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111 6 - PESCARIAS Iniciaremos esse capítulo com os dados coletados na região de influência da RESEX do Iguape, Maragojipe, pelo mestrando Carlos Antônio Santos de Oliveira, da FACCEBA - Faculdade Católica de Ciências Econômicas da Bahia – Mestrado em Ciências da Educação (Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia de Portugal), gestor da RESEX Marinha do Iguape. O projeto, em parceria com o Lab. de Nectologia, Departamento de Zoologia / UFBA, visava do desenvolvimento do trabalho: “Educação ambiental em áreas de manguezal. A arte de educar cantando – a pesca proibida com bombas. Maragojipe – baía de Todos os Santos. Bahia – Brasil, desenvolvido em 2007. Os dados coletados, preliminarmente, para elaboração do projeto sobre as características da pesca na região, estão listados nas quadros 1 e 2. Quadro 1. Locais Visitados 1 Comissão 2 Cajá 3 Porto de Açougue 4 Angola 5 Ponta de Souza 6 Nagé 7 Coqueiros 8 Pilar 9 Capanema 10 São Roque 11 Enseadinha 12 São Francisco 13 Santiago do Iguape 14 Porto da Pedra 15 Salamina Quadro 2. Artes e petrechos.

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6 - PESCARIAS

Iniciaremos esse capítulo com os dados coletados na região de

influência da RESEX do Iguape, Maragojipe, pelo mestrando Carlos

Antônio Santos de Oliveira , da FACCEBA - Faculdade Católica de Ciências

Econômicas da Bahia – Mestrado em Ciências da Educação (Universidade

Lusófona de Humanidades e Tecnologia de Portugal), gestor da RESEX

Marinha do Iguape.

O projeto, em parceria com o Lab. de Nectologia, Departamento de

Zoologia / UFBA, visava do desenvolvimento do trabalho: “Educação

ambiental em áreas de manguezal. A arte de educar cantando – a pesca

proibida com bombas. Maragojipe – baía de Todos os Santos. Bahia – Brasil,

desenvolvido em 2007. Os dados coletados, preliminarmente, para

elaboração do projeto sobre as características da pesca na região, estão

listados nas quadros 1 e 2.

Quadro 1. Locais Visitados1 Comissão

2 Cajá

3 Porto de Açougue

4 Angola

5 Ponta de Souza

6 Nagé

7 Coqueiros

8 Pilar

9 Capanema

10 São Roque

11 Enseadinha

12 São Francisco

13 Santiago do Iguape

14 Porto da Pedra

15 Salamina

Quadro 2. Artes e petrechos.

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Para realização de sua pesquisa o autor visitou 15 localidades, acima

listadas, pertencentes a RESEX do Iguape.

Em cada localidade, foram identificadas

as artes de pesca utilizadas pelos

trabalhadores do mar, listadas na tabela 2, são,

pelo menos trinta e três tipos tradicionais de

pescarias existentes na RESEX Marinha do

Iguape.

A partir dos nomes vulgares, saber

popular, as espécies alvos de cada arte ou

petrecho de pesca foram identificados. Vide

tabela 1.

Tabela 1. Nomes vulgares das espécies capturadas

N. Espécies

1 Agulhão

2 Agulhinha

3 Amoreia

4 Aratu

5 Arraia Branca

6 Arraia Chita

7 Arraia Duas Cabeças

8 Arraia Manteiga

9 Arraia Pintada

10 Arraia Viola

11 Arregalado

12 Avoador

13 Bagre Amarelo

14 Bagre Aratuípe

15 Bagre Branco

16 Bagre Ferro

N. Técnicas de captura

1 Andarilho

2 Arraieiro

3 Braceamento

4 Caçoeira

5 Calão de Abalo

6 Camaronzeira

7 Camboa

8 Camboa de rede

9 Captura de aratu com isca

10 Cavar mirim com mão

11 Enxadinha

12 Facho

13 Farracho

14 Fisga

15 Grosseira

16 Jereré

17 Jereré de fundo

18 Jereré de Siri

19 Linha de espera

20 Linha de fundo

21 Mariscar(Mariscagem?)

22 Munzuá de Amoreia

23 Munzuá de Siri

24 Ostra de mergulho

25 Pesca com bomba

26 Puçá

27 Ratoeira de guaiamum

28 Rede de cerco

29 Rede grande

30 Redinha de arrasto

31 Tainheira

32 Tarrafa

33 Vara de pesca

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17 Bagre Jurupeba

18 Baiacu Ará

19 Baiacu Chifre

20 Baiacu Dondon

21 Baiacu Espinho

22 Baiacú Pintado

23 Bejupirá

24 Bicuda

25 Bom Nome

26 Cabeçudo

27 Caçonete

28 Camarão Barba Azul

29 Camarão Branco

30 Camarão Coroeiro (Verde)

31 Camarão Gibá

32 Cam. Rabo Seco (Barba preta)

33 Cam.. Sete Barbas (Mouro)

34 Camarão Vermelho (Rajado)

35 Caramuru

36 Carangondé

37 Caranguejo

38 Carapeba Branca

39 Carapeba Rajada

40 Carapicum

41 Carapitanga

42 Carrapato

43 Castanha

44 Chopa

45 Chopinha

46 Concha

47 Coró

48 Corongo

49 Curimã

50 Curvina

51 Cutupanha

52 Ferrugem

53 Garapau

54 Garaúba

55 Guaiamum

56 Guaricema

57 Imbira

58 Lambreta

59 Larga Escama

60 Língua de sogra

61 Lírio

62 Lula

63 Mapé

64 Margarida

65 Massambê

66 Merete (Mero)

67 Mirim Cavado

68 Mirim Comum

69 Mirim de Pedra

70 Mirucaia

71 Mututuca Amarela

72 Niquim de lama

73 Niquim Pucumã

74 Niquim vermelho

75 Ostra

76 Pai do Mapé

77 Pampo Comum

78 Pampo de Espinha Mole

79 Pampo Gamela

80 Papa Terra

81 Parú

82 Pegador

83 Pescada Amarela

84 Pescada Branca

85 Pescada Chitadinha

86 Pescada Perna de Moça

87 Piracá

88 Pisquila

89 Pititinga

90 Rala Côco

91 Redondo

92 Robalo

93 Sabonete

94 Safira

95 Sambujo

96 Sapo de Bico

97 Sapoca

98 Sapoca Branca

99 Sapoca Vermelha

100 Sapocão

101 Sarnambí

102 Siri Açú

103 Siri Bóia

104 Siri Caxangá

105 Siri de Coroa

106 Siri Nema

107 Siri Pintado

108 Siri Tinga

109 Sobrinho de Tainha

110 Sororoca

111 Sururu do Mangue

112 Sururu Machadinha

113 Tainha

114 Tapa de Lama

115 Ubarana

116 Xangó Gordo

117 Xangó Magro

118 Xaréu Amarelo

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Cerca de cento e dezoito espécies de pescados foram identificadas

como espécies alvos de pescarias para RESEX do Iguape, em trabalho de

pesquisa desenvolvido pelo gestor da UC.

O resultado demonstra a sócio-biodiversidade e diversidade de

saberes e fazeres dos povos da RESEX do Iguape, motivo prístino que levou

a região a ser tombada na condição de Reserva Extrativista.

Comentamos sobre os diversos aspectos que envolvem questões

relativas a povos tradicionais. Uma delas é a questão indígena.

Apesar do extermínio dos índios da região, promovido pelos primeiros

Governadores Gerais do Brasil, a cultura indígena regional sobrevive em

fragmentos, demonstrando a sua força, principalmente, nos topônimos que

ainda persistem.

‘Y-kûá-pe significa enseada do rio; Maracujá-y-pe para alguns

autores, o rio dos Maracujás e Pará-guassu, rio grande. Era assim,

segundo Eduardo de Almeida Navarro, no livro: MÉTODO MODERNO DE

TUPI ANTIGO – A LÍNGUA DO BRASIL DOS PRIMEIROS SÉCU LOS,

1999, que os índios Tupinambá denominavam a baía de Todos os Santos.

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Vale lembrar que João de Albernaz, o velho, no mapa da baía de

Todos os Santos, em 1631, mapaeando a Capitania da baía de Todos os

Santos, identifica o rio Paraguassu, com dois “ss. Grafia que deveria

permanecer até hoje, pois é o nome original na língua Tupi.

Ainda, sobre os índios na BTS, o Prof. Dr. Ubiratan Castro de Araújo,

atual Presidente da Fundação Pedro Calmon, descreve a matança cruel dos

povos indígenas, no artigo: A baía de Todos os Santos: um sistema geo-

histórico resistente, publicado em 2000, na Revista BAHIA ANÁLISE &

DADOS, apresenta o seguinte trecho escrito por Vicente Tapajós, em 1966.

Uma demonstração inequívoca do extermínio, crueldades e malvadezas

promovidas na área, desde o século XVI, contra os seus povos, o pior, com a

ordem dos governantes:

“(...) destruindo-lhes suas aldeias e povoações e matando e cativando aquela parte deles que vos

Mapa de João Albernaz, o Velho - 1631

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D. Maria do Paraguaçu. Liderança comunitária que morreu ao receber a notícia que estava sendo intimada pela polícia. Intervenção durante evento em Maragojipe.

parecer que baste para seu castigo e exemplo de todos, e daí por diante pedindo vos paz lha concedais dando-lhes perdão, e isso será, porém, com eles ficarem sujeição e vassalagem e com encargo de darem em cada um ano alguns mantimentos para a gente da povoação e no tempo que vos pedirem paz trabalhareis por haver a vosso poder alguns dos principais que forem no dito alevantamento (em 1545, contra Francisco Pereira Coutinho) e este mandareis por justiça enforcar nas aldeias donde eram principais”.

Não parece ser diferente na

atualidade. Os trabalhadores da pesca,

se não são assassinados, morrem de

desgostos. Vide os casos recentes de D.

Maria do Paraguaçu e Seo Altino, que

sucubiram ante a pressão dos aliados

ao poder. A Enseadinha, uma localidade

a beira do baixo curso do rio Paraguaçu,

some do mapa para dar lugar as

paredes de concreto erguidas em seus

limites para construção de embarcações

metálicas, ferrosas, visando o transporte de petróleo para produção de

combustíveis fósseis.

Meu Deus, a queima de combustíveis fósseis não contribui para o

aquecimento global?

São descendentes de negros – quilombolas; são os caboclos, que

foram fundamentais nas lutas pela independência da Bahia, em 1823, que

concedeu o título da Maragojipe de PATRIÓTICA CIDADE; são

trabalhadores da pesca, que herdaram a tradição das pescarias de seus

antepassados indígenas, mantendo-as vivas até a atualidade que não

merecem ser massacrados pela volúpia da destruição, comandadas pelo já

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fracassado sistema capitalista globalizante e agonizante, disseminador de

prejuízos.

Continua o Prof. Ubiratan Castro o seu artigo, com um tópico

denominado: Adeus baía:

(...) O tempo da tecnologia do petróleo, após 1945, não poupou o território da baía. A descoberta do petróleo em terras dos seus recôncavos terminou por despedaçar o que restava de solidariedade e de identidade nesta região ribeirinha da baía. A implantação, em larga escala, da extração e do refino do petróleo e todo dinamismo por eles gerado, definiram um recôncavo petrolífero, integrado no processo de desenvolvimento nacional, e excluíram os recôncavos inúteis, abandonados, arruinados, os recôncavos históricos.

(...) Assim, velha, inútil e vencida, como a índia Kyrimurê, a colonial portuguesa baía de Todos os Santos enfim feneceu. Líquido espaço vazio, virou histórica, virou turística, e dizem até que será sucedida por uma baía Azul”.

Uma baía industrial, também. A bela baía, que já foi dos índios,

destruída pelos portugueses e que dizem ser de TODOS NÓS, será, no

futuro, a baía de um Pólo Naval. Tão destruidor e avassalador como são as

propostas governamentais realizadas, até então.

6.1 - Questões de território, raça e gênero

No texto resumo da tese de doutoramento: NEGROS CONTRA A

ORDEM: Resistências e práticas negras de territoria lização no espaço

da exclusão social. Salvador-BA (1850 - 1888), Wilson Roberto de Mattos,

procura o significado histórico-cultural das mais variadas formas através das

quais as populações negras lutaram contra a dominação e subordinação

sócio-racial cotidiana e, de um modo geral, contra a escravidão. E, sobre a

questão de territórios, faz colocações bem claras sobre o tema:

“(...) é necessário observar que no trabalho de pesquisa como um todo, o diálogo com o termo territorialidade, e sua decorrência prática,

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territorialização, tal qual nossa interpretação do livro "O Terreiro e a Cidade"[3], de Muniz Sodré, teve peso substancial na medida em que nos indicou caminhos possíveis de reflexão sobre como as populações negras da capital baiana, não somente ocuparam, mas singularizaram cultural e socialmente o espaço da cidade.

Concebendo o espaço físico ocupado, como um lugar de cultura, o autor observa que "a territorialização não se define como um mero decalque da territorialidade animal, mas como força de apropriação exclusiva do espaço (resultado de um ordenamento simbólico) capaz de engendrar regimes de relacionamentos, relações de proximidade e distancia (...) o território aparece assim como um dado necessário à formação de identidade grupal/individual, ao reconhecimento de si por outros."[4]. Poderíamos dizer que a noção de territorialização, entendida como processos de relacionamentos que definem espaços e identidades, permite transcender os limites do dado físico apenas, passando a referenciar-se, sobretudo, nas formas como grupos humanos específicos, singularizam, prática e simbolicamente - em uma palavra, culturalmente -, a ocupação de um espaço físico, ao mesmo tempo em que constroem o seu significado histórico-social.

Portanto, definir o valor interpretativo do termo, territórios negros, implica considerar práticas e valores culturais que se tornaram próprios às populações negras, na medida das relações de proximidade e distância com práticas e valores que se lhes mostraram adversos, no caso específico do presente trabalho, idéias e ações dominantes, cuja materialidade expressou-se, à época, em medidas claramente tendentes ao controle, subordinação e disciplinamento das populações negras na cidade.

Nesse sentido, a própria existência de espaços físicos e sociais, conquistados ou possibilitados pela dinâmica da escravidão urbana, tais como, a relativa autonomia dos cantos de ganhadores escravos e libertos; a apropriação das ruas através das atividades de trabalho urbano com tempos e ritmos próprios; os terreiros de candomblé e irmandades religiosas negras; os quilombos suburbanos; as juntas

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de alforria e outros espaços similares, configuraram-se não somente como vislumbres ou pequenas parcelas de uma liberdade possível nas fímbrias do sistema escravista, mas também como espaços-territórios instituintes de um universo cultural próprio, resistente às adversidades de uma conjuntura social e racial, desfavorável.”

Nada mais justo do que ampliar esse conceito de territorialidade

urbana, adequando às questões litorâneas, envolvendo os espaços das

águas, a partir de uma percepção das pescarias e pesqueiros.

Associados aos conceitos de territorialidade, como geradores de

identidades culturais, existem as questões que envolvem gênero. Como

ilustração, os trabalhos de JERUZA JESUS DO ROSÁRIO, Aluna do curso

de Mestrado em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional pela

Universidade do Estado da Bahia – UNEB / Campus V, sobre as mulheres

marisqueiras do Iguape:

“Este trabalho é fruto das pesquisas iniciadas em Março/2007 sobre o cotidiano da mulher pescadora na reserva extrativista (Resex) marinha Baía do Iguape/Bahia localizada no Recôncavo Sul Baiano. Muitas mulheres lançaram-se na atividade pesqueira, reconhecidamente masculina, pois, sem escolha, teriam que buscar o sustento de alguma forma. (...) No caso específico das mulheres pescadoras da Baía do Iguape, tem-se exemplos de pessoas ativas participantes do processo de produção e reprodução social que, ao longo da história, para sobreviverem, adequaram-se à necessidade de negociar com situações adversas na necessidade da busca do sustento. (...) Assiste-se hoje a diversas tendências e debates no Brasil e no mundo que, de um lado, afirmam a diversidade feminina com as suas várias possibilidades de participação e construção social e propõem uma abordagem específica para a crise ambiental, destacando a conexão especial das mulheres com a natureza, e de outro, criticam a referência a essa conexão como um possível reforço à exclusão das mulheres em repetição ao processo que se arrasta até hoje. Conflitos ideológicos à parte, é

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interessante ressaltar a importância da busca da diversidade, ou seja, prestar atenção no cotidiano desta mulher para que se perceba o diferente, o que se consegue a partir do olhar plural sobre o que se está pesquisando, o que, ao mesmo tempo, enriquece a produção do conhecimento pois diminui as chances de conjecturas unilaterais: verificar a multiplicidade, no caso desta pesquisa que se desenvolve, da pluraridade de histórias e pensares da mulher trabalhadora no manguezal da Baía do Iguape através de seu cotidiano, tendo em vista que o cotidiano é individual e não soma de individualidades. (...) Natureza e cultura estão colocadas tendo por referência os processos naturais nos quais os seres humanos se inserem, dos quais retiram o seu conhecimento e sua vida e as construções culturais humanas derivadas do conhecimento e do saber, se apóiam na realidade natural. O contato com a riqueza da região, aguçado pela vivência do mundo simbólico das pessoas ouvidas, leituras sobre as festas e comemorações religiosas, direciona a pesquisa, ainda mais, para os aspectos culturais marcantes desta população. Isto é refletido na incorporação, ao trabalho, do levantamento das histórias do cotidiano da mulher pescadora em seu espaço de vivências, o que evidencia que espaço e tempo não devem ser separados jamais ou, caso contrário, não se consegue expressar, claramente, pela linguagem o que se quiser dizer. Com relação ao seu trabalho no manguezal, D. Edna faz a seguinte análise: “se eu tiro de onde não botei, eu tenho que cuidar e pedir licença". Grifo nosso. Esta cultura prediz um desenvolvimento íntimo de negociação e produção com o mundo em paralelo com o materialismo a partir da realidade produzida pelas pessoas; os indivíduos produzem cultura enquanto produzem a si próprios a partir das várias maneiras de viver, amar, escrever, festejar, enfim, registrar, conscientemente ou não, a sua existência no mundo. As pescadoras se reconhecem como agentes construtores e modificadores de seu espaço na cultura que se desenha. Uma teoria na perspectiva social da cultura sustenta-se em um outro requerimento de partida: supõe que à cultura seja conferida alguma

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possibilidade de autonomia. Vale dizer, que as relações sociais possam ser investigadas a partir da estrutura e significados internos à própria cultura. As discussões sobre cultura vêm desestabilizando os paradigmas. Anteriormente, os conceitos estruturalistas se pretendiam universais, atualmente, certamente pelo advento da globalização e da pós-modernidade, tem-se o convite ao mergulho nas particularidades o que propõe um momento criativo na produção do conhecimento de rompimento com a mesmice o que possibilita perceber as diferenciações que se intercruzam. Ressalta-se aqui a necessidade de sensibilidade para ler o espaço, já que a mulher pescadora tem no seu cotidiano o desenvolvimento de espaços legíveis que expressam a cultura em seus diversos aspectos, possuindo uma faceta funcional e outra simbólica, ou seja, neste caso da Vovó do Mangue, a lenda funciona como um instrumento de defesa do próprio manguezal e como personagem do imaginário da população da Baía do Iguape. A pesquisa também traz a contribuição do Ecofeminismo, movimento social surgido no início dos anos 90 do século XX, cujo ponto á a associação da mulher à natureza, principalmente, no que diz respeito à sustentabilidade, tendo em vista que o presente estudo desenvolve-se dentro de uma reserva extrativista marinha. O Ecofeminismo sugere o reconhecimento de que, apesar de o dualismo natureza-cultura ser um produto da cultura, podemos, conscientemente, escolher a aceitação da conexão mulher-natureza, participando da cultura, reconhecendo que a desvalorização da doação da vida traz resquícios profundos para a ecologia e as mulheres. (...) A mulher pescadora vivencia um momento histórico de tentativa de saída da inivisibilidade, colocando em discussão a importância do seu trabalho e a necessidade de valorização da mulher trabalhadora do manguezal. Aliado a isto, também vem à tona o problema da destruição dos mangues que ameaça a vida nas comunidades, pois contribui com a redução dos estoques naturais de pesca e o aumento da pobreza, caracterizando um cenário do ponto de vista

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cultural, social, econômico e ambiental. (...) Como matriz cultural, o espaço da mulher pescadora da Baía do Iguape, a sua casa, o manguezal, o modo como se comporta durante a pesca, através de muitos de seus elementos, serve como mediação na transmissão de conhecimentos, valores ou símbolos, contribuindo para transferir de uma geração a outra, o saber, crenças, sonhos a atitudes sociais . Estes muitos elementos jamais poderão ser competentemente analisados em determinado estudo caso não lhe seja conferida a necessária singeleza e astúcia analítica o que Milton Santos aborda da seguinte maneira: ‘ Uma dada situação não pode ser plenamente apreendida se, a pretexto de contemplarmos sua objetividade, deixamos de considerar as relações intersubjetivas que a caracterizam .’ (...) Interpretar os fenômenos da vida social, neste tipo de abordagem, é compreender a "experiência" através da qual o indivíduo, neste caso a mulher pescadora, constrói a sua vida interior e se capacita a interpretar a de outrem na descoberta dos significados, na interpretação do sentido interno e subjetivo das estruturas culturais que se espraiam nas vivências na Baía do Iguape.”

As mulheres marisqueiras da BTS, em especial da RESEX Marinha do

Iguape, com fonte produtora de alimento, capital e cultura, merece muito

mais que estaleiros navais, que atuam como uma cunha rompendo traços de

tradição, entre as práticas conservacionistas tradicionais voltadas para o

ambiente.

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Para avaliar a condição de trabalhadoras da pesca, por solicitação da

Comissão Pastoral dos Pescadores, a Universidade Federal da Bahia,

desenvolveu um trabalho avaliativo das situações laborais, que essas

mulheres executam em suas tarefas. A pesquisa não visou retirá-las do

sistema produtivo. Teve como um de seus objetivos, melhoria nas condições

ergométricas e a assistência trabalhista. A área de trabalho foi a ilha de

Maré. Mas, a prática é comum às mulheres da BTS e os resultados podem

ser expandidos para um entendimento as marisqueiras no baixo curso do rio

Paraguaçu.

O RELATÓRIO DE PESQUISA SOBRE CONDIÇÕES DA PESCA

ARTESANAL DE MARISCOS, RISCOS OCUPACIONAIS E DOENÇA S

RELACIONADAS AO TRABALHO NA COMUNIDADE DE BANANEIRA S,

ILHA DE MARÉ – BA está ricamente ilustrado, e foi elaborado por diversos

pesquisadores, em 2008, das seguintes instituições: Escola de Nutrição /

Departamento de Ciências da Nutrição – UFBA, Faculdade de Medicina /

Departamento de Medicina Preventiva e Social – UFBA e do SESAO –

Serviço de Saúde Ocupacional do HUPES, e trata das mulheres

marisqueiras, com as seguintes observações:

“(...) A pesca artesanal representa uma importante modalidade de trabalho no país. Dados oficiais de 2006 indicaram existir 390.761 pescadores artesanais, excluindo todos aqueles que possuíam carteira de trabalho assinada. A maior parte dessa modalidade de pescador artesanal se concentra nos estados do Nordeste, que representa 47% do total. A

O trabalho das marisqueiras, rotina diária, envolve diversas etapas. Em todas elas, essas mulheres estão vulneráveis a doenças e riscos ocupacionais. É chega a hora do reconhecimento do seu trabalho para que o Governo possa garantir a assistência devida. As marisqueiras são produtoras e geradoras de renda doméstica.

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Bahia possui um número expressivo de 36.851 pescadores. Destes, um contingente significativo e majoritariamente feminino desenvolve atividades parciais ou exclusivamente nas atividades de pesca artesanal do marisco. (...) A população que constituiu a Ilha de Maré se originou de escravos quilombolas, e ainda hoje predomina o povoamento por habitantes afro- descendentes. Caracterizando essa condição demográfica, em levantamento populacional realizado em 2001, verificou-se que mais 94% da população se categorizaram como pertencentes à raça negra. Importante ratificar que a maioria dos habitantes é de baixo poder aquisitivo e tem como principal fonte de renda a pesca e a atividade de coleta de mariscos. (...) O mundo subjetivo, de valores, crenças, tradições, conhecimentos sobre processos de trabalho e processos de adoecimento possuem significados que precisam ser conhecidos pelos profissionais da saúde, na perspectiva de, não apenas proporcionar medidas preventivas para as doenças em questão, mas, sobretudo, humanizar o atendimento dos pescadores tradicionais, das marisqueiras. O desconhecimento e o preconceito não podem continuar a ocorrer, como em situações como as relatados por marisqueiras quando procuram pelos direitos na Previdência Social e os funcionários e médicos desconfiam delas, quer seja por desinformação da existência de relações entre trabalho e doenças nas atividades de mariscagem, quer seja por simples preconceito, ao afirmarem: “como pode ser marisqueira se você não está suja de lama?” O grifo é nosso.

A primeira parte do trabalho, descreve o ambiente de trabalho das

marisqueira, seus saberes e fazeres, bem como o preconceito como o

governo percebe a sua função, não tendo reconhecimento como

trabalhadoras que necessitam de amparo do Estado. Mais uma questão

central. De alguma forma essa postura oficial, fragiliza o coletivo de

marisqueiras, tornando-as vulneráveis a discursos onde apontam para

extinção das pescarias e que as suas práticas são predatórias.

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Para concluir, os técnicos apontam soluções para melhorar a qualidade

de vida das mulheres marisqueiras e comentam:

“ (...) O pescador artesanal geralmente não tem condições de compreender o modelo técnico proposto e muito menos recursos econômicos para viabilizá-los. Essencialmente, conjuntamente com a busca da melhoria da saúde, é necessário assegurar o fortalecimento de modelos sustentáveis de desenvolvimento que garantam a sobrevivência dos pescadores e de suas famílias sob condições técnicas, econômicas, sociais, culturais e ambientais que evitem o surgimento de modelos anti-sociais de desenvolvimento, a exemplo da emergência de “latifúndios” marítimos que agravam os conflitos sociais e ambientais. O grifo é nosso.

O presente relatório teceu reflexões sobre estratégias de desenvolvimento de ações de Vigilância em Saúde do Trabalhador – VISAT, considerando aspectos sociais, culturais e de saúde de uma população caracterizada como profissão artesanal. Trata-se apenas de uma aproximação inicial, fundada em experiência de aproximadamente quatro anos de trabalho de campo e abordagem metodológica que considerou a participação do sujeito artesão no processo. A expectativa é dar visibilidade sócio-sanitária sobre esta problemática para que seja objeto das ações de VISAT. Em particular, marisqueiras e pescadores são cidadãos que trabalham dignamente e sobrevivem com métodos e técnicas arcaicas, como se fazia há incontáveis gerações, mas estão ainda desprovidos do Direito à Saúde do Trabalhador.”

É lógico que devemos entender o termo arcaico , citado no texto acima,

com sinônimo de antigo.

O que queremos é a implantação de outro modelo, diferente daqueles

referidos pelos professores da UFBA: “exemplo da emergência de

“latifúndios” marítimos que agravam os conflitos sociais e ambientais.” – O

Pólo Naval.

126

Amplamente citado nesse parecer, o Prof. Dr. Antônio Carlos Diegues,

é professor do PROCAM: Programa de Pós Graduação em Ciência

Ambiental da USP. Atualmente exerce a função de Diretor Científico do

NUPAUB - NÚCLEO DE APOIO À PESQUISA DE POPULAÇÕES

HUMANAS E ÁREAS ÚMIDAS BRASILEIRAS da Universidade de São

Paulo. Nada mais justo, do que ser consultor do Governo do Estado da

Bahia, realizando diversas palestras a convite do Instituto de Meio Ambiente

– IMA, com objetivo de orientar trabalhos no campo da etnobiologia da pesca

no estado da Bahia. O prof. Diegues é conhecido pela sua vasta obra nesse

campo, com diversas publicações. Veremos algumas citações do

pesquisador, demonstrando que não se justifica essa nova proposta de

governo – Pólo Naval, pelas suas consequências sobre a cultura da região,

principalmente, relativa as pescarias.

No livro: COMUNIDADES TRADICIONAIS E MANEJO DOS

RECURSOS NATURAIS DA MATA ATLÂNTICA, livro organizado pelo Prof.

Diegues e publicado em 2004, nós encontramos os seguintes ensinamentos,

amplamente relacionados ao tema em debate, que envolve conceitos de

territorialidade e ancestralidade:

(...) Para as comunidades serem consideradas remanescentes de quilombos, não é preciso que tenham sido constituídas por escravos fugidos (...) A noção de território é peculiar para os quilombos, que se constituíram conforme situações diferenciadas: fugas, doações, heranças e até compra de terras (...) O território é caracterizado conforme as significações que lhe são atribuídas, passando a ter um valor simbólico (...) É preciso reconhecer que os quilombolas dependem dos recursos naturais para sobreviver e se reproduzir econômica e socialmente.”

Busca-se amparo nesses documentos, pois os (as) trabalhadores (as)

da pesca na RESEX do Iguape querem a ampliação dos limites da unidade

de conservação de uso sustentável, pois as matas fornecem, na maioria das

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vezes, produtos para confecção de seus petrechos de pesca e outras

utilidades nas pescarias, moradias, portos e alimentos.

Continuando na mesma publicação e, buscando-se relacionar as

questões que envolvem o Pólo Naval e as populações dos (as) trabalhadores

(as) da pesca da RESEX do Iguape, propala-se a título de geração de

emprego e renda, a criação de um Pólo para desenvolvimento da aqüicultura

local. É sabido com diversas experiências em outros estados que esse tipo

de sistema não sobrevive em áreas onde existe uma forte participação de

comunidade tradicionais nos sistema de pesca, como é o caso em foco.

Vejamos o que diz Viviane Capezzuto F. da Silva, no trabalho: Pesca e uso

comunitário do espaço costeiro na ilha do Cardoso – Litoral sul de São Paulo

– Brasil:

(...) a divisão da costa é, na verdade, a divisão dos homens, mesmo porque pertencem a famílias e grupos diferentes e muitas vezes rivais. Ela garante a distribuição de espaços e recursos naturais escassos, abrandando conflitos e contribuindo para manutenção das diferenças.”

Ora, queremos chegar ao ponto onde o Pólo Naval, se associado a

uma proposta de “ordenar” as pescarias, impondo projetos de cultivo, como

Linha de fundo. Ao fundo o desmatamento da mata. As canoas são importantes e ideais para a navegação nas águas calmas do baixo curso do rio Paraguaçu.

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está anunciado, será muito mais que um gerador de conflitos locais, será a

maior das agressões ao ambiente da BTS nas últimas décadas.

Se previsto, e implementado, chegaremos ao mesmo patamar atingido

pelas fazendas de cultivo em Santa Catarina, onde existem graves

incorreções de base conceitual e desrespeito às prerrogativas que tratam da

gestão municipal e os princípios de gestão ambiental, culminando com o

incentivo a geração de conflitos com, e entre, as populações tradicionais dos

(as) trabalhadores (as) da pesca que explotam os recursos naturais na

região.

Esse princípio é consagrado no trabalho de Luis Vinatea Arana e Paulo

F. Vieira, publicado pelo Boletim do Instituto de Pesca de São Paulo, em

2005, intitulado: MODOS DE APROPRIAÇÃO E GESTÃO PATRIMONIAL

DE RECURSOS COSTEIROS: O CASO DO CULTIVO DE MOLUSCO S NA

BAÍA DE FLORIANÓPOLIS, SANTA CATARINA. O autor conclui:

“(...) Os resultados mostram que o ecossistema costeiro em pauta vem sendo apropriado de diferentes maneiras conforme a racionalidade presente em cada um dos atores envolvidos com os recursos. Foi verificado que na Baía de Florianópolis convivem, simultaneamente, formas de apropriação estatal, privada, multiatores e, ainda, o livre aceso, como é o caso dos recursos pesqueiros. Esta variedade de racionalidades e de formas de apropriação tem provocado a instauração de uma ampla gama de conflitos”. Grifo nosso.

Não é papel dos Poderes Públicos, diante dessas experiências,

incentivá-las, ou mesmo, potencializá-las. Em contrário, deve-se mitigá-las e

buscar caminhos para soluções que mantenham o equilíbrio sócio-

ambiental, em cada área onde os interesses sejam conflitantes.

129

O Pólo Naval constitui, nesse formato, e na região proposta, um conjunto de

interesses conflitantes. As decisões são políticas, em diversos níveis de

articulação e pressão. Exógenas e endógenas ao governo.

Quando trata do Saco do Mamanguá, Parati – RJ, onde predomina as

águas estuarinas, o Prof. Diegues, na publicação: O NOSSO LUGAR

VIROU PARQUE, descreve uma população tradicional muito parecida com

aquelas que vivem ao longo do curso do baixo rio Paraguaçu: “a população

combina atividades de pequenas agriculturas de subsistência, extrativismo

vegetal, pesca, caça, coleta e artesanato.” Até as espécies citadas e que

são capturadas, pertencem ao mesmo grupo aqui listado, coincidindo

alguns nomes vulgares: robalo, corvina, siris, caranguejos, sororoca,

vermelho, tainha, etc. Reconhece o autor que:

“(...) o relativo grau de conservação de muitos recursos naturais verificados em Mamanguá é fruto de práticas culturais embebidas de longo e profundo conhecimento dos processos ecológicos, através da ciência do concreto , ou do saber tradicional. É importante se acentuar, no entanto, que essa região sofre, desde muito tempo, um amplo e profundo processo de mudança e sobretudo de vinculação à economia capitalista de mercado e que essa articulação passa a demandar determinados recursos naturais (e não outros) numa intensidade nunca antes vista no lugar”.

O Pólo Naval atrairá para região, como já está previsto, um sem

número de empregos, aumentando-se consideravelmente as populações de

algumas localidades do entorno, incluindo-se: Saubara, Itaparica, Salinas de

Margarida, Cairu, São Roque do Paraguaçu, Bom Jesus dos Pobres,

Saubara, Cabuçu, Conceição de Salinas, Barra do Paraguaçu, etc. Talvez,

seja por isso que associado ao Pólo Naval, o Governo esteja propondo, sem

um estudo apropriado, um Plano Local de Desenvolvimento da Maricultura,

prevendo, possivelmente, a depleção dos estoques pesqueiros naturais.

130

A título de curiosidade, sabe-se que as práticas de maricultura

contribuem para o enriquecimento das águas com nutrientes oriundos do

excesso de ração, fezes e a urinas dos animais mantidos em cativeiro.

Continuando a explorar os ensinamentos do Prof. Antonio Carlos

Diegues, consultor do Instituto do Meio Ambiente – IMA, governo da Bahia,

para formulações de políticas públicas, encontramos alguns pontos

sugestivos no livro: ECOLOGIA HUMANA E PLANEJAMENTO COSTEIRO,

publicado em 2001. Em destaque o capítulo: Planejamento e gerenciamento

costeiro: alguns aspectos metodológicos. O autor trata dos conflitos entre

comunidades costeiras e grandes empreendimentos industriais, incluindo

portos. Vejamos:

“(...) As regiões litorâneas e costeiras do Brasil apresentam uma multiplicidade de ecossistemas extremamente produtivos sob o ponto de vista de recursos naturais renováveis. Entre eles se destacam os ecossistemas estuarinos, de manguezais, recifes de corais, planícies inundáveis, etc. (...) inúmeras comunidades de pequenos produtores, agricultores e pescadores vivem tradicionalmente da exploração dos recursos aí existentes. Algumas populações vivem quase que exclusivamente de recursos renováveis de áreas de mangue, como os caranguejos e outros moluscos e crustáceos. (...) os pólos químicos, centro industriais, corredores e porto de exportação cresceram em número e intensidade sem avaliação prévia dos impactos ambientais deles decorrentes, tanto sobre os processos naturais quanto sobre a qualidade de vida das populações que aí vivem. (...) As tendências de ocupação do litoral brasileiro e seus recursos mostram a extrema gravidade, pois a longo termo levarão os ecossistemas aí existentes a exercerem uma única função: a de transporte de dejetos urbano-industriais. (...) Com o este espaço costeiro está em processo rápido de ocupação por grandes interesses econômicos, é evidente que o processo de planejamento e gerenciamento costeiro se reveste de um caráter eminentemente político. È fundamental que o Estado

131

tenha um projeto de regulamentar o uso desses espaços levando em conta as vocações naturais desses ecossistemas tendo em vista a produção de alimento.” Grifo nosso.

Nas décadas de 80 e 90, século XX, e no início do século XXI, as

populações e os governos: municipal, estadual e federal deram as suas

contribuições criando diversas unidades de conservação, em diversas

categorias, no entorno e na área em debate. A partir de processos

participativos na base e de forma coletiva. Foram tombadas como unidades

de conservação da BTS: A ilha dos Frades, a ilha de Maré, a ilha do Medo,

os manguezais do Iguape e baixo curso do rio Paraguaçu e parte da ilha de

Itaparica. Aliás, a ilha de Itaparica, juntando-se os dois municípios – Vera

Cruz e Itaparica, a área da BTS com maior número de UC’s, demonstrando

uma responsabilidade de seu povo e governantes à época. Criou-se a

Reserva Florestal da ilha de Itaparica, o Parque Ecológico do Baiacu, a APA

recife das Pinaúnas e a Estação Ecológica da ilha do Medo. Protegeu-se a

mata Atlântica Insular, as restingas, os manguezais e os ambientes recifais.

A realidade é que, agora, esse novo Governo, que veio travestido de

mudanças, tenta destruir todas as ações realizadas, dando a sua

contribuição, não às medidas que visem diminuir os efeitos do aquecimento

global, mas para potencializá-las, promovendo desmatamentos em larga

escala.

Uma incongruência.

É preciso dizer que uma RESEX, e outros ambientes costeiros não

tombados, funcionam como uma unidade produtiva, capaz de gerar renda.

Não necessariamente emprego. Esse entendimento está colocado no livro:

PESCADORES, CAMPONENSES E TRABALHADORES DO MAR,

publicado em 1983, pelo Prof. Diegues. O conceito é muito bem aplicado

para a RESEX Marinha do Iguape e desmonta, em nosso entendimento, a

falácia de que a instalação de um Pólo Naval na região trás consigo a

132

melhoria da qualidade de vida dos pescadores e pescadoras, reafirmando

possibilidades de geração de emprego e renda. Afirma o autor:

“(...) O espaço costeiro e/ou oceânico se configura em termos de ecossistemas, dentro dos quais se desenvolvem processos naturais de reprodução de espécies marinhas. Nesses ecossistemas os processos biológicos dão origem a uma verdadeira indústria natural e sobre eles os homens interferem desenvolvendo entre si relações de produção e forças produtivas sociais. São essas que fazem da região a realização espacial de determinados fenômenos sociais e históricos.”

Manter essa unidade produtiva, resulta de uma equação, ou sistema

de equações, que envolve o equilíbrio ambiental e o acúmulo de

conhecimentos, muitas vezes representados na figura do mestre.

Voltemos ao Dr. Antonio Carlos Diegues, desta vez em pesquisas pelo

nordeste, no estado do Rio Grande do Norte. O que aqui vai posto foi

coletado do livro: A IMAGEM DAS ÁGUAS , do ano 2000. O capítulo:

Navegando pelas montanhas: pesca de marcação e mestrança em Galinhos,

Rio Grande do Norte – Brasil. O autor trata de um sistema de localização de

pesqueiros muito utilizado na BTS, onde pontos no continente, com

princípios empíricos de trigonometria e geometria, são utilizados. Chama-se

marcação :

“(...) Apesar do mar ser um bem comum, no litoral nordeste brasileiro está cheio de marcas de posse dos pescadores que nele encontraram pedras submersa formando pesqueiros ricos em peixes e crustáceos. (...) A marcação está intimamente associada ao caminho de terra formado pelo caminho e assento: chega-se ao cabeço pelos sinais da terra, montes, serras, torres de igreja que vão subindo, descendo e andando durante a navegação para o cabeço.

Em termos locais, poderíamos substituir o termo cabeço por

pesqueiro.

133

Esse saber tradicional, admite o autor, aos poucos vai sumindo por

diversas razões: perda de visão dos velhos mestres em virtude das

condições adversas de certas condições de pescarias, o desinteresse dos

jovens e, até mesmo por processos de ocupação desordenado da costa, que

destrói as marcas e pela instalação de plataformas de petróleo.

Enganam-se aqueles que pensam que melhorar as pescaria artesanal

costeira, passa pela distribuição em massa de GPS.

A pesca artesanal sempre foi vista de forma preconceituosa no Brasil.

Vamos insistir no Dr. Diegues. Em 1995, no livro: POVOS E MARES:

LEITURAS EM SÓCIO-ANTROPOLOGIA MARÍTIMA , ele discute, e

esclarece, o que chama de equívocos e falácias sobre a pesca artesanal:

1. Os pescadores artesanais são indolentes e não tr abalham com regularidade;

2. Os pescadores artesanais são mendigos de praia e constituem um problema social a ser tratado por programas assi stenciais;

3. A pesca artesanal é um setor de transição entre a pesca de auto-subsistência e a pesca empresarial – capitalista e, portanto, tende a desaparecer;

4. A pesca artesanal é ineficiente;

5. A pesca artesanal produz somente pescado de baix a qualidade;

6. O pescador artesanal é ignorante, e resiste às m udanças tecnológicas;

7. O pescador artesanal é passivo e não sabe defend er os seus direitos;

8. Os pescadores artesanais são isolados;

9. Os pescadores artesanais são individualistas e n ão se organizam e

10. Os pescadores artesanais são predadores.

Infelizmente é esse conteúdo que recheia os discursos atuais, tentando

justificar tamanha agressão sócio ambiental, ao sistema estuarino no baixo

curso do rio Paraguaçu. Há um total desrespeito às resoluções do I

ENCONTRO NACIONAL DAS TRABALHADORAS DA PESCA E

AQUICULTURA – Rumo a superação das desigualdades so ciais,

134

realizada em Brasília no ano de 2004; a 1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE

AQUICULTURA E PESCA, Luziânia – GO, 2003 e a 2ª CONFERÊNCIA

NACIONAL DE AQUICULTURA E PESCA, 2006.

Extraímos algumas resoluções desses encontros, como forma de

ilustração e para demonstrar que não existe respeito pelo dinheiro público e

pelas decisões de coletivos. O que vale, na maioria das vezes, é a vontade

de grupos e de empreiteiras, em detrimento às comunidades de base.

Resoluções:

� (...) Medidas que estimulem a proteção dos ecossistemas, de manguezais, complexos estuarinos e áreas de cultivo, estabelecendo uma legislação que assegure o bom uso dos recursos hídricos, o combate aos crimes ambientais e a despoluição das bacias hidrográficas, incentivando planos de gestão e fiscalização participativa.

� (...) Estruturar o setor pesqueiro de águas fluviais e costeiras por meio do fortalecimento de legislação que priorize os pescadores artesanais, familiares e os micros e pequenos armadores, com o objetivo de reformar a infra-estrutura de distribuição e comercialização, renovar a frota pesqueira artesanal, estimular a implantação de indústrias de beneficiamento de pescado e intensificar a proteção das áreas de repovoamento dos estoques pesqueiros, buscando alternativas econômicas para a população ribeirinha, racionalizando o uso das águas e priorizando a cessão do uso de áreas da União para as populações pesqueiras tradicionais.

Os técnicos apontam, os trabalhadores da pesca solicitam, os

ambientalistas lutam e os governos, em todos os níveis, ignoram.

Os pescadores são produtores de alimento e para tanto precisam de

um ambiente equilibrado, capaz de manter as funções biológicas dos seres

vivos em pleno equilíbrio. Tais funções são reflexos dos outros parâmetros

135

ambientais: a temperatura, os nutrientes, a circulação das águas, a

qualidade das águas, no caso de um estuário, águas doces e salgadas,

dentre outros. O Pólo Naval, em pleno funcionamento, altera todo esse

sistema e seus processos. As conseqüências? A morte do ambiente.

Quando o ambiente aquático sucumbe e com ele, sucumbe o pescado. Ao

sucumbir peixes, crustáceos e moluscos, sucumbem as pescarias. Com as

pescarias os trabalhadores da pesca: homens, mulheres e crianças.

Viva o navio! Afundem as canoas, saveiros e barcos!

6. 2 – As embarcações tradicionais

Cabe ao mestre conduzir a embarcação com segurança, garantindo o

retorno de todos aos portos de origem, para suas caminhas perfumadas de

alecrim.

É a tradição.

Dos primeiros troncos, possivelmente, a primeira forma de navegação

utilizada pelo homem, as jangadas, canoas e os atuais veleiros / catamarãs,

a construção naval é um capítulo que sempre atraiu a curiosidade de todos.

Um dos mais notáveis estudiosos das embarcações baianas Theodor

Selling Junior, soteropolitano, nascido em 1900. Como legado nos deixou o

livro: A BAHIA E SEUS VELEIROS - Uma tradição que desapareceu,

publicado pelo Serviço de Documentação Geral da Marinha, em 1976.

Um dos belos trechos do livro refere-se aos mestres saveiristas e

canoeiros:

“(...) Os saveiristas e canoeiros são marinheiros natos, vivendo no mar desde crianças, profissão a que deram o esforço de todas as suas vidas simples e honradas, numa tradição passada de pais para filho; todavia, devemos assinalar, não há regra sem exceção. Conhecem todos os ventos, segredos e recantos da baía. São conservadores e ciosos de sua tradição até nas pinturas de seus barcos; nada mudou até hoje: seus chapéus de palha de aba larga, suas

136

calças e camisas de algodão e seus tamancos, quando andam em terra, velho costume herdado dos portugueses.”

Pelo menos, podemos definir essa descrição no conteúdo de

valorização da cultura imaterial. Os seus conhecimentos na secção da

tradição indocumentada.

Além dos barcos, as canoas e saveiros são as principais embarcações

de transporte e pesca na BTS.

As canoas podem ser classificadas em: canoa de passageiros,

canoa de corrida e a canoa de pesca do recôncavo. Existiam as canoas

pequenas, também denominadas de batelões.

De todas as embarcações mais típicas da BTS, sem dúvida, estão os

barcos, um termo empregado por leigo de forma genérica. Para os

trabalhadores da pesca e para o home do recôncavo, não. Barco é uma

embarcação tradicional, que eram também chamados de lanchas do

recôncavo . Outros denominados de barco de barra-fora. Cada um com

sua função, características e adaptados ao mar destinado a sua navegação.

Canoas com dois traquetes. O seu combustível é o vento.

137

A vela é do tipo traquete . Vela de içar.

Depois deles os saveiros. Mudam as velas, o corte é semelhante e as

funções diferenciadas. Tem menor porte.

As velas são o principal diferencial. Usam do tipo latina ou vela de

pena. São classificados em vários tipos: Saveiro de vela de içar Diferente

dos barcos), saveiro de vela de pena, saveiro do morro de São Pa ulo,

saveiro de tráfego, saveiro de passagem para Mar Gr ande e, no dique

do Tororó, o último tipo encontrado, o saveiro do dique.

Navegar pelo baixo curso do rio Paraguaçu é uma ótima oportunidade

para um encontro com essas embarcações. Elas ainda seguem vivas com

suas funções.

É a nossa cultural material. Tão rica que alguns empresários baianos,

a partir do projeto do Grupo Ecológico GERMEN, nos anos noventa, século

XX - SALVE O SAVEIRO, retomaram a proposta e, nesse século, com

mais recursos, criaram uma ONG e um projeto como o nome de: VIVA O

SAVEIRO.

Bela tradição. Belas embarcações. Uma pena que no futuro que quiser

conhecê-las terão de visitar o Museu do Mar, em São Francisco do Sul, onde

estão expostas todas as embarcações tradicionais de BTS.

Barca e a lancha do recôncavo. Regata do projeto: VIVA O SAVEIRO. Ao fundo a ilha do Medo.

138

Carpinteiro e calafate. Mestres e saberes em extinção na BTS.

São os outros saberes. Os saberes dos estaleiros navais, que vão

seguindo a rota da extinção, com os ventos soprados pela insensatez.

A extinção das embarcações

nordestinas foi tratada pelo Dr. Pedro

Agostinho, antropólogo, da UFBA, em

1981, Revista Antropologia, da

Universidade de São Paulo,

Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas, Departamento de

Ciências Sociais. Preocupado com a

velocidade que as embarcações

tradicionais sucumbiam, ante o “progresso” , propôs a a criação de um

museu: Sobre a urgência de um Museu Naval no nordeste.

Nada mais atual. As pressões, agora sobre o acervo cultural, segue de

vento em popa.

No trabalho, o destacado antropólogo, realizou um estudo tipológico

das embarcações nordestinas. Dividiu a região denominada área cultural

navais da região nordeste : 1) Área do nordeste, foram identificadas 10

tipos de embarcações. 2) a área do rio São Francisco, cerca de 7 tipos no

total e 3) a área da costa ocidental, considerada a mais complexa em

variedades de tipos de embarcações, onde está situada a sub-área do

Recôncavo, foram identificados 29 tipos.

Sobre a extinção das embarcações, vejamos o que diz o autor:

“(...) Retomando o problema em 1973, verificamos que as previsões de extinção haviam sido corretas, que as lanchas e barcos haviam praticamente desaparecido, e que o mesmo caminho seguiam as outras embarcações cargueiras. Ficam hoje a apodrecer por mangue e praias, enquanto umas vão sendo compradas e remodeladas para recreio. A mesma sorte tocou às barcaças da Bahia, que na

139

Mestrança. O mestre é uma figura de respeito e confiança da tripulação de um saveiro ou de uma lancha. Saber o vento, saber a maré, saber o tempo, saber o tempero da comida, saber pescar e saber negociar. Saberes em extinção, sobreviverá nas músicas de Caymi e nos museus.

verdade eram iates e agora duvidosamente se chamam ‘escunas’: das que ainda havia em 1960, nenhuma navega mais com fins econômicos”. (...) Assim, num processo de mudanças cultural a nível tecnológico, que se desenrola em ritmo crescente, os meios de navegar tradicionais estão fadados a perder importância e a sumir do Nordeste, ou a passar por modificações que os tornem reconhecíveis. Não valerá qualquer esforço de artificiosa criação de novas funções como por exemplo a exploração do pitoresco turístico ou do lazer das classes altas – como já provou a experiência, ao varrer da baía de Todos os Santos a maioria de seus veleiros. O que deles poderá salvar será o que se documentar e recolher, como esforço de emergência, a um Museu Naval do Nordeste, antes que seja tarde e nada mais haja a fazer.”

Mais um SABER acadêmico que o PODER não ouviu.

6.3 – A ciência que vem da lama

“ A CIÊNCIA QUE VEIO DA

LAMA: UMA ABORDAGEM

TNOECOLÓGICA

ABRANGENTE DAS RELAÇÕES

SER HUMANO / MANGUEZAL

NA COMUNIDADE PESQUEIRA

DE ACUPE, SANTO AMARO-

BA”, é o título Tese apresentada

ao Programa de .Pós-Graduação

em Ecologia e Recursos Naturais,

do Centro de Ciências Biológicas

e da Saúde da Universidade

Federal de São Carlos, como

parte dos requisitos para a

obtenção do título de Doutor em

Ciências (Ciências Biológicas).

140

Área de Concentração: Ecologia e Recursos Naturais, São Carlos-SP, em

Março/2004, pelo Prof. Dr. Francisco José Bezerra Souto, orientado pelo

Prof. Dr. José Geraldo W. Marques, ambos da Universidade Estadual de

Feira de Santana

Um extenso é significativa pesquisa realizada na localidade de Acupe,

município de Santo Amaro, área de influência do Pólo Naval. São

observações importantes, ricamente ilustradas, e que descreve a maneira

como as populações tradicionais atuam de forma equilibrada com o ambiente

local. Aponta diversas práticas identificadas como técnicas de

etnoconservação, conforme citadas pelo Prof. Dr. Antonio Carlos Diegues.

Por se tratar de um trabalho acadêmico, os textos selecionados para

ilustrar esse parecer, contém, diversas citações de outras fontes

bibliográficas, as quais não tivemos acesso.

É muito importante salientar como aquelas populações, que possui as

mesmas raízes históricas de ocupação, assim como os povos indígenas que

habitavam a área, percebem as questões ambientais e entendem que a

biodiversidade pode ser afetada por mecanismos de sobreexplotação, ou

mesmo, por contaminação química:

“(...) Segundo OTT (op.cit.), a mescla de raças e de culturas diferentes que ocorre na Bahia apresenta um vasto campo de estudo ao sociólogo e ao etnólogo. A região do Recôncavo Baiano, que corresponde às terras em volta da BTS, pode ser considerada o berço da cultura baiana, pois foi nela que se estruturou primeiramente a amalgamação das culturas indígena, negra e européia. Ainda que o autor tenha afirmado que na formação da linguagem e dos costumes dos pescadores baianos residentes no Recôncavo, a influência do continente africano seja bem limitada, a mão-de-obra da atividade durante e após o período colonial foi em boa parte constituída por afrodescendentes (SILVA, 1988). O “conhecimento refinado” gerado na pesca baiana, portanto, foi forjada ao longo do tempo pela junção de costumes das três culturas (TAVARES, 1981).

141

Tendo em vista a escassez de trabalhos etnoecológicos sobre comunidades pesqueiras na Bahia, a alta biodiversidade dos manguezais da BTS e a riqueza da cultura da região do Recôncavo Baiano, propõe-se com o presente trabalho abordar o manguezal, os pescadores e marisqueiras de Acupe e sua cultura de uma forma integrada, à luz da etnoecologia abrangente de MARQUES (1995). Assim, procurar-se-á ilustrar e descrever as conexões básicas que a comunidade pesqueira mantém com o ecossistema manguezal, bem como conhecer os diversos aspectos cognitivos e comportamentais envolvidos nas práticas locais de utilização do manguezal. (...) Muito provavelmente, a mariscagem de bivalves seja a atividade extrativista mais disseminada e, portanto, de maior importância social em Acupe. Desenvolvida principalmente por mulheres, a atividade é também norteada pelos conhecimentos das marisqueiras sobre o ambiente e sobre mariscos. O caráter generalista de boa parte da predação local, associado a uma mencionada seletividade por mariscos de maior tamanho e por sítios de pesca menos visitados podem ter conseqüências sobre a conservação dos estoques. A opinião unânime sobre a diminuição na quantidade de mariscos foi explicada, não apenas pelo aumento no esforço de captura, mas também pela ação de agentes externos (poluição química). (...) O enquadramento da quase totalidade (98,2%) dos espécimes medidos nas normas determinadas pelo IBAMA, indica um manejo local ecologicamente adequado em se tratando do critério de tamanho. Existe uma percepção unânime do decréscimo dos estoques, explicada pelos pescadores como conseqüência do aumento no esforço de pesca ao longo dos anos. Embora ocorra capturas na época da andada, observa-se um forte tabu entre os pescadores para não se capturar fêmeas ovadas, o que demonstra uma preocupação com os estoques futuros. A geração de renda é a principal razão da pesca dos caranguejos em Acupe, mas o consumo destes crustáceos é comum e passível de ser regido também por regras culturais (tabus alimentares).

142

São práticas de capturas que envolvem crustáceos, moluscos e peixes.

Como pano de fundo o ambiente de manguezal.

Foi, exatamente, por esses etnosaberes, que foi criada a RESEX’s

Marinha do Iguape, assim descrita, em relação aos pescados capturados,

pela Prof. Virgínia Guimarães Almeida, aposentada da UFBA e Diretora da

FTC, em relatório encaminhado para o grupo Votarantim:

“(...) Segundo o Art. 14 do Projeto de Lei nº 2.892 as Reservas Extrativistas pertencem ao Grupo das Unidades de Uso Sustentável. O Art. 18 define o seguinte:

Art. 18. A Reserva Extrativista é uma área utilizad a por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade.

§ 1º A Reserva Extrativista é de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais conforme o disposto no art. 23 desta Lei e em regulamentação específica, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas, de acordo com o que dispõe a Lei.

§ 2º A Reserva Extrativista será gerida por um Conselho Deliberativo, presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das populações tradicionais residentes na área, conforme se dispuser em regulamento e no ato de criação da unidade.

§ 3º A visitação pública é permitida, desde que compatível com os interesses locais e de acordo com o disposto no Plano de Manejo da área.

143

§ 4º A pesquisa científica é permitida e incentivada, sujeitando-se à prévia autorização do órgão responsável pela administração da unidade, às condições e restrições por este estabelecidas e às normas previstas em regulamento.

§ 5º O Plano de Manejo da Unidade será aprovado pelo seu Conselho Deliberativo.

§ 6º São proibidas a exploração de recursos minerais e a caça amadorística ou profissional.

§ 7º A exploração comercial de recursos madeireiros só será admitida em bases sustentáveis e em situações especiais e complementares às demais atividades desenvolvidas na Reserva Extrativista, conforme o disposto em regulamento e no Plano de Manejo da unidade.

O Art. 2º do Decreto de 11/08/2000 que cria a Reserva Extrativista Marinha da Baía do Iguape diz: “A Reserva Extrativista Marinha do Iguape em por objetivo garantir a exploração auto-sustentável e a conservação dos recursos naturais renováveis tradicionalmente utilizados pela população extrativista da área”.

Embora exista o Decreto de criação da Reserva Extrativista ainda não foram efetivamente implementadas as ações nesta RESEX., ainda que inúmeras reuniões tenham sido realizadas. Há uma expectativa muito grande da população de Maragogipe e localidades circunvizinhas em torno da RESEX; é necessário que se faça um estudo mais aprofundado e continuado sobre as potencialidades da área; a pesca e a piscicultura, sem dúvida, poderão efetivamente, contribuir para o desenvolvimento das comunidades ribeirinhas. Três das estações de amostragens do monitoramento da ictiofauna estavam localizadas na área da RESEX; os resultados foram dos mais satisfatórios com relação à diversidade de peixes, bem como ao potencial pesqueiro.”

144

A equipe coordenada pela ictióloga, identificou mais de 30 espécies de

peixes, na área do município de Maragojipe, considerado como mais

importante pólo de pesca e escoamento da produção.

O que está escrito em relatório, que foi elaborado antes da pesquisa

que aqui está citada:

“(...) Foram coletadas 33 amostras de peixes, de 32 espécies diferentes, distribuídas em 21 famílias. Todas essas amostras foram provenientes do mercado de peixes da cidade de Maragogipe, constatado como o mais importante pólo de pesca e escoamento da produção e responsável por quase a totalidade do pescado comercializado nas outras feiras populares vizinhas”.

Novos números foram encontrados, mais recentemente, exibidos no

quadro retirado do relatório à Votarantim e que garante uma ictiodiversidade

significativa para área, porém como número aquém daquele coletado pelo

gestor da UC, Carlos Antônio de Oliveira:

ORDENS FAMÍLIAS (nº) ESPÉCIES (nº)

Rajiformes 2 3

Anguilliformes 2 2

Clupeiformes 2 6

Atheriniformes 1 1

Characiformes 1 1

Siluriformes 1 4

Batrachoidiformes 1 1

Lophiiformes 1 1

Mugiliformes 1 3

Beloniformes 2 2

Scorpaeniformes 1 1

Perciformes 15 38

145

Gasterosteiformes 1 1

Pleuronectiformes 3 10

Tetraodontiformes 3 6

“ (...) Em todas as 15 famílias da ordem Perciformes representadas na área estão vários peixes de importância econômica; dentre eles destacamos os robalos (Centropomidae), xaréus, cabeçudos, solteiras, peixe-galo (Carangidae), vermelhos (Lutjanidae), carapebas, carapicus (Gerreidae), caranhas (Haemulidae), sete buchos (Sparidae), papa-terras, corvinas, pescadinhas, pescadas branca, roncadores (Sciaenidae), cavalas (Scombridae) e tilápias (Cichlidae).

Também de grande importância econômica para a região são os peixes da Ordem Clupeiformes (famílias Clupeidae e Engraulidae) representados pelas pititingas, os sapocões e as manjubas.A maior parte das espécies coletadas enquadram-se nas categorias de “pequeno” ou “médio” porte, que demonstra ser a região local de reprodução e crescimento. Espécies de grande porte (i.e., com tamanho médico acima de 60 cm) encontraram-se representadas por um robalo (Centropomus parallelus) e uma tainha (Mugil curema).

Esses valores confirmam os padrões e necessidades exibidas no

documento: “As áreas prioritárias para a conservação das zonas

costeiras e marinhas”.

Vale a pena salientar que o Governo do Estado da Bahia, tem alertado

para destruição das matas e áreas de manguezal, ações cujos reflexos vão

atingir, diretamente, as pescarias, trabalhadores da pesca e produção

pesqueira. Isso está no Plano Diretor da Bacia do rio Paraguaçu, de onde

tiramos o texto abaixo:

“(...) a cobertura vegetal, tão importante a preservação

do meio ambiente, está seriamente ameaçada na

região pelo desmatamento e pelas queimadas. Nas

146

regiões de manguezais, a ameaça se traduz em

ocupação indevida pelos moradores que constroem as

suas casas e utilizam o manguezal como depósito de

lixo e esgotos, além de também utilizarem também a

madeira da vegetação do mangue para construção.”

Com relação à fauna, o Plano Diretor diz: que: “ (...) as populações animais existentes na região do médio e baixo Paraguaçu vem sendo submetidas, ao longo dos anos, a um permanente processo de agressão por parte das populações locais, cujos principais impactos são :

- caça e apanha - desmatamento - pesca predatória - extração de mariscos”

De alguma forma, pode-se enxergar certo racismo ambiental, quando

o Plano Diretor trata da questão da explotação dos recursos naturais.

Quando aborda o desmatamento na região, pelas populações locais,

esquece de dizer que as terras do baixo curso do rio Paraguaçu, desde o

lagamar do Iguape até o distrito de Barra do Paraguaçu, estão em mãos de

políticos, ex-políticos, poderosos empresários, que disputam a posse da terra

com os quilombolas, gerando conflitos de difícil mediação.

O Boletim Estatístico da Pesca Marítima e Estuarina – ano 2002, do

Estado da Bahia – BAHIAPESCA sobre o setor pesqueiro, dedica-se a

avaliar o sistema de pesca local, inclusive propondo definições, apontando a

importância da mariscagem para geração de renda:

“Esse setor pesqueiro é traduzido em duas atividades,

a pesca e a mariscagem. A distinção entre elas se dá

em função do produto capturado e do sexo do

indivíduo que exerce a atividade. Enquanto a pesca é

exercida basicamente pelos homens que utilizam

embarcações e apetrechos de pesca para captura de

147

peixes e crustáceos, a mariscagem é uma atividade

considerada feminina, embora alguns homens a

exerçam, resultando na captura manual de moluscos

e crustáceos ou utilizando armadilhas. Nas regiões

estuarinas, que representam grande parte do litoral

baiano, a mariscagem reveste-se de grande

importância sócio-econômica, absorvendo

considerável mão-de-obra feminina, envolvendo,

porém, na maioria das vezes, quase todos os

membros da família no beneficiamento do produto.

Segundo o Perfil do Setor Pesqueiro (BAHIA PESCA,

1994), esta categoria congregava 10.819

profissionais, que contribuem de forma decisiva na

renda familiar, necessitando de especial atenção, haja

vista a peculiaridade da atividade.”

Ou seja, juntando-se, sinergeticamente, tudo que o Governo propõe,

eliminando as incoerências, veremos que podemos construir um novo olhar

sobre a região do baixo curso do rio Paraguaçu, mantendo elevada produção

pesqueira, sem destruir os saberes e fazeres das populações tradicionais

que necessitam da área para sua sobrevivência.

Definitivamente, as práticas etnoconservacionistas, contribuem para

manutenção da biodiversidade do rio Paraguaçu.

6.4 – A questão racial e o mercado de trabalho

A questão racial passa, obrigatoriamente, por uma discussão que

envolve a relação do negro com o mercado de trabalho. Em casos

específicos de implantação de grandes pólos industriais, e a Bahia, nos

últimos 60 anos, tem sido um estado onde aconteceram investimentos nessa

área: a Refinaria Landulfo Alves, CIA, o SUBAÉ, o Pólo Petroquímico de

Camaçari e, por último, o Complexo da FORD.

148

A tentativa de implantação de um Pólo Naval em uma área tão

especial, onde a maioria da população é afro-descendente, não foge desse

debate.

O CEI – Centro de Estatística e Informação, em 1994, traz como tema

de sua Revista Bahia Análise & dados: O NEGRO. Os trabalhos

publicados discutem três aspectos importantes na inserção dos negros na

sociedade: inclusão no mercado de trabalho, o processo de dupla exclusão

dos trabalhadores afro-brasileiros a partir do uso de novas tecnologias nas

atividades industriais e as desigualdades raciais. A grande parte dos

trabalhos foram desenvolvidos por técnicos de UFBA, vinculados ao

Programa Cor da Bahia.

Um deles é de autoria de Paula Cristina da Silva, na época MsC em

Sociologia e Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana. Sua

pesquisa, relativa a mercado de trabalho do negro, tem o título: Trabalho e

cor entre metalúrgicos baianos: um estudo de caso. Ela não declara a

empresa onde faz a sua coleta de dados. Os trabalhadores, a partir de fichas

cadastrais foram classificados em: pretos, mestiços e brancos. O conjunto de

pretos e mestiços atingiu o patamar de 80%. Seus comentários são

significativos, para o entendimento da implantação de um pólo industrial

onde a lógica é a retirada de uma população tradicional, engajada na pesca,

a título de melhoria da qualidade de suas vidas e geração de empregos. São

todos negros ou quase negros. Comenta a pesquisadora :

“(...) Há uma forte concentração de pretos e mestiços nas ocupações manuais, realizadas nos espaços mais insalubres e periculosos, e nas ocupações técnicas de nível médio; por outro lado, eles estão ausentes, ou sub-representados, nas ocupações administrativas e técnicas de nível superior, que são realizadas em escritórios.”

149

Interessante são os resultados obtidos, em relação a presença da

mulher negra, onde, apenas, pasmem, 2% eram mulheres:

“(...) Esse fato pode ser melhor entendido se lembrarmos que o trabalho feminino na Empresa está concentrado nas ocupações de cunho administrativo, de escritório e que exigem a formação de nível médio ou superior. São ocupações realizadas por pessoas responsáveis de alguma maneira por criar a imagem da Empresa, envolvendo contato com o público, tais como as secretárias, gerentes, assistentes sociais, etc. Esses postos de trabalho, onde geralmente encontram-se mulheres, têm informalmente sido fechado para as mulheres afro-brasileiras, preteridas por não possuírem a ‘boa aparência” tida como fundamental.” (O grifo é nosso).

Conclui a pesquisadora:

“(...) É importante destacar que, no contexto das transformações organizacionais e tecnológicas por que passa a Empresa em estudo, os trabalhadores afro-brasileiros assistiram à ocupação dos postos de comendo de uma dos espaços de trabalho mais valorizados por trabalhadores brancos, o que favoreceu a percepção de um nexo entre posição hierárquica e cor. Na disputa pelo poder dentro de tal espaço, tornou-se explícita uma relação de oposição que até então estava disfarçada, seja pela presença exclusiva de trabalhadores afro-brasileiros, seja pelo menor investimento das gerências em modernização nas relações de trabalho.”

Outro fato muito importante observado, são as ações que

determinadas Gerências adotavam para “humanizar” as relações de

trabalho e “valorizar” o trabalhador. Isso sempre ocorria de maneira seletiva:

“o que coincidia com a demissão de trabalhadores afro-brasileiros, tidos

como inadaptáveis ao novo modelo de gestão, e com a admissão de

trabalhadores brancos para novos cargos criados e para os cargos de chefia

já existentes.”

Emblemático, diríamos.

150

Vamos tomar por base, com olho em um futuro de pelo menos 10 anos,

dados do IBGE, coletados em 2007, sobre a matrícula escolar nos ensinos

fundamental e médio, em três municípios, diretamente, ligados ao Pólo Naval

e que demonstram interesse em sua consecução: Salinas de Margarida,

Saubara e Maragojipe. Quadro 1:

Município População Ens. Fundamental % Ensino médio %

Saubara 11051 2003 18 612 6

Salinas de Margarida 13090 2938 22 714 5

Maragojipe 42079 8713 21 1932 5

A título de ilustração e com base no total da população, vale a pena

refazer cálculos com dados relativos a faixas etárias, em torno de 20% da

população desses municípios está no ensino fundamental e, apenas 5%

dessa no ensino médio.

Outros valores, que devem ser avaliados, é a relação de negros em

cada etária considerada.

Será que o modelo estudado para o Pólo Petroquímico não será

reproduzido no Pólo Naval? E os negros que serão tirados da produção

pesqueira, depois, para onde irão? Qual o nível de qualificação da mão de

obra local e quanto tempo teremos para qualificá-los?

Vamos seguir em direção ao século XXI, ano de 2008, e repetir o que

diz uma marisqueira com relação a forma como é tratada pelos órgãos

oficias, quando buscam, minimamente, seus direitos:

“(...) O mundo subjetivo, de valores, crenças, tradições, conhecimentos sobre processos de trabalho e processos de adoecimento possuem significados que precisam ser conhecidos pelos profissionais da saúde, na perspectiva de, não apenas proporcionar medidas preventivas para as doenças em questão, mas, sobretudo, humanizar o atendimento dos pescadores tradicionais, das marisqueiras. O desconhecimento e o preconceito não podem continuar a ocorrer, como em situações como as relatados por marisqueiras quando

151

procuram pelos direitos na Previdência Social e os funcionários e médicos desconfiam delas, quer seja por desinformação da existência de relações entre trabalho e doenças nas atividades de mariscagem, quer seja por simples preconceito, ao afirmarem: “como pode ser marisqueira se você não está suja de lama? Enquanto elas relatam indignadas: “Doutor, nós somos gente, eu tenho o direito de me vestir e me apresentar bem... não tenho que andar suja de lama para mostrar que sou marisqueira”. Estas questões são objetos da nossa reflexão, ainda mais quando se considera a necessidade de intensificar no país o número de pesquisas de cunho qualitativo com o instrumental das ciências sociais e humanas nos estudos das relações entre saúde e trabalho (Gomez & Lacaz, 2005). (O grifo é nosso).

O texto foi retirado, in verbis, do: RELATÓRIO DE PESQUISA

SOBRE CONDIÇÕES DA PESCA ARTESANAL DE MARISCOS, RIS COS

OCUPACIONAIS E DOENÇAS RELACIONADAS AO TRABALHO NA

COMUNIDADE DE BANANEIRAS, ILHA DE MARÉ – BA, produzido por

uma equipe de técnicos, altamente qualificados, das seguintes instituições da

UFBA: Escola de Nutrição / Departamento de Ciências da Nutrição – UFBA,

Faculdade de Medicina / Departamento de Medicina Preventiva e Social –

UFBA e SESAO – Serviço de Saúde Ocupacional do HUPES, a pedido das

comunidades de mulheres marisqueiras da BTS, lideradas pela Comissão

Pastoral dos Pescadores.

Gênero e raça são temas indissociáveis, eivado em nossa cultura de

exemplos negativos.

O que nega as nossas origens.