luiz Sérgio Henriques).

77 O pão é também a nossa única moeda: durante os poucos minutos que passam entre a distribuição e o consumo, o Bloco ressoa de chamados, de brigas e fugas. São os credores de ontem que exigem o pagamento, nos poucos instantes nos quais o devedor tem com que pagar. Logo volta certa paz, e muitos aproveitam para ir novamente aos banheiros e fumar lá meio cigarro, ou ao lavatório para lavar-se realmente (LEVI, 1988: 37, tradução Luigi Del Re).

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O significado socializante do pão se configura como uma defesa cultural

defronte ao risco da miséria; por isso, manter e reforçar algum tipo de ligação social

tornou-se tarefa de primária importância dentro dos campos. Disto deriva que o

consumo do pão conecta-se a uma função ritual. Lembremo-nos das

recomendações da sabedoria popular de não desperdiçar sequer uma migalha de

pão, de consumi-lo mesmo quando apresenta sinais de mofo ou apodrecimento e de

que é uma blasfêmia deixar o pão virado sobre a mesa, sem negligenciar o princípio

cristão da divisão do pão.

Consequentemente, dentro da lógica da “solução final” do nazismo, manter os

prisioneiros famintos funciona como um instrumento de poder, uma vez que a

principal motivação do contrabando no Lager gira em torno da comida.

Levi, ao responder uma pergunta sobre a “nostalgia” do jornalista Enzo Biagi,

em entrevista que foi ao ar na Itália pelo canal Raiuno, em 8 de junho de 1982, dá o

seguinte testemunho sobre a nostalgia, sobre o tratamento bestial reservado aos

prisioneiros e sobre a questão da alimentação:

[La nostalgia] Pesava soltanto quando i bisogni elementari erano soddisfatti. La nostalgia è un dolore umano, un dolore al di sopra della cintola, diciamo, che riguarda l’essere pensante, che gli animali non conoscono. La vita del Lager era animalesca e le sofferenze che prevalevano erano quelle delle bestie. Poi venivamo picchiati, quasi tutti i giorni, a qualsiasi ora. Anche un asino soffre per le botte, per la fame, per il gelo e quando, nei rari momenti, in cui capitava che le sofferenze primarie, accadeva molto di rado, erano per un momento soddisfatte, allora affiorava la nostalgia della famiglia perduta. La paura della morte era relegata in secondo ordine. Ho raccontato nei miei libri la storia di un compagno di prigionia condannato alla camera gas. Sapeva che per usanza, a chi stava per morire, davano una seconda razione di zuppa, siccome avevano dimenticato di dargliela, ha protestato: “Ma signor capo baracca io vado nella camera a gas quindi devo avere un’altra porzione di minestra” (BIAGGI, 2014, online)78.

78 [A nostalgia] Pesava somente quando as necessidades elementares eram satisfeitas. A nostalgia é uma dor humana, uma dor acima da cintura, digamos, que diz respeito ao ser pensante, que os animais não conhecem. A vida do Lager era animalesca e os sofrimentos que prevaleciam eram aqueles das bestas. Depois éramos surrados, quase todos os dias, a qualquer hora. Um asno também sofre pelas surras, pela fome, pelo gelo e quando, nos raros momentos, quando acontecia que os sofrimentos primários, acontecia muito raramente, eram satisfeitas por um momento, então aflorava a nostalgia da família perdida. O medo da morte ficava relegado a segunda ordem. Nos meus livros contei a história de um companheiro de prisão condenado à câmara de gás. Sabia que por costume, a quem estava para morrer, davam uma segunda ração de sopa, e como haviam esquecido de dar-lhe, protestei: “Mas senhor chefe da barraca eu vou pra câmera de gás, portanto devo receber uma outra porção de sopa” (tradução nossa).

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A memória ou nostalgia alimentar, na verdade, é a tônica da maioria das

discussões daqueles que, por diversas razões, deixaram ou foram obrigados a

deixar sua cidade ou país de origem, como nesse caso, os deportados judeus para

os campos de extermínio. Na opinião do etnólogo calabrês Vito Teti, a saudade

alimentar, como a saudade em geral, é um sentimento que se move numa dupla

direção. Quando se está parado se tem saudade de alhures, quando se parte de

algum lugar se tem saudade do “mundo perdido” (TETI, 1999: 90). E esse

sentimento é verificado em diversos relatos de sobreviventes de campos de

concentração. Os dramáticos relatos dos Lager, por outro lado, podem ter a mesma

valência do relato de homens que retornam às suas origens anos depois de tê-las

deixado voluntariamente. O desejo do retorno, de pertencer novamente ao lugar de

origem, de poder falar a mesma língua, em sentido próprio e figurado, e

principalmente de poder comer a comida que, num determinado momento, lhes foi

privada.

Paul Le Caër, deportado aos 19 anos de idade, em depoimento recolhido na

França, em 1973, também comenta ter sido vítima da “nostalgia alimentar”.

Prisioneiro no Campo de Mauthausen, ele narra que em dezembro de 1943, perto do

Natal, estavam os presos franceses reunidos e ele resolve escrever uma carta para

Papai Noel:

Eu lhe rabisco estas poucas palavras sabendo muito bem que você nunca vai receber esta carta, mas não faz mal, isto aliviará meu coração carregado de mágoas e de esperanças, pois esta noite é Natal. [...] Aqui não temos mais nada, mas eles [os alemães] não podem nos tirar nem nossas recordações, nem nossas esperanças. Esta noite, em um quarto do Block 2, ouvimos o falatório de alguns Kapos bêbados. Cada nacionalidade se reuniu para falar em você, cada um fala de seu Natal e perdoe-nos se tantas vezes, esta noite, falamos em peru com castanhas e patê de fígado, mas temos fome (BERNADAC, 1980: 261).

O prisioneiro, encontrando-se destacado de sua casa, de seu país e de suas

tradições, vivendo nas condições mais desumanas possíveis era tomado por um

sentimento muito forte de saudade. O lar, a família e a mesa, lugar de reunião por

excelência, constantemente vinham-lhes a mente exatamente porque de tudo isso

os prisioneiros estavam privados. O testemunho de Othon Baumgartner, recolhido

pela Associação Francesa de Mauthausen reafirma essa ideia:

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Nessa noite, deitados nas camas, qual de nós não sonhava com outros Natais passados entre os entes queridos. Natais de liberdade... Que abismo entre o passado e este presente tão duro! Naquela noite, só restava em mim uma chama de ódio consumindo qualquer outro pensamento. E quando, mais tarde, encontrei finalmente o sono, meus sonhos foram povoados de quadros pantagruélicos, de fabulosos víveres, onde não faltava nada do que se pudesse desejar (BERNADAC, 1980: 179).

O tenente-coronel Robert Monin, relata em seu depoimento colhido em 1975,

o que significava lembrar os tempos de liberdade quando vivia como um homem

comum, muito diferente da realidade de trabalhador subalimentado e com uma

jornada de trabalho pesado, cavando um túnel:

Com a barriga vazia, as horas se passavam tranquilas, enquanto nos lembrávamos dos dias felizes, das boas refeições já saboreadas ou das lautas refeições ainda por vir. Um sonhava com um bife (grosso assim!), batatas fritas, queijo camembert no ponto, salsichas, vinho tinto. Outro com omeletes, ensopados, laticínios. Outros ainda, de paladar mais refinado, e que eram a minoria, pensavam em crustáceos, lagostas, caças, pernas de carneiro... Mas não posso deixar passar em silêncio a cerimônia que, como um ritual, se desenrolava todos os dias. Num dado momento, Troadec dizia: - Senhores, eu lhes proponho o cardápio do dia. E enumerava pratos de nomes extraordinários. E então Combanaire os cozinhava diante de nós, maravilhados, que o víamos segurando uma panela imaginária, mexendo com gestos profissionais os molhos, temperando, corando e mexendo os pedaços, ao mesmo tempo em que eu ia dando as explicações referentes à receita. Posso afirmar que sentíamos realmente o aroma daqueles pratos de sonho. Em seguida, o maître d’hotel (Troadec ou Biret) intervinha anunciando: - Para acompanhar este prato sugiro tal vinho de tal safra. E seguíamos todos os seus gestos quando fingia pegar, com todo o cuidado, a garrafa de vinho, abri-la, aspirá-la e servir em nossos copos, com precauções infinitas, o precioso líquido... E não só sentíamos o bouquet, como também víamos, através do cristal de nossos copos, sua cor e sua transparência! Tais momentos são inesquecíveis, e posso garantir, mesmo que não me acreditem, que desde então nunca mais fiz refeições tão saborosas! (BERNARDAC, 1980: 214)79.

Também nos relatos do militar italiano Aurelio Lantelme, prisioneiro dos

alemães após a Itália ter assinado o armistício com os Aliados e abandonado a

aliança com a Alemanha, é possível verificar que o fator da lembrança, da nostalgia

79 Maurice Eugène Jules Combanaire (1887 – 1976) era proprietário e chef de cuisine do Hotel Terminus em Lyon; o hotel foi requisitado parcialmente pelos alemães em 1942, e, mais tarde, completamente tomado pelas tropas nazistas em 1944, ano da sua deportação. (AFDM d’Allier) Pierre Troadec (1909 - ? ) começou a trabalhar aos dezesseis anos como ajudante de cozinha no navio Paris, depois no Ile de France, ambos da Compagnie Générale Transatlantique. Em 1939 foi maître d’hôtel da primeira classe do navio Normandie, na viagem dos Estados Unidos ao Rio de Janeiro. De volta para a França entrou para a Resistência e foi deportado em 1944. Após sua liberação do campo, voltou para a Franca, e com sua esposa partiu para Nova York, onde abriu o restaurante La Cremaillére à la campagne (MAXTONE-GRAHAN, 2000: 148-153).

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alimentar permeava os pensamentos e sonhos daqueles homens que se

encontravam distantes de sua terra de origem. O soldado alpino, neste caso já

liberto, encontrava-se a caminho da Itália, vagando pelas estradas da Alemanha

com outros companheiros, e durante o percurso eles se alegravam ao recordar da

comida de suas casas:

Suas histórias [de Giuseppe, natural da cidade de Bologna] prendiam nossa

atenção, especialmente, quando abordava seu assunto preferido: a comida. Aí,

nos acercávamos mais para ouvir melhor. De comida, realmente parecia entender

o Giuseppe. Explicava, passo a passo, como se faz um bom ragú (molho à

bolonhesa), qual a carne mais apropriada, a quantidade de tomate, de cebola, o

tipo do vinho, de forma tal, que dava água na boca. Descrevia com tanto

entusiasmo como se deve fritar uma bisteca de porco, “deste tamanho”, na

manteiga, com uma pitada de pimenta e algumas gotas de limão, que parecia vê-

la esvoaçar pela frente (LANTELME, 2003: 159).

Todavia na opinião de Frankl “não se deve provocar o organismo com essas

imagens de iguarias, muito intensas e carregadas de sentimento, quando ele [o

prisioneiro] já conseguiu, em termos, adaptar-se às reduzidíssimas rações e

quantidades de calorias” (FRANKL, 1985: 46). Ele afirma ainda que

face ao estado de extrema subnutrição em que se encontravam os prisioneiros, é

compreensível que, entre os instintos primitivos que representam a “regressão” da

vida psicológica no campo, o instinto de alimentação ocupasse o lugar principal.

Observemos os prisioneiros de um modo geral quando estão juntos no lugar de

trabalho, num momento em que estão sendo tão vigorosamente vigiados. A

primeira coisa de que começam a falar é de comida. Imediatamente alguém

começará por perguntar ao colega que trabalha ao seu lado na vala, qual seu

prato favorito. Começam a trocar receitas e compor menus para o dia em que

pretendem convidar-se mutuamente para um reencontro, futuramente, depois de

libertos e de volta em casa (FRANKL, 1985: 45).

A alimentação é um código social que determina a identidade de um povo, ao

lado de todos os outros tipos de manifestações culturais eruditas ou populares.

Através do alimento nos sentimos aceitos no grupo, nos sentimos fortificados física e

moralmente, satisfazemos dois tipos de necessidades, contemporaneamente:

aquela de saciar o corpo e de elevar o espírito. Comer em grupo é um dos mais

importantes rituais sociais aos quais se submete o ser humano (DALLA BONA,

2009: 28).

Mas a solidão da tigela metálica de comida dos prisioneiros comportava,

como podemos entender através dos relatos de Levi e também de outros ex-

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prisioneiros, ainda mais sofrimento aos prisioneiros do campo. O silêncio muitas

vezes imposto como regra disciplinar, impedia aqueles homens e mulheres do

exercício desse ritual social, o ritual de compartilhar alegrias e tristezas, de saciar o

corpo e o espírito. O silêncio agravava ainda mais a pouco consistente refeição,

constituída na maioria das vezes de uma espécie de sopa rala, na qual estavam

suspensos pequenos corpos sólidos, pedacinhos de batata ou refugos de verduras e

legumes meio apodrecidos. O desespero por não ser condenado a ocupar os

primeiros lugares da fila na hora da ração, entristecia ainda mais aqueles homens.

Estar ali, no início da deprimente fila, significava ser servido de uma quantidade

muito grande de líquido e muito pequena de corpos sólidos; a concha só conseguia

“pescar” algo mais sólido à medida que se aproximava do fundo do recipiente que a

continha:

Abbiamo appreso il valore degli alimenti; ora anche noi raschiamo diligentemente il

fondo della gamela dopo il rancio, e la teniamo sotto il mento quando mangiamo il

pane per non disperderne le bricciole. Anche noi adesso sappiamo che non è la

stessa cosa ricevere il mestolo di zuppa prelevato dalla superficie o dal fondo del

mastello, e siamo già in grado di calcolare, in base alla capacità dei vari mastelli,

quale sia il posto conveniente a cui aspirare quando ci si mette in coda (LEVI,

2003: 29)80.

Todavia, diante de um mísero pedaço de pão de aproximadamente 300

gramas, de uma assim chamada sopa, composta de água com alguns pedaços (ou

muitas vezes somente cascas) de legumes, como é possível pensar em pratos

elaborados? A resposta é imediata: recordar. A memória era a única coisa que a

máquina da morte nazista não conseguiu subtrair totalmente de seus prisioneiros de

guerra. A dignidade daqueles homens já tinha sido perdida: eles se comparavam, e

se comportavam, como animais, como afirma Levi e outros sobreviventes, mas nos

poucos momentos de consciência, a memória entrava em ação através da saudade.

O sofrimento dava lugar à esperança e um toque de nostalgia fazia até mesmo que

os deportados trocassem receitas, como relata o prisioneiro francês Parouty:

80 Aprendemos o valor dos alimentos; nós também, agora, raspamos o fundo da gamela, e a seguramos debaixo do queixo quando comemos o pão, para não desperdiçar migalhas. Nós também, agora, sabemos que não é a mesma coisa receber uma concha de sopa retirada da superfície, ou do fundo do panelão, e já estamos em condições de calcular, na base da capacidade de diversos panelões, qual é o lugar mais conveniente quando entramos na fila (LEVI, 1988: 31, tradução de Luigi Del Re).

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No hall III, onde trabalhávamos, éramos no começo cerca de quinhentos, dos

quais quase cem franceses; assim, na hora da sopa, depois de haver recebido a

ração, reuníamo-nos entre compatriotas e compúnhamos cardápios da nossa

terra. Recordo com emoção o dia em que o pai Augé (arquiteto da cidade de

Paris), nos deu a receita de um repolho que havíamos batizado “repolho Augé”.

Pusera tanta emoção ao nos fazer a descrição desse prato que, durante toda a

tarde, os camaradas ao se encontrarem interpelavam-se dizendo: “Faremos o

repolho dele, que deve ser extremamente gostoso...” (BERNADAC, 1980a: 65).

As palavras contidas nesse depoimento, provavelmente de 1945-46, presente

nos arquivos da Amicale Française de Mauthausen, nos traz mais um elemento de

grande importância ligado à comida: o da comida como salvação. Foi através da

lembrança, da memória do arquiteto parisiense que a esperança de salvação e de

liberdade aflorou entre os detentos de Gusen, anexo ao campo de Mauthausen.

É necessário compreender que para superar a retórica com a qual as novas

gerações ouvem o clamor de “não esquecer”, urge trazer à luz vozes e testemunhos

que, em pleno período de terror, expressaram uma concepção da realidade vivida

como uma abertura ao mistério, e como sinal positivo para a razão. As lembranças

de episódios, situações e gestos heroicos ocorridos nos Lager também são

numerosas, embora muito menores em relação aos relatos de sofrimentos e

humilhações sofridas. Pudemos entender que, para prestar atenção ao próximo, era

preciso uma grande dose de coragem e de sorte. A lei nos campos era clara: tentar

defender a própria pele, mesmo sabendo que a vida estava por um fio.

Assim, o testemunho de Levi vem a revelar a horrenda faceta de uma

realidade inimaginável ao homem comum, sobretudo no que se refere à fome. Ela,

por sinal, assume diferentes conotações ao longo de SQU, mas sem dúvida é no

capítulo Una buona giornata que o tema é explorado em diversos significados.

“Come è debole la nostra carne! Io mi rendo conto appieno di quanto siano vane

queste fantasie di fame” (LEVI, 2003: 67)81; é inútil, na opinião de Levi, sonhar com a

comida, mas é através desse sonho, como já observamos, e que os prisioneiros

encontram forças para continuar a viver.

81 Como a nossa carne é fraca! Eu me dou conta perfeitamente de quanto são vãs essas fantasias de fome (LEVI, 1988: 74, tradução de Luidi Del Re).

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Como necessidade fisiológica, a fome é um elemento vivo que assola

incisivamente a rotina dos detentos: “E avremo addosso la nostra vecchia compagna

fame, e stenteremo a stare immobili sulle ginocchia...” (LEVI, 2003: 92)82. É

companheira inseparável, é rotina, é parte da vida dos detentos.

Em outra chave de leitura, na condição de homens do Lager, já bestializados,

o ato de comer dos homens é equiparado àquele dos animais:

Questo non già per derisione o per scherno, ma perché realmente questo nostro mangiare in piedi, furiosamente, scottandoci la bocca e la gola, senza il tempo di respirare, è “fressen”, il mangiare delle bestie, e non certo “essen”, il mangiare degli uomini, seduti davanti a un tavolo, religiosamente. “Fressen” è il vocabolario proprio, quello comunemente usato fra noi (LEVI, 2003: 68)83.

O crítico João Zuin sustenta que esse processo de transformação do homem

ao estado de animal ocorre em decorrência de privações e da presença da morte,

percebida pelos sentidos:

Seja pela visão diária da multidão de muçulmanos, daqueles que chegaram “no fundo” e viram o rosto gorgôneo dos S.S. e dos Kapos [...]. Seja pela audição diária das sentenças premonitórias ditas pelos S.S. e pelos Kapos, pelo ‘[...] estranho cheiro adocicado, insinuante, com relentos acres, propriamente repugnantes [...] o cheiro insólito, que se revelaria ser o do forno crematório. Seja pelo paladar, cuja comida era chamada pelos Kapos de fressen, palavra usada para designar a alimentação dos animais (ZUIN, 2006: 204-205).

Em um trecho de SES, não por acaso Levi fala da Górgona84 ao se referir aos

sommersi, que viram de perto a realidade última dos campos e exatamente por isso

não puderam mais falar, assim os descreve:

82 E teremos ainda, dentro de nós, a fome, nossa velha companheira, e custaremos a ficar firmes sem dobrar os joelhos (LEVI, 1988: 105, tradução de Luigi Del Re).

83 Realmente, fressen não é bem "comer". "Comer" é comer como gente, sentados à mesa, religiosamente: é essen. Fressen é comer como bichos, mas o Kapo não fala assim por escárnio. Comer assim, de pé, a toda a pressa, prendendo o fôlego, queimando-nos boca e garganta, é, realmente, fressen; é esta a palavra certa, a que costumamos dizer (LEVI, 1988: 25-26, tradução de Luigi Del Re).

84 As górgonas eram Esteno, Euríale e Medusa, filhas de Fórcis e Ceto, mas apenas a Medusa é considerada a Górgona por excelência; eram moradoras do extremo ocidente da terra, nas proximidades dos Infernos. Tinha a cabeça enorme e cabeleira de serpentes, dentes longos e agudos, mãos de bronze e asas de ouro. E seus olhos faiscantes petrificavam todos aqueles que ousavam fixa-los (DICIONÀRIO, 1976: 82).

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Lo ripeto, non siamo noi, i superstiti, i testimoni veri. È questa una nozione scomoda, di cui ho preso coscienza a poco a poco, leggendo le memorie altrui, e rileggendo le mie a distanza di anni. Noi sopravvissuti siamo una minoranza anomala oltre che esigua: siamo quelli che, per loro prevaricazione o abilità o fortuna, non hanno toccato il fondo. Chi lo ha fatto, chi ha visto la Gorgone, non è tornato per raccontare, o è tornato muto (LEVI, 1991: 61)85.

Levi também se preocupa em estar reduzido a um estado bestial quando

anota: “Ho fame, e quando domani distribuiranno la zuppa, come farò a mangiarla

senza cucchiaio? E come si può avere un cucchiaio?” (LEVI, 2003: 33)86. “O recém-

chegado era, pois, obrigado a sorver a sopa como um cão, pois não lhe era

fornecida nenhuma” (LEVI, 2010: 15). Todo traço de civilidade tendia a desaparecer,

pouco a pouco no dia a dia do Lager. Sobre como se conseguir uma colher, Levi

comenta que para aquelas que não possuíam uma, o empréstimo do simples talher

era considerado um sinal de boa educação entre os prisioneiros:

Era um empréstimo que só se fazia a uma pessoa de confiança, porque uma colher era um capital, valia uma ração de pão, dávamo-la apenas a uma pessoa de confiança ou que pudéssemos não perder de vista. Não nos davam qualquer colher, era preciso conquista-la, quer dizer, comprá-la, no início, com pão (LEVI, 2010: 15).

Levi e, por conseguinte, os demais prisioneiros do Lager enxergam na posse

do simples objeto um sinal de animalização e finaliza seu comentário afirmando que

“quando libertaram o campo encontramos um depósito cheio de colheres, não havia

nenhuma razão para não as distribuir...” (LEVI, 2010:15), senão para que, de fato,

esses homens se reduzissem ao estado bestial.

Intertexto semelhante encontra-se nas páginas de SES:

Senza cucchiaio, la zuppa quotidiana non poteva essere consumata altrimenti che lappandola come fanno i cani; solo dopo molti giorni di apprendistato (ed anche qui, quanto era importante riuscire subito a capire

85 Repito, não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas. Essa é uma noção incômoda, da qual tomei consciência pouco a pouco, lendo as memórias dos outros e relendo as minhas, muitos anos depois. Nós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. Quem o fez, quem fitou a górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo (LEVI, 1990: 47, tradução de Luiz Sérgio Henriques).

86 Estou com fome, e quando, amanhã, nos distribuirão a sopa, como é que vou comê-la se não tenho

colher? E como é que se consegue uma colher? (LEVI, 1988: 36, tradução de Luigi Del Re).

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ed a farsi capire!) sì veniva a sapere che nel campo i cucchiai c’erano sì, ma che bisognava comprarseli al mercato nero pagandoli con zuppa o pane: un cucchiaio costava di solito mezza razione di pane o un litro di zuppa, ma ai nuovi arrivati inesperti veniva chiesto sempre molto di più. Eppure, alla liberazione del campo di Auschwitz, abbiamo trovato nei magazzini migliaia di cucchiai nuovissimi di plastica trasparente, oltre a decine di migliaia di cucchiai d’alluminio, d’acciaio o perfino d’argento, che provenivano dal bagaglio dei deportati in arrivo. Non era dunque una questione di risparmio, ma un preciso intento di umiliare (LEVI, 1991: 85)87.

A obra de “bestialização” (LEVI, 2003: 152) operada pelos nazistas é descrita

na perspectiva das vítimas. Levi emprega uma impressionante série de metáforas

animais que atestam a interiorização da desumanização. Os mais lúcidos dentre os

prisioneiros falam que o Lager “è una gran macchina per ridurci a bestie” (LEVI,

2003: 35) como o já citado sargento Steinlauf; os prisioneiros são comparados a

“bestie stanche” (LEVI, 2003: 39), a “formiche” (LEVI, 2003: 55), a cordeiros que se

reúnem nos cantos; os detentos têm “il torpore opaco delle bestie domate con le

percosse” (LEVI, 2003: 106), constituem um “gregge muto innumerovole” (LEVI,

2003: 106), um “gregge abbietto” (LEVI, 2003: 133). Os mais extenuados dentre eles

lembram “i cani da slitta dei libri di London, che faticano fino all’ultimo respiro e

muoiono sulla pista” (LEVI, 2003: 38), são “nulla più che un involucro, come certe

spoglie di insetti che si trovano in riva agli stagni, attaccate con un filo ai sassi, e il

vento le scuote” (LEVI, 2003: 37). Já os mais resistentes, ao invés, “la rudimentale

astuzia dei cavalli da traino, che smettono di tirare un po’ prima di giungere

l’esaurimento” (LEVI, 2003: 38), e como tais, são agredidos pelos kápos mais

benévolos “quasi amorevolmente” e as agressões são acompanhadas de

“esortazioni e incoraggiamenti, come fanno i carrettieri con i cavalli volenterosi”

(LEVI, 2003: 60).

87 Sem colher, a sopa cotidiana não podia ser consumida senão sorvendo-a como fazem os cães; só depois de muitos dias de aprendizagem (e também aqui, como era importante conseguir logo compreender e fazer-se compreender!) se vinha a saber que havia colheres no campo, mas era preciso comprá-las no mercado negro, pagando-as com sopa ou pão: uma colher custava habitualmente meia ração de pão ou um litro de sopa, mas aos recém-chegados, inexperientes, sempre se pedia muito mais. No entanto, na libertação do campo de Auschwitz, encontramos nos depósitos milhares de colheres novíssimas de plástico, além de dezenas de milhares de colheres de alumínio, de aço ou até de prata, que provinham da bagagem dos deportados na chegada. Não se tratava, portanto, de uma questão de economia, mas de uma intenção precisa de humilhação (LEVI, 1990: 68-69, tradução de Luiz Sérgio Henriques).

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Se de fato a intenção nazista era a de desumanizar os prisioneiros reduzindo-

os ao estado de animalidade, por óbvias razões, a alimentação destes prisioneiros

deveria ser como aquela dos animais, e como já observado, partia da própria

semântica do verbo alimentar-se em alemão, com duas formas distintas para

homens e para animais.

No entanto, muito além de uma simples necessidade por conta da ausência

da comida ou parte de um processo cruel de bestilização do homem, a fome

transcende seu sentido primário.

Num espelho que não é apenas obscuro, mas nebuloso, obnubilado pelas

cinzas de Auschwitz – e de todos os horrores e erros do nazismo – olhamos a citada

Górgona que é a História, quando ela toma a forma humana e, frequentemente

penosa que são as histórias da guerra do genocídio, da diáspora, da violência e... da

fome. E a escrita de Levi abre-se, metaforicamente para desvelar este espelho

embaçado, para mostrar as feridas deste mundo difícil do Lager.

Emblemática é a cena da escavadeira, quando todos os prisioneiros ficam

deslumbrados ao observar os movimentos da máquina, é um momento relevante da

narrativa porque a significação de fome muda, surgindo sob a forma de uma

alegoria:

Perciò, non appena il freddo, che per tutto l’inverno ci era parso l’unico nemico, è cessato, noi ci siamo accorti di avere fame: e, ripetendo lo stesso errore, così oggi diciamo: “Se non fosse della fame!...” Ma come si potrebbe pensare di non aver fame? Il Lager è la fame: noi stessi siamo la fame, la fame vivente. Al di là della strada lavora una draga. La benna, sospesa ai cavi, spalanca le mascelle dentate, si libra un attimo come esitante nella scelta, poi si avventa alla terra argillosa e morbida, e azzanna vorace, mentre dalla cabina di comando sale uno sbuffo soddisfatto di fumo bianco e denso. Poi si rialza, fa un mezzo giro, vomita a tergo il boccone di cui è grave, e ricomincia. Appoggiati alle nostre pale, noi stiamo a guardare affascinati. A ogni morso della benna, le bocche si socchiudono, i pomi d’Adamo danzano in su e poi in giù, miseramente visibili sotto la pelle floscia. Non riusciamo a svincolarsi dallo spettacolo del pasto (LEVI, 1989: 126) 88.

88 Portanto, acabado o frio, que durante todo o inverno nos parecia o único inimigo, demo-nos conta de ter fome, e, voltando ao mesmo erro, hoje repetimos: - Se não fosse por essa fome... Como poderíamos pensar em não ter fome? O Campo é a fome; nós mesmos somos a fome, uma fome viva. Além da estrada, trabalha uma escavadeira. A sua concha, suspensa nos cabos, escancara

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La Fauci afirma que a expressão e a representação da fome em SQU não

fazem uso da metáfora, porque “la metafora ricorre peraltro solo per lo stretto

indispensabile nel rendiconto di Levi, che per tale aspetto è comparabile ad un’ideale

prosa scientifica e, per altri versi, all’espressione dantesca” (LA FAUCI, 2009: 409)89.

E acrescenta que

l’allegoria della draga è introdotta da un costrutto identificazionale che ha “il Lager” come argomento e “la fame” come predicato: dal punto di vista sintattico, un’alegoria è del resto un ellittico costrutto identificazionale. A questa identificazione si associa il converso de una prosopopea, riferito alle cavie dello sperimento – e l’ironia combinatoria è certo di ferocia sopraffina: sotto il segno della fame, quel “noi” si identifica con “il Lager” (LA FAUCI, 2009: 410)90.

O objeto inanimado é representado como se estivesse vivo, é

antropomorfizado ou animalizada. Não é por acaso, pois acreditamos que Levi

queira sublinhar um mundo permeado pela presença da morte, um mundo

transformado onde a natureza e as pessoas morrem e, simbolicamente, os objetos

vivem.

A explicação pode ser encontrada no mecanismo psicológico da projeção. A

fome é uma sensação tão dolorosa e penosa para os deportados que não se pode

pensar em outra coisa senão na própria fome. Portanto, a descrição da draga é um

curioso caso de focalização interna. Cavaglion, sobre esse trecho, comenta: “si nota

altresì un aspetto vagamente cinematografico, quasi disneyano più che dantesco

(sebbene sia chiaro il rinvio al “fiero pasto” di Ugolino). L’anima degli oggetti: fiori che

suas mandíbulas dentadas, paira um instante, como hesitando na escolha, de repente arremete contra a terra mole e argilosa, abocanha ávida, enquanto da cabine sai um jato satisfeito de fumaça branca e densa. Logo torna a levantar, dá um quarto de volta, despeja a presa que estava carregando, e recomeça. Apoiados em nossas pás, olhamos fascinados. A cada mordida da escavadeira entreabrem-se as bocas, os pomos-de-adão sobem e descem miseramente visíveis por baixo da pele frouxa. Não conseguimos renunciar ao espetáculo do banquete da escavadeira (LEVI, 1988: 25-26, tradução de Luigi Del Re).

89 A metáfora recorre, aliás, apenas para o estritamente necessário na narração de Levi que, por tal aspecto é comparável a uma prosa científica ideal e, por outro lado, à expressão dantesca (tradução nossa).

90 A alegoria da draga é introduzida por um construto identificacional que tem “o Lager” como tema e “a fome” como predicado: do ponto de vista sintático, uma alegoria é, no mais, um construto elíptico identificacional. A esta identificação se associa o contrário de uma prosopopeia, referida às cobaias do experimento – e a ironia combinatória é certamente de uma crueldade refinada: sob o signo da fome, aquele “nós” se identifica com “o Lager” (tradução nossa).

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ridono, alberi che parlano, macchine che comunicano sensazioni” (CAVAGLION,

2000: 126-127, nota 13)91. Todavia parece-nos que a humanização dos objetos em

SQU tenha outro sentido: Auschwitz é um mundo ao inverso, e neste mundo

subvertido os homens se comportam como autômatos, como máquinas – vale

lembrar que Levi descreve o Lager como uma máquina – pois “le loro anime sono

morte” (LEVI, 2003: 45).

Frente ao maquinário que, como enorme animal devora a terra, Levi e os

outros prisioneiros estão fascinados; a cada mordida da escavadeira, as bocas se

abrem, os pomos de Adão dançam, as bocas se enchem de saliva. O espetáculo do

“pasto della draga” nos parece mais de dantesca plasticidade do que representação

disneyana, como afirma Cavaglion. A imagem os arrebata, sem trégua, enquanto

imitação/representação (mimesis) do ato de comer, um ato tão natural, mas quase

proibitivo para eles. A fome vivente, condição extrema, em seguida é concretizada

pela descrição de iguarias por alguns prisioneiros que, na afabulação gastronômica

parecem querer satisfazer o apetite, que na realidade, apenas cresce, como

observamos anteriormente ao descrever as memórias de abundância.

A linha simbólica que se esconde por detrás das imagens e dos temas

escolhidos por Levi não quer evocar um outro mundo, um mundo transcendental,

mas quer agregar um valor mais profundo à escrita que ultrapassa o gênero do

testemunho. Este simbolismo é também uma das razões pelas quais poder-se-ia

definir SQU apenas como uma obra fortemente literária; porém, nela coexistem

vários gêneros podendo ser dividida entre sequências descritivas e narrativas.

Assim, os traços simbólicos, como o trecho da draga, inserem-se nas partes que são

mais narrativas. Porém, o dever de falar deve ser acompanhado de todo tipo de

cautela, pois há o perigo, como provocatoriamente afirma Kertész, que a descrição

do Lager possa ser lida “apenas como texto literário, e não como realidade”

(KERTÉSZ, 2004: 116).

91 Nota-se também um aspecto vagamente cinematográfico, quase disneyano, mais que dantesco (embora seja clara a referência ao “fiero pasto” de Ugolino). A alma dos objetos: flores que riem, árvores que falam, máquinas que comunicam sensações (tradução nossa).

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“As palavras e os alimentos coincidem no lugar de saída de umas e de

ingresso de outros: a boca” (DALLA BONA, 2009: 23). Assim se pensarmos que se

alguém tiver a língua cortada ficará impossibilitado de falar e de comer, é clara a

relação entre linguagem e alimentação: comida e palavra, para Levi, assumem o

mesmo valor. É na linguagem que a testemunha procura articular-se com os vários

aspectos do mundo, num todo significativo para ela e para o mundo a fim de dar

sentido à expressão da experiência da fome no Lager. Na complexidade da

linguagem, dizer tudo, nem sempre é possível, pois é real a inexistência de palavras

suficientemente capazes de dar significado àquilo que se quer manifestar.

E tudo se resume na frase “Se non fosse della fame!” (LEVI, 2003: 66),

prótase de um período hipotético com inumeráveis apódoses que, nós leitores,

somos convocados a completar livremente.

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5 – A fome da memória

Si può raccontare Auschwitz? C’è racconto possibilie dell’esperienza dei campi di concentramento? Esistono narratori autorizzati, alcuni più di altri? (MORONCINI, 1988: 7).

No capítulo anterior, foram apresentadas diversas nuances da fome, o mais

funesto dos flagelos sofridos pelos detentos dos campos de concentração. Todavia,

o sentido da fome não se esgota apenas como uma sensação física ou em uma

dimensão alegórica: a fome também se manifesta no próprio desejo de narrar a

experiência extrema, tanto através da narrativa oral, como por meio daquela escrita.

Muitos daqueles que o destino privou de ver a terrível face da Górgona

testemunham a fim de manter viva a infausta memória da Shoah. Dessa forma,

esses homens rompem com o tabu do silêncio e da dor e propagam ao mundo todo

o fardo imposto por Auschwitz, pois como afirma Rubem Alves, “palavras e comidas

são feitos da mesma substância. Elas nascem da mesma mãe: a fome” (ALVES,

2003: 107).

Di Castro hipotisa que a fame física (o fressen apontado no capítulo anterior)

é o “‘stimolo numero uno’ che ‘abita tutte le cellule e condiziona tutti i comportamenti’

dei prigionieri, in un certo qual modo, sia come una memoria: una memoria del

corpo, o forse la memoria stessa (della mente e del corpo congiuntamente, senza

distinzioni)” (DI CASTRO, 2014: 108)92. Ou como assevera Alves, “todas as palavras

a ser escritas no futuro serão variações sobre o tema da fome, ainda que pareçam

totalmente esquecidas desse momento inaugural. Falamos porque temos fome”

(ALVES, 2003: 105). É-nos lícito, portanto, deduzir que os livros de Levi são livros

sobre a fome, na esteira das palavras de Alves?

92 “Estímulo número um” que “habita todas as células e condiciona todos os comportamentos” dos

prisioneiros, de certo modo, seja como uma memória: uma memória do corpo, ou talvez, a própria

memória (da mente e do corpo conjuntamente, sem distinções) (tradução nossa).

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Recorrendo às páginas de SES, podemos afirmar que nelas Levi resume, de

forma magistral, tudo o que trataremos neste capítulo. Ao falar de suas memórias

ele indica que

erano anche l’equivalente mentale del nostro bisogno corporeo di nutrimento, che ci spingeva a cercare le bucce di patate nei dintorni delle cucine: poco più del niente, meglio del niente. Anche il cervello sottoalimentato soffre di una sua fame specifica. O forse, questa memoria inutile e paradossa aveva un altro significato e un altro scopo: era una inconsapevole preparazione per il “dopo”, per una improbabile sopravvivenza, in cui ogni brandello di esperienza

sarebbe diventato un tassello di un vasto mosaico (LEVI, 1991: 70)93.

Di Castro, inspirando o título do presente capítulo, define a memória em Levi

como

l’immagine di "memoria come fame della mente" si riferisce a un certo tipo di memoria, di cui Levi parla anche in altri testi: una memoria "strana", "anomala", "paradossa", involontaria, apparentemente inutile e insensata, eppure particolarmente persistente nella memoria. Ho l’impressione tuttavia che quel paragone parli non solo di un "effetto curioso", quasi secondario e aneddotico, della memoria di Auschwitz, ma si collochi proprio al suo centro. Ancor di più, mi sembra indicare qualcosa di fondamentale sul ruolo e il valore della memoria in generale (sia pur attraverso un suo "effetto curioso") che Auschwitz e l’intera storia della "guerra nazista contro la memoria" hanno, in modo "tremendamente ‘esemplare’", portato allo scoperto (CASTRO, 2014: 102).94

Assim, desde os tempos da detenção em Auschwitz, Levi sentiu a

necessidade e a urgência de contar a sua experiência, como é possível verificar no

seguinte trecho:

93 Eram o equivalente mental de nossa necessidade corpórea de nutrição, que nos levava a buscar

cascas de batata nas imediações das cozinhas: pouco mais do que nada, melhor do que nada.

Também o cérebro subalimentado sofre uma fome específica. Ou, talvez, essa memória inútil e

paradoxal tinha outro significado e um outro escopo: era uma preparação inconsciente para o

“depois”, para uma sobrevivência improvável, na qual cada migalha de experiência se tornaria uma

peça de um amplo mosaico (LEVI, 1991: 55, tradução de Luiz Sérgio Henriques).

94 A imagem de “memória como fome da mente” refere-se a um certo tipo de memória da qual Levi

também fala em outros textos: uma memória “estranha”, “anômala”, “paradoxal”, involuntária,

aparentemente inútil e insensata, mas assim mesmo, particularmente persistente na memória.

Todavia tenho a impressão de que a comparação fale não apenas de um “efeito curioso”, quase

secundário e anedótico, da memória de Auschwitz, mas se coloque exatamente ao centro. Ainda

mais, me parece indicar algo de fundamental sobre o papel e o valor da memória em geral (seja até

mesmo através de um “efeito curioso”) que Auschwitz e toda a inteira história da “guerra nazista

contra a memória” têm, de modo “tremendamente ‘exemplar’”, trazido à luz (tradução nossa).

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Ma non appena, al mattino, io mi sottraggo alla rabbia del vento e varco la soglia del laboratorio, ecco al mio fianco la compagna di tutti i momenti di tregua, del Ka-Be e delle domeniche di riposo: la pena del ricordarsi, il vecchio feroce struggimento di sentirsi uomo, che mi assalta come um cane all’istante in cui la coscienza esce dal buio. Allora prendo la matita e il quaderno, e scrivo quello che non saprei dire a nessuno (LEVI, 1989: 228,

grifo nosso)95.

Perec postula que o indizível “não se esconde na escrita, mas desencadeia o

processo dela” (PEREC, 1995: 54). Destarte, em Il sistema periodico, Levi compara-

se ao velho marinheiro de Coleridge, ansioso por contar e por escrever, na tentativa

de que os fatos narrados e escritos pudessem, de certa forma, aliviar seu sofrimento

e fazê-lo sentir-se novamente homem:

Io ero ritornato dalla prigionia da tre mesi, e vivevo male. Le cose viste e sofferte mi bruciavano dentro: mi sentivo più vicino ai morti che ai vivi, e colpevole di essere uomo, perché gli uomini avevano edificato Auschwitz, ed Auschwitz aveva ingoiato milioni di esseri umani, e molti miei amici, ed una donna che mi stava nel cuore. Mi pareva che mi sarei purificato raccontando, e mi sentivo simile al Vecchio Marinaio di Coleridge, che abbranca in strada i convitati che vanno alla festa infliggere loro la sua storia di malefizi. Scrivevo poesie concise e sanguinose, raccontavo com vertigine, a voce e per iscritto, tanto che a poco a poco ne nacque poi un libro: scrivendo trovavo breve pace e mi sentivo ridiventare uomo, uno come tutti, né martire né infame né santo, uno di quelli che si fanno una famiglia, e guardano al futuro anziché al passato (LEVI, 2005: 501)96.

Portanto, da mesma maneira que sentiu o impulso de rabiscar os primeiros

esboços de suas memórias no campo, logo após seu retorno à Itália, este impulso

tornou-se ainda mais imediato e mais violento e, ainda, carregado do desejo de fazer

dos outros, aqueles que lá não estiveram, também partícipes.

95 No instante, porém, em que de manhã estou livre da fúria do vento e transponho o umbral do

Laboratório, aparece a companheira de todo momento de trégua, da enfermaria, dos domingos de

folga: a pena de relembrar, o velho tormento feroz de me sentir homem que, logo que a consciência

sai das trevas, me acua de repente como um cachorro que morde. Então pego lápis e caderno e

escrevo o que não saberia confiar a ninguém (LEVI, 1988: 143-144, tradução de Luigi Del Re).

96 Eu tinha retornado da prisão há três meses, e vivia mal. As coisas vistas e sofridas queimavam

dentro de mim: me sentia mais perto dos mortos do que dos vivos e culpado de ser homem, porque

os homens tinham edificado Auschwitz, e Auschwitz tinha engolido milhões de seres humanos, e

muitos dos meus amigos e uma mulher que me era cara. Me parecia que, contando, teria me

purificado e me sentia semelhante ao Velho Marinheriro de Coleridge, que retinha pela rua os

convidados que vão a festa infrigir-lhes a sua história de malefícios. Eu escrevia poesias concisas e

sanguinolentas, contava com vertigem, oralmente e por escrito, tanto que, pouco a pouco, nasceu

disso, depois, um livro: escrevendo eu encontrava uma breve paz e me sentia tornar-me novamente

homem, um como todos, nem mártir, nem infame, nem santo, um daqueles que constroem uma

família e olham para o futuro ao invés de olhar para o passado (tradução nossa).

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No prefácio a La Vita Offesa, Levi declara que

É antigo o desejo de falar, de encontrar um ouvinte atento e participante, e de que durou muito a espera de uma oportunidade de dar forma escrita àquelas experiências já distantes no tempo. Em muitos depoimentos reaparece uma característica distintiva: a necessidade de “contar o inacreditável” vem desde o tempo da prisão; à vezes é quase uma promessa, daquelas que o devoto faz a Deus e o ateu a si mesmo: se escapar conto, para que minha vida não deixe de ter sentido. A esperança de sobreviver coincide, em suma, com a esperança obsessiva de comunicar aos outros, de sentar-se junto ao fogo, em torno da mesa e contar (LEVI, 2016f: 161).

Para ele, o desejo de narrar a situação-limite do Lager encontra-se, em

primeiro lugar, na dimensão de satisfação de uma necessidade pessoal que urge ser

suprida, como já visto, comparada ao desejo de satisfação da fome. Di Castro

explica que

fame e memoria (nel senso anche di testimonianza e racconto), sono testualmente e concettualmente vicine, se non quasi identiche. Entrambe sono un "impulso elementare", "impellente": il bisogno al tempo stesso di colmare un vuoto angoscioso e di purgarsi da un veleno contagioso e indigesto (CASTRO, 2014: 108).97

O poema Alzarsi, epígrafe do livro La Tregua, anteriormente já citado, que faz

referência às noites atribuladas de sono e ao despertar dos prisioneiros do Lager,

revela essa dimensão em que narrar fatos passados e comer encontram-se num

mesmo patamar de igualdade:

Sognavamo nelle notti feroci Sogni densi e violenti Sognati con anima e corpo: Tornare, mangiare e raccontare (LEVI, 2003: 155)98.

Nestes poucos versos Levi consegue sintetizar as longas e marcantes

páginas de duas de suas obras: de SQU faz-se presente a fome, tormento das

97 Fome e memória (também no sentido de testemunho e relato) são, textual e conceitualmente

próximas, se não, quase idênticas. Ambas são um "impulso elementar", "instigador": a necessidade,

ao mesmo tempo de preencher um vazio angustiante e de purgar-se de um veneno contagioso e

indigesto (tradução nossa).

98 Sonhávamos nas noites ferozes/ sonhos densos e violentos/ sonhados de corpo e alma:/ Voltar:

comer: contar. (LEVI, 2010: 5, tradução de Marco Lucchesi).

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longas jornadas e do pesadelo das noites, bem como o desejo de liberdade; de La

tregua, ao invés, percebemos o retorno a uma vida normal, ou que parece normal,

mas que na verdade não é, pois não podem ser canceladas as memórias dos

sofrimentos passados, de tantas mortes injustas que, por fim, acabam por se

transformar em novos pesadelos.

Na tentativa de satisfazer essa “fome da mente” instigada pela memória ainda

recente, logo que foi libertado de Auschwitz, ele registra aquele passado ainda

próximo e vivo em sua lembrança. Como se observa já no prefácio de SQU, a

descrição da necessidade de narrar o horror vivido nos campos nazistas, convoca

aqueles que não estiveram presentes naquele “inferno” terreno, a se tornarem

“participantes” da mesma experiência, como apontado mais acima:

Il bisogno di raccontare agli altri, di fare gli altri partecipi, aveva assunto fra noi, prima della liberazione e dopo, il carattere di un impulso immediato e violento, tanto da rivaleggiare com gli altri bisogni elementari: il libro è stato scritto per soddisfare a questo bisogno; in primo luogo quindi a scopo di liberazione interiore. Di qui il suo carattere frammentario: i capitoli sono stati scritti non in successione logica, ma per ordine di urgenza (LEVI, 2003: 9-

10)99.

Essas linhas já advertem o leitor quanto ao propósito do livro: a "necessidade

de contar", de trazer à tona um passado horrendo e que, segundo Barenghi, essas

advertências iniciais são um tópos e um momento quase obrigatório da literatura

memorialista (BARENGHI, 2013: 178).

Dentre essas advertências, Levi menciona inclusive os possíveis problemas

de SQU, nascido em decorrência da urgência em expor a todos o que Auschwitz

representou: “Di qui il suo carattere frammentario: i capitoli sono stati scritti non in

successione logica, ma per ordine di urgenza” (LEVI, 2003: 9-10)100. Portanto, mais

99 A necessidade de contar “aos outros”, de tornar “os outros” participantes, alcançou entre nós, antes

e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras

necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro lugar,

portanto, com a finalidade de liberação interior. Daí, seu caráter fragmentário: seus capítulos foram

escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência (LEVI, 1988: 8, tradução de Luigi Del

Re).

100 Daí, seu caráter fragmentário: seus capítulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por

ordem de urgência (LEVI, 1988: 8, tradução Luigi Del Re).

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do que a preocupação de uma sequência cronológica de fatos, SQU nasce com a

preocupação de registrar aqueles fatos motivados por um “impulso violento”.

No que se refere a esse “impulso violento”, Seligmann-Silva sustenta que o

testemunho, de Levi e dos tantos sobreviventes, caracteriza-se como uma atividade

“elementar”, e que dessa atividade depende a sobrevida daqueles que retornam dos

campos de concentração ou de outra situação-limite, geradoras dessa necessidade,

e que acabam por desencadear a carência absoluta em narrar (SELIGMANN-SILVA,

2008: 66). Seligmann-Silva ainda atenta para a barreira existente entre o sentimento

do sobrevivente e o dos “outros”, barreira esta que os isolava e que acabava por

ocasionar a dificuldade prevista em tal cena narrativa (SELIGMANN-SILVA, 2008:

66).

Em complemento a essa ideia, Segre considera que a satisfação desse

impulso trata-se de uma garantia da não reversibilidade da situação de homem livre

à situação de escravo; assim, o contar, para Levi, significa comunicar aos seus

semelhantes os ensinamentos extraídos de uma experiência extrema (SEGRE,

1997: 94), uma vez que os campos de extermínio representam um “sinistro sinal de

perigo” (LEVI, 1988: 7). Pois, “não é lícito esquecer, não é lícito calar. Se calarmos,

quem falará? [...] Se faltar nosso testemunho, num futuro nada distante, os feitos da

bestialidade nazista, exatamente por sua enormidade, poderão ser relegados ao rol

das lendas”. (LEVI, 2016: 4). Falar, narrar, testemunhar e escrever, para que o fato

não se repita.

Assim, o alvo dessa transmissão constitui-se tanto de familiares e amigos

quanto de pessoas desconhecidas. Em SES, Levi, inclusive, detalha o tipo de

experiência que, em geral, os sobreviventes preferem inicialmente narrar e, mais

uma vez, revisita uma passagem dantesca ao afirmar que

È stato notato, ad esempio, che molti reduci da guerre o da altre esperienze complesse e traumatiche tendono a filtrare inconsapevolmente i loro ricordi: rievocandoli fra loro, o raccontandoli a terzi, preferiscono soffermarsi sulle tregue, sui momenti di respiro, sugli intermezzi grotteschi o strani o distesi, e sorvolare sugli episodi più dolorosi. Questi ultimi non vengono richiamati volentieri dal serbatoio della memoria, e perciò tendono ad annebbiarsi col tempo, a perdere i loro contorni. É psicologicamente credibile il comportamento del Conte Ugolino, che prova ritegno nel raccontare a Dante

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la sua morte tremenda, e si induce a farlo non per accondiscendenza, ma

solo per vendetta postuma contro il suo eterno nemico (LEVI, 1991: 21)101.

Também Frankl lembra que, após a libertação dos campos, os ex-prisioneiros

passam por uma espécie de compulsão psicológica face à necessidade de contar o

que vivenciaram na reclusão:

O corpo não tem tantas inibições como a alma. A partir do primeiro instante em que se lhe abre a possibilidade, ele aproveita a realidade e deita mão nela, literalmente: a gente come a não poder mais, horas a fio, a metade da noite. Incrível o quanto se consegue comer. Um ou outro recluso liberto é convidado por agricultores amáveis nas proximidades do campo, e então ele come, e toma café e solta a sua língua, e começa a contar coisas, horas e horas a fio. Descarrega-se a pressão que estava sobre ele durante anos. A forma de contar dá a impressão de que a pessoa em questão estaria sob uma compulsão psicológica, tanta é a ânsia de contar, a necessidade de falar [...] Passam-se dias, muitos dias, até que se solte não somente a língua, mas também algo dentro da gente. De repente o sentimento abre uma brecha naquela estranha barreira repressiva que o recalcara (FRANKL, 2015: 115).

Essa espécie de “compulsão” aludida por Frankl é igualmente vivenciada e

apontada por Levi na maioria, senão na totalidade de seus escritos. Num diálogo

com estudantes da cidade italiana de Pesaro em 1986, diálogos esses que Levi fez

questão de manter durante toda a sua vida, ele declara que o modo encontrado por

ele para se libertar da carga de Auschwitz era aquele de falar, a qualquer pessoa,

sobre o seu passado doloroso e que a sua condição naquele momento era a de

testemunha da catástrofe:

Io sono tornato dalla prigionia con un carico sulle spalle, un carico che mi pesava molto e qualche istinto, abbastanza comprensibile, mi spingeva a liberarmi di questo carico parlandone, e ne parlavo molto, ne parlavo in modo ossessivo, ne parlavo con tutti, persone conosciute e persone sconosciute. Fino a che qualcuno mi ha suggerito come una scorciatoia, di scrivere queste cose invece di raccontarle. Io le ho scritte... non mi

101 Observou-se, por exemplo, que muitos sobreviventes de guerras ou de outras experiências

complexas e traumáticas tendem a filtrar inconscientemente suas recordações: evocando-as entre

eles mesmos ou narrando-as a terceiros, preferem deter-se nas tréguas, nos momentos de alívio, nos

interlúdios grotescos, estranhos ou relaxados, esquivando-se dos episódios mais dolorosos. Este

últimos não são trazidos de bom grado do magma da memória e, por isto, tendem a enevoar-se com

o tempo, a perder seus contornos. É psicologicamente digno de crédito o comportamento do Conde

Ugolino, que experimenta um retraimento ao narrar a Dante sua morte terrível, induzindo-se a fazê-lo

não por complacência, mas só por vingança póstuma contra seu eterno inimigo (LEVI, 1991: 15,

tradução de Luiz Sérgio Henriques).

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consideravo un letterato e neppure uno scrittore, mi consideravo un

testimone (LEVI apud SANVITALE, 1997: 36).102

Em outra ocasião, o escritor torinense corrobora o seu status de testemunha

ao afirmar que “nós, sobreviventes, somos testemunhas, e toda testemunha deve

responder (também, segundo a lei) com a verdade e de maneira completa”. Inclui,

ainda, uma terceira categoria de indivíduos aos quais se deve narrar, pois,

“enquanto estivermos vivos, é nosso dever falar, sim, mas aos outros, aos que ainda

não eram nascidos, para que saibam ‘até onde se pode chegar’” (LEVI; DE

BENEDETTI, 2015: 158-159).

Já Lisley Nascimento sinaliza a existência de dois sentimentos paradoxais

por parte do sobrevivente em relação as suas lembranças. O primeiro é o do

silêncio, porquanto este sobrevivente anseie esquecer os sofrimentos do passado,

pois segundo o próprio Levi, esse calar inicial daqueles que voltaram “não se deve à

covardia. Vive em nós uma instância mais profunda, mais digna, que em muitas

circunstâncias nos aconselha a calar sobre os campos de concentração ou pelo

menos atenuar, censurar suas imagens, ainda tão vivas em nossa memória” (LEVI:

2016: 4). O outro sentimento consiste em narrar os eventos passados para se

libertar "do veneno de Auschwitz" (NASCIMENTO, 2011: 93).

Em SES, o próprio Levi aponta a existência de duas categorias distintas de

prisioneiros: a dos silenciosos e a dos falantes, e que assim são descritos:

tacciono coloro che provano più profondamente quel disagio che per semplificare ho chiamato “vergogna”, coloro che non si sentono in pace con se stessi, o le cui ferite ancora bruciano. Parlano, e spesso parlano molto, gli altri obbedendo a spinte diverse. Parlano perché, a vari livelli di consapevolezza, ravvisano nella loro (anche se ormai lontana) prigionia il centro della loro vita, l’evento che nel bene e nel male ha segnato la loro

102 Eu voltei da prisão com uma carga nos ombros, uma carga que me pesava muito e alguns

instintos, bastante compreensível, me impelia a livrar-me desta carga falando dela, e dela falava

muito, dela falava de modo obsessivo, dela falava com todos, pessoas conhecidas e pessoas

desconhecidas. Até quando alguém me sugeriu de escrever estas coisas ao invés de conta-las. Eu as

escrevi... não me considerava um literato e sequer um escritor, me considerava uma testemunha

(tradução nossa).

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esitenza intera. Parlano perché sanno di essere testimoni di un processo di dimensione planetaria e secolare (LEVI, 1991: 112).103

Ao final, ele mesmo admite se enquadrar justamente na segunda delas (LEVI,

1991: 92); ele deseja veementemente contar a realidade perversa do Lager que, de

tão absurda, abre precedentes para a desconfiança ou para a incredulidade por

parte de seus ouvintes/leitores. Ou até mesmo para um possível negacionismo por

parte da crítica. Se o próprio Levi afirma que “oggi, questo vero oggi, in cui sto

seduto a un tavolo e scrivo, io stesso, non sono convinto che queste cose sono

realmente accadute” (LEVI, 2003: 93)104, imaginemos a dificuldade de compreensão

daqueles que não estiveram presentes.

Convém salientar que tratar da representação da Shoah não significa apenas

falar da memória, do desejo de lembrar, mas também é falar do esquecimento.

Falamos de um paradoxo? Por que relembrar algo que tantos desejam que seja

esquecido?

Para LaCapra a Shoah deve ser vista como

una realidad que se extendió más allá de la imaginación y la conceptualización y a veces ni las propias víctimas podían creer que estaban en medio de ella. Planteó problemas de “representación” en el momento en que sucedía y sigue haciéndolo hoy. En este sentido es una serie paradigmática de acontecimientos traumáticos relacionados de manera compleja con la cuestión del silencio que no es mero mutismo sino que intrincadamente vinculado a la representación, de diferentes maneras en varias disciplinas o áreas de discurso y representación, la Shoah convoca a una respuesta que no niegue su naturaleza traumática ni la

103 Calam aqueles que experimentam mais profundamente um mal-estar que, sem simplificar, chamei

de “vergonha”, aqueles que não se sentem em paz consigo mesmos ou cujas feridas ainda doem.

Falam, e muitas vezes falam muito, os outros, obedecendo a impulsos diversos. Falam porque, em

vários níveis de consciência, percebem no (ainda que já longínquo) encarceramento o centro de sua

vida, o evento que no bem e no mal marcou toda a sua existência. Falam porque sabem ser

testemunhas de um processo de dimensão planetária e secular (LEVI, 1990: 91, tradução de Luiz

Sérgio Henriques).

104 Hoje – neste hoje verdadeiro, enquanto estou sentado frente a uma mesa, escrevendo -, hoje eu

mesmo não estou certo de que esses fatos tenham realmente acontecido (LEVI, 1988:105, tradução

de Luigi Del Re).

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104

esconda valiéndose de un relato “fetichista” o redentor que haga creer que no ocurrió o que le compense rápidamente. (LACAPRA, 2007: 234)105

Urge recordar que dentre as principais características das narrativas da

Shoah, uma das mais importantes é aquela de evitar que a memória seja cancelada

e que a história se dissipe, pois relembrar a catástrofe é “(re)inscrever os traços

deixados pelo passado, os nazistas – sobretudo como recurso às câmaras de gás e

aos crematórios – tentaram arrancar uma página da história” (SELIGMANN-SILVA,

2003: 78). Logo, muitos dos sobreviventes elegem o silêncio, como observou

LaCapra, quando não o esquecimento, por se considerarem inábeis na tradução

apropriada da experiência vivida. Berel Lang ressalva que, por vezes,

the silence arguably remains a criterion for all discourse (Holocaust or not), a constant if a phantom presence that stipulates that whatever is written ought to be justifiable as more probative, more incisive, more revealing, than

its absence or, more cruelly, its erasure (LANG, 2000: 19)106.

Em vista disso, no prefácio de SES, Levi reporta a convicção dos integrantes

da SS referente ao fato de os detentos serem desacreditados por aqueles que não

conheceram o Lager:

“In qualunque modo questa guerra finisca, la guerra contro di voi l’abbiamo vinta noi; nessuno di voi rimarrà per portare testimonianza, ma se anche qualcuno scampasse, il mondo non gli crederà. Forse ci saranno sospetti, discussioni, ricerche di storici, ma non ci saranno certezze, perché noi distruggeremo le prove insieme con voi. E quando anche qualche prova dovesse rimanere, e qualcuno di voi sopravvivere, la gente dirà che i fatti che voi raccontate sono troppo mostruosi per essere creduti: dirà che sono esagerazioni della propaganda alleata, e crederà a noi, che negheremo

105 Uma realidade que se estendeu além da imaginação e da conceituação e às vezes até mesmo as próprias vítimas podiam acreditar que estavam em meio a ela. Ele levantou questões de "representação" no momento em que acontecia e continua a fazê-lo hoje. Neste sentido, é uma série paradigmática de eventos traumáticos relacionados de forma complexa com a questão do silêncio que não é simples silêncio, mas indissoluvelmente ligado à representação, de diferentes maneiras em várias disciplinas ou áreas de expressão e representação, a Shoah convoca uma resposta que não negue a sua natureza traumática nem a oculte valendo-se de um relato "fetichista" ou redentor que faça acreditar não ocorreu ou que rapidamente o compense (tradução nossa).

106 O silêncio, sem dúvida, permanece um critério para todo discurso (do Holocausto ou não), uma

constante, se a presença fantasmagórica que estipula o que quer que seja escrito deve ser justificável como mais probatório, mais incisivo, mais revelador, que a sua ausência ou, mais cruelmente, que o seu apagamento (tradução nossa).

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tutto, e non a voi. La storia dei Lager, saremo noi a dettarla” (LEVI, 1991:

5)107.

Ele também menciona que os mesmos SS buscavam ocultar todos os tipos

de prova contra si próprios, como, por exemplo, explodindo as câmaras de gás e os

crematórios de Auschwitz em 1944:

Molte delle prove materiali degli stermini di massa furono soppresse, o si cercò più o meno abilmente di sopprimerle: nell’autunno del 1944 i nazisti fecero saltare le camere a gas e i crematori di Auschwitz, ma le rovine ci

sono ancora... (LEVI, 1991: 6)108.

Na opinião de Gagnebin esta conduta dos nazistas mirava tornar os

sobreviventes duplamente inenarráveis, no sentido de que nada lembraria,

fisicamente, a existência daqueles homens e que a credibilidade dos sobreviventes,

em face daquela destruição de provas, seria nula (GAGNEBIN, 2006: 46). Já para

Scarpa, na direção oposta, o retorno daqueles homens representa uma luta contra

os assassinos da memória e contra o esquecimento (SCARPA, 2006: 27), pois eles

transformam-se em prováveis porta-vozes, ou melhor, em testemunhas da

catástrofe.

Simone de Beauvoir no prefácio de Treblinka, de Jean-François Steiner,

comenta exatamente que o relato de um testemunho é capaz de desencadear um

processo inverso daquele da abdicação, pois “assim como a presença de um

covarde é suficiente para que o grupo inteiro proceda covardemente, basta que surja

um punhado de heróis para que as criaturas, reconquistando confiança nas outras,

comecem a ousar” (BEAUVOIR, 1973: 12).

107 “Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos; ninguém restará par dar

testemunho, mas mesmo que alguém escape, o mundo não lhe dará crédito. Talvez haja suspeitas,

discussões, investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque destruiremos as provas

junto com vocês. E ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os

fatos narrados são tão monstruosos que não merecem confiança: dirão que são todos exageros da

propaganda aliada e acreditarão em nós, que negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos

a história dos Lager” (LEVI, 1990: 1, tradução de Luiz Sérgio Henriques).

108 Muitas provas materiais dos extermínios em massa foram suprimidas, ou se buscou mais ou

menos habilmente suprimi-las: no outono de 1944, os nazistas explodiram as câmaras de gás e os

crematórios de Auschwitz, mas as ruínas ainda resistem (LEVI, 1991: 2, tradução de Luiz Sérgio

Henriques).

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Segundo Agamben, tornar-se uma testemunha é um dos motivos que levam o

prisioneiro a suportar a experiência diabólica de Auschwitz. Para ele, Levi é um tipo

de testemunha perfeita, que conta sem parar, a todos, o que viveu quando de seu

retorno para casa (AGAMBEN, 2008: 25-26). Por ter suportado o horror e

sobrevivido, ele pôde regressar ao mundo dos homens livres a fim de testemunhar a

vida dos segregados pela “cerca de arame farpado” (LEVI, 1989: 82), como se nota

nas palavras valorosas do prisioneiro Steinlauf: “e perciò si deve sopravvivere, per

raccontare, per portare testimonianza” (LEVI, 1989: 67)109.

Também La Capra observa que testemunhar é um ato esperado por quem

protagonizou uma experiência extrema (LA CAPRA, 2007: 25). E sempre nas

palavras de Levi,

se morrermos aqui em silêncio, como querem nossos inimigos, se não retornarmos, o mundo não saberá do que o homem foi capaz, do que ainda é capaz: o mundo não se conhecerá a si mesmo, estará mais exposto à repetição da barbárie nacional-socialista ou a qualquer outra barbárie, seja qual for sua matriz política efetiva ou declarada (LEVI, 2016f: 162).

Indo mais além, portanto, podemos considerar que testemunha não é

somente aquele que viu com seus próprios olhos, aquele que Heródoto classifica

como a testemunha direta. Testemunha é, também, aquele que não vai embora, que

consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras

levem adiante, como num revezamento, a história daquele outro: não por

culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica,

assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada

reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar

esboçar uma outra história, a inventar o presente (GAGNEBIN, 2006: 57).

No entanto, uma sensação angustiante persegue todos os sobreviventes:

narrar a sua terrível história e não ser ouvido, ou ainda, receber um gesto de

indiferença alheia ou de rejeição. Elsa Morante, em La storia, importante documento

italiano sobre a II Guerra, resume a solidão extrema dos sobreviventes, e sua

109 E por isso se deve sobreviver, para contar, para poder testemunhar (LEVI, 1988: 39, tradução de

Luigi Del Re).

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consequente rejeição, cujo testemunho se expressa “al di sotto della soglia comune

dell’udibile” (MORANTE, 1974: 697)110 e que se se desejaria cancelar e eliminar do

convívio social, do mesmo modo que se faz com os loucos e com os mortos:

Presto essi [i giudii] impararono che nessuno voleva ascoltare i loro racconti: era chi se ne distraeva fin dal principio, e chi li interrompeva prontamente con un pretesto, o chi addirittura li scansava, quasi a dirgli: “Fratello, ti compatisco, ma in questo momento ho altro da fare”. Difatti i racconti dei giudii non somigliavano a quelli di capitani di nave, o di Ulisse, l’eroe di ritorno alla sua reggia. Erano figure spettrali come i numeri negativi, al di sotto di ogni veduta naturale, e impossibili perfino alla comune simpatia. La gente voleva rimuoverli dalle proprie giornate come dalle famiglie normali si rimuove la presenza dei pazzi o dei morti. E così, assieme alle figure illeggibili brulicanti nelle loro orbite nere, molte voci accompagnavano le solitarie passeggiatine dei giudii, riecheggiando enormi dentro i loro cervelli in una fuga a spirale, al di sotto della soglia comune dell’udibile (MORANTE,

1974: 376-377)111.

Mas antes da liberação, ainda nas noites do Lager, os prisioneiros são

atormentados pelo sonho de estar ao lado de amigos e familiares numa ocasião de

felicidade e acolhimento – ou seja, de estar em torno à mesa - e de contar-lhes as

dores do passado, porém sem receber a devida atenção. Este sonho, além do já

citado “sonho de Tântalo”, aterrorizava Levi:

Qui c’è mia sorella, e qualche mio amico non precisato, e molta altra gente. Tutti mi stanno ascoltando, e io sto raccontando proprio questo: il fischio su tre note, il letto duro, il mio vicino che io vorrei spostare, ma ho paura di svegliarlo perché è più forte di me. Racconto anche diffusamente della nostra fame, e del controllo dei pidocchi, e del Kapo che mi ha percosso sul naso e poi mi ha mandato a lavarmi perché sanguinavo. È un godimento intenso, fisico inespremibile, essere nella mia casa, fra persone amiche, e avere tante cose da raccontare: ma non posso non accorgermi che i miei ascoltatori non mi seguono. Anzi, essi sono del tutto indiferenti: parlano confusamente d’altro fra di loro, come se io non ci fossi. Mia sorella mi guarda, si alza e se ne va senza far parola. [...] Il sogno mi sta davanti,

110 Abaixo do limiar comum do audível (tradução nossa).

111 Logo eles [os judeus] aprenderam que ninguém queria ouvir as histórias deles: havia quem se

distraía desde o começo, e que os interrompia prontamente com um pretexto, ou quem, inclusive, os

evitava, quase a dizer-lhes: “Irmão, me apiedo de ti, mas neste momento tenho outra coisa a fazer”.

De fato as histórias dos judeus não se assemelham àquelas dos capitães de navios, ou de Ulisses, o

herói de retorno ao seu palácio. Eram figuras espectrais como os números negativos, abaixo de

qualquer vista natural, e impossíveis, inclusive, à simpatia comum. As pessoas queriam removê-los

dos próprios dias bem como das famílias normais se remove a presença dos loucos ou dos mortos. E

assim, junto às figuras ilegíveis, fervilhantes nas suas órbitas negras, muitas vozes acompanhavam

os solitários passeios dos judeus, ecoando enormes dentro do cérebro deles em uma fuga em espiral,

abaixo do limiar comum do audível (tradução nossa).

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ancora caldo, e io, benché sveglio, sono tuttora pieno di angoscia: e allora mi ricordo che questo non è un sogno qualunque, ma che da quando sono qui l’ho già sognato, non una ma molte volte, con poche variazioni di

ambienti e di particolari (LEVI, 1989: 103-104).112

À luz desse fato, Segre afirma que os sonhos, na obra leviana, estão

relacionados ao desejo de contar e ao temor de não ser ouvido ou de não ser

acreditado, pois não ser ouvido significa a frustração do objetivo principal em que se

apoia a vitalidade do detento (SEGRE, 1997: 72). Poder narrar o passado acaba por

se tornar o sentido máximo para a sua sobrevivência, enquanto prisioneiro.

Complementa-se a isso a concretude da cruel profecia nazista de que essas

memórias seriam anuladas graças à descrença dos interlocutores. Também em SES

Levi reevoca o sonho da narração ignorada:

Curiosamente, questo stesso pensiero (“se anche raccontassimo, non saremmo creduti”) affiorava in forma di sogno notturno dalla disperazione dei prigioneri. Quase tutti i reduci, a voce o nelle loro memorie scritte, ricordano un sogno che ricorreva spesso nelle notti di prigionia, vario nei particolari ma unico nella sostanza: di essere tornati a casa, di raccontare con passione e sollievo le loro sofferenze passate rivolgendosi ad una persona cara, e di non essere creduti, anzi, neppure ascoltati. Nella forma più tipica (e più crudele), l’interlocutore si voltava e se ne andava in silenzio

(LEVI, 1991: 5-6).113

Ao comentar esse fato, Segre sustenta que

112 Aqui está minha irmã, e algum amigo (qual?), e muitas outras pessoas. Todos me escutam,

enquanto conto do apito em três notas, da cama dura, do vizinho que gostaria de empurrar para o

lado, mas tenho medo de acordá-lo porque é mais forte que eu. Conto também a história da nossa

fome, e do controle dos piolhos, e do Kapo que me deu um soco no nariz e logo mandou que me

lavasse porque sangrava. É uma felicidade interna, física, inefável, estar em minha casa, entre

pessoas amigas, e ter tanta coisa para contar, mas bem me apercebo de que eles não me escutam.

Parecem indiferentes; falam entre si de outras coisas, como se eu não estivesse. Minha irmã olha

para mim, levanta, vai embora em silêncio. [...] O sonho está na minha frente, ainda quentinho; eu,

embora desperto, continuo, dentro, com essa angústia do sonho; lembro, então, que não é um sonho

qualquer; que, desde que vivo aqui, já o sonhei muitas vezes, com pequenas variantes de ambientes

e detalhes (LEVI, 1988: 60, tradução de Luigi Del Re).

113 Curiosamente, esse mesmo pensamento (“mesmo que contarmos, não nos acreditarão”) brotava,

sob a forma de sonho noturno, do desespero dos prisioneiros, quase todos os sobreviventes,

oralmente ou em suas memórias escritas, recordam um sonho muitas vezes recorrente nas noites do

confinamento, variado nos particulares, mas único na substância: o de terem voltado para casa e

contado com paixão e alívio seus sofrimentos passados, dirigindo-se a uma pessoa querida, e de não

terem crédito ou mesmo nem serem escutados. Na forma mais típica (e mais cruel), o interlocutor se

virava e ia embora silenciosamente (LEVI, 1991: 1, tradução de Luiz Sérgio Henriques).

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all’angoscia del non poter raccontare sembra al momento preferibile la consapevolezza di essere sicuramente sveglio e sicuramente se stesso, sia pure ad Auschwitz. Cosí la normalità di una vita qualunque, inserita come sogno nella folle anormalità del Lager, si trasforma in incubo quando viene repressa la necessità di raccontare. Si tratta, in prima istanza di raccontare considerato da Levi come una missione; ma si sa che questo racconto scatenò in Levi la successiva attività di scrittore anche d’invenzione, e perciò possiamo considerare il raccontare represso nell’incubo come la necessità

irrinunciabile di affabulare (SEGRE, 1997: 93).114

O crítico italiano ainda aponta para a simetria do sonho dos reclusos com

aquilo que ele chama de “sonho interno” nas palavras finais de La Tregua, quando

Levi, já livre, vê o seu mundo familiar ruir e encontra-se imerso novamente no Lager:

È un sogno entro un altro sogno, vario nei particolari, unico nella sostanza. Sono a tavola con la famiglia, o con amici, o al lavoro, o in una campagna verde: in un ambiente insomma placido e disteso, apparentemente privo di tensione e di pena; eppure provo un’angoscia sottile e profonda, la sensazione definita di una minaccia che incombe. E infatti, al procedere del sogno, a poco a poco o brutalmente, ogni volta in modo diverso, tutto cade e si disfa intorno a me, lo scenario, le pareti, le persone, e l’angoscia si fa piú intensa e piú precisa. Tutto è ora volto in caos: sono solo al centro di un nulla grigio e torbido, ed ecco, io so che cosa questo significa, ed anche so di averlo sempre saputo: sono di nuovo in Lager, e nulla era vero all’infuori

del Lager (LEVI, 1988: 218-219).115

Para Segre o “sonho interno” e o “sonho externo” trazem duas controvérsias:

a primeira é de estar no Lager; a segunda aquela de estar fora dele, mas não poder

contar. Ou melhor, trata-se do pesadelo de ter perdido a liberdade e do pesadelo de

114 À angustia de não poder contar, parece no momento ser preferível à consciência de estar

realmente acordado e de ser realmente si mesmo, até mesmo em Auschwitz. Assim, a normalidade

de uma vida qualquer, inserida como um sonho na louca anormalidade do Lager transforma-se em

pesadelo quando é reprimida a necessidade de contar. Trata-se, em primeira instância, de contar

considerado por Levi como uma missão; mas sabe-se que este contar desencadeou em Levi a

sucessiva atividade de escritor, também de ficção, e por isso podemos considerar o contar reprimido

no pesadelo como a necessidade irrenunciável de afabular (tradução nossa).

115 É um sonho dentro de outro sonho, plural nos particulares, único na substância. Estou à mesa com

a família, ou com amigos, ou no trabalho, ou no campo verdejante: um ambiente, afinal, plácido e

livre, aparentemente desprovido de tensão e sofrimento; mas, mesmo assim, sinto uma angústia sutil

e profunda, a sensação definida de uma ameaça que domina. E, de fato, continuando o sonho, pouco

a pouco ou brutalmente, todas as vezes de forma diferente, tudo desmorona e se desfaz ao meu

redor, o cenário, as paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa e mais precisa. Tudo

agora tornou-se caos: estou só no centro de um nada turvo e cinzento. E, de repente, sei o que isso

significa, e sei também que sempre soube disso: estou de novo no Lager, e nada era verdadeiro fora

do Lager (LEVI, 2010: 212-213, tradução Marco Lucchesi).

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ter recuperado a vida de homem livre que, porém, impede a narração da não

liberdade (SEGRE, 1997: 93). Belpoliti constata, ao invés

che non si tratta del medesimo sogno, ma di due sogni diversi, ci si accorge ben presto che tra i due sogni narrati da Levi c’è una simmetria: il sogno del Lager è il rovescio del sogno della vita normale, una simmetria non simmetrica, poiché i due sogni non combaciano affatto. Sognare di tornare e non essere ascoltati non è certo sognare di essere tornati e tuttavia di essere ancora nel Lager. Quello che lega i due sogni è quel “Wstawać”. I due sogni sono enantiomorfi, identici, eppure rovesciati... (BELPOLITI, 2000: 66)116.

O mito do retorno é outro dos tópoi das grandes narrativas ocidentais, ou

talvez universais: o retorno de Ulisses a Ítaca, de Enéas ao Hades, do filho pródigo à

casa do pai no Novo Testamento; um percurso que se conclui após dificuldades,

provas e inúmeros eventos - na maior parte das vezes dolorosos - mas que, todavia,

participam de um projeto de crescimento e desenvolvimento do herói. Nas

narrativas, o nóstos é submetido à prova, conhece novos êxitos e transformações.

Mas ao tratarmos da literatura concentracionária, brota espontaneamente uma

pergunta: que tipo de retorno é possível para os sobreviventes da Shoah, sonhado

com tanta assiduidade?

Di Castro comenta que frequentemente

in Se questo è un uomo, nelle poesie, nei sogni di Lager,”sognati con anima e corpo” da prigionieri e superstiti, fame e memoria (nel senso anche di testimonianza e racconto), sono testualmente e concettualmente vicine, se non quasi identiche. Entrambe sono un “impulso elementare”, “impellente”: il bisogno al tempo stesso di colmare un vuoto angoscioso e di purgarsi da un

veleno contagioso e indigesto (DI CASTRO, 2014:101)117.

116 Que não se trata do mesmo sonho, mas de dois sonhos diferentes, e se dá conta, logo, que entre

os dois sonhos narrados por Levi há uma simetria: o sonho do Lager é o contrário do sonho da vida

normal, uma simetria não simétrica, já que os dos sonhos realmente não coincidem. Sonhar de voltar

e não ser ouvidos não é, realmente, sonhar de ter voltado e, todavia de estar ainda no Lager. Aquilo

que liga os dois sonhos é aquele “Wstawac”. Os dois sonhos são enantiomorfos, idênticos, e assim

mesmo invertidos... (tradução nossa).

117 Em Se questo è um uomo, nas poesias, nos sonhos do Lager, “sonhados com alma e corpo” pelos

prisioneiros e sobreviventes, fome e memória (no sentido também de testemunho e narrativa), são

textualmente e conceitualmente próximas, senão quase idênticas. Ambas são um “impulso

elementar”, “impelente”: a necessidade ao mesmo tempo de preencher um vazio angustiante e de

purgar-se de um veneno contagioso e indigesto (tradução nossa).

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Para além dos comentários da crítica, o mais importante é recorrer ao próprio

texto leviano, e ele nos relata que, a propósito destes sonhos

o primeiro era com comida, gorda, suculenta, cheirosa; mas no momento de levá-la à boca, sempre acontecia alguma coisa: ou ela desaparecia, ou era afastada por alguém, ou entre o faminto e a comida caía uma espécie de biombo que impossibilitava o ato de comer. O outro sonho era o de contar, em geral, a uma pessoa querida; mas nem nesse o ato se completava. O interlocutor era indiferente, não ouvia e a certa altura dava as costas, afastava-se, desaparecia. A simbologia dos dois sonhos era muito simples. Digo isso para ressaltar que o querer comer e o querer contar estavam no mesmo plano de necessidade básica. A comida que se afastava e a narrativa que não se completava envolvem a mesma angústia da necessidade insatisfeita (LEVI: 2016g; 170).

A realidade precedente aflora e cancela o presente, intervindo na relação

entre a recordação e o passado, fazendo do presente um sonho e do incrível e cruel

passado a verdadeira dimensão existencial. Mais uma vez ele expressa a profunda

relação entre fome, memória e narração, colocando-as num plano de igualdade no

que concerne a satisfação do desejo de saciar a fome física e a fome de narrar.

Todavia, outra característica marcante no âmbito dos campos de

concentração que, possivelmente, desencadeia o furor em narrar as experiências

passadas é a incomunicabilidade.

Em SQU, ainda durante o curso da viagem em direção ao campo, nota-se que

o silêncio dos deportados impera ferozmente ante ao comando dos agentes da SS:

Venne a un tratto lo scioglimento. La portiera fu aperta con fragore, il buio eccheggiò di ordini stranieri, e di quei barbari latrati dei tedeschi quando comandano, che sembrano dar vento a uma rabbia vecchia di secoli. Ci apparve una vasta banchina illuminata da riflettori. Poco oltre, una fila di autocarri. Poi tutto tacque di nuovo [...] In un momento la banchina fu brulicante di ombre: ma avevamo paura di rompere quel silenzio, tutti si affaccendavano intorno ai bagagli, si cercavano, si chiamavan l’un l’altro, ma

timidamente, a mezza voce (LEVI, 1989: 28).118

118 O desfecho chegou de repente. A porta foi aberta com fragor, a escuridão retumbou com ordens

estrangeiras e com esses bárbaros latidos dos alemães ao mandar, parecendo querer libertar-se de

uma ira secular. Vimos uma larga plataforma iluminada por holofotes. Mais longe, uma fila de

caminhões. Em seguida, silêncio. [...] Num instante, a plataforma fervilhou de sombras, mas

receávamos quebrar esse silêncio, todos lidavam com a sua bagagem, procuravam-se, chamavam-

se, timidamente, porém, e em voz baixa (LEVI, 1988: 17, tradução de Luigi Del Re).

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Para La Capra, o silêncio é um efeito da política nazista (LA CAPRA, 2007:

96). Este silêncio, aliás, constitui uma das estratégias para disciplinar os detentos

dos campos. Como se verifica no fragmento acima, os deportados, incapazes de

reagir aos gritos animalescos dos nazistas, por medo, entregam passivamente os

seus pertences. E Levi continua: “Tutto era silenzioso come in un acquario, come in

certe scene di sogno” (LEVI, 2003: 17)119. Levi descreve o silêncio como algo novo

para os detentos recém-chegados assim como a “fome crônica”: “Capisco che mi si

impone il silenzio, ma questa parola è per me nuova, e poiché non ne conosco il

senso e le implicazioni, la mia inquietudine cresce” (LEVI, 2003: 33)120. O sentido do

silêncio é a anulação, a condição de homem escravizado dos campos de extermínio:

“Noi pensiamo piuttosto che, quanto a questo, null’altro si può concludere, se non

che di fronte al bisogno e al disagio fisico assilanti, molte consuetudini e molti instinti

sociali sono ridotti al silenzio” (LEVI, 2003: 79)121.

Esse silêncio manifesta-se em tantas outras ocasiões, como, por exemplo, na

morte do “Último”:

Vorrei poter raccontare che fra di noi, gregge abietto, una voce si fossi levata, un mormorio, un segno di assenso. Ma nulla è avvenuto. Siamo rimasti in piedi, curvi e grigi, a capo chino, e non siamo scoperta la testa che quando il tedesco ce l’ha ordinato. La botola si è aperta, il corpo ha guizzato atroce; la banda ha ripreso a suonare, e noi, nuovamente ordinati in colonna, abbiamo sfilato davanti agli ultimi fremiti del morente (LEVI, 2003:

133)122.

119 Tudo era silêncio, como num aquário e como em certas cenas dos sonhos (LEVI, 1988: 18,

tradução de Luigi Del Re).

120 Compreendo que querem que cale a boca, mas essa palavra é nova para mim e, não conhecendo

seu significado nem suas implicações, minha ansiedade aumenta (LEVI, 1988: 36, tradução de Luigi

Del Re).

121 Preferimos pensar que, quanto a isso, pode-se chegar apenas a uma conclusão: frente à pressão

da necessidade e do sofrimento físico, muitos hábitos, muitos instintos sociais são reduzidos ao

silêncio (LEVI, 1988: 88, tradução de Luigi Del Re).

122 Eu desejaria poder contar que entre nós, vil rebanho, levantou-se uma voz, um sussurro, um sinal

de assentimento. Não, não houve nada. Continuamos de pé, encurvados e cinzentos, cabisbaixos,

não nos descobrimos a não ser quando o alemão mandou. Abriu-se o alçapão, o corpo estrebuchou,

atroz; a banda de música recomeçou a tocar, e nós, novamente formados em coluna, desfilamos à

frente dos últimos estremecimentos do moribundo (LEVI, 1988: 151-152, tradução de Luigi Del Re).

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Ou pouco antes da morte do detento Sómogyi: “Non trovammo nulla da dire,

ma per allora non toccammo il pane. Gli si era gonfiata una metà del viso. Finché

conservò coscienza, rimase chiuso in un silenzio aspro” (LEVI, 2003: 151)123.

Essa incomunicabilidade derivada do silêncio, como ressalta Valabrega,

ocasiona uma tensão inexpressa, além de ser uma tortura angustiante. Para ela,

estar impedido de falar constitui uma das experiências mais dolorosas que os

prisioneiros podem passar, uma verdadeira mutilação (VALABREGA, 1997: 282-

283). Ou nas palavras do próprio Levi, “l’uso della parola per comunicare il pensiero,

questo meccanismo necessario e sufficiente affinché l’uomo sia uomo, era caduto in

disuso” (LEVI, 1991: 67)124. Completando esse pensamento, para Arendt

por mais afetados que sejamos pelas coisas do mundo, por mais profundamente que possam nos instigar e estimular, só se tornam humanas para nós quando podemos discuti-las com nossos companheiros. Tudo o que não possa se converter em objeto de discurso – o realmente sublime, o realmente horrível ou misterioso – pode encontrar uma voz com a qual ressoe no mundo, mas não é exatamente humano. Humanizamos o que ocorre no mundo e em nós mesmos apenas ao falar disso, e no curso da fala aprendemos a ser humanos (ARENDT, 2008ª: 33-34).

Aliado a essa estratégia disciplinadora, soma-se o confinamento de

estrangeiros, ou melhor, de homens de diversas etnias e procedências num mesmo

bloco. Era comum, e proposital, que indivíduos de nacionalidades diversas fossem

alocados num mesmo bloco. Segre observa que o plurilinguismo é um elemento

fundamental dos campos de concentração e que tal fato provoca, naturalmente, uma

cisão entre os prisioneiros (SEGRE, 1997, 73), contribuindo ainda mais com o

agravamento da angustiante sensação de solidão. Assim Levi descreve a Babel

linguística do Lager:

La confusione delle lingue è uma componente fondamentale del modo di vivere quaggiù; si è circondati da uma perpetua Babele, in cui tutti urlano ordini e minacce in lingue mai prima udite, e guai a chi non affera a volo. Qui nessuno ha tempo, nessuno ha pazienza, nessuno ti dà ascolto; noi ultimi

123 Não objetamos: todavia, não tocamos no pão. Metade de seu rosto inchara. Enquanto esteve

consciente guardou um silêncio ríspido (LEVI, 1988: 172, tradução de Luigi Del Re).

124 O uso da palavra para comunicar o pensamento, este mecanismo necessário e suficiente para que

o homem seja homem, tinha caducado (LEVI, 1991: 53, tradução de Luiz Sérgio Henriques).

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venuti ci raduniamo istintivamente negli angoli, contro muri, come fanno le

pecore, per sentirci le spalle materiamente coperte (LEVI, 2003: 33)125.

Essa condição de extrema incomunicabilidade decorrente do

enclausuramento de detentos de diversas nacionalidades, também funciona, em

nossa opinião, como um fator propulsor do desejo de contar o passado horrendo.

Levi ainda descreve as dificuldades nos primeiros dias de detento em Auschwitz no

que concerne a comunicação:

Nella memoria di tutti noi superstiti, e scarsamente poligloti, i primi giorni di Lager sono rimasti impressi nella forma di um film sfuocato e frenetico, pieno di fracasso e di furia e privo di significato: un tramestio di personaggi senza nome né volto annegati in un continuo rumore di fondo, su cui tuttavia la parola umana non affiorava. Un film in grigio e nero, sonoro ma non

parlato (LEVI, 1991: 69)126.

Em outro momento, ele observa que “queste voci straniere si erano incise

nelle nostre memorie come su un nastro magnetico vuoto, bianco; allo stesso modo,

uno stomaco affamato assimila rapidamente anche un cibo indigesto” (LEVI, 1991:

70). A confusão linguística é assimilada pelo prisioneiro, da mesma forma que a

comida é assimilada pelo aparelho digestivo.

Assim Levi relata, em SES, a situação dos deportados não só italianos, mas

também daqueles gregos e iugoslavos:

Noi abbiamo vissuti l’incomunicabilità in modo più radicale. Mi riferisco in specie ai deportati italiani, jugoslavi e greci: in misura minore ai francesi, fra cui molti erano d’origine polacca o tedesca ed alcuni, essendo alsaziani, capivano bene il tedesco; ed a molti ungheresi che venivano dalla campagna. Per noi italiani, l’urto contro la barriera linguistica è avvenuto drammaticamente già prima della deportazione, ancora in Italia, al momento in cui i funzionari della Pubblica Sicurezza italiana ci hanno ceduti con

125 A confusão das línguas é um elemento constante da nossa maneira de viver; a gente fica no meio

de uma perpétua babel, na qual todos berram ordens e ameaças em línguas nunca antes ouvidas, e

ai de quem não entende logo o sentido. Aqui ninguém tem tempo, ninguém tem paciência, ninguém,

te dá ouvidos; nós, os recém-chegados, instintivamente nos juntamos nos cantos contra as paredes,

como um rebanho de ovelhas, para sentirmos as costas naturalmente protegidas (LEVI, 1988: 36,

tradução de Luigi Del Re).

126 Na memória de todos nós, sobreviventes, sofrivelmente poliglotas, os primeiros dias do Lager

ficaram impressos sob a forma de um filme desfocado e frenético, cheio de som e de fúria, e carente

de significado: um caleidoscópio de personagens sem nome nem face, mergulhados num contínuo e

ensurdecedor barulho de fundo, sobre o qual, no entanto, a palavra humana não aflorava. Um filme

em cinza e negro, sonoro, mas não falado (LEVI, 1991: 54, tradução de Luiz Sérgio Henriques).

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visibile riluttanza alle SS, che nel febbraio 1944 si erano arrogata la gestione del campo di smistamento di Fossoli presso Modena. Ci siamo accorti subito, fin dai primi contatti con gli uomini sprezzanti dalle mostrine nere, che il sapere o no il tedesco era uno spartiacque. Con chi li capiva, e rispondeva in modo articolato, si instaurava una parvenza di rapporto umano. Con chi non li capiva, i neri reagivano in um modo che ci stupì e spaventò: l’ordine, che era stato pronunciato con la voce tranquila di chi sa che verrà obbedito, veniva ripetuto identico com voce alta e rabbiosa, poi urlato a squarciagola, come si farebbe con un sordo, o meglio con un animale domestico, più sensibile al tono che al contenuto del messagio

(LEVI, 1991: 67)127.

Decorrido o longo tempo de silêncio e de incomunicabilidade, eis que o

momento da libertação transforma-se no momento propício para, em primeiro lugar,

a liberdade interior, de satisfação da necessidade de contar para o mundo o

significado de Auschwitz. O desejo veemente de compartilhar a sua experiência

surge no momento em que se depara com a liberdade em Trzebinia:

e di mezzo al gruppetto di operai e contadini si fece avanti un borghese, in cappello di feltro, con gli occhiali e una busta di cuoio in mano: un avvocato. Era polacco, parlava bene francese e tedesco, era una persona molto cortese e benevola: insomma, possedeva tutti i requisiti perché io finalmente, dopo il lunghisimo anno di schiavitù e di silenzio, ravvisassi in lui il messaggero, il portavoce del mondo civile: il primo che incontrassi. Avevo una valanga di cose urgenti da raccontare al mondo civile: cose mie ma di tutti, cose di sangue, cose che, mi pareva, avrebbero dovuto scuotere ogni coscienza sulle fondamenta. [...] Senti l’onda calda del sentirsi libero, del sentirsi uomo fra uomini, del sentirsi vivo, rifluire lontano da me (LEVI, 2003:

191)128.

127 Nós vivemos a incomunicabilidade de modo mais radical. Refiro-me em especial aos deportados

italianos, iugoslavos e gregos; em medida menor, aos franceses, entre os quais muitos eram de

origem polonesa ou alemã, e alguns, sendo alsacianos, entendiam bem o alemão; e muitos húngaros,

que provinham do campo. Para nós, italianos, o choque contra a barreira linguística ocorreu

dramaticamente já antes da deportação, ainda na Itália, no momento em que os funcionários da

Segurança Pública italiana nos cederam, com visível relutância, aos SS, que em fevereiro de 1944 se

arrogaram a gestão do campo de Fòssoli, perto de Módena. Logo nos demos conta, desde os

primeiros contatos com os homens desdenhosos com distintivos negros, de que saber ou não o

alemão era um divisor de águas. Com quem os compreendia e lhes respondia de modo articulado,

instaurava-se uma aparência de relação humana. A quem não os compreendia os homens de negro

reagiam de um modo que nos espantou e amedrontou: a ordem, que havia sido pronunciada com a

voz tranquila de quem sabe que será obedecido, era repetida em voz alta e enfurecida, depois

berrada a pelos pulmões, como se faria com um surdo, ou melhor, com um animal doméstico, mais

sensível ao tom que ao conteúdo da mensagem (LEVI, 1991: 52-53, tradução de Luiz Sérgio

Henriques).

128 E, dentre um pequeno grupo de operários e camponeses, um civil caminhou em minha direção,

com chapéu de feltro, óculos e envelope de couro nas mãos: um advogado. Era polonês, falava bem

francês e alemão, uma pessoa muito amável e benévola: possuía, afinal, todos os requisitos para que

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No Prefácio a Moments of Reprieve, Levi reforça a ideia do dever de narrar ao

declarar que

os psicólogos já observaram que os sobreviventes de acontecimentos traumáticos se dividem em duas categorias bem delimitadas: os que recalcam o passado em bloco e aqueles nos quais a memória do trauma resiste, como que esculpida em pedra, prevalecendo sobre todas as outras experiências anteriores ou posteriores. Ora, pertenço à segunda categoria, não por opção, mas por natureza. Sem nenhum esforço deliberado, a memória continua restituindo fatos, fisionomias, palavras, sensações: como se naquele tempo minha mente tivesse atravessado uma época de receptividade exaltada, em que nenhum detalhe era perdido. Lembro, por exemplo, como lembraria uma fita magnética ou um papagaio, frases inteiras em línguas que não conhecia então nem conheço hoje. [...] Hoje em dia me parece evidente que aquela minha atenção, voltada para o mundo e para os seres humanos que me rodeavam, foi não só um sintoma, mas também um importante fator de salvação espiritual e física (LEVI, 2016h: 152-153).

Em La Tregua, Levi indica, igualmente, que após ter sido satisfeita a sua fome

física, nasce uma outra: a fome de contato humano: “Avevo del tutto dimenticato la

fame e il freddo, tanto è vero che il bisogno di contatti umani è da annoverarsi fra i

bisogni primordiali” (LEVI, 2003: 188)129. A vida dentro do Lager propiciou uma

existência solitária por parte dos detentos, além de animalizá-los. A vontade de

reestabelecer o contato humano cria, desta forma, a expectativa de retorno à

condição de homem livre. Por isso essa fome de estar próximo a outros indivíduos:

Come sempre avviene, la fine della fame mise allo scoperto e rese percettibile in noi una fame piú profonda. Non solo il desiderio della casa, in certo modo scontato e proiettato nel futuro: ma un bisogno piú immediato e urgente di contatti umani, di lavoro mentale e fisico, di novità e di varietà

(LEVI, 2003: 279).130

eu, finalmente, após o longuíssimo ano de escravidão e silêncio, reconhecesse nele o mensageiro, o

porta-voz do mundo civil: o primeiro que encontrei. Tinha uma avalanche de coisas urgentes para

contar ao mundo civil: coisas minhas mas de todos, coisas de sangue, coisas que, me parecia,

acabariam por fazer tremer toda consciência e seus fundamentos. [...] Percebi que a onda quente do

sentir-se livre, do sentir-se homem entre os homens, do sentir-se vivo, refluía longe de mim (LEVI,

2010: 51, tradução de Marco Lucchesi).

129 Esquecera completamente a fome e o frio, tanto assim que a necessidade de contatos humanos

deve ser incluída entre as necessidades primordiais (LEVI, 2010: 47, tradução de Marco Lucchesi).

130 Como sempre acontece, o fim da fome pôs a nu e tornou perceptível em nós uma fome mais

profunda. Não apenas o desejo da casa, de certo modo previsível e projetado para o futuro: mas uma

necessidade mais imediata e urgente de contatos humanos, de contato físico e mental, de novidade e

variedade (LEVI, 2010: 158, tradução de Marco Lucchesi).

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Além de romper o silêncio impingido, Levi fala por aqueles sem voz. Por

intermédio de suas palavras, ele resgata a memória daqueles que não puderam

voltar, ou seja, dos submersos que “não têm história” (LEVI, 1988: 91). Coloca em

evidência o sofrimento pela mutilação da linguagem advertida por Jean Améry no

seu ensaio Além do crime e castigo, principalmente no texto de abertura

denominado Na fronteira do espírito, é condensada em um dos retratos mais

trágicos e de maior intensidade emotiva, primeiros nas páginas de La Tregua e

depois em SES (AMÉRY, 2013). Trata-se do menino Hurbinek, criança de três anos

nascida dentro do Lager, cujo testemunho se realiza através das palavras de Levi

“porque não tem língua” (AGAMBEN, 2008: 48):

La parola che gli mancava, che nessuno si era curato di insegnarli, il bisogno della parola, premeva nel suo sguardo con urgenza esplosiva: era uno sguardo selvaggio e umano ad un tempo, anzi maturo e giudice che nessuno fra noi sapeva sostenere, tanto era carico di forza e di pena. [...] Hurbinek morì ai primi giorni del marzo del 1945, libero ma non redento. Nulla resta di lui: egli testimonia attraverso queste mie memorie (LEVI, 2003:

166).131

O menino, embora real, transforma-se em clássica metonímia de toda a

dificuldade de comunicação dentro do campo. Hurbinek morre sem que seus

companheiros consigam decifrar suas palavras, morre despojado de seu nome e da

inteligibilidade.

Sobre a questão da comunicação ligada à desumanização, Agamben afirma

que Levi

começa a testemunhar só depois que a desumanização se consumou, só quando falar de dignidade já não teria sentido. Ele é o único que se propõe conscientemente a testemunhar em nome dos muçulmanos, dos submersos, dos que foram destruídos e chegaram ao fundo (AGAMBEN, 2008: 66).

131 As palavras que lhe faltavam, que ninguém se preocupava de ensinar-lhe, a necessidade da

palavra, tudo isso comprimia seu olhar com urgência explosiva: era um olhar ao mesmo tempo

selvagem e humano, aliás, maduro e judicante, que ninguém podia suportar, tão carregado de força e

de tormento. [...] Hurbinek morreu nos primeiros dias de março de 1945, liberto mas não redimido.

Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras (LEVI, 2010: 20-21, tradução de

Marco Lucchesi).

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Aliás, Primo Levi é, ao mesmo tempo, testemunha e vítima. Scarpa observa

que Levi é também a vítima que sofre o evento com a inteireza da própria pessoa

(SCARPA: 20), e ainda sinaliza que se

Levi si salva, infatti, è per due ragioni sottilmente diverse tra loro: per testimoniare e perché ha testimoniato. Quando ancora si trova ad Auschwitz, già si propone di sopravvivere per raccontare. Salverà il proprio corpo per un fine preciso: parlare a chi non sa, a chi non c’è stato, a chi non ha visto, a chi non sarà disposto a credere. Ma colui che racconta si accorgerà più tardi di essersi salvato in quanto ha testimoniato, e perché sta tuttora testimoniando: il testimoniare diventerà la sua forma di

sopravvivenza, ossia di vita (SCARPA, 2014: 26)132.

Se o sobrevivente dá testemunho, não da câmara de gás ou de Auschwitz,

mas pelo muçulmano; se ele fala apenas a partir de uma impossibilidade de falar,

então seu testemunho não pode ser negado. Auschwitz – de que não é possível dar

testemunho – fica provado de modo absoluto e irrefutável (AGAMBEN, 2008: 163).

A importancia do testesmunho dá-se sobretudo para mostrar a todos uma

outra face do mundo, como releva Levi em SES: “È naturale e ovvio che il materiale

più consistente per la ricostruzione della verità sui campi sia costituito dalle memorie

dei superstiti al di là della pietà e delle indulgenze, esse vanno lette con occhio

critico” (LEVI, 1991: 9).133 Também é oportuno recordar que, segundo Buber, “noi

siamo una comunità basata sul ricordo. Il comune ricordo ci ha tenuti e ci ha

permesso di sopravvivere” (BUBER apud DELLA ROCCA, 2007: 47).134 Aliás, a

memória e a função da testemunha, para o povo judeu, são convocadas, inclusive,

nas páginas do Livro Sagrado: “Lembra-te dos dias da antiguidade, atenta para os

anos de muitas gerações: pergunta a teu pai, e ele te informará; aos teus anciãos, e 132 De fato, Levi se salva, é por duas razões sutilmente diversas entre elas: por testemunhar e porque

testemunhou. Quando ainda se encontra em Auschwitz, já se propõe a sobreviver para contar.

Salvará o próprio corpo por uma finalidade precisa: falara para quem não sabe, a quem não esteve lá,

a quem não viu, a quem não estará disposto a acreditar. Mas aquele que conta, dar-se-á conta, mais

tarde, de ter-se salvado porque testemunhou, e porque ainda está testemunhando: o testemunhar

tornar-se-á a forma de sobrevivência, ou seja, de vida (tradução nossa).

133 É natural e óbvio que o material mais consistente para a reconstrução da verdade sobre os

campos seja constituído pelas memórias dos sobreviventes. À parte a piedade e a indignação que

suscitam elas devem ser lidas com olho crítico (tradução nossa).

134 Nós somos uma comunidade baseada na lembrança. A lembrança comum nos manteve e nos

permitiu sobreviver (tradução nossa).

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eles te dirão” (Deuteronômio, 32: 7). A Torá também admoesta que “uma só

testemunha contra alguém não se levantará por qualquer iniquidade, ou por

qualquer pecado, seja qual for o pecado que cometeu; pela boca de duas

testemunhas, ou pela boca de três testemunhas, se estabelecerá o fato”

(Deuteronômio, 19:15).

Portanto, em diversas ocasiões, a memória da Shoah atrela-se à ideia do

“dever da memória”. Assim, Nascimento sinaliza que:

A Shoah apresenta-se, pois, no trabalho dos sobreviventes através de imagens e vozes dos campos de concentração e de morte. Por causa disso, a poética que é construída exibe mutilações, inadequações, silêncios. A palavra, o gesto e a imagem inscrevem-se no corpo e a partir do corpo. A memória, por essa via, é um dever, porque se constrói e constitui-se no ponto em que o corpo é atravessado pela catástrofe e disseminado através de estratégias e tentativas de não-esquecimento (NASCIMENTO, 2011: 101).

Convém, no entanto, reportar à origem do conceito de “dever da memória”.

Lalieu afirma que termo surgiu no cenário francês com o movimento associativo dos

deportados e como um apelo à juventude, organizado após o ano de 1954. Em

1995, época do 50º aniversário da libertação dos campos, o termo foi empregado

como título em francês para uma das obras póstumas de Primo Levi, O dever da

memória, ganhando popularidade. Atualmente, na visão de Lalieu, o termo está

banalizado, aparecendo nos meios midiáticos, nas declarações de políticos e nos

discursos religiosos, associado à vitimização. “Or ce titre en forme de formule n’est

pas de Primo Levi” (LALIEU, 2001: 83).135

Iannicelli sinaliza a problemática do dever da memória como “un dovere che i

sopravvissuti sentono tanto più marcato quanto più è intenso uno stato emotivo, una

singolare responsabilità nei confronti delle vittime, che sembra tipico di queste

situazioni: la vergogna di essere vivo al posto di un altro (IANNICELLI, 2005: 84). E

acrescenta:

A proposito, poi, di particolari fatti della storia, come le stragi, talune pesanti ingiustizie subite da gruppi o interi popoli e i crimini più efferati, l’obbligo di ricordare e, attraverso il ricordo, di lottare affinché quanto accaduto non si

135 Agora este título em forma de fórmula não é mais de Primo Levi (tradução nossa).

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ripeta, sembra diventare, almeno dal punto di vista morale, una certezza

irrefutabile (IANNICELLI, 2005: 82-83).136

Dada a problemática do dever da memória, Iannicelli considera que seja,

todavia, uma “utopia” (IANNICELLI, 2005: 84).

Entretanto, Levi não dá o seu testemunho em busca de vingança ou de

justiça. Muito menos cai num sentimentalismo em decorrência da sua condição de

vítima de Auschwitz. Agambem ressalta que o desejo de sobreviver em nome de um

sentimento de vingança aos nazistas era um desejo comum entre os detentos

(AGAMBEN: 2008, 25), como é o caso de Wolfgang Sofsky:

Naturalmente poderia suicidar-me lançando-me sobre a cerca elétrica, isso sempre podemos fazê-lo. Mas eu quero viver. Quem sabe aconteça um milagre e seremos libertados. E então irei me vingar, contarei a todo o mundo o que aconteceu aqui dentro (SOFSKY apud AGAMBEN, 2008: 25).

Levi, no entanto, fala em SES sobre o seu desinteresse quanto à vingança:

La vendetta non mi interessava; ero stato intimamente soddisfatto dalla (simbolica, incompleta, tendenziosa) sacra rappresentazione di Norimberga, ma mi stava bene così, che alle giustissime impiccagioni pensassero gli altri,

i professionisti. A me spettava capire, capirli (LEVI, 1991: 127)137.

Bem como no Apêndice de SQU podemos confirmar o não desejo de

vingança de Levi, mas a afirmação da sua condição de testemunha ao afirmar que

Nello scrivere questo libro, ho assunto deliberatamente il linguaggio pacato e sobrio del testimone, non quello lamentevole della vittima, né quello irato del vendicatore: pensavo che la mia parola sarebbe stata tanto più credibile ed utile quanto apparisse obiettiva e quanto meno suonasse appassionata; solo così il testimone in giudizio adempie alla sua funzione, che è quella di

preparare il terreno al giudice (LEVI, 1998: 175)138.

136 A propósito, pois, de particulares fatos da história, como as tragédias, algumas pesadas injustiças

sofridas por grupos ou inteiros povos e os crimes mais cruéis, a obrigação de recordar e, através da

recordação, de lutar para que o acontecido não se repita, parece tornar-se, pelo menos do ponto de

vista moral, uma certeza irrefutável (tradução nossa).

137 A vingança não me interessava: intimamente me satisfizera a sagrada (simbólica, incompleta,

tendenciosa) representação de Nuremberg, mas para mim estava bem assim, que os outros, os

profissionais, cuidassem dos justificadíssimos enforcamentos. A mim competia compreender,

compreendê-los (LEVI, 1991: 104, tradução de Luiz Sérgio Henriques).

138 Ao escrever este livro assumi, deliberadamente, a linguagem pacata e sóbria da testemunha, não

aquela lamentável da vítima, nem aquela irada do vingador: pensava que a minha palavra teria sido

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Cavaglion atenta para o desapego de Levi em torno da obsessão pelo

passado trágico da Shoah:

Levi non aveva l’ossessione della memoria; era un uomo schivo e riservato, alieno dalle celebrazione commemorative e dal culto fine a se stesso della testimonianza. Maneggiava con estrema sicurezza – lo si vede da I sommersi e i salvati – la sempre più vasta bibliografia che, specie in questi ultimi tempi, si è infoltita di titoli sulla memoria e sull’oblio, sull’uso e l’abuso delle fonti orali, sui rapporti fra memoria e storia ebraica (CAVAGLION,

1997: 81)139.

Ao se ler Primo Levi notamos, com surpresa, que ele não nutre sentimentos

de ódio e de rancor: transparece, tanto na sua narrativa como nas poesias, apenas

uma profunda indignação por aquilo que aconteceu em Auschwitz e nos demais

campos nazistas, indignação que o motiva a escrever para que a humanidade saiba,

que fique indignada frente a tanta atrocidade e que, por fim, evite outros

holocaustos.

Já Segre considera que

Il libro di Levi ha ambizioni più alte che quella di contribuire alla letteratura sui campi di annientamento. Nello stesso tempo denuncia, sempre nella Prefazione, le conseguenza di ogni concezione xenofoba. Quando essa diventi un “sistema di pensiero”, “quando il dogma inesperato diventa premessa maggiore d’un sillogismo, allora, al termine della catena, sta il Lager”. Riconosce infine il bisogno di “liberazione interiore”, conseguenza dell’“impulso immediato e violento” a raccontare la propria esperienza

(SEGRE, 1997: 56-57).140

mais crível e útil quanto parecesse objetiva, e quanto menos soasse apaixonada; somente assim a

testemunha em juízo absolve à sua função, que é aquela de preparar o terreno ao juiz (tradução

nossa).

139 Levi não tinha a obsessão pela memória: era um homem esquivo e reservado, alieno das

celebrações comemorativas e do culto do testemunho por ele mesmo. Manejava com extrema

segurança – vê-se isso em I sommersi e i salvati – a cada vez mais vasta bibliografia que,

especialmente nestes últimos tempos, foi recheada de títulos sobre a memória e o esquecimento,

sobre o uso e o abuso das fontes orais, sobre as relações entre a memória e a história hebraica

(tradução nossa).

140 O livro de Levi tem ambições mais altas do que aquelas de contribuir à literatura sobre os campos

de anulação. Ao mesmo tempo denuncia, sempre no Prefácio, a consequência de toda concepção

xenófoba. Quando ela se tornar um “sistema de pensamento”, “quando o dogma inesperado torna-se

premissa maior de um silogismo, então, ao final da cadeia, está o Lager”. Reconhece, enfim,

consequência do “impulso imediato e violento” a contar a própria experiência (tradução nossa).

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Dessa forma, Stefano Levi Della Torre considera em seu artigo L’eredità di

Primo Levi, que a memória do extermínio poderá durar e continuar advertindo o que

poderia suceder e o que possa acontecer (DELLA TORRE, 1997: 246).

Para Valabrega, a memória possui um papel fundamental, pois é entendida

como consciência e proteção dos acontecimentos, a salvação da existência do fluir

do esquecimento e da insignificância. Para ela, lembrar quer dizer salvar, conhecer e

continuar conhecendo, portanto, uma operação moral. A conservação do passado

torna-se a salvação do efêmero e garantia de cada valor. O ato de contar, e não

esquecer a experiência humana dos que viveram o horror (tão enfatizado por Levi)

aparece como principal valor ético da memória. (VALABREGA, 1997: 280-281), além

de envolver uma função catártica e purificadora (VALABREGA, 1997: 282). Em uma

entrevista inédita, publicada em 2009, Levi deixa clara a sensação de desafogo e de

dever cumprido após ter escrito SQU:

Se questo è un uomo, edito nel ‘47 presso De Silva, uscì in duemilacinquecento copie: avevo delle buone recensioni, ma ho avuto cinquemila lettori (un libro lo leggono due persone in media). Dopodiché... non ho avuto più incentivo a scrivere; mi pareva di avere fatto il mio dovere di testimone, di essermi scaricato delle mie tensioni e non sentivo il bisogno

di scrivere altro (VIGLINO, 2009, on-line)141.

Já Meghnagi considera que reconstruir a própria história e impedir que a

recordá-la seja somente um livro, torna esse ponto uma obrigação, e que reinventar

o próprio destino torna-se uma necessidade (MEGHNAGI, 1997: 295). Levi

demonstra a preocupação e a dificuldade ao transmitir a memória de um passado

atroz às novas gerações:

Per noi parlare con i giovani è sempre più difficile. Lo percepiamo come un dovere, ed insieme come un rischio: il rischio di apparire anacronistici, di non essere ascoltati. Dobbiamo essere ascoltati: al di sopra delle nostre esperienze individuali, siamo stati collettivamente testimoni di un evento

141 Se questo è un uomo, editado em 1947 por De Silva, saiu em duas mil e quinhentas cópias: tinha

boas resenhas, mas tive cinco mil leitores (um livro, em média, é lido por duas pessoas). Depois

disso... não tive mais incentivo para escrever; me parecia ter cumprido o meu dever de testemunha,

de ter aliviado as minhas tensões e não sentia a necessidade de escrever mais (tradução nossa).

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fondamentale ed inaspettato, fondamentale appunto perché inaspettato, non

previsto da nessuno (LEVI, 1991: 150)142.

Segre ainda observa que a recordação de Auschwitz surge como uma

necessidade e uma obrigação (SEGRE, 1997: 57) daqueles que provaram da “fome

crônica que os homens livres desconhecem” (LEVI, 1988: 35), do frio intenso, da

vergonha, ameaçados constantemente pela morte. Não se poderia deixar de

mencionar a privação do direito a fala. Em suma, Segre afirma que

Il suo punto di partenza è stato la necessità di testemoniare, e un testimone dev’essere chiaro ed esplicito. Egli non vuole che l’uomo dimentichi; egli fornisce i propri ricordi con l’esatteza possibile, segnalando persino se le zone della sua memoria sono confuse, corrispondenze cronologiche incerte

(SEGRE, 1997: 91).143

Assim, salientamos que Primo Levi, ao falar incessantemente sobre os

eventos de Auschwitz, não somente narra um passado repleto de duras penas e

sofrimentos apenas como um dever de lembrar. Por vezes, o seu testemunho

impactante dá mostras de uma ânsia desesperada em trazer à tona o seu passado

nos campos de concentração e compartilhar com todos um dos episódios mais

sangrentos da história humana. Rompendo a barreira do silêncio, Levi consegue

materializar através de seus escritos as suas vivências no Lager.

142 Para nós, falar com os jovens é cada vez mais difícil. Percebemos que falar com eles é,

simultaneamente, um dever e um risco: o risco de parecer anacrônico, de não ser escutado.

Devemos ser escutados: acima de nossas experiências individuais, fomos coletivamente

testemunhas de um evento fundamental e inesperado, fundamental justamente porque inesperado,

não previsto por ninguém (LEVI, 1991: 123, tradução de Luiz Sérgio Henriques).

143 O seu ponto de partida foi a necessidade de testemunhar, e uma testemunha deve ser clara e

explícita. Ele não quer que o homem esqueça; ele fornece as próprias recordações com a exatidão

possível, assinalando, inclusive, se as zonas da sua memória são confusas, correspondências

cronológicas incertas (tradução nossa).

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6 – Conclusão

A obra ficcional de Primo Levi nasce a partir de sua experiência como

prisioneiro e supérstite do campo de concentração de Monowitz-Buna, subcampo de

Auschwitz, em meados da década de 1940. Sendo atualmente um dos principais

expoentes da literatura de testemunho do segundo pós-guerra, Levi inaugura no

cenário literário italiano uma produção cuja temática exprime não apenas as

consequências maléficas de uma Europa dominada pelos regimes totalitários, mas,

sobretudo, os variados “aspectos da alma humana” perante uma situação-limite.

A Shoah, retratada magistralmente pelo escritor e químico, constitui-se num

dos eventos mais abomináveis da história humana: além de ter dizimado milhares de

vidas inocentes, deixou profundas cicatrizes nas almas daqueles que sobreviveram

e que puderam retornar ao seio de suas famílias e ao aconchego de suas casas.

Nos campos nazistas, homens foram reduzidos apenas a suas existências e

provaram toda espécie de humilhação, desde a dor da separação dos entes

queridos e da solidão até castigos gratuitos, um intenso processo de animalização e

de convívio diário com a morte. E, obviamente, padeceram do maior dos flagelos: a

fome. Ao regressarem à vida comum, alguns deles permaneceram calados, pois

falar sobre os tormentos do passado significava revivê-los com toda a sua

intensidade; outros, como Levi, romperam a barreira do silêncio e trouxeram à tona a

ofensa impingida. Em face disso, parte significativa dos estudos acerca da narrativa

memorialística do escritor italiano privilegia o tema do trauma do sobrevivente.

Levi, no entanto, também dedica páginas e páginas a falar do alimento, seja

por meio de das lembranças de homem livre em torno à mesa, seja por intermédio

das recordações da fome dos escravos do Lager. Assim, esta pesquisa teve como

objetivo investigar a questão da memória alimentar nas narrativas de Primo Levi

referentes à Shoah.

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O corpus de análise utilizado nesta dissertação restringia-se, num primeiro

momento, somente a Se questo è un uomo, dado que é com ela que Levi estreia a

sua vida de escritor-testemunha de Auschwitz pouco após a sua libertação.

Entretanto, em vista da relação de completamentariedade e semelhança entre as

outras narrativas de cunho memorialístico de Levi, o corpus ampliou-se a outras

narrativas, a saber: La Tregua, I sommersi e i salvati. Il Sistema Periodico, Lilith e

altri racconti, Assim foi Auschwitz e A assimetria e a vida .

A leitura das obras levianas possibilitou uma reflexão a respeito de uma

memória voltada para o tema da comida, especialmente no que concerne à

abundância alimentar e à fome. Em relação às memórias de abundância – que

aparecem em menor proporção em comparação com àsàquelas da fome –,

verificamos as lembranças do detento na condição de homem livre. Essas

memórias, demostradas por meio dos diálogos e sonhos das personagens, revelam

suas vidas pregressas em torno à mesa junto aos familiares. Quanto às memórias

da fome, observamos a vida do homem do Lager, que convive diariamente com

escassez do alimento, que se restringe somente a um pedaço de pão cinzento e a

uma porção de sopa rala. Além disso, constatamos as diversas nuances da fome,

que se inicia como uma necessidade fisiológica e passa ao estágio de “fome

crônica” - inimaginável ao homem livre - e que se transforma em alegoria.

As personagens que permeiam toda a narrativa leviana – os afogados ou

muçulmanos (sommersi) e os sobreviventes (salvati) – revelam a transformação dos

homens imersos no universo infernal dos campos de concentração. As primeiras tão

logo sucumbem e não deixam rastros de suas vidas; as segundas resistem por

meios próprios, muitas vezes renunciando a quaisquer valores morais, com a

finalidade de escapar de uma completa destruição.

Além disso, constatamos uma estreita relação entre a fome e a memória nas

narrativas levianas. Recordar as circunstâncias adversas dos campos de extermínio

e escrever sobre elas funciona como uma espécie de “impulso violento”, equiparado

ao instinto da fome. Assim como esta, narrar o passado é uma necessidade que

deve ser suprida e funciona como catarse.

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Para concluir, a produção memorialística de Primo Levi relativa à alimentação

é tema pouco examinado por parte dos estudiosos. Ao realizar esta dissertação de

mestrado, buscamos preencher a lacuna existente no que tange à questão da

comida e contribuir com novos estudos a respeito da Shoah.

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