5447-17340-1-pb.pdf

21
126 SOCIOLOGIAS Sociologias, Porto Alegre, ano 6, nº 11, jan/jun 2004, p. 126-146 JOSÉ LUIZ BICA DE MÉLO* Fronteiras: da linha imaginária ao campo de conflitos 1 P P P Introdução ara uma análise das fronteiras nacionais – materiais e sim- bólicas –, há necessidade de se investigar as formas como os agentes sociais que vivem em um contexto sócio-histó- rico e geográfico específico analisam o próprio contexto, bem como as relações desse contexto com o de outro Estado Nacional, como é o caso do campo fronteiriço Brasil-Uruguai. A noção de campo que constitui o horizonte deste estudo é entendi- da no plano teórico como forma de pensamento relacional e enquanto no- ção operacional, como espaço sócio-histórico de disputas por capitais mate- riais ou simbólicos no qual são definidas as posições dominantes e domina- das (Bourdieu, 1989; Bourdieu, 1996), configuradas a partir de especificidades de ordem histórica e geopolítica, geradoras de um espaço fronteiriço no qual os diversos pares de cidades estabeleceram relações familiares e co- merciais que fizeram com que a linha que separa os dois estados nacionais constituísse, no caso de Sant’Ana do Livramento e Rivera, uma fronteira seca, conformando, enquanto fronteira, apenas uma linha imaginária. Há que se considerar, no entanto, que os brasileiros e os uruguaios da fronteira, embora próximos geograficamente, encontram-se distanciados por DOSSIÊ 1 Versão modificada em novembro de 2003 do capítulo 4 "Fronteiras revisitadas" de: MÉLO, José Luiz Bica de. Fronteiras abertas: o campo do poder no espaço fronteiriço Brasil - Uruguai no contexto da globalização. 2000. 376 p. Tese (Doutorado em Sociologia). - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. * Professor do PPGCSA - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas, UNISINOS, São Leopoldo, RS. Endereço eletrônico: [email protected]

Upload: lenoxb82

Post on 15-Sep-2015

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 126 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    JOS LUIZ BICA DE MLO*

    Fronteiras: da linha imaginriaao campo de conflitos1

    PPPPP

    DOSSI

    Introduo

    ara uma anlise das fronteiras nacionais materiais e sim-blicas , h necessidade de se investigar as formas comoos agentes sociais que vivem em um contexto scio-hist-rico e geogrfico especfico analisam o prprio contexto,bem como as relaes desse contexto com o de outro

    Estado Nacional, como o caso do campo fronteirio Brasil-Uruguai.A noo de campo que constitui o horizonte deste estudo entendi-

    da no plano terico como forma de pensamento relacional e enquanto no-o operacional, como espao scio-histrico de disputas por capitais mate-riais ou simblicos no qual so definidas as posies dominantes e domina-das (Bourdieu, 1989; Bourdieu, 1996), configuradas a partir de especificidadesde ordem histrica e geopoltica, geradoras de um espao fronteirio noqual os diversos pares de cidades estabeleceram relaes familiares e co-merciais que fizeram com que a linha que separa os dois estados nacionaisconstitusse, no caso de SantAna do Livramento e Rivera, uma fronteiraseca, conformando, enquanto fronteira, apenas uma linha imaginria.

    H que se considerar, no entanto, que os brasileiros e os uruguaios dafronteira, embora prximos geograficamente, encontram-se distanciados por

    DOSSI

    1 Verso modificada em novembro de 2003 do captulo 4 "Fronteiras revisitadas" de: MLO, Jos Luiz Bica de. Fronteirasabertas: o campo do poder no espao fronteirio Brasil - Uruguai no contexto da globalizao. 2000. 376 p. Tese (Doutoradoem Sociologia). - Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

    * Professor do PPGCSA - Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais Aplicadas, UNISINOS, So Leopoldo, RS. Endereoeletrnico: [email protected]

  • 127SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    legislaes nacionais, por histrias diferenciadas e objetivos distintos, fa-zendo com que a linha imaginria a linha de fronteira adquira conforma-es objetivas, compondo-se um processo sociocultural complexo em de-corrncia do que Cardoso de Oliveira denominou de nacionalidades emconjuno.

    assim que em ambos os lados da fronteira pode-seconstatar a existncia de contingentes populacionais nonecessariamente homogneos, mas diferenciados pelapresena de indivduos ou grupos pertencentes a dife-rentes etnias, sejam elas autctones ou indgenas, se-jam provenientes de outros pases pelo processo deimigrao. Ora, isso confere populao inserida nocontexto de fronteira um grau de diversificao tnicaque, somado nacionalidade natural ou conquistadado conjunto populacional de um e de outro lado dafronteira, cria uma situao sociocultural extremamentecomplexa (OLIVEIRA, 1997, p. 14).

    Significa dizer que, diferentemente de regies distantes de reas defronteira geopoltica, nesses lugares principalmente nas cidades medi-das econmicas ou polticas implementadas afetam imediatamente, positi-va ou negativamente, a populao vizinha.

    Tendo presente esses aspectos polticos e econmicos, este estudotem por objetivo analisar os significados da fronteira Brasil-Uruguai, especi-ficamente Livramento e Rivera, mantendo um olhar sociolgico para almdessas localidades e buscando, a partir das manifestaes discursivas, com-preender os elementos de integrao ou de conflito presentes nessas mani-festaes. Procura-se pensar os possveis significados da fronteira no novomomento do capitalismo globalizado e da desejada discursivamente, masincerta integrao regional.

    Busca-se tambm a reconstruo analtica do campo do poder, de-monstrando-se a heterogeneidade das manifestaes discursivas e a distn-

  • 128 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    cia existente entre as medidas implementadas, em nvel macro, pelos acor-dos do Mercosul e o cotidiano vivido pela maioria da populao da fronteiraBrasil-Uruguai.

    O texto est divido em trs tpicos. No primeiro, so analisadas asrepresentaes sobre a fronteira, contrapondo-se os aspectos ligados integrao e ao conflito. Em segundo lugar, visto que os aspectos conflituaisso proeminentes, busca-se pontuar as representaes discursivas segundoas posies no campo do poder. Por ltimo, busca-se pensar quais as possi-bilidades de configurao de um novo campo do poder na fronteira Brasil-Uruguai, com a implementao do processo de integrao regional.

    1 A fronteira Livramento-Rivera: integrao ou conflito?

    No exame das representaes2 dos diversos agentes sociais, podemser destacados aspectos de ordem sociocultural utilizados por esses mes-mos agentes para fortalecer o argumento de que entre Livramento e Riveratem-se no uma integrao de direito mas uma integrao de fato. Nesseaspecto, os discursos dos diferentes agentes sociais, tanto na esfera domi-nante quanto na esfera dominada, no diferem substancialmente.

    Os discursos enfatizam que a existncia dos problemas sociais, entreos quais a pobreza, estariam presentes nos dois lados da fronteira, sendo odesemprego cclico da fronteira decorrncia de uma espcie de pndulo:quando questes cambiais e econmicas favorecem uma das localidades,desfavorecem a outra. Em que pese a ressalva de que a existncia da po-breza, como apontam os diferentes agentes, seria de ordem estrutural ehistrica, antecedendo a prpria formao dos dois Estados Nacionais, soenfatizados os aspectos ligados integrao. Haveria, em primeiro lugar,uma integrao cultural ligada aos fatores lingsticos, como se depreendepelo depoimento de um edil do Partido Nacional ao afirmar que

    2 Levantados mediante entrevistas gravadas com agentes sociais e polticos de Livramento e Rivera (autoridades e dirigentesde sindicatos patronais e de trabalhadores), nos anos de 1997 e 1998.

  • 129SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    H uma integrao cultural muito forte faz muitssimo tem-po, pela prpria via de relacionamento que h entre estasduas cidades que so uma s [cidade]. Famlias, educa-o, deslocamentos, rdio, msica, TV. H uma integraonesse sentido. Tambm nos estudos: ensino do portugusnas escolas de Rivera e espanhol em Livramento.

    Este mesmo ponto de vista corroborado pelo depoimento de umaautoridade de Livramento no que se refere ao ensino das lnguas espanholae portuguesa nas escolas de ambas as cidades ao afirmar que

    Na rea de educao ns fomos, mesmo antes doMercosul, ns introduzimos nos currculos escolares domunicpio, o espanhol. [...] Quando comeou a dis-cusso sobre Mercosul ns introduzimos [o espanhol]no currculo.3

    De outra parte, para enfatizar a integrao fronteiria, temos as repre-sentaes ligadas seja solidariedade, seja ndole da populao ou mes-mo baixa criminalidade ou ao tradicionalismo, tendo sido constadas afir-maes de que a fronteira mais solidria (...) e de que o pessoal aqui daCampanha de boa ndole (...).

    A essas afirmaes podem ser agregadas, ainda, as relaes familiarese as festividades, com a presena de autoridades riverenses e santanenses,pois seriam, segundo as representaes discursivas, indicadores de umaintegrao de fato.

    Um outro tipo de discurso ligado integrao afirma a existncia de umacordialidade sistmica que uniria Livramento e Rivera, reivindicando tambmaspectos ligados ao atavismo, isto , a um certo esprito de fronteira e coragem, dando-se nfase a um sistema de cordialidade [e] de vivncias regu-lares e integradas que se acentuam mais ou menos, dependendo dos governantes.

    O exame destes aspectos ligados integrao necessita, no entanto,3 Os estudos demonstraram que no mais existe tal convnio. Inexistindo, portanto em 1997 e 1998 poca da pesquisa decampo o ensino da lngua espanhola nas escolas pblicas de Livramento e da lngua portuguesa no ensino regular de Rivera.Instituto privado de lnguas em Rivera que oferece a lngua portuguesa, no momento, no tinha alunos no curso de portugus,pois segundo informaes levantadas pelo pesquisador os jovens riverenses e santanenses preferem estudar ingls.

  • 130 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    de uma anlise mais aprofundada para se perceber quanto de conflitualidade,de entraves de diferentes tipos, pauta as relaes fronteirias. Foi possvelconstatar ao longo do estudo, que os discursos, primordialmente dos agen-tes sociais dominantes, seja na esfera poltica, seja na esfera econmica,atribuem os problemas da fronteira a causas exgenas: centralizao po-ltica e decises tomadas na esfera federal. Se correto pensar que a regiode fronteira efetivamente est geogrfica e politicamente distante dos cen-tros de poder (Porto Alegre, Braslia e Montevideo), no se pode, no entan-to, desconhecer que existem elementos endgenos ligados a um certopadro de convivncia cotidiana que est presente no prprio meio social.Mesmo que fosse possvel admitir interesses coincidentes entre as duaslocalidades, como de resto aos demais pares de cidades da fronteira brasilei-ro-uruguaia, quais sejam Jaguaro-Rio Branco, Chu-Chuy, Quara-Artigas,os prprios agentes sociais que enfatizam a integrao admitem elementosde atrito ou de conflitualidade.

    possvel verificar que no existem convnios formais na rea polti-ca, conforme depoimento de um representante do legislativo municipal deLivramento.

    No existem especificamente [na rea poltica] convniosentre Rivera e Livramento. No existem convnios de di-reito, o que existem so convnios de fato. Te explico porque. Porque qualquer Convnio Internacional, por maisque aqui estejamos separados... mas estejamos unidospor interesses econmicos, pelo dialeto especial oportunhol, as unies familiares... Por mais que... Legal-mente, ao passar a linha, a coisa vai a Montevidu ouBraslia, ao Itamarati. E todos sabemos que a poltica deEstado, via Itamarati muito forte. O Brasil defende mui-to sua nacionalidade, seu territrio e isso no torna pos-svel a existncia de convnios.

    Existe sim aqui um organismo integrado pela Cmara

  • 131SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    de Vereadores de Santana do Livramento e pela JuntaDepartamental de Rivera: O Conselho Legislativo In-ternacional [formado por 7 vereadores e 7 ediles].Mas esse Conselho pode apenas fazer sugestes. maisum foro de discusso: no tem capacidade [poder] dedeciso.

    Mesmo apontando a importncia desse organismo integrado queseria o Conselho Legislativo Internacional Livramento-Rivera (Mlo e Sarturi,2003), os discursos indicam a inexistncia de acordos formais capazes dedar conta de demandas como, por exemplo, na rea da segurana pblica.Conforme manifestao de um edil do Partido Colorado que lamenta aausncia de tais regulamentos, como um Convnio de Extradio entre oBrasil e o Uruguai, mencionando que (...) se algum comete um delito nolado uruguaio passa para o lado brasileiro e no se pode fazer nada.

    A mesma argumentao est presente na manifestao de um verea-dor santanense, afirmando que existe um bom entrosamento entre as au-toridades brasileiras e uruguaias, mas que tal entrosamento estaria sendodificultado pela inexistncia de regulamentao de atuao conjunta entreautoridades de ambos os pases, principalmente na esfera policial ou defiscalizao aduaneira.

    Ao lado das manifestaes que destacam aspectos jurdicos, existemaqueles depoimentos que buscam apontar para a integrao com base na-quilo que poderia ser efetivado mas que, na realidade efetiva, no ocorre,tais como acordos na esfera sanitria ou de produo leiteira, dificultadaspelas barreiras sanitrias estabelecidas diferencialmente por ambos os pases.

    Sendo o Uruguai internacionalmente considerado como rea livre deaftosa sem vacinao e sendo parte do Brasil o Rio Grande do Sul, emparticular rea livre de aftosa com vacinao,4 este no pode fornecer seusprodutos para serem processados no Uruguai, sob pena de contaminar aproduo daquele pas tal como no caso do leite de Livramento na planta4 Essa situao foi alterada em virtude da febre aftosa ter atacado, em 2000, tambm o rebanho uruguaio. Em 2003, tanto o RioGrande do Sul quanto o Uruguai so reas livres de aftosa com vacinao.

  • 132 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    da CONAPROLE (Cooperativa Nacional de Productores de Leche) de Rivera.Com base nesse princpio, embora Livramento e Rivera pudessem ter oslaticnios processados em uma mesma planta, dadas a proximidade geogr-fica e a existncia de rebanho leiteiro em ambos os lados da fronteira, isso,de fato, no ocorre.

    Aos aspectos ligados conflitualidade nas esferas sanitrias e de eco-nomia primria, pode ser agregado um outro aspecto de ordem poltica,relacionado s especificidades de cada um dos pases: os perodos de elei-es e os calendrios eleitorais nas esferas locais, regionais (departamentaise estaduais) e nacionais no Brasil e no Uruguai no coincidem. Elementoesse, sem maior importncia primeira vista, mas que dificulta o estabeleci-mento de acordos duradouros entre duas cidades. Alm disso, no haveria,de acordo com depoimento de edil da Frente Amplio, afinidade ideolgicaou vontade poltica de integrao [visto que] na prtica, Livramento e Riverasempre tiveram uma certa integrao das pessoas [mas] no institucional.

    Acrescente-se ainda o fenmeno das migraes internas, intensifica-das, segundo os depoimentos, por situaes cambiais diferenciais, que, emdeterminados perodos, proporcionava a aquisio de produtos em Livra-mento com preos inferiores aos praticados em Rivera. De acordo comdiversos depoimentos, o deslocamento de cidados uruguaios desde dife-rentes pontos do pas e a fixao de residncia em Rivera ocasionou, nosanos noventa, o agravamento da situao econmica no s em Rivera mastambm em Livramento. Nem mesmo o comrcio de free shop de Riverateria sido capaz de gerar postos de trabalho que absorvessem os desempre-gados riverenses e os desempregados doble chapa residentes em Livra-mento como se depreende pelo depoimento abaixo:

    Este o panorama geral da situao no Departamento.Mas Rivera um Departamento que tem certas particu-laridades: pela integrao com Livramento. Atravs daintegrao com Livramento, com o Brasil, tem provoca-

  • 133SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    do por diferenas cambiais que eram muito favorveisaos uruguaios que faziam compras no Brasil, antes doPlano Real. Isto provocou um grande deslocamento defamlias do interior do pas [Uruguai] para Rivera. So-bretudo de jubilados [aposentados] que vieram para ce trouxeram outros familiares. Este Departamento se no o primeiro, est entre os primeiros em movimento depopulao [migraes internas]. Isto gerou uma pres-so demogrfica sobre a cidade. O que aconteceu? Comesses aposentados vieram suas famlias e isso aumen-tou as taxas de desemprego.

    Os aspectos acima indicados apontam para a inexistncia da integraode fato e da permanncia de uma situao de crise que, poca da pesqui-sa, afetava de forma mais acentuada a cidade de Livramento. A manifesta-o de um vereador santanense ligado ao setor imobilirio ilustra este pon-to de vista, mencionando que, em Livramento, somente a parte hoteleira,em funo do cassino e do free shop de Rivera, tem conseguido sobreviver crise econmica que tem afetado aquela cidade.

    Se podemos afirmar que nacionalidades diferenciadas podem estabe-lecer um processo de integrao sempre tenso e complexo, como apontouCardoso de Oliveira, a complexidade aumenta quando se tem nmerosignificativo de cidados que so de duas nacionalidades a um s tempo.Autoridades da Junta Departamental de Rivera estimavam, para 1998, emdez mil o nmero de cidados com dupla nacionalidade5 em Livramento eRivera, dos quais cerca de sete mil seriam eleitores. So os chamados doblechapa.6

    Considerando que, mesmo residindo em Livramento, o cidado podetrabalhar em Rivera (e vice-versa), toda vez que ocorre o aprofundamento

    5 Considera-se brasileiro todo aquele que nasce no territrio nacional (jus solis). A legislao uruguaia considera cidadouruguaio todo o descendente de uruguaio, mesmo nascido em outro pas (jus sanguinis).6 A expresso tem analogia com a prtica, decorrente de Lei no mais em vigor que obrigava os moradores das cidadesda fronteira Brasil-Uruguai, ao realizarem o licenciamento de veculos, colocao de placas (chapas) brasileiras e uruguaiasao mesmo tempo.

  • 134 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    da crise naquela cidade onde trabalhava, com o conseqente desemprego,aumenta a presso sobre o mercado de trabalho do outro lado. Podem sercitados como exemplo o fechamento na metade dos anos noventa doFrigorfico Armour, do Lanifcio Albornoz e a reduo das atividades da vin-cola Almadn, aliado ao desemprego no comrcio de Livramento comoimportantes elementos para a intensificao do desemprego de doble cha-pas residentes em Rivera.

    Depoimento de ex-vereador santanense ilustra a no-integrao naesfera poltica e em outras esferas do social, afirmando que Livramento eRivera estariam de costas uma para a outra.

    Quando se trata de explicar discursivamente a crise da fronteira que as representaes dos agentes sociais ficam claramente demarcadas.Por meio delas, demonstra-se a existncia de tenses que configuram umasituao de desigualdade: um campo de disputas pela explicao legtimatanto da crise quanto das possveis sadas para essa situao.

    Uma das possveis sadas para a crise econmica da fronteira seria,conforme discusses empreendidas por diferentes agentes polticos da re-gio nos anos 1997 e 1998, a criao de uma rea de Livre Comrcio emdiferentes municpios da fronteira Brasil-Uruguai. Essa rea de Livre Co-mrcio teria um formato semelhante ao comrcio de free shop: venda deprodutos brasileiros ou importados somente para estrangeiros, no caso, parauruguaios e argentinos.7

    Em praticamente todas as entrevistas surgiram manifestaes sobre odesemprego e a situao de misria que, em grande parte, agudiza-se emuma ou outra das cidades em decorrncia do grande nmero de doblechapas, como indicamos acima. Ilustrativo do tpico desemprego a ma-nifestao de vereador santanense, que tambm atua na esfera policial, aorelacionar o desemprego com a delinqncia. Segundo o entrevistado, o

    7 Apesar das inmeras reunies de autoridades de Livramento, Quara, Jaguaro e Chu e de uma tentativa de aprovao deprojeto de lei na Cmara Federal Brasileira tendo como relator o Deputado Jair Soares do PPB (Partido Progressista Brasileiro,RS), o projeto no saiu do papel.

  • 135SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    fato de o delinqente poder evadir-se com facilidade para o Uruguai seriamais um entrave para a ao policial e para a reduo das prticascriminalizadas na fronteira, principalmente aquelas relacionadas com ativi-dades comerciais ilegais.

    A anlise das relaes no espao fronteirio Livramento-Rivera apontapara a existncia de aspectos conflituais. Apesar de parte das manifestaesdiscursivas afirmarem o contrrio, foi possvel constatar que aspectos liga-dos crise econmica, ao desemprego e s prticas criminalizadas como oabigeato e o contrabando so a demonstrao de elementos de tenso nocotidiano da fronteira. H outros elementos, tais como as lutas agrrias,como ser visto a seguir.

    2 Lutas agrrias e campo do poder na fronteira

    Outro importante ponto de disputas estabelecidas no plano discursivorefere-se ao problema da terra. Como indicamos em outro lugar,8 a terratem estado no centro das lutas pela consolidao das fronteiras nacionaisdo Brasil e do Uruguai, desde o sculo passado.

    A intensificao da luta pela terra no Rio Grande do Sul e a instalaode acampamentos com os primeiros assentamentos de colonos nos muni-cpios de Bag e Livramento em 19919 e, na seqncia, em 199710 pro-porcionaram posicionamentos de diferentes agentes sociais: colonos ligadosao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), autoridades civise militares uruguaias e, conseqentemente, autoridades e dirigentes locaisde Livramento e Rivera. A proximidade com a fronteira uruguaia ensejou a

    8 Captulo 2: Terra, Propriedade e Dominao em MLO, 2000, p. 79-115.9 MILES de sin tierra invadieron estancias a 30 kilometros de la frontera con el Brasil. El Pas, Montevideo, 05 set. 1991, p. 1e 9; RATIFICAN invasiones em Uruguay de sin tierra. El Pas, Montevideo, 06 set. 1991, p. 1 e 10; DENUNCIA de EL PAS: LasFF.AA patrullan la frontera para impedir invasin sin tierra. El Pas, Montevideo, 07 set. 1991, p. 7; LAS CANCILLERAS deUruguay y Brasil estn en estrecho contacto por los sin tierra. La Repblica, Montevideo, 07 set. 1991, p. 8.10 LOS SIN TIERRA de Brasil muy cerca de suelo uruguayo; no cruzaran frontera; amenazan con penetracin ideolgicaen nuestro pas. El Pas, Montevideo, 17 ago. 1997, p. 1 (1 seccin); TROPAS, tanques, y aviones vigilan lmite con Brasil; Tareasde inteligencia y control migratorios por presencia de los Sin Tierra. El Pas, Montevideo, 22 ago. 1997, p. 1 (1a seccin).

  • 136 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    notcia reiteradas vezes negada pela direo do MST11 de que colonosligados ao MST estariam planejando a invaso de fazendas no Uruguai.

    As informaes davam conta de que, em 1991, havia de fato preocu-paes de setores uruguaios ligados ao setor ganadero, isto , ao setorpecurio, e s Foras Armadas, principalmente nos Departamentos de Riverae Cerro Largo, com a presena dos sem terra. Manifestaes semelhantesaconteceram em 1997 quando aumentou o nmero de assentamentos emLivramento.12 Ilustrativo das opinies divergentes sobre a luta pela terra nafronteira pode ser constatado pela manifestao de liderana sindicalsantanense que havia atuado no Comit de Apoio ao MST em Livramentoem 1991. A manifestao traa um paralelo entre 1991 e 1997.

    Pois ento. Naquela poca [1991] aconteceu o mesmo.Exatamente igual. Passado algum tempo da vinda doscolonos foram passadas informaes para alguns seto-res do Uruguai de que os colonos estavam planejandouma invaso... [...] Pois . Ns cuidvamos dessa parte,de desmentir isso [a invaso do Uruguai] aqui na fron-teira. Aquilo foi muito interessante porque j deixavaclaro qual era o tipo de integrao que existia. Que erauma integrao apenas entre alguns setores... [...]. Emmuitos aspectos no existe integrao nenhuma, atporque o Uruguai um pas com srias dificuldades.Exatamente. Isto muito significativo, porque a gentevive numa regio muito conservadora. E ns temos essadificuldade de romper com esse conservadorismo.

    11 Exigencias al Uruguay - Rio de Janeiro (AP) Un alto dirigente del Movimiento de los Sin Tierra (MST), dijo ayer, lunes, quesus militantes no invadirn territorio uruguayo, pero adverti que el vecino pas necesita tambin de una reforma agraria y queya se mantienen contactos a nivel de entidades similares en territorio uruguayo. No vamos a invadir tierras uruguayas. Perosi el gobierno de all teme a invasiones, entonces la tierra est sobrando. El gobierno tiene que hacer una reforma agraria, paralos uruguayos sin tierra dijo Dionilson Marcn, el principal dirigente del MST del estado de Rio Grande do Sul. Marcn dijotambin que los dirigentes campesinos de Brasil, Uruguay y Argentina, intercambian informaciones y visitas. El Mercosur noexiste slo para que la burguesia haga negocios. Los trabajadores del Mercosur tambin tienen que organizarse. Las declaracionesde Marcn constituyeron la primera indicacin de que existen contactos entre las organizaciones campesinas de esos tres pases,y tambin la primera vez que un lider campesino brasileo del MST insina que en Uruguay debera dictarse una reformaagraria. EXIGENCIAS al Uruguay. El Pas, Montevideo, 19 ago. 1997, 2a seccin p. 13. NASCIMENTO, Solano. Uruguai negarumores de invaso. Zero Hora, Porto Alegre, 12 set. 1991, p. 4712 Nos anos de 1996 e 1997 foram instalados oito assentamentos em fazendas adquiridas pelo INCRA em Livramento (NAVARRO,1996, p. 63-67).

  • 137SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    Por parte dos pecuaristas santanenses, tambm no havia aceitaode que houvesse assentamentos de colonos ligados ao MST. Em documen-to elaborado em junho de 1991 Carta de Livramento externaram adesconformidade com a poltica de reforma agrria do Governo Federal.13

    Dirigente rural riverense atribui parte dos problemas da fronteira forte presena de brasileiros proprietrios de terras no Uruguai e reivindica para o Uruguai o estabelecimento de legislao semelhante brasileiraque impedisse a compra de terras por estrangeiros em uma faixa de frontei-ra determinada.

    O que tem acontecido na fronteira que muitas terrasforam compradas por gente que no do nosso pas. Oque no nos cai muito bem. No que sejamoschauvinistas ou coisa desse tipo, mas nos parece que notratamento entre os pases deve haver reciprocidade. Porexemplo, o Brasil, que um pas muito grande onde nolhes falta terras, tem uma faixa, uma rea de fronteiraque no vende a estrangeiros. Ns no temos essa faixade fronteira. Se um brasileiro chega aqui e quer comprarum campo aqui ao lado da cidade ele pode comprar.Mas se eu quero comprar do outro lado eles [os brasilei-ros] no me deixam. [...]. Ento, essa situao para ns irritante. Se tem defendido a tese junto aos polticos egovernantes uruguaios de que fizssemos o mesmo considerando um grande nmero de produtores, comoeu lhe falava, com estncias deriva os preos dasterras baixariam, e interessaria aos brasileiros, estrangei-ros que ultrapassassem a fronteira, como argentinos,europeus. E a tese de se defender o preo, o preocairia. E teramos igual tratamento, no que praticamenteno vai influenciar muito quem vai comprar terras, spossibilidades. Ou do contrrio, criar essa mesma faixa.

    13 PRODUTORES de Livramento querem sem-terra longe. Zero Hora, Porto Alegre, 21 jun. 1991, p. 43. Desde 1991 hdesconformidade das autoridades dos municpios fronteirios com os assentamentos: PREFECTO de Yaguarn [Jaguaro] tomamedidas contra colonos. El Pas, Montevideo, 26 ago. 1997, p. 12.

  • 138 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    Tambm parlamentares do Partido Nacional (Blanco) demonstrarampreocupao com um possvel plano do governo brasileiro de, ao instalarassentamentos em municpios da fronteira brasileiro-uruguaia, esconderobjetivos estratgicos.

    [...]. No slo los sin tierra nos debe preocupar... tambinlos con tierra... tambin las grandes extensiones de tierrasadquiridas por ciudadanos brasileos en nuestra frontera,que no tiene nicamente el objetivo de radicacin ennuestro territorio, sino que puede llegar a tener otrasconotaciones u otro objetivo estratgico.

    Por eso no descartamos, que de trs de este Movimientoradical de izquierda, que se permite opinar sobre larealidad uruguaya y dar soluciones sobre los problemasnacionales, est una bien montada estrategia nuncadesmentida por el vecino gigante, de que sus verdaderasfronteras van ms all de los limites geogrficos. [...].14

    Mesmo segundo o dirigente da Frente Amplio que, em princpio, apiaa reforma agrria brasileira, a existncia de grande nmero de propriedadesem mos de brasileiros, principalmente nos Departamentos de Rivera, Artigase Cerro Largo, teria importantes implicaes na esfera do trabalho, na medi-da em que estaria proporcionando a presena cada vez mais acentuada dosindocumentados brasileos, ocasionando dois problemas bsicos: a presen-a de trabalhadores ilegais sem quaisquer garantias em termos de direitossociais e, em segundo lugar, a presso sobre o j reduzido mercado de traba-lho no espao agrrio uruguaio. Este ltimo aspecto tambm foi apontado porpesquisadoras uruguaias, visto que dentro de las consecuencias sociales po-demos hacer referencia a el desplazamiento de la mano de obra rural por losindocumentados brasileos con la consecuente migracin hacia las ciudadesdonde se vive en condiciones de marginalidad (Cardozo e Fernndez, 1997).

    14 NO SLO deben preocupar los sin tierra [Discurso no Parlamento Uruguaio, Deputado pelo Departamento de Rocha].Jornada, Rivera, 23 ago. 1997, p. 8.

  • 139SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    A integrao fronteiria, freqentemente anunciada como exemplo parao mundo, enfrenta dificuldades de ordem poltica, econmica e social. As-pectos ligados terra, relaes comerciais, polticas e culturais, se no re-presentam impedimento para processo de integrao autnoma entrebrasileiros e uruguaios, demonstram entraves que, sem dvida, dificultamessa integrao. Isso ficou evidenciado com a instituio dos acordos doMercosul.

    3 MERCOSUL: fim da fronteira? Novas fronteiras?

    Uma das preocupaes da populao das reas de fronteira por oca-sio da assinatura dos acordos que instituram o MERCOSUL MercadoComum do Sul, no ano de 1991, era com a possibilidade de invaso deprodutos brasileiros no Uruguai. Havia o receio de que, com isso, seinviabilizasse o prprio comrcio ilegal, principalmente aquele chamado decontrabando formiga.15

    Sabe-se que essa prtica econmica e social tem conseqncias sociaisimportantes. O diferencial de preos em funo de polticas cambiais pr-prias de cada pas gera o efeito gangorra, ou efeito pndulo: os preosdas diferentes mercadorias, sob esse efeito, quase nunca coincidem. Apro-veitando-se desse componente que sobrevive e se recria, desde a cons-tituio das fronteiras nacionais Brasil-Uruguai, tanto o grande contrabando(de gado em p, charque, arroz), quanto o contrabando formiga (de pro-dutos alimentcios, gs, bebidas).

    Ao lado dessas preocupaes que afetariam as populaes que vivemdesse tipo de comrcio aquilo que dirigente poltico uruguaio chamou dearancel zero podem ser agregadas as expectativas de que os acordoscomerciais fossem alm da esfera econmica ou pudessem favorecer aspopulaes fronteirias. Os levantamentos demonstraram, em relao ao

    15 CON el Mercosur la frontera tiene los das contados segn Zero Hora. La Repblica, Montevideo, 26 set. 1991, p. 39.

  • 140 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    Mercosul, uma diversidade de discursos que vo desde a recusa da integraoat o ponto de vista de que a integrao de direito poderia ser estabelecida.

    Efetivamente, no s autopeas, mas outros produtos exportados peloBrasil para o Uruguai, passaram a custar menos do que no Brasil. Fato esteque ensejou uma situao juridicamente estranha: produtos brasileiros sen-do negociados por arancel zero do Uruguai para o Brasil e produtos acerveja uruguaia, por exemplo a preo inferior no Brasil do que no merca-do uruguaio.

    H tambm sindicalistas uruguaios que afirmam que, em Livramentoe Rivera, nada mudou com o Mercosul ou que

    Se modificaram algumas coisas, o aumento do trabalhoinformal de ambos os lados, mudou para pior. Aquiseguimos vivendo da mesma forma que antes da vign-cia dos acordos que criaram o Mercosul. Exatamenteigual. A diferena talvez exista em Porto Alegre, BuenosAires e Montevidu.

    Ou, se houve mudana, no teria sido sentida pela regio, conformeexpresso de edil do Partido Colorado.

    O Mercosul constituiu-se por uma srie de acordos bilaterais nos quais,conforme prembulo do Tratado de Assuno, os pases assumem o com-promisso de modernizar suas economias para ampliar a oferta e a qualida-de dos bens de servio disponveis, a fim de melhorar as condies de vidade seus habitantes.16 Tem como rgo executivo o Grupo Mercado Co-mum formado por dez subgrupos, entre os quais o subgrupo que trata dasquestes trabalhistas e de seguridade social.17

    Os estudos apontaram que, efetivamente, na esfera comercial deLivramento e Rivera, o Mercosul no trouxe alteraes significativas: o pn-dulo permaneceu, apenas com inverso em alguns produtos, como tem

    16 Tratado de Assuno, 26 mar. 1991.17 Foi criado em 1991 com o nome de Relaes Trabalhistas (Subgrupo 11). Pela Resoluo/GM/res. 20/95 passou a serremunerado como subgrupo 10 com o nome de Assuntos laborais, emprego e seguridade social.

  • 141SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    sido desde o sculo passado. Por parte dos trabalhadores, esperava-se queo problema dos indocumentados pudesse ter sido resolvido. No se ob-servou, no entanto, alterao significativa no que se refere s clusulassociais e trabalhistas.

    Apesar dos esforos do estabelecimento de, por exemplo, uma legis-lao que trate das questes sociais no Mercosul, at o ano de 1997, deacordo com depoimentos de dirigentes sindicais ligados aos trabalhadores,tanto de setores urbanos quanto de setores rurais, no teria ocorrido qual-quer avano relacionado s questes sociais e trabalhistas. Persistia, segun-do depoimentos, uma clara situao de desrespeito aos direitos dos traba-lhadores, com denncias, inclusive, de que trabalhadores rurais brasileirosestariam em regime de escravido tendo havido tambm casos de morte no Uruguai, principalmente no setor madeireiro.

    Em relao ao trabalho ilegal, nossos levantamentos localizaram de-nncia de trabalho escravo no Uruguai, Departamento de Paysand.18 Afiscalizao realizada pelo Ministrio do Trabalho Uruguaio, no entanto,nada constatou.19

    Ao apontar esses elementos conflituais, podemos verificar que os acor-dos do Mercosul no alteraram significativamente a situao vivida pelamaioria da populao. Para que ocorram alteraes substantivas, faltam,basicamente luz dos estudos empreendidos , trs medidas, ainda dis-tantes de serem implementadas: alteraes na estrutura fundiria da re-gio, resoluo das questes trabalhistas e descentralizao administrativa.

    O Uruguai conta, desde 1948 (Ley 11029 de 12 jan. 1948), com oINC Instituto Nacional de Colonizacin, mas, desde o incio, fatores deordem tcnica e poltica, principalmente de ordem poltica, tm feito comque o INC no realize a colonizao: faltam terras fiscais (terras pblicas) erecursos para adquiri-las. A direo do INC estimava, em 1991, que existi-18 Brasileiros trabalhavam em regime semi-escravo em fazenda uruguaia; o grupo havia sido contratado para cortar rvorese aplainar um monte. Zero Hora, Porto Alegre, 23 jan. 1997, p. 63.19 poca dos levantamentos de campo anos de 1997 e 1998 o setor de fiscalizao do Ministrio do Trabalho, em Rivera,contava com apenas dois funcionrios sem veculo para deslocamentos no interior do Departamento.

  • 142 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    riam no pas entre doze e quinze mil aspirantes, isto , candidatos a colono,estando desatualizado o seu cadastro que ento somava 35 mil.20 No casoda fronteira brasileira, como vimos, esto ocorrendo assentamentos de co-lonos ligados ao MST em fazendas compradas pelo INCRA emboraenfrentando a oposio dos setores dominantes do meio rural.

    Mesmo aqueles que entendem que o incentivo ao turismo seria umapossibilidade para a regio reconhecem que pouco tem sido feito nessarea em decorrncia da falta de investimentos pblicos ou privados capazesde gerar e fortalecer um plo turstico na regio fronteiria que v alm docassino ou do comrcio de free shop.

    Existem aqueles que vem no processo de Globalizao um dos com-ponentes importantes da situao no s da fronteira, mas dos prpriospases.

    Ns temos discrepncia, enquanto partido poltico deoposio ao partido [Colorado] que est no poder. Dis-cordamos em vrios pontos. Mas o tema da globalizaoafeta todo mundo. Basicamente porque a abertura fazcom que a concorrncia seja muitssimo mais profun-da. Um pas pequeno, com uma produo pequena,como o nosso, tem que competir no na quantidademas sim na qualidade. A competio muito grande:por exemplo, no setor de vesturio o Uruguai foi impor-tante, mas hoje as empresas que fazem roupas so emmuitos casos de empresas que trazem o tecido da Chi-na, Taiwan, esses tipos de pases que exportam muitssi-ma quantidade. O setor de confeco no Uruguai per-deu a capacidade de gerar mo-de-obra. Hoje maislucrativo ser representante de uma fbrica e trazer ovesturio pronto. mais barato e o risco menor. Colo-ca-se [no mercado] interno com preos mais acessveispara as pessoas.

    20 EL INSTITUTO de Colonizacin no tiene tierras ni recursos para expropriar. [Entrevista com Ricardo Britos, Vice-Presidentedo INC]. La Repblica, Montevideo, 27 set. 1991, p. 52.

  • 143SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    As anlises empreendidas neste ltimo tpico apontaram para umcampo complexo de relaes sociais onde interesses locais e nacionais es-to ora imbricados, ora distanciados. H uma forte defesa da propriedadeda terra em ambos os lados da fronteira geopoltica, de modo que as possi-bilidades de transformaes agrrias significativas, pelo menos a curto pra-zo, no sejam vislumbradas. Talvez, com o esgotamento da fronteira agr-ria, isto , com esgotamento do stock de terras no Rio Grande do Sul,venham a ser criadas possibilidades de internacionalizao dos conflitosagrrios. Enquanto isso, parcela significativa da populao busca sobreviverpelo contrabando formiga ou trabalho informal (ou at mesmo em situaode completa ilegalidade, como o caso dos indocumentados brasileiros emfazendas de arroz no Uruguai), enquanto os grupos sociais dominantes usu-fruam dos benefcios de poder circular em ambos os lados da fronteira.21

    Em Rivera e Livramento, os comerciantes representam o grupo que, junta-mente com os arrozeiros e ganaderos, domina tanto economicamente quantona esfera poltica.

    Concluso

    Os estudos indicaram que o processo de globalizao e a integraoregional dele resultante no constituram, at o momento, novos agentessociais na fronteira, ou mesmo no poder central dos dois pases, capazes dealteraes substantivas no campo do poder. Some-se a isso o fato de que asassociaes ou sindicatos de trabalhadores do Brasil e do Uruguai, se emtermos discursivos podem indicar um processo de integrao em marcha,na anlise efetiva do campo das relaes sindicais em Livramento e Rivera,no demonstram fora organizativa suficiente para galgar postos na esferalegislativa ou mesmo no poder executivo local, nem apresentam capacida-de poltica significativa capaz de exercer presso junto ao poder central.21 Para quem possui capital, h sempre a possibilidade de se transformar em comerciante, estancieiro, arrozeiro ou forestadorno outro lado da fronteira.

  • 144 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    As anlises aqui desenvolvidas apontam para o fato de que, enquantopersistir inalterada a situao econmica e poltica na regio, no poderoser efetivadas alteraes significativas na esfera das relaes socioculturaisno sentido do estreitamento de redes de relaes autnomas e solidrias.Se o processo de integrao regional na esfera econmica vem avanando,o mesmo no tem ocorrido com as relaes polticas e socioculturais, sen-do, portanto, problemtico falar em integrao ou fronteira da paz. Talvezos cones da integracin de hecho sejam a televiso, no presente, e o con-trabando como era no passado. Na apreenso de um processo complexo o campo do poder no espao fronteirio as representaes discursivaspossibilitaram a compreenso de diferentes interesses e, portanto, de dife-rentes representaes da fronteira. Procurou-se considerar tais discursoscomo importantes na produo e reproduo da fronteira e na conformaode um padro de relaes sociais que, pautado por desigualdades internasdesde longa data, busca repensar-se no novo momento do capitalismo emprocesso de globalizao.

    Foi possvel verificar as clivagens em cada lado da fronteira, demons-trando-se que, em situao de altos ndices de desemprego, diferenas noacesso ou controle de um recurso importante como a terra e fracos laosnas relaes polticas do par de cidades Livramento-Rivera, a linha imagin-ria no separa efetivamente, mas constitui elemento importante no campode conflitos por vezes manifestos, por vezes velados na fronteira emmovimento e nas representaes discursivas.

    Referncias

    BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representao: elementos para uma reflexocrtica sobre a idia de regio. In: BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1989. p. 131-161.

  • 145SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    BOURDIEU, Pierre. Razes prticas sobre a teoria da ao. Campinas: Papirus, 1996.

    CARDOZO, Susana, FERNNDEZ, Virginia. Cambios en la forma de produccin ysus consecuencias socioeconomicas para el area fronteriza del noreste del Uruguay.In: CASTELLO, Ira Regina e outros. Fronteiras na Amrica Latina: espaos emtransformao. Porto Alegre: Editora da Universidade-UFRGS/FEE, 1997, p. 89-95. Citao p. 94.

    MLO, Jos Luiz Bica de. Fronteiras abertas: o campo do poder no espao fron-teirio BrasilUruguai no contexto da globalizao. 2000. 376 f. Tese (Doutoradoem Sociologia) Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Federaldo Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

    MLO, Jos Luiz Bica de; SARTURI, Eduardo Fernandes. As fronteiras da represen-tao: O Conselho Legislativo Internacional SantAna do Livramento-Rivera. In:TAVARES DOS SANTOS, Jos Vicente; BARREIRA, Csar, BAUMGARTEN, Mara(orgs). Crise Social & Multiculturalismo: estudos de Sociologia para o sculo XXI.So Paulo: SBS/Hucite, 2003. p. 179-204.

    NAVARRO, Zander. Pequena histria dos assentamentos rurais no Rio Grande doSul, Brasil, 19781990. In: NAVARRO, Z., MORAES, M.S, MENEZES, R. Poltica,protesto e cidadania no campo: as lutas sociais dos colonos e dos trabalhadoresrurais no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade-UFRGS, 1996.p. 63-67.

    OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnicidade e nacionalidade noMercosul. Poltica Comparada Revista de Polticas Comparadas, Braslia, v. 1, n2, 1997, p. 9-20.

    Recebido: 12/01/2004Revisado: 04/03/2004

    Aceite final: 22/03/2004

  • 146 SOCIOLOGIAS

    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 11, jan/jun 2004, p. 126-146

    Resumo

    Tomando por referencial terico a noo de campo e baseando-se emdepoimentos de autoridades e dirigentes de sindicatos patronais e de trabalhado-res, so indicados aspectos que demonstram a existncia de um campo de confli-tos decorrente de disputas em torno da terra, de postos de trabalho, bem como deaspectos distintos das legislaes nacionais no espao fronteirio brasileiro-uru-guaio. As anlises demonstram que a almejada integrao entre as populaesresidentes nas cidades de SantAna do Livramento e Rivera, permanece enquantorepresentao, muito mais discursiva do que real.

    Palavras-chave: fronteira, campo do poder, representaes sociais, conflito social.