6.2 generos na cancao popular os casos do samba

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Cláudia Neiva de Matos Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal Flumi- nense (UFF). Pesquisadora do CNPq. Coorganizadora, entre outros livros, de Palavra cantada: ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. laparole@ terra.com.br Di Cavalcante. Capa do disco Noel Rosa, de Aracy de Almeida. Gêneros na canção popular: os casos do samba e do samba canção

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Artigo sobre os gêneros da canção popular. De Claudia Neiva de Matos

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  • Cludia Neiva de MatosDoutora em Letras pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora do Programa de Ps-graduao em Letras da Universidade Federal Flumi-nense (UFF). Pesquisadora do CNPq. Coorganizadora, entre outros livros, de Palavra cantada: ensaios sobre poesia, msica e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. [email protected]

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  • ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 121-132, jul.-dez. 2013122

    Gneros na cano popular: os casos do samba e do samba canoGenres in popular song: the cases of samba and samba-cano

    Cludia Neiva de Matos

    Crtica literria, gneros e cano popular

    A anlise esttica da msica popular brasileira tem feito notveis progressos nos ltimos anos. O trabalho de especialistas de diferentes reas acadmicas veio acrescentar-se ao j extenso trabalho dos chama-dos pesquisadores histricos, que trataram de documentar, organizar e descrever o universo de obras, artistas e quadros sociais que h um sculo vm construindo a nossa msica popular. A importncia cultural dessa

    resumoAs operaes classifi catrias fundadas na noo de gnero, que atravessa toda a histria a crtica literria, suscitam uma problemtica especfi ca quando aplicadas s formas da cano popular folclrica e mediatizada. Tomando por exemplo os casos do samba e do samba-cano, tento discernir algumas questes e difi culdades que se apresen-tam ao pesquisador no mapeamento da potica desses materiais. Esse ma-peamento deve, por um lado, construir uma viso sistmica que articule de modo objetivo e consistente as vrias dimenses culturais e semiticas do material; por outro lado, no pode desconsiderar a relevncia de deno-minaes e circunscries temtico-estilsticas consagradas pelo uso cor-rente. Nesse mbito de questes, sero consideradas propostas de estudiosos como Dan Ben Amos, Carlos Sandroni, Jos Ramos Tinhoro, Beatriz Borges e Luiz Tatit.palavras-chave: gnero; cano popu-lar; samba; samba-cano.

    abstractWhen classifying operations founded on the gender notion which permeates the whole literary criticism are applied to forms of folk and mediated popular music, a specifi c problem arises. In the case of Brazilian samba and samba-cano, I try to put some questions and di culties that the researcher faces in mapping this subject-matt ers poeticalness. On the one hand this mapping must build a systemic vision that articulates objectively and consistently samba and samba-canos semiotic and cultural dimensions, but on the other hand it must include the relevance of thematic, stylistic denominations and circumscrip-tions currently used. In so doing, I consider the studies of Dan Ben Amos, Carlos San-droni, Jos Ramos Tinhoro, Beatriz Borges and Luiz Tatit, among others.

    keywords: gender; popular music; samba; samba-cano.

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    amsica, bem como a qualidade das abordagens crticas e historiogrfi cas de uma bibliografi a em franca expanso, venceram aos poucos a resistncia de certos crculos acadmicos a reconhecer a dignidade esttica do objeto em questo e a necessidade de investig-lo com suporte terico e analtico sofi sticado e adequado sua especifi cidade. Para isso contribuiu o carter crescentemente interdisciplinar das abordagens, que conjugam categorias e instrumentos da musicologia, da crtica literria, da semitica, da histria, da antropologia cultural.

    medida que se aperfeioam e expandem os meios de investigao, aplicados ao estudo de repertrios especfi cos, algumas velhas questes reaparecem sob nova perspectiva. Por exemplo, a questo da histria da cano popular. Estamos razoavelmente bem servidos de biografi as, ma-peamentos contextuais, relatos factuais de tipo sociolgico. Porm o inte-resse interpretativo e analtico por obras especfi cas recolocou em outras bases a questo da historicidade da msica popular brasileira. Queremos compreender essa historicidade dentro de uma perspectiva esttica inter-nalizada nas obras, que permita perceber as articulaes e desdobramentos das vertentes criativas; perceber, para retomar o termo de Caetano Veloso que Augusto de Campos sublinhou, a linha evolutiva da msica popular brasileira1.

    O desdobramento da abordagem crtico-investigativa que estou ten-tando apontar aqui parece anlogo ao que se verifi cou nos estudos literrios, principal terreno da minha formao e atividade profi ssional. No sculo XIX os estudos literrios tinham vocao marcadamente historicista, em conformidade e conexo com a historiografi a geral, scio-poltica. Desde as primeiras dcadas do sculo XX, a teoria da literatura orientou-se ao contrrio para um exame intrnseco das obras, de cunho mais analtico, resultando nas correntes ditas formalistas e estruturalistas. Mas j os primeiros resultados dessas anlises e sistematizaes serviram de base a refl exes que recolocaram o problema da histria da literatura, procurando agora compreender a sua evoluo (Tynianov, Jakobson)2 a partir das articulaes internas srie literria, sem que isso se confundisse com a tradicional busca pelas infl uncias.

    A msica popular est, como qualquer outro fato cultural, inserida no movimento amplo da histria social, e por isso o seu estudo requer ne-cessariamente o conhecimento dos contextos histricos. Mas para compre-ender sua riqueza especfi ca e sua complexidade expressiva e signifi cativa, preciso tambm investigar a evoluo da srie musical popular sem ver nela apenas um subproduto da srie social. E para fazer isso, necessitamos de elaborar e assentar categorias que organizem o vasto e diversifi cado material que temos em mos. Precisamos elaborar uma potica no sentido mais amplo da cano popular brasileira que d conta de sua topologia e de sua dinmica interna.

    Ora, um elemento costumeiro em qualquer potica a noo de gneros. Em todos os campos artsticos se lanou mo dela ou de no-es similares para construir a crtica e a historiografi a especializadas, mas foi no campo literrio que ela foi erigida em eixo de toda uma teoria potica. Muitas vezes questionado e reformulado, o princpio terico dos gneros literrios nunca foi inteiramente abandonado, atravs das vrias correntes que se sucederam e freqentemente contrapuseram. Permaneceu como expediente de valor crtico, didtico e historiogrfi co; como um modo de domar as difi culdades de compreender e conceituar os mistrios da

    1 CAMPOS, Augusto de. Balan-o da bossa e outras bossas. So Paulo: Perspectiva, 1974, p. 143. 2 TYNIANOV, J. De lvolution litt raire. In: TODOROV, Tzve-tan (org.). Thorie de la litt ratu-re. Paris: Seuil, 1965, p. 120-137. TYNIANOV, J. e JAKOBSON, R. Les problmes des tudes litt raires et linguistiques. In: TODOROV, Tzvetan (org.), op. cit., p. 138-140.

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    criao e fruio artsticas, alojados dentro de sistemas complexos em que se cruzam vetores individuais com elementos da bagagem cultural comunitria.

    O romantismo relativizou a noo de gneros, desembaraando-a da normatividade que a condicionava nos tempos clssicos e atenuando as fronteiras entre eles. Ainda assim a consistncia dessas categorias, quer reduzidas sua forma tridica mais simples lirismo, drama, narrativa , quer desdobradas nos muitos subgneros praticados ao longo da his-tria da criao literria, muitas vezes deixou a desejar. Elas se revelam especialmente problemticas quando se trata de estudar as artes verbais praticadas em meios de baixo ou nulo letramento, as chamadas literaturas orais, os repertrios de cunho popular ou folclrico, enfi m todos os terri-trios cujas tradies se constituem e modifi cam ao largo da hegemonia da escrita, com sua vocao organizadora e fi xadora de padres. O problema da compreenso dos repertrios desse tipo mediante categorias geradas no quadro da cultura escrita tem sido tratado por especialistas como Hans Robert Jauss3 e Dan Ben Amos4.

    O ensaio de Ben Amos aponta a inadequao entre as concretizaes histricas dos gneros folclricos e os modelos ou categorias analticas elaborados pelos estudiosos para classifi c-los. Evidencia a necessidade de tomar prioritariamente em considerao, para estabelecer classifi caes dos repertrios no fi liados s literaturas hegemnicas, as categorias geradas dentro das prprias culturas que os produziram. Creio que essa proposta pode ser til tambm para compreendermos a topologia da cano popular mediatizada, isto , aquela produzida, veiculada e consumida no quadro da cultura industrial de massas. Essa aproximao, contudo, no deve fazer perder de vista as diferenas que existem a moderna cano popular e a produo dita folclrica. Esta ltima exclusiva ou amplamente fun-dada na tradio oral; trabalha muito mais com a preservao que com o desejo de inovao; est menos exposta s infl uncias e trocas com outras tradies e padres estticos. J o cancioneiro popular produzido dentro da indstria cultural movimenta-se num universo de referncias muito mais dinmicas, extensas e globalizadas. Por outro lado, tal como os escritores literrios, os compositores de canes tm, atravs dos discos, acesso direto obra de seus predecessores, e trabalham sobre esta herana (como fez Joo Gilberto com o samba dos anos 30/40).

    A tentativa de produzir critrios equilibrados e estabilizados de classifi cao da cano popular esbarra em vrios complicadores. Uma taxionomia mais ou menos informal do repertrio produzida no ape-nas pela comunidade de criadores e consumidores em geral, mas por uma srie de intermedirios vinculados indstria cultural editores, jornalistas, radialistas, produtores da indstria fonogrfi ca. Muitas vezes, as denominaes pelas quais se enquadram as obras de msica popular em parmetros genricos fi guram inicialmente nas etiquetas e capas dos discos, nas partituras, na imprensa.

    Por outro lado, o sistema semitico da cano popular no se apia somente na palavra, mas tambm na msica, na voz e mesmo nos arranjos instrumentais, o que nos obriga a lidar com variantes de diversos tipos, re-ferenciadas a diferentes formas de expresso e tradies crticas. Costumam predominar ou prevalecer as classifi caes de natureza rtmica (marcha, samba de breque, sambolero), em conformidade com a idia corrente, no senso comum e entre especialistas, de ser o ritmo o fator principal, o

    3 JAUSS, Hans Robert. Lite-ratura medieval e teoria dos gneros. Traduo de Cludia Neiva de Matos. Col. A teoria na prtica ajuda, n. 4. Rio de Janeiro: Instituto de Letras da UERJ, 1995.4 BEN AMOS, Dan. Catgories analytiques et genres populai-res. Potique, n. 19. Paris: Seuil, 1974.

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    aelemento primordial, orgnico e organizador das vrias linguagens e ele-mentos signifi cativos que compem uma pea cantada. Carlos Sandroni, por exemplo, manifesta esse ponto de vista ao escrever:

    A batida de fato, na msica popular brasileira, um dos principais elementos pe-los quais os ouvintes reconhecem os gneros. Neste pas, e certamente em outros tambm, quando escutamos uma cano, a melodia, a letra ou o estilo do cantor permitem classifi c-la num gnero dado. Mas antes mesmo que tudo isso chegue a nossos ouvidos, tal classifi cao j ter sido feita graas batida que, precedendo o canto, nos fez mergulhar no sentido da cano e a ela literalmente deu o tom.5

    No princpio est pois o ritmo, como tambm ensinou Mrio de Andrade6. Mas como se pode depreender dessa mesma observao de Sandroni, outros elementos tambm so fundamentais na confi gurao de uma noo de gnero de cano, em sua tripla dimenso verbal, musical e vocal. A estruturao orgnica desses fatores projeta uma espcie de ordem esttica, semntica e formal; mas para que se fale de gnero, preciso que essa ordem seja reconhecvel pela comunidade, criando um determinado horizonte de expectativa, suscitando determinados comportamentos de produo e recepo.

    A propsito das literaturas orais, Ben Amos confronta as aborda-gens classifi catrias de gneros elaboradas pelos especialistas (temtica, estrutural, arquetpica e funcional), a servio de diferentes intenes de pesquisa, e os sistemas populares de denominaes genricas, os quais constituem uma espcie de metafolclore, uma taxionomia que instaura uma ordem qualitativa e subjetiva. Transitando entre os vrios processos de categorizao, a refl exo do autor conduz a um esquema bsico de fatores defi nidores: Cada gnero caracterizado por um conjunto de relaes entre seus caracteres formais, seus registros temticos, e seus usos sociais possveis7. Em outras palavras, os traos distintivos que os que dizem o folclore reconhecem em sua comunicao podem na anlise repartir-se em trs nveis: o nvel da prosdia, o nvel dos temas e o nvel do comportamento8.

    Gneros e subgneros no samba

    Dou um exemplo: o samba dos anos 20/30 nos permite falar de uma confi gurao de gnero, na medida em que parte signifi cativa da produ-o atende a uma tripla caracterizao: prope uma temtica prpria (a malandragem), desenvolve uma prosdia especfi ca (o paradigma rtmico do Estcio, a personalidade percussiva baseada no surdo, tamborim e cuca), associa-se privilegiadamente a um contexto ou situao cultural (o carnaval, as classes populares).

    Mas o que se tem amplamente chamado de samba remete a cir-cunscries estilstica e historicamente muito mais amplas e variveis. No toa que Carlos Sandroni, tentando dar mais consistncia tcnica a essa categoria que foi, desde o sucesso de Pelo telefone, rapidamente adotada pela nomenclatura consensual e muitas vezes descuidadamente assimilada pela terminologia especializada, dispe-se a recolocar, no timo livro O feitio decente, a pergunta: desde quando o samba samba? A partir da o autor far uma reviso dos conceitos e interpretaes em vigor sobre o samba, procurando desenvolver uma viso tecnicamente elaborada, que, sem des-considerar as noes e pontos de vista dos personagens da histria, retifi que

    5 SANDRONI, Carlos. Feitio de-cente: transformaes do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed./Ed. UFRJ, 2001, p. 14. 6 ANDRADE, Mrio de. Pequena histria da msica. Belo Horizon-te: Itatiaia, 1987, p. 12.7 BEN AMOS, Dan, op. cit., p. 275. 8 Idem, ibidem, p. 277.

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    as imprecises, limpe o terreno, enfi m franqueie os limites inerentes a um ponto de vista excessivamente colado a seu objeto9. Para isso preciso cultivar com certo distanciamento uma viso regida pela sistematizao, a crtica das fontes e a formalizao10.

    Ao perguntarmos o que samba, deparamos com diferentes realiza-es histricas. Inicialmente o termo remete sobretudo ao que se chamaria tambm de samba-de-roda ou samba-de-umbigada, associando-se a um tipo de situao festiva com dana, baseada em percusso fortemente rit-mada11. Este primeiro momento corresponde ao que se pode chamar de samba folclrico.

    Ao registrar Pelo telefone como samba, Donga abre uma nova insero scio-cultural para o samba. A noo convertida ao contexto urbano, inserida no circuito da indstria cultural e da mdia tcnica. Apesar de as composies de Sinh e seus contemporneos serem identifi cadas como sambas por seus criadores, pelo pblico e pelos intermedirios da indstria fonogrfi ca, e portanto corresponderem s exigncias para se reconhecer a uma autoconceituao que no pode ser desconsiderada (como lembra Ben Amos), elas no constituem efetivamente um novo g-nero do ponto de vista estilstico. Pois este samba ao estilo antigo, como lhe chama Sandroni, do ponto de vista rtmico e instrumental, antes maxixe do que samba.

    Somente no fi nal dos anos 20 se constituiria o samba moderno do Estcio, diferente do samba ao estilo antigo e diferente do samba fol-clrico. Aqui tambm j se verifi ca uma evoluo na estrutura discursiva. O velho samba que era sobretudo dana tinha letra mutvel, na medida que se baseava no ciclo de um refro consagrado alternado com estrofes improvisadas. Esse modo de construo de certa forma preservado no samba dos anos 20, cujas estrofes, apesar de fi xadas pelo processo de gra-vao, apresentam um grau pronunciado de autonomia. A progressiva determinao autoral das obras correr paralela aquisio de um formato de cano, com comeo, meio e fi m, assinalados tanto na melodia, que se organiza em 1. e 2. partes, quanto na letra, que se organiza em texto, em narrao na qual se defi ne uma voz elocutora, que pode ser individual ou coletiva, mas desenha e projeta uma identidade una, uma persona autoral.

    A aquisio de perfi l estruturado e limitado, conjuntamente com a reconfi gurao do ritmo (que se diferencia do maxixe e da batucada), defi ne o gnero samba em sua forma moderna e acabada, ao mesmo tempo que abre caminho para a sua fragmentao em subgneros ou espcies. Tudo se d por volta de 1928, quando se originam as escolas de samba, que mais tarde constituiro o universo produtor do samba-enredo, o samba-cano com Ai Ioi e o samba malandreado dos bambas do Estcio.

    No prprio momento em que se consagra o gnero em sua acepo moderna, abre-se o campo de sua circunscrio imprecisa e sua dinmi-ca evolutiva dinmica mais intensa que a da msica folclrica, porque mais exposta aos contatos estilsticos, s modas, s presses comerciais e s demandas variadas de um pblico tambm variado. verdade que ele no o nico gnero da poca a mostrar-se capaz de diversifi cao e sincretismo. O mesmo acontece com a marcha, que o outro grande novo gnero urbano cujo surgimento e sucesso, nos anos 20/30, est vinculado fonografi a, radiofonia e ao carnaval; tambm com o choro e com cate-gorias mais tradicionais e/ou no especifi camente cariocas, como a toada, a valsa e o fox-trote.

    9 SANDRONI, Carlos, op. cit., p. 218.10 Idem, ibidem, p. 219.11 Na classifi cao de grandes vertentes da MPB proposta por Oneyda Alvarenga (apud SOU-ZA, Trik de et alii. Brasil musi-cal. Rio de Janeiro: Art Bureau, 1988, p. 31), o samba alocado na categoria das danas no dramticas, com formao em roda, de origem africana (com solistas no centro), na vertente em que tambm se situam o batuque, o jongo, o coco e o carimb. De fato, as danas de roda dos escravos, os batuques cantados com refro e estrofes improvisadas constituem uma das principais matrizes do que ainda hoje se chama de samba.

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    aO que se percebe como tendncia mescla e diversifi cao marcan-do os primeiros tempos da fonografi a parece conseqncia do fato de agora se fazerem mais discos, incrementando a produo de msica popular e de partituras. Uma vez que a msica est registrada pela gravao ou pela tipografi a costuma-se indicar a que categoria ela pertence. Ao mesmo passo que os estilos se constituem e reivindicam essas denominaes como sinal de sua identidade e/ou novidade, eles expem a impreciso e mobi-lidade de seu perfi l desdobrando-se em mltiplas categorias derivadas e sincrticas: marcha-rancho, marcha-ragtime, marcha-frevo, fado-tango, fado-marcha, tango-milonga etc.; ou buscando distinguir-se pela atribui-o pitoresca e chamativa: marcha curiosa, maxixe da pontinha, maxixe carinhoso, tanguinho sertanejo etc.

    Neste quadro, porm, o caso do samba destaca-se. Ele certamente o primeiro gnero de msica popular brasileira a conquistar junto ao pblico status unifi cador de representante da identidade cultural brasileira (como mostrou Hermano Vianna12); correlatamente, o que acolhe em seu uni-verso a mais generosa diversidade social e esttica. Tal diversidade resulta da gama social variada de seus produtores e consumidores; e tambm de sua expanso e longevidade, exprimindo diferentes momentos histricos, expondo-se a imperativos comerciais e modas momentneas, prestando-se a todo tipo de reciclagem e reformatao criativa.

    Por ser o gnero mais nacional e mais em voga, o samba tambm o que d mais fi lhotes. Atrelados ao substantivo prestigioso, proliferam apostos, locues e termos adjetivos, nomeando uma pletora de espcies e subgneros, uns transitrios, outros retidos na prtica da composio, na malha conceitual e no vernculo. Num dicionrio geral, no especiali-zado, como o Aurlio, fi guram apenas quatro modalidades, as clssicas: samba-enredo, samba-cano, samba de breque, samba de partido-alto, alm de samba-leno e samba-roda, formas folclricas defi nidas como variantes do fandango. Mas nas publicaes dedicadas ao assunto, viceja uma ampla terminologia conceitual, que inclui samba-exaltao, samba-choro, samba-de-terreiro, samba-de-quadra, samba-corrido, etc. E nas partituras, etiquetas e capas de disco at os anos 50 e 60, mas sobretudo no perodo ureo em torno dos anos 30, multiplicam-se as denominaes: algumas com pretenso a indicar uma vertente ou tendncia funcional, rtmica ou temtica: samba-carnavalesco, samba-batucada, samba-jongo, samba-maxixe, samba moda baiana; outras mais frvolas ou ldicas, engraadas ou estranhas, que esto l quase que como um comentrio obra particular que designam, muitas vezes com humor e ironia: samba de arrelia, samba do barulho, samba moda agrio; encontramos at, em Noel Rosa, samba epistolar e samba fontico. Na linguagem da gente do samba, surgem tambm denominaes que traam distines histricas: samba folclrico, samba moderno etc.

    A heterogeneidade dos critrios nomeadores obviamente impede que da se depreenda uma verdadeira tipologia. Mas eles tm de ser con-siderados quando pesquisadores histricos ou analistas cientfi cos tratam de elaborar suas prprias categorias, as quais s vezes recuperam produtivamente aspectos e linhas de fora das categorias espontneas ou mesmo comerciais, e outras vezes se deixam irrefl etidamente conta-minar por elas.

    12 VIANNA, Hermano. O mis-trio do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed./Ed. UFRJ, 1995.

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    O caso do samba-cano

    Vejamos o caso mais especfi co do samba-cano, um subgnero e denominao bastante em voga dos anos 30 aos 60. O que um samba-cano? A resposta pode ser inicialmente buscada por alguns caminhos mais ou menos bvios: nas defi nies propostas para o termo; na sua evo-luo histrica; nos repertrios e obras identifi cados com a denominao pela indstria musical e pelos crticos e historiadores.

    Para distinguir o samba-cano do samba-samba, o tpico mais recorrente a oposio entre dominncia meldica e dominncia rtmica. Para Luiz Tatit, o samba fi rma-se como um ritmo ou at uma batucada enquanto o samba-cano neutraliza suas arestas e se impe pela melodia13. A Enciclopdia da msica brasileira defi ne o samba-cano como samba cuja nfase musical recai sobre a melodia, geralmente romntica e sentimental, contribuindo para amo-lecer o ritmo 14. Dos traos distintivos que identifi cam os gneros folclricos segundo Ben Amos, encontramos a o primeiro elemento caracteres formais e tambm o segundo registros temticos , se supusermos que a qualidade romntica e sentimental atribuda melodia pelo verbete pode tambm, metonimicamente, atribuir-se letra. Tambm o Dicionrio do Aurlio destaca a dominncia signifi cativa da melodia sobre o ritmo e a temtica sentimental do samba-cano: samba em que o carter meldico supera o sincopado e cuja letra sempre muito sentimental15.

    Nas trs defi nies citadas falta o terceiro elemento mencionado por Ben Amos os usos sociais. Ora, este o primeiro trao enfatizado por Jos Ramos Tinhoro (em consonncia alis com a perspectiva sociolgica privilegiada pelo autor), no captulo de sua Pequena histria da msica popu-lar que trata do samba-cano: antes de fi xar-se como gnero claramente defi nido, ao lado do samba carnavalesco, o nome samba-cano serviu para designar arbitrariamente vrias msicas que caberiam, talvez, dentro da designao de sambas de meio de ano, mas no eram ainda verdadeiros sambas-canes.16

    O nico ponto discutvel nesta assero parece-me ser a suposio de que em algum momento o nome samba-cano tenha vindo a corres-ponder a um gnero claramente defi nido. Veremos adiante como ele foi sendo associado a tendncias poticas, musicais e interpretativas bastante variadas, do fi nal dos anos 20 at os anos 60, quando a vigncia do termo entra em declnio. Aqui Tinhoro reporta principalmente o seu surgimento, sublinhando-lhe a vinculao com o teatro de revista e compositores de classe mdia.

    O termo samba-cano comea a circular em 1929. J neste ano, so assim qualifi cadas na imprensa modinheira composies como Jura, de Sinh, e Diz! que me amas, de Jota Machado. Mas a obra que fi car conhecida como marco inaugurador do gnero Ai Ioi, melodia de Henrique Vogeler e letra de Lus Peixoto (que alis viria a ser parceiro de Ari Barroso em alguns de seus sambas-canes). Ai Ioi, eu nasci pra sofrer... O lamento dengoso, inicialmente intitulado Iai, ganhou fama pela voz de Aracy Cortes, no teatro de revista e em disco. Era a terceira gravao da melodia, as duas anteriores com letras de Candido Costa e Freire J-nior. Foi a primeira verso, intitulada Linda Flor e gravada por Vicente Celestino na Odeon, que exibiu na etiqueta do disco, pela primeira vez, a expresso samba-cano brasileiro. Tinhoro comenta que a voz e o estilo meio operstico de Celestino no eram apropriados confi gurao

    13 TATIT, Luiz. O cancionista: composio de canes no Brasil. So Paulo: Edusp, 1996, p. 23.14 Enciclopdia da msica brasilei-ra erudita, folclrica e popular. So Paulo: Art, 1977, p. 684. 15 FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo dicionrio da lngua portuguesa. Rio de Janei-ro: Nova Fronteira, s/d, p. 1276.16 TINHORO, Jos Ramos. Pequena histria da msica po-pular: da modinha cano de protesto. Petrpolis: Vozes, 1975, p. 149.

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    ado novo gnero: sua empostao de voz (...) no permitia reconhecer a dose certa de balano rtmico de samba, que Henrique Vogeler tentava introduzir como um elemento perturbador da melodia clssica da cano17. De fato, e, apesar de a segunda gravao ter fi cado a cargo de Francisco Alves, a histria posterior deste samba-cano foi feita principalmente por vozes femininas, e das mais respeitadas: Isaura Garcia, Elizeth Cardoso, Angela Maria, Dalva de Oliveira, Zez Gonzaga.

    De um modo geral, encarado na perspectiva do senso comum, pode-se dizer que o samba-cano samba-de-meio-de-ano, tem andamento mais vagaroso com dominncia da linha meldica sobre a marcao rtmica, e explora basicamente a temtica da subjetividade e do sentimento. Entretan-to, no aposto cano nenhuma dessas caractersticas est explicitamente assinalada.

    Ao contrrio de outras designaes de espcies de sambas, esta no remete direta e explicitamente para a dimenso contextual, prosdica ou temtica. Cano assinala, antes de tudo, algo que se canta: uma pea que possui letra, alm de msica, e demanda atuao vocal de um intr-prete. Nas partituras e etiquetas dos discos dos anos 20 a 50, encontram-se correntemente vrios outros termos compostos que indicam tambm esse deslocamento da nfase para uma pea dotada de letra, portanto feita para o canto, que a cano, a partir de um gnero rtmico originariamente identifi cado basicamente pela sua vocao coreogrfi ca: valsa-cano, tango-cano, frevo-cano, foxe-cano, bolero-cano. Impondo-se mais como melodia do que como ritmo, o samba-cano solicita e estrutura a ateno do ouvinte para a letra, em oposio ao relevo do som estimulador dos movimentos corporais.

    Costuma-se considerar que o gnero samba-cano delineado nos anos 30, apurando-se na produo de compositores de classe mdia como Noel Rosa, Ari Barroso e Lamartine Babo. Porm j nessa poca o rtulo aplicado a obras muito diferentes, variando de peas mais dolentes a mais animadas. Como exemplos, os sucessos Quando o samba acabou, de Noel Rosa (1933), Serra da Boa Esperana, de Lamartine Babo (1934), e Maria, de Ari Barroso e Lus Peixoto (1934). Tinhoro observa que inicialmente o termo usado equivocadamente para designar peas amaxixadas18. Por outro lado, muita coisa ento chamada simplesmente de samba foi mais tarde reconhecida e integrada memria cultural como samba-cano.

    Tomemos o exemplo de Noel Rosa: com base na caixa de CDs que documenta as primeiras gravaes de sua obra, e supondo-se que as deno-minaes a apostas ao ttulo das canes referem a etiqueta genrica que estas receberam no momento de sua primeira divulgao, temos a surpresa de encontrar apenas quatro sambas-canes (dois deles da opereta A noiva do condutor), contrastando com 138 sambas (puros ou com adjetivos no designativos de gneros, mas apenas indicadores do contedo da letra19), 28 marchas e umas duas dzias de canes de outros ritmos. Contudo evidente que muitos dos sambas-sambas de Noel ganharam historicamente a feio e a identidade do samba-cano, como ltimo desejo, Pra que mentir, Feitio de orao e Trs apitos.

    O deslocamento nocional e terminolgico est ligado ao contorno progressivamente assumido pelo conceito e por suas realizaes empricas, mas tambm s novas interpretaes que uma mesma obra ia recebendo em gravaes sucessivas. Este outro ponto complicador da concepo

    17 Idem, ibidem, p. 152.18 Idem, ibidem, p. 150.19 Como o samba anatmico Corao e o samba epis-tolar Cordiais saudaes, ambos de 1931. H tambm trs sambas-choros.

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    de quadros genricos aplicados cano popular. Diferentes interpreta-es produzem diferentes resultados estticos, alterando o perfi l histori-camente consagrado de uma obra. Isso vale para o andamento, sujeito a grandes variaes, mas tambm para as infl exes de performance vocal e instrumental. Muitos sambas de Noel e de outros compositores recebero tratamentos posteriores sua primeira gravao que lhes conferem um feitio de samba-cano. Esses tratamentos no so porm gratuitos: esto vinculados a uma proposta j contida na melodia e na letra. Algumas regravaes modernas evidenciam isso mais claramente: o Antonico, de Ismael Silva, por Gal Costa; o Pra que mentir, de Noel, por Caetano Veloso (em que se neutraliza inclusive a batida de samba); o Trs apitos, tambm de Noel, por Maria Bethnia.

    Nos anos 40 e 50, em conjuno com a voga de msica romntica estrangeira, o samba-cano faz muito sucesso e consagra alguns de seus maiores cultores. Deste perodo so 22 dos 24 itens ilustrativos do tpico samba-cano elaborado por Trik de Souza para o site Clique Music20. o tempo de grande prestgio de Lupicnio Rodrigues, talvez o compositor mais identifi cado com o gnero e mais prolfi co nesse campo. tambm o perodo em que Dorival Caymmi inaugura nova fase em sua obra, mais dolente, de temtica amorosa, desde Marina (1947), por Francisco Alves, e produzindo obras-primas como Nem eu (1953), parceria com Antonio Maria, gravada por Angela Maria.

    Em termos de produtividade e prestgio, o samba-cano atinge ento seu apogeu. Por outro lado, sobretudo pela feio abolerada e melosa que toma nessa poca, sofrer restries por parte de vrios crticos e historia-dores. No fi nal dos anos 40, Vasco Mariz j observa que, na segunda metade da dcada, o samba veio abolerando-se, amolecendo-se na interpretao de cantores que buscam solues internacionais (Nora Ney, Angela Maria etc.); e adverte: graas a esse novo estilo amolengado o samba est perdendo o ritmo que o popularizou em todo o mundo21. Dez anos mais tarde, Marisa Lira afi rma que o samba-cano resulta de uma adaptao em que a melodia canta como cano e o ritmo marca o samba e acaba no sendo nada propriamente dito22. Enfi m, a fase de maior evidncia do gnero ser vista por Augusto de Campos como a fase de decadncia e de transio da msica popular brasileira que precedeu a revoluo da bossa-nova23.

    De fato, sob o infl uxo da forte penetrao da msica latina (boleros, tangos) e norte-americana (fox-blue), do fi nal dos 40 ao fi nal dos 50, boa parte do que se chama samba-cano deriva em samboleros e sambaladas. Porm j nos anos 50, correlatamente ao declnio da msica de carnaval, uma nova direo se constri, no chamado samba de fossa, msica de boate, que constituir o samba-cano moderno, no qual se cultivam procedimentos meldicos e harmnicos que ajudam a preparar o advento da bossa-nova24.

    O marco inicial da pr-bossa-nova um samba-cano: Copacaba-na, de Alberto Ribeiro e Joo de Barro, gravado por Dick Farney em 1946 com arranjo de Radams Gnatalli. Sobre ele Benedito Lacerda teria dito a Braguinha: Muito bonito, mas no samba25.

    De 1953 a 1956, Tom Jobim teve gravados de sua autoria 23 sambas-canes, contra apenas 8 sambas puros. E no histrico LP protobossa-novista Cano do amor demais, de 1958, em que Elizeth Cardoso canta Tom & Vincius, metade das 12 faixas de samba-cano.

    Para Walter Garcia, a vocao modernizadora do samba-cano no deixa de estar relacionada com o fato de muitos de seus cultores serem de

    20 SOUZA, Trik de. Samba-cano. Disponvel em .21 MARIZ, Vasco. A cano brasileira: erudita, folclrica e popular. Rio de Janeiro: Depar-tamento de Imprensa Nacional, 1959 (1 edio de 1948), p. 156.22 LIRA, Marisa, apud TINHO-RO, Jos Ramos, op. cit., p. 149.23 CAMPOS, Augusto de, op. cit., p. 221.24 Segundo Tom Jobim, Joo Gilberto com sua batida deu um salto modernizante em relao ao samba-cano, que, at a bossa-nova, era o gnero predominante nas experincias de modernizao da cano po-pular brasileira (cf. GARCIA, Walter. Bim-bom: a contradio sem confl itos de Joo Gilberto. So Paulo: Paz e Terra, 1999, p.28).25 GARCIA, Walter, op. cit., p. 30.26 Idem, ibidem.

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    aclasse mdia, e vem do incio do gnero, de Ai, Ioi, sobre o qual disse Aloysio de Oliveira ter sido a primeira gravao que realmente (o) impressio-nou.26

    Todo esse direcionamento do gnero deve porm ser confrontado com um outro veio de samba dolente, melodioso e sentimental. Criao de indivduos de origem etnossocial mais popular e mais negra ou mestia, ele raramente recebeu, nas etiquetas, capas de disco e listagens enciclopdicas, o rtulo de samba-cano. Trata-se da obra de compositores como Nelson Cavaquinho e Cartola, que cultivaram um discurso onde a explorao da dimenso emocional introspectiva se conjugou a uma refl exo de cunho tico e social, atingindo muitas vezes extrema profundidade existencial e delicadeza esttica.

    Na Enciclopdia de msica brasileira, no rol de composies de Cartola s fi gura trs vezes o termo samba-cano. E no verbete de Nelson, ne-nhuma vez; tudo apenas samba. Tambm no h nenhuma obra sua entre as que ilustram o gnero no site Clique Music. Entretanto eles so, ao lado de Lupicnio Rodrigues, os principais autores estudados por Beatriz Borges num dos rarssimos estudos monogrfi cos que se ocupam do gnero, o Samba-cano, fratura e paixo, de 1982. Beatriz no cuida de assentar teori-camente a circunscrio do repertrio por ela estudado, contentando-se de constatar que o samba-cano encontrou, desde seu surgimento, difi culdades em se defi nir como gnero musical 27, e considerando que atravs de seus principais temas que o samba-cano melhor se defi ne 28.

    Nos ltimos anos, como indiquei no incio deste artigo, as pesqui-sas sobre msica e cano popular brasileira tm proliferado nos crculos acadmicos de diferentes reas, oferecendo abordagens sofi sticadas que, aos poucos, vo organizando teoricamente esse campo ainda novo de es-tudos. Um exemplo dos mais consistentes o modelo analtico proposto por Luiz Tatit, que busca elucidar o efeito de naturalidade persuasiva logrado por uma cano junto ao receptor, com base numa juno da se-qncia meldica com as unidades lingsticas, ponto nevrlgico de tensividade29. Segundo o autor, o samba-cano, bem como o bolero, o blue, a modinha folclrica, a cano brega e outras formas, caracteriza-se pela dominncia do processo de passionalizao, que investe na continuidade meldica e no prolongamento das vogais, exprimindo uma vivncia introspectiva: a passionalizao na cano funciona como um reduto emotivo da intersubjetividade. Uma das qualidades da anlise de Tatit que ela opera simultaneamente em vrias dimenses da linguagem da cano (meldica, lingstica, vo-cal), abrindo-se inclusive para especulaes sobre a evoluo histrica das formas: a passionalizao intrigante, pois no fi ca claro se refl ete a maturidade de um movimento, de um estilo ou de um compositor, ou se refl ete o declnio da vitalidade do gnero30.

    Somente de modo espordico e mais ou menos informal Tatit recorre noo de gnero. Porm o aparato conceitual que maneja, construdo com instrumentos semiticos, permite recuperar de modo renovado, produtivo e mais preciso essa noo. Pois a confi gurao esttica de um gnero constri-se na articulao de caractersticas discursivas com padres de verossimilhana vinculados s expectativas e hbitos dos receptores. Analogamente, compor uma cano procurar uma dico convincente31 (grifo meu), como diz Tatit.

    No intuito de estabelecer, com funcionalidade e rigor, categorias mapeadoras da rica variedade da cano popular, preciso combinar a

    27 BORGES, Beatriz. Samba-cano, fratura e paixo. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, p. 15.28 Idem, ibidem, p. 16.29 TATIT, Luiz, op. cit., p. 9.30 Idem, ibidem, p. 23.31 Idem, ibidem, p. 11.

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    anlise da estrutura interna das canes com a observao do modo como elas so veiculadas, experimentadas e historicizadas pelo pblico receptor. Conceitos como a dico de Luiz Tatit ajudam a reelaborar os princpios de uma potica dos gneros, a qual deve levar em conta tanto as denomi-naes informais produzidas no circuito produo-consumo, quanto a necessidade cientfi ca de rigor e critrio nas sistematizaes.

    Artigo publicado originalmente em ArtCultura, n. 9, jul.-dez. 2004.