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Sementes voadoras: em forma de disco, comum no Cerrado, e alongadas (ao lado), típicas das florestas úmidas

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Sementes voadoras: em forma de disco, comum no Cerrado, e alongadas (ao lado), típicas das florestas úmidas

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PESQUISA FAPESP 132 ■ FEVEREIRO DE 2007 ■ 55

Texturas da florestaBOTÂNICA

Lúcia Garcez Lohmann descobriu bem cedoo prazer de organizar o mundo ao seu re-dor. Aos 5 anos iniciou uma ordenada co-leção de selos de plantas e flores e, aos 16,não teve dúvida sobre qual profissão seguir:faria biologia para se tornar sistemata, es-pecialista na classificação dos seres vivos.

Começou estudando uma família de fungos mi-croscópicos que consomem escamas de peixes erépteis. Mas encantou-se mesmo foi com uma fa-mília de plantas com flores em forma de sino e umcolorido intenso que vai do vermelho-sangue aobranco-reluzente: as bignoniáceas, cerca de 850 es-pécies com variadas formas e tamanhos que se dis-tribuem pelas regiões tropicais do planeta.

Lúcia viajou o mundo estudando essa famíliade plantas à qual pertence o ipê-amarelo,árvore sím-bolo do Brasil, e agora propõe uma classificaçãomais confiável para elas. Visitou coleções nos Es-tados Unidos e na Europa e embrenhou-se pelasflorestas da América Latina para conhecer de per-to onde estão e como são as bignoniáceas. Espe-cializou-se em um grupo de quase 400 espécies des-sa família que há décadas aguçam o interesse dosbotânicos por três razões. A primeira é que essegrupo reúne a maior variedade das Américas de ci-pós ou lianas, trepadeiras de caule amadeirado quecrescem enroscadas ao tronco das árvores, espa-lham-se por suas copas em busca da luz necessáriapara sobreviverem.

O outro motivo é que várias dessas plantas, quetecem redes impenetráveis no interior das flores-tas e conectam a copa das árvores ao chão, servindode ponte para macacos e preguiças, têm potencialmedicinal.Alguns povos latino-americanos as usamcontra diarréia, malária, hepatite, leishmaniose ecâncer. Em alguns países, servem de tempero por te-rem aroma e sabor de alho ou cravo, além de seremúteis para a construção de móveis e casas. Mas Lú-

cia sentiu-se especialmente atraída por essas plan-tas porque formavam um grupo com uma intri-cada história evolutiva cujas relações de parentescodesafiam os botânicos há quase dois séculos.

Além da aparência – Melhor, desafiavam. Em umartigo publicado em 2006 no American Journal ofBotanny, Lúcia apresentou a árvore genealógicaque desvenda a história evolutiva desse grupo.Ago-ra, em um artigo de 400 páginas a ser publicadonos Annals of the Missouri Botanical Garden, elaapresenta uma nova classificação que reorganizaesse grupo das bignoniáceas com base em crité-rios que vão além da semelhança de flores e frutos,como era feito até recentemente, e promete desa-tar os nós desse cipoal. A partir da análise do ma-terial genético dessas plantas, ela redistribuiu 400espécies em 22 gêneros. O mais abrangente, Adeno-calymma, compreende 78 espécies de cipós e ar-bustos das regiões tropicais das Américas. Com anova classificação, alguns gêneros, como o Fride-ricia, passaram a abarcar um número maior de es-pécies – antes era uma, hoje são 69. Só os gênerosCallichlamys e Manaosella continuam com uma es-pécie cada um: a Callichlamys latifolia, trepadeirade flores amarelas, encontrada do Brasil ao Méxi-co; e a Manaosella cordifolia, descrita em Manaus.

É um avanço e tanto em relação à classificaçãoanterior, em que havia 47 gêneros, 30 deles com atétrês espécies. Para quem trabalha com classifica-ção, um sistema com muitos gêneros agrupandopoucas espécies é de pouca utilidade: quase nãofornece informação sobre o grau de parentesco,impedindo que se façam previsões sobre as espé-cies incluídas em cada gênero. Sem esse tipo de in-formação, pouco se descobre sobre quando e ondeessas plantas surgiram ou como e por que se tor-naram bem-sucedidas e se disseminaram por to-da a região tropical das Américas, originando es-

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Classificação genética soluciona mistério evolutivo de cipós e pode orientar a preservação de matas tropicais

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pécies tão distintas quanto a trepadeirada Caatinga Neojobertia brasiliensis,de flo-res amarelas, ou a Adenocalymma clado-trichum, cipó de caule grosso que produzum fruto em forma de vagem com meiometro de comprimento.

No artigo dos Annals of the Missou-ri Botanical Garden, 180 espécies rece-bem um novo nome porque trocaramde gênero. Há ainda uma detalhada ilus-tração de cada gênero e mapas com a dis-tribuição geográfica das 400 espécies.“Espero que não seja mais necessário re-fazer essa classificação e, a partir de ago-ra, se consiga de fato avançar na inves-tigação sobre a origem, a evolução e a di-versificação desse grupo de plantas, omais rico em variedades de cipós”, co-menta a botânica, professora da Univer-sidade de São Paulo e pesquisadora doJardim Botânico de Missouri, EstadosUnidos, onde trabalhou na coleção deoutro estudioso dessas plantas, o botâ-nico Alwyn Gentry, morto em 1993.

Desde que o botânico inglês DavidDon propôs a primeira classificação des-se grupo de bignoniáceas em 1838, fo-ram 170 anos andando em círculos.“Ca-da um que se propunha a estudá-las cria-va um novo sistema de classificação ba-seado em critérios subjetivos e não saíado lugar”, explica Lúcia, que, aos 33 anos,vem se tornando referência internacio-nal no assunto. A nova classificação pro-mete ser duradoura porque se vale deuma ferramenta mais adequada, só dis-ponível recentemente: a sistemática mo-lecular. Esse método permite organizaras plantas por grau de parentesco combase em características genéticas, e nãomais apenas pela comparação das for-mas de flores, frutos e sementes.

“Essa nova classificação permitirá,porexemplo, a busca mais bem orientada decompostos com potencial farmacológico”,afirma Lúcia. Ela avaliou a proximidadeentre as espécies do grupo comparandomutações de dois genes: o ndhF, associa-do ao armazenamento de energia solar naforma de açúcares, e o PepC, ligado à que-bra desses açúcares e à liberação de ener-gia. Esses genes desempenham um papelessencial à sobrevivência e permitem ava-liar o parentesco entre as espécies em umaescala de tempo de até milhões de anos– chegam a ser idênticos em espécies evo-lutivamente próximas e apresentam dife-renças à medida que o parentesco dimi-nui.“Esses genes se encontram em regiões

distintas do genoma e, ainda assim, con-tam uma história coincidente”, diz Lúcia.“Por isso é alta a probabilidade de que anova árvore genealógica represente de fa-to o parentesco entre essas plantas.”

Primeiras respostas – Nos 13 anos emque percorreu as matas do Brasil e de ou-tros seis países latino-americanos (Cos-ta Rica, Suriname, Guiana Francesa, Pe-ru, Bolívia e Panamá), Lúcia caminhoudurante dias, atravessou rios e, quandopreciso, escalou árvores de até 40 metrosà procura de suas lianas. Coletou amos-tras de quase mil exemplares, hoje arma-zenadas nos herbários da USP e do Insti-tuto Nacional de Pesquisas da Amazô-nia e nos jardins botânicos do Rio de Ja-neiro, de Nova York e Missouri. Em umtrabalho de formiguinha, marcou o pon-to de cada coleta com um aparelho deGPS e aos seus dados acrescentou os deoutras coleções, gerando mapas com adistribuição das espécies.Sobrepostos, es-ses mapas revelam um dado importantepara a conservação dessas plantas: nemsempre as áreas de vegetação natural quedeveriam ser preservadas por abrigaremespécies raras, de grande diversidade ge-nética ou de importância evolutiva es-tão legalmente protegidas.

Ao cruzar seus dados com os de fós-seis, Lúcia conseguiu reconstituir a his-tória evolutiva do grupo. Agora já se po-de dizer quando e onde esses cipós sur-giram: foi no Brasil, na região hoje ocu-pada pela Mata Atlântica, há 40 milhõesde anos – quando os continentes já ti-nham a forma atual e os mamíferos co-meçavam a se disseminar pela Terra. Masnão foi a única vez. Plantas com caracte-rísticas de cipós apareceram em três ou-tros momentos entre as bignoniáceas,nos Andes, na Áfria e na Ásia. Mas só ogrupo da Mata Atlântica foi tão bem-sucedido e se diversificou tanto, geran-do as 400 espécies conhecidas.

Os achados comprovaram ainda queo antigo método de classificação,baseadona cor das flores ou forma dos frutos, erade fato falho. Cipós ou arbustos com flo-res amarelas surgiram em seis momentosdiferentes nesse grupo, em gêneros não-aparentados.“Esse dado confirma que ouso exclusivo de critérios morfológicospode levar a sistemas de classificação nãoconfiáveis”,diz Lúcia.Outra dúvida que sedesfaz é a de quem surgiu primeiro: os ci-pós, hoje a forma mais abundante, ou os

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arbustos, atualmente raros? Segundo Lú-cia, as primeiras espécies desse grupo sedesenvolveram como cipós em florestasúmidas.Possivelmente, foram bem-suce-didos nesses ambientes de pouca luz porterem desenvolvido um caule com ana-tomia peculiar, mais flexível, e gavinhas,filamentos que se enroscam em outrasárvores e lhes permitem alcançar as par-tes altas da floresta. Só entre 5 milhões e10 milhões de anos depois de esses cipóstambém se espalharem por regiões de cli-ma mais seco e quente como o atual Cer-rado é que surgiram os arbustos.

Mas a anatomia do caule e as gavinhasnão explicam como essas plantas se diver-sificaram tanto e dominaram as regiõestropicais do globo. Parte da resposta podeestar ligada à forma das sementes. As es-pécies mais comuns nas florestas produ-zem sementes com uma fina membranaque se estende para lados opostos, comoasas abertas. Para Lúcia, esse formato fa-vorece a dispersão nos ambientes úmidos.Quando os frutos secam e se abrem, elascaem do alto girando como hélices de he-licóptero. Já nas savanas são mais comunsas sementes arredondadas semelhantesa discos voadores, aparentemente maisadequadas à dispersão em áreas secas.“Quando sopra o vento, essas sementesdevem voar como se fossem frisbees, osdiscos plásticos com que as pessoas brin-cam nas praias”, explica.

Como esse grupo de bignoniáceas émuito diverso e abundante nas flores-tas tropicais, acredita-se que sirva de mo-delo para entender o que pode ocorrercom as 300 mil espécies de plantas comflores (angiospermas). Reunindo infor-mações sobre a distribuição, a forma ea ecologia dessas 400 espécies aos da-dos de clima, solo e temperatura, Lúciatenta agora prever o que acontecerá coma distribuição delas caso a temperaturado planeta aumente alguns graus. Elaainda não tem a resposta, mas arrisca umpalpite: é bem provável que as florestasque hoje abrigam a maior diversidade deplantas do planeta se transformem emimensos cipoais, uma vez que essas big-noniáceas crescem mais rapidamente doque algumas árvores e são as primeiras aocupar áreas desmatadas. ■

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Em cascata:cipós buscam luz no

alto das árvores

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