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COLETÂNEA DE TEXTOS (PARA LEITURA E BATE-PAPO EM SALA) CULTURA RELIGIOSA II 1

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COLETÂNEA DE TEXTOS

(PARA LEITURA E BATE-PAPO EM SALA)

CULTURA RELIGIOSA II

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JOSÉ MARTINS S NETO

TEXTO 01 – O HOMEM; AS VIAGENS

Carlos Drummond de Andrade

O homem, bicho da terra tão pequenoChateia-se na terraLugar de muita miséria e pouca diversão,Faz um foguete, uma cápsula, um móduloToca para a luaDesce cauteloso na luaPisa na luaPlanta bandeirola na luaExperimenta a luaColoniza a luaCiviliza a luaHumaniza a lua.

Lua humanizada: tão igual à terra.O homem chateia-se na lua.Vamos para marte - ordena a suas máquinas.Elas obedecem, o homem desce em martePisa em marteExperimentaColonizaCivilizaHumaniza marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.Vamos a outra parte?Claro - diz o engenhoSofisticado e dócil.Vamos a vênus.O homem põe o pé em vênus,Vê o visto - é isto?IdemIdemIdem.

O homem funde a cuca se não for a júpiterProclamar justiça junto com injustiçaRepetir a fossaRepetir o inquietoRepetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.O espaço todo vira terra-a-terra.O homem chega ao sol ou dá uma voltaSó para tever?Não-vê que ele inventaRoupa insiderável de viver no sol.Põe o pé e:Mas que chato é o sol, falso touroEspanhol domado.

Restam outros sistemas foraDo solar a col-Onizar.Ao acabarem todosSó resta ao homem(estará equipado?)A dificílima dangerosíssima viagemDe si a si mesmo:Pôr o pé no chãoDo seu coraçãoExperimentarColonizarCivilizarHumanizarO homemDescobrindo em suas próprias inexploradas entranhasA perene, insuspeitada alegriaDe con-viver.

TEXTO 02 - O HOMEM. QUEM E ELE? PARADIGMAS: CERTEZAS E INCERTEZAS

Adaptação do texto original: Paradigmas Humanos, de Amauri Carlos Ferreira.A concepção do mundo que imperava antes dos tempos modernos, aquilo que podemos chamar de cosmovisão ou

visão de mundo do homem antigo e do homem medieval, se caracterizava por ser uma cosmovisão cosmológica. Que quer dizer isto? Quer dizer que existia uma idéia de "Cosmos" como uma ordem natural acabada, fechada, perfeita, e, portanto, estática. Uma ordem natural em que o homem estava inserido como um de seus elementos, com a particularidade apenas de que ele podia compreendê-la; mas não profundamente. E por isso a principal atitude do homem diante do "Cosmos", era a contemplação. Ele podia contemplar, investigar e admirar a beleza e a harmonia da ordem natural, mas ele não era o criador desta ordem, nem tinha o poder de transformá-la a fundo. Além disso, o tempo desta ordem natural era, por sua vez, um tempo homogêneo, que transcorria sempre o mesmo, num ciclo imanente; não era um tempo que trouxesse alguma coisa de novo, ou que avançasse num ritmo evolutivo.

É tudo isto que se quer dizer quando se afirma que a visão tanto do homem antigo como do homem medieval era

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essencialmente uma visão cosmológica. Para a explicação de todos os problemas e para a interpretação do próprio homem, ele partia sempre da idéia do "Cosmos", da idéia de uma ordem natural dada em si mesma, concluída, perfeita, fechada, estática e homogênea. Ao lado desta característica comum, há, entretanto, uma diferença importante entre a cosmovisão do homem antigo e a cosmovisão do homem medieval.

Ambas são cosmológicas, mas a cosmovisão do homem antigo, além de cosmológica, era cosmocêntrica, enquanto a visão do homem medieval era cosmológica, mas por sua vez, teocêntrica. A visão do homem antigo era cosmológica e ao mesmo tempo cosmocêntrica porque não só tinha na idéia do "Cosmos" o ponto de partida para a explicação de todos os problemas, como além disto se centralizava nesse "Cosmos", ou ordem natural, como que num mundo auto-suficiente, que não era visto como um mundo criado por um ser superior, mas sim como um mundo em que o homem estava presente apenas para contemplá-lo.

O cristianismo, a revelação bíblica, o fato histórico do Cristo, iria introduzir nesta visão tradicional uma transformação profunda. Porque de repente o mundo deixou de sustentar-se em si próprio, deixou de ser auto-suficiente e passou a ser visto como um mundo criado; um mundo criado por Deus e um mundo que se destinava também, algum dia, a ser destruído por Deus. O homem estava neste mundo de passagem, nu, de itinerário curto, o seu destino seria voltar ao Deus de onde viera e para onde se dirigia. Por isso a visão do homem medieval se era por um lado cosmológica, porque interpretava toda a realidade do mundo a partir da idéia de uma ordem natural, era teocêntrica por outro lado, porque esta ordem natural era vista como uma ordem criada por Deus e porque toda a vida do homem medieval estava centralizada em Deus e na esperança da salvação.

A idade moderna vai proceder à desagregação desta visão do mundo e aí é que devemos e reside a raiz teórica e última dos grandes problemas do pensamento moderno. A crise começa com a Renascença. O conteúdo essencial do Renascimento, do ponto de vista filosófico, o que nos interessa no momento, é o humanismo. De repente a preocupação do homem deixa de estar voltada apenas para o mundo e para Deus, deixa de ser cosmológica e teocêntrica, e passa a centralizar-se no próprio homem. Daí, inclusive o retorno ao pensamento helênico, a descoberta da arte grega, o espírito aventureiro do homem renascentista. Pouco a pouco, através desta inversão humanista do renascimento toda a visão medieval vai ser transformada.

O que acontecia com o problema do homem? Inicialmente, o homem medieval tinha de si mesmo uma visão essencialmente cristã, ou uma parte da natureza, como uma peça daquele "Cosmos" e daquela harmonia natural, estática, fechada e perfeita a que já nos referimos, mas do ponto de vista sobrenatural, do ponto de vista da fé, o homem era visto como transcendendo radicalmente a natureza, porque justamente se afirmava que a essência de seu destino não era a realidade deste mundo, mas a realidade de um outro mundo e de uma outra vida, que estaria para além do plano da história e do plano deste mundo empírico.

À medida que desenvolve sua ciência e sua técnica, o homem moderno vai se tornar cada vez mais nacionalista, ou seja, vai cada vez mais ter fé, sobretudo e antes de tudo, em sua razão, em seu poder criador. Assim, a visão medieval vai ser, progressivamente, substituída por uma visão tipicamente humanista, porque parte do homem para explicar tudo, até a própria ordem natural. A situação se inverte. Se a visão do homem medieval era prevalentemente uma visão cosmológica, a visão do homem moderno passa a ser cada vez mais antropológica. Ele parte da ideia do homem para explicar toda a realidade do mundo, e não da ideia de "Cosmos". O homem passa a ser então a raiz e a explicação última de todos os problemas teóricos. Por que acontece isto? Porque, pouco a pouco, o homem ia se descobrindo como sujeito, como subjetividade, e não mais como objeto na perspectiva medieval e antiga, isto é, o homem descobre que tem o poder de conhecer e o poder de transformar o mundo.

Em primeiro lugar, o poder de conhecer e o seu conhecimento não são um simples conhecimento da natureza, mas é uma certa recriação da realidade objetiva. Neste sentido a posição do homem, a sua atitude diante da natureza, já não é uma atitude meramente passiva, contemplativa; ao contrário, no próprio ato de conhecimento da natureza, o homem tem uma atitude ativa, ele recria a natureza. Então o homem já não é o homem-espelho da visão cosmológica; Ele é, agora, o homem conhecedor, o homem-sujeito. Porém, além disso, na medida em que desvenda a ordem natural, o homem descobre que tem o poder de utilizar seu conhecimento para transformar a própria realidade natural. A ciência moderna culmina e desemboca na técnica moderna. A revolução científica se coroa numa revolução tecnológica. Ora, a técnica do homem moderno lhe dá um poder tremendo de transformação da natureza. E o homem descobre que ele é sujeito não apenas porque tem o poder de conhecer a fundo a natureza, e de recriá-la pelo conhecimento, mas porque possui, além disso, o poder de transformar a própria natureza. Ele prolonga sua vida, combate as doenças, transforma a fisionomia da terra abrindo rios onde não havia, transpondo montanhas, alargando oceanos, etc.

O homem realmente é um sujeito, é uma subjetividade criadora. Esta é a grande descoberta. É o grande mergulho do homem moderno. Mas ao mesmo tempo em que se descobre como sujeito, ele,necessariamente, se descobre como um ser histórico. Porque, se é sujeito, se tem poder de transformar a realidade objetiva, então ele não está obrigado a permanecer preso ao ciclo imanente da natureza. Ele já não é uma peça estática de uma ordem natural dada em si mesma, mas por ter o poder criador, ele tem o poder de renovar, de inventar coisas novas. Tem o poder de fazer história propriamente dita. Isto é, o homem se descobriu na aurora dos tempos modernos como um ser histórico, como um sujeito criador de um tempo histórico especificamente humano. Dizer isto, que significa? Significa dizer que já não existe aquela ordem natural fechada, acabada e

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perfeita. Significa dizer que a natureza mesma está em gênese, está em evolução, está em desenvolvimento, e que este desenvolvimento está agora entregue às mãos do homem moderno que se tornou antropológico.

Com todo este poder, por que então a angústia humana a partir do final do século XIX? A existência entra crise, devido a quê? A ciência e a técnica respondem às angústias humanas? Como explicar o princípio de incerteza do século XX? Eis a volta para Deus e, conseqüentemente, para a Religião. Mas que Religião?

Fica-nos o desafio ético e humanitário! Como tornar o mundo acessível para todos os humanos e demais seres que o habitam e ainda o habitarão?

Enfim, uma nova história está por se construir. E se somos seres inteligentes, precisamos construí-la para todos indistintamente ou, então, em vez de construir, continuaremos em nome do progresso positivista a destruir.

COMPREENSÃO DO TEXTO

1. Quais as principais implicações que decorrem da visão cosmológica ou cosmocêntrica do mundo?2. O que há de comum na visão de mundo do homem antigo e o paradigma cultural do homem medieval?3. Com o surgimento do cristianismo, o que muda na forma de o homem encarar a natureza, o tempo e o espaço e que

consequências isto acarreta?4. O que é que acontece na idade moderna que provocará profundas alterações no paradigma cultural do ocidente?5. Que consequências positivas e negativas decorrem destas alterações de paradigma?

TEXTO 03. PARADOXO O ser humano é ambivalente. Conhecido e estranho, próximo e distante, transparente e opaco. O ser humano canta e

protesta, dança e agride, congrega e dispersa. O ser humano é diáfano e indevassável, lúcido e nebuloso, acessível e inabordável. Circula pelas ruas, mas também recolhe-se na intimidade. O ser humano expande-se festivamente e tranca-se amargamente. É lógico e ilógico.

O ser humano é linguagem pluriforme. Fala e silencia, grita e emudece, gargalha e enclausura-se. O ser humano é palavra ofertada e palavra recusada. E recusar a palavra aos outros é rejeitá-los. O ser humano é fonte exuberante de comunicação, e também núcleo rígido de incomunicação. Comunicabilidade e incomunicabilidade são duas faces do existir humano. O ser humano é diálogo fecundo e monólogo estéril.

O ser humano é torrente de amor. Amar é expressão de vida, êxtase, paixão, impulso vital. É Eros. Mas o ser humano pode também gotejar ódio feroz. O ódio é filho de Tânatos. O ser humano é mistura de Eros e Tânatos. Quando o amor se perverte, converte-se em ódio implacável. Seres que se amavam apaixonadamente passam a odiar-se rancorosamente. E o “amante” chega a assassinar o “amado”.

O ser humano é fértil em criações. Cria vida, saúde, pão, paz, ciência, tecnologia. Mas o ser humano é também niilista. Incinera o mundo. Basta ver a guerra. O ser humano constrói maravilhas, mas também pode arrasá-las. Planta a semente e desintegra a germinação.

Pai luta para ter filho; e pai estupra a carne de sua carne. Mãe sangra para sustentar o filho; e mãe abandona ou estrangula o recém-nascido.

O ser humano sente necessidade de convivência e solidariedade. Mas é também anti-social. A discriminação, o fanatismo e o sectarismo esfiapam o tecido da sociabilidade. O ser humano fascina. As pessoas seduzem pelo amor e pela beleza, pela inteligência e pela bondade. Mas também as pessoas intimidam e ameaçam com violências e assassinatos. O ser humano cativa com afeição e algema com servidão.

O ser humano é águia altiva que recorta horizontes vastos. E é também verme que rasteja. O ser humano empolga pelos avanços científicos e históricos, e frustra pela vulgaridade e pelo aviltamento. A fronte do ser humano roça a face de Deus, mas seus passos escorregam na lama. O ser humano dignifica-se pela fidelidade e abastarda-se pela traição.

O ser humano é paradoxo antropológico. Muitos exaltam a grandeza do ser humano. Outros muitos lhe estigmatizam a vileza. O ser humano não se define por conceito matemático. É seqüência de contrastes. É campo de “joio e trigo”. É ser em devenir. Pode acertar e pode errar. Pode fazer-se e desfazer-se. Mas abriga potencial para re-fazer-se. O ser humano é capaz de eliminar o ódio, a perversidade, a destruição. E pode propulsar energias criadoras inteligentes que amadureçam a consciência, redirecionem a liberdade, cultivem o amor, promovam a justiça, efetivem a solidariedade e assumam a responsabilidade.

O ser humano é oscilante. É paradoxo. Avança e recua, atrai e expulsa, ergue-se e recai, edifica e pulveriza, arrisca-se e amoita-se. O ser humano não é apenas herança. É decisão. É gênese existencial. É conquista de todos os dias. Lidar com o ser humano é lidar com o paradoxo.

ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002, pp. 7-8.

TEXTO 04 - SUPERAÇÃO DIALÉTICA

Pode-se dizer que filosofia é hermenêutica do significado. Interpreta a realidade para compreender-lhe o sentido. A filosofia busca o significado “arqueológico” do ser humano, como quer Michel Foucault. Muitos usam o ser humano em vez de compreendê-lo.

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Para compreender o ser humano é preciso vê-lo como processo, como fenômeno em andamento. A visão fixista estratifica o ser humano e mumifica-lhe o real significado. O ser humano pulsa, está em mutação. É cachoeira de decisões. Jamais concluído. Todorov diz lucidamente: “O homem é ser incompletamente determinado, potencialmente bom e potencialmente mau. Tudo é possível. Nada é certo”. O ser humano pode avançar ou recuar, endireitar-se ou entortar-se, afirmar-se ou negar-se. Abriga potencial para construir e para arruinar.

O ser humano é mistura de bem e de mal, de solidariedade e de egoísmo, de afirmação e de negação. É Eros e Tânatos, é vida e cinza, é amor e ódio, é justiça e injustiça, é inocência e malícia. O ser humano morre para defender causa justa e mata para salvaguardar interesses injustos. Não é estereotipado. É oscilação. Dança entre ser e não-ser, escorrega entre assumir e fugir.

Há que manter a perspectiva da mistura, e não do dualismo. Costuma-se separar a humanidade entre bons e maus, entre ilibados e culpados. É a falsa dicotomia dos “dois lados”. Do lado de cá, estão os bons e os puros. Do lado de lá, estão os maus e os sujos. Esse dualismo é ingênuo e discriminatório. Os bons olham os maus com superioridade, e os maus olham os bons com náusea. Rigorosamente, não há banda de puros e banda de impuros. Cada ser humano é mistura de bem e de mal, de trigo e de joio, embora a dosagem do bem e do mal possa variar de pessoa para pessoa. Aqui vigora a dialética, e não o dualismo.

O ser humano é protótipo de dialética. Vive a contradição entre o bem e o mal no cerne de sua existência. O confronto dialético não existe apenas entre o bando dos perfeitos e o bando dos malvados. Trava-se sobretudo entre o crescer e o fenecer dentro da pessoa. Há lutas entre grupos e sistemas, mas aqui salientamos o conflito dilacerante entre a força construtiva e a força destrutiva na medula do existir pessoal. No ser humano há potencial ontogenético que gera o ser, e há potencial niiligenético que espalha a devastação do nada. Luta entre ser e não-ser.

Por não estar totalmente determinado, o homem é essencialmente mutável. É Metá-noia, termo grego que significa “mudança” no pensar, no sentir, no agir, no conviver. Metá-noia tem profundo sentido filosófico, psicológico, ético e teológico. É expressão que convida o ser humano a transformar-se para converter o mal em bem, o servilismo em libertação, o ódio em amor, a degeneração em regeneração. Se o ser humano cultivar, dentro de si, a ruína que esfarela a vida, o joio que envenena o trigo, o nada que incinera o crescer, estará precipitando sua própria demolição.

O ser humano desafia a si mesmo. É potencial grandioso em luta com potencial trágico. É dialética antropológica explosiva. Sartre dizia que o homem “está condenado a ser livre”. Acrescentaríamos que o ser humano está condenado a superar-se. A extrair afirmação de sua negatividade, a extrair emancipação de sua dependência, a extrair audácia de sua timidez, a extrair clamor de seu silêncio, a extrair criatividade de sua inércia, a extrair ser de seu nada, a extrair vida de sua agonia. O ser humano responde aos desafios, com a superação dialética.

ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002, pp.8-10.

TEXTO 05 - CONTÁGIO TANATOLÓGICOTânatos é tido como deus da morte. É filho de Nix, a noite. Sísifo conseguiu algemar Tânatos. E, durante certo

período, a morte cessou de devastar a vida da humanidade. Entretanto, Zeus decidiu libertar Tânatos, que, desalgemado, eliminou Sísifo. E, então, Tânatos voltou a espalhar as forças mortíferas pelo mundo.

Tânatos distribui a morte “natural” provocada pela velhice, por doenças e acidentes meteorológicos. Nessa área, Tânatos mantém-se moderado porque os avanços científicos estão favorecendo a vida humana. Mas, em outras áreas, Tânatos demonstra fôlego e apetite, e age com fúria. Não lhe basta repartir o “morrer” lentamente. Tem pressa. Mata com voracidade. Tânatos atiça chacinas e extermina multidões barbaramente. E a eficiência tanatológica está crescendo disparadamente.

Matar tornou-se prática rotineira. Programam-se chacinas. Mata-se com frieza, cinicamente. Executam-se existências de forma hedionda. Assassina-se para humilhar vítimas. Esbagaçar o ser humano é festa. O código manda matar com arrogância, para ostentar poderio, exibir valentia e arrotar impunidade. Matadores profissionais, bandidos sofisticados e, até, detentores de cargos públicos assassinam e esbanjam orgasmo tanatológico. Babam de prazer mórbido. Usufruem felicidade de monstros. Amedrontam e silenciam testemunhas. O império de Tânatos desafia a sobrevivência da humanidade.

Há o contágio tanatológico. Tânatos oferece a pedagogia do homicídio. Propaga a mentalidade assassina e ensina a matar. Difunde-se a crença de que matar é coisa banal, é “normal”. As pessoas são contaminadas pela ferocidade destrutiva. Introduz-se a cultura do assassinato. E não falta o culto ao exterminador, ao ditador sanguinário.

Um fenômeno deve preocupar a quem não perdeu o sentido de humanidade. Tânatos mata com a violência das armas. E mata também com a violência da servidão, do desemprego, do salário insuficiente, da desnutrição, da doença e do pânico. E pode acontecer que o contágio tanatológico consiga encharcar os brasileiros de ódio e crueldade. E aí será uma tragédia. É oportuno lembrar que Tânatos tem coração de ferro e entranhas de bronze. É impiedoso. A contaminação tanatológica pode metalizar a consciência dos brasileiros e despojá-los do senso de humanidade. Seríamos povo sem alma, sociedade barbarizada. A rápida propagação de práticas cruéis já constitui sintoma alarmante.

Perante o cenário tanatológico, alguns se sentem assustados e revoltados. Outros permanecem perplexos e entorpecidos. Hipno era o “sono” que adormecia as pessoas. Hipno tem o poder de hipnotizar, anestesiar a sociedade. Curioso é que Hipno era irmão gêmeo de Tânatos. A mitologia sugere que Hipno adormece os clientes e Tânatos mata-os. A sociedade que se mostra insensível em relação a tantos assassinatos parece sonolenta, hipnotizada. Bernard Durei diz que “o mal muito propagado hoje é a apatia” .

É hora de despertar para atalhar o surto tanatológico que ensangüenta casas, ruas, praças, bairros e famílias. E reconhecer que o país tem problemas graves e crônicos que exigem soluções radicais. É imprescindível descobrir e extirpar

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as causas que desencadeiam o extermínio de tantos seres humanos. É urgente ativar a paixão biofílica, que fomenta o amor à vida, para sustar a demolição tanatológica.

ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002, pp. 10-12.

TEXTO 06 - PÓS-MODERNIDADESomos pós-modernos. A pós-modernidade é fenômeno recente. Emergiu da insatisfação perante a modernidade. O

prenúncio da pós-modernidade pode ter sido Nietzsche, que alardeou a supremacia de Zaratustra, e prometia o “fim das verdades velhas” e a “transmutação dos valores” em Crepúsculo dos ídolos. A pós-modernidade teve vários afluentes. Husserl procura intuir as essências, Kierkegaard resgata a existência concreta, Jaspers caça a existência inobjetiva, Gabriel Marcel sublinha a intersubjetividade, Bloch levanta o “princípio-esperança”. A Escola Crítica de Frankfurt fustiga a “razão instrumental” por meio de Horkheimer e Adorno, e propõe a “ação comunicacional” por meio de Habermas. Ultimamente, Lyotard interpreta a morai “volatizada” e Richard Rorty reivindica nova “Arché”.

A partir de 1980, intensifica-se a era da informática, explode o surto místico-psíquico-religioso e instaura-se a globalização neo-capitalista. A pós-modernidade revela aceleração histórica. O filósofo Lyotard diz que “hoje a vida anda depressa”. O ser humano sente-se acossado pelos acontecimentos e atropelado pelas inovações tecnológicas.

Há setores na pós-modernidade que preferem a intuição à racionalidade, a experiência subjetiva aos sistemas metafísicos. Cultivam o emocionalismo, o sincretismo, o prazer. Mas toleram a economia desumana que deteriora populações inteiras.

A pós-modernidade emparelha vertentes solidaristas e vertentes individualistas. Apresenta grandes conquistas e grandes devastações. Por isso, o senso crítico deve distinguir entre o que é recente e o que é válido. O recente pode ser construtivo e também pode ser nefasto. Nem sempre o “último lançamento” é o melhor. Na pós-modernidade, há inegáveis avanços e selvagens retrocessos. Espetaculares conquistas científico-tecnológicas. Mas aumentou a violência, ampliou-se o desemprego, agravou-se a miséria e disseminou-se a prostituição infantil. Poderíamos justificar essas iniqüidades alegando que são pós-modernas? Podem ser pós-modernas, mas criminosas. Podem ser atuais, mas perversas. Nesta questão, o critério de julgamento não é cronológico, mas é o nível da qualidade de vida sociocultural da população.

Não devemos destilar pessimismo nem refugiar-nos no passado. Somos pós-modernos. Vivemos no presente, vivemos o presente. Mas também devemos viver contra o presente que arruína a humanidade. Não poderemos aderir gregariamente à última novidade, seja econômica, tecnológica, cultural, moral ou religiosa. O que importa é impulsionar tudo o que realiza o ser humano. E desterrar tudo o que o desrealiza. O significado da pós-modernidade deverá ser avaliado pelo que está acontecendo ao ser humano.

ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002, pp. 13-14

TEXTO 07 - REINVENTAR-SE Urano gerava filhos e os devolvia ao útero da esposa Géia, para que eles não lhe tomassem o trono. Revoltada, Géia

entregou uma foice ao filho Krónos, que amputa a genitália do pai, Urano. Krónos esposa a irmã Réia e gera filhos. Advertido de que os filhos o destronariam, Krónos engole-os à medida que nascem.

Krónos é semanticamente Khrónos, o tempo. É imagem do tempo porque gera e engole os filhos, como o passado engoliu o presente e o presente vai engolindo o futuro. É o fluir, a sucessão cronológica, a passagem do tempo.

O tempo influi nos acontecimentos, mas o homem pode mais. Khrónos é o tempo, a duração. Ánthropos é agente criador. O homem trabalha o tempo e organiza o universo com inteligência. E faz história. A humanidade tende a hipervalorizar o tempo. Projeta suas aspirações no tempo. Espera que o tempo lhe traga a felicidade. Contudo, transferir ao tempo o que é produzido pela humanidade é alienação. É adiar para o futuro o que se deveria fazer no presente é fuga.

O agente histórico é o homem, e não o tempo. Durante o mesmo período de tempo, pode haver grandes conquistas e grandes retrocessos, pode ser criada nova técnica para curar enfermidades e também nova técnica para mutilar vidas. Na mesma época, coexistiram a terna Madre Teresa, de Calcutá, e o cruel Augusto Pinochet.

A questão fundamental não é perguntar o que o tempo nos trará. A questão vital é definir o que a humanidade irá construir. Se história de vida ou de morte, se história de crescimento ou de ruína. Não basta assistir ao desfile do tempo. Há que agir ousadamente. Há que planejar e criar nova humanidade. Ricoeur diz que Goethe reescreveu o Prólogo de João, ao afirmar: “No princípio era a ação”. O filósofo Vattimo revela: “Minha existência leva-me a entrar ativamente na história”. E o teólogo Schillebeeckx lembra que Deus confiou ao ser humano a função de Abad, que, em hebraico, significa “cultivar”. Cultivar é prolongar a criação. É germinar nova historia. É preencher carências.

A preocupação humana deve concentrar-se no Kairós. Kairós é decisão radical. É optar, assumir e realizar. Kairós é salto histórico. Rompe com o passado, estala estruturas, revolve consciências e muda vidas. A cronologia mede o curso do tempo, sem ponderar situações humanas e desumanas. A kairologia avalia a situação concreta em que se encontra a humanidade. E mostra as condições reais em que a humanidade se realiza e as condições em que se desrealiza. O olhar de Kairós enxerga aqueles que transitam pelas amplas estradas. E enxerga também aqueles que estão encostados à beira das estradas. Kairós impacienta-se porque o tempo passa, e grande parte da humanidade continua “engolida” pelas crateras do sofrimento, da miséria e do desespero.

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Importa buscar caminhos para nova gênese humana. É necessário ser Kairós, e não apenas Khrónos. Ser ruptura e não apenas continuidade. A ilusão cronológica leva a pensar que mudança do tempo significa mudança de vida. Entretanto, verifica-se que o tempo corre e muda, mas os sistemas políticos e econômicos perversos permanecem imutáveis.

Não basta mudar o curso do tempo. Há que mudar a vida da humanidade aviltada. É urgente construir a história da justiça, em vez da história da desigualdade; construir a história da dignidade, em vez da história da miséria; construir a história da maioria silenciada, em vez da história da minoria falante. A história não está encerrada nem lacrada. E a sociedade brasileira há de acelerar o ritmo de gênese. E ter ousadia para reinventar-se.

ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002, pp. 14-16.

TEXTO 08 - FATALISMO CRONOLÓGICONo cosmo, a primazia cabe ao ser humano. O devenir humano é movido pela antropogênese, e não pela cronogênese.

Não é o tempo que define o rumo da vida. É o ser humano que planeja e conduz a existência, bem ou mal.Atribuir os acontecimentos históricos e as situações sociais ao tempo leva ao fatalismo cronológico. A mentalidade do

fatalismo cronológico transforma o tempo em fetiche e esvazia o ser humano. A mágica do tempo criaria leis, instituições, igualdade e desigualdade, riqueza e miséria, conquistas e catástrofes. A história da humanidade seria produto mecânico do cronologismo.

O fatalismo cronológico difunde a crença da imutabilidade histórico-social. Leva a acreditar que o tempo traça o destino humano. Dessa forma, os grupos fracos e dependentes sentem-se impotentes. E as vítimas sociais não teriam força para modificar a sociedade que as esmaga. Não adiantaria lutar contra o tempo. Por isso, os que se enriquecem com a atual sociedade injusta tentam mostrar que é inútil querer transformá-la. Nada imobiliza tanto os empobrecidos como incutir-lhes a falsa idéia de que é impossível mudar o país.

Mas a verdade é outra. Leis, organizações, programas governamentais, tramas políticas, desemprego, privilégios de uns e carências de outros, reformas e medidas protecionistas são produtos de decisão e ação de pessoas, de grupos e nações. Setores organizados lutam ferozmente para impedir mudanças sociais, para sobrepor seus lucros às necessidades da população. Não há fatalismo cronológico. Pode haver banditismo social, político e econômico em plano nacional e internacional.

A grande preocupação deve ser o homem, e não o tempo. A questão medular é a deterioração sociobiológica a que está submetida grande parte da humanidade. E as soluções não serão fornecidas pela cronologia, pois a humanidade pode varar séculos e continuar sendo devorada pela miséria. A solução terá de vir de pessoas, de grupos e povos que decidam lutar para que as sociedades sejam redefinidas, replanejadas e recriadas. Não se pode tolerar que o fatalismo cronológico imobilize a sociedade.

Há que cultivar a reflexão e a práxis “emancipatória”, de que fala o filósofo J. Habermas. O ser humano precisa desalienar-se, adquirir senso crítico, decidir-se e participar. Não pode transferir sua responsabilidade ao tempo. Em todo ser humano existe potencial emancipatório. Também o morador de rua contém energia emancipatória que deve ser ativada.

O potencial emancipatório não se deixa enganar nem manipular. Às vezes, importa ser “incrédulo”. Não se deve acreditar em impostores. Teríamos grande avanço se milhões de empobrecidos e discriminados se mostrassem incrédulos perante os mistificadores da humanidade. A força emancipatória há que levantar a autonomia antropológica subterrânea que reside em cada ser humano, também nos espoliados. É urgente desabafar os reprimidos e sublevar a autonomia que está sendo degolada pelo sistema cruel que domina o mundo. Em todo ser humano há protagonismo ontológico que deve assumir posições na linha de frente da história. A criatividade resoluta estala o fatalismo cronológico, fazendo germinar a humanidade que ainda não somos, mas que havemos de ser.

ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002, pp. 16-17

TEXTO 09 - DECISÃO CRIADORAPerante o tempo, nossa atitude deve ser mais de iniciativa do que de expectativa. Há que tecer os acontecimentos, em

vez de esperar que surjam automaticamente. Importa ser agente e não só espectador da história. O fatalismo cronológico esvazia a ação humana, porque atribui ao tempo a destinação histórica. Com essa mentalidade, o ser humano apassiva-se. Espera de braços cruzados. Aguardar pode ser cômodo, mas não é eficaz.

O sujeito da criatividade é o ser humano, e não o tempo. A matriz criativa, consciente e livre é o pulso da humanidade. Transferir o potencial criador ao tempo seria suicídio antropológico e falência histórica. Confiar a feitura da história ao tempo é alienação. É perder a identidade humana que origina entes e valores.

O filósofo Jurgen Habermas abre análise elucidativa. Em seu livro Textos e contextos, lembra que Hitler, Charles Chaplin, Wittgenstein e Heidegger nasceram no mesmo ano de 1889, mas criaram “destinos” diferentes e, até, opostos. Hitler foi o ditador feroz, exterminador de milhões de vidas humanas. Chaplin, em nome da inteligência e da liberdade, estigmatizou o tirano com o filme O grande ditador. Wittgenstein nasceu de família judaica. Especialista em matemática, tornou-se filósofo da linguagem. Paradoxal. Místico, angustiado, Wittgenstein escreve a Bertrand Russel: “Sinto-me a um passo da loucura”. Heidegger foi filósofo do Sentido do ser. Pensador denso, referência obrigatória para a filosofia. Não demonstrava tormento psicológico, como Wittgenstein. Mas cortejou o nazismo.

São quatro figuras históricas nascidas no mesmo ano, mas com biografias heterogêneas e contrastantes. Isto mostra que seres humanos da mesma época podem construir rumos, vidas e histórias com significados diferentes e até contraditórios. Embora ajudada pela sucessão cronológica, a humanidade define-se pela decisão antropológica. O fundamental não é o fluir do tempo, mas a Diákrisis, ação de decidir. É a Diákrisis, a decisão criativa que gera história, cultura,

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economia, política, educação, tecnologia e transformação de sistemas. Se o tempo plasmasse a humanidade, os habitantes da mesma era seriam todos iguais.

Não se espere que o tempo, por si, traga a solução dos problemas ‘‘crônicos”. Tem-se repetido que temos dívida social a resgatar no país. Contudo, o tempo passa, a economia cresce, a informática avança, riquezas concentram-se, mas a dívida social amplia-se porque se agravam a desigualdade e a miséria. A dívida social é mesmo “crônica”, isto é, perdura no tempo. Alonga-se com o tempo. Se a duração do tempo fosse solução, já seríamos povo muito mais justo. É mistificação cronológica dizer: “Ainda não chegou a hora das soluções”. A hora de solucionar problemas graves já chegou e foi desperdiçada muitas vezes. Não se cobre do tempo a solução que deve vir da sociedade.

Nossa gente reclama Diákrisis. Exige decisão corajosa e iniciativa criadora para gerarmos outra história, outra vida, outra esperança. Este é o apelo fascinante que deciframos no rosto padecido de nosso povo injustiçado, mas ainda não desesperado.

ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002, pp. 18-19.

TEXTO 10 - PROJETO EXISTENCIAL O ser humano é a realidade fundamental em nosso cosmo. É universo ontológico. E deve ser visto e tratado como

prioridade. Defender o legítimo antropocentrismo não é praticar antropolatria. Alguns colocam a prioridade no mercado, no poder, na especulação financeira, no lucro. Mas isso hipervaloriza elementos de ordem instrumental e deprecia o significado maior que é o ser humano. Cada ser humano é nexo de consciência, de decisão, de criatividade e responsabilidade. Mesmo esmagado, o ser humano é gente, e não mercadoria.

O ser humano é projeto antropológico. Nasce iniciado, mas não concluído. Desenvolve-se gradativamente. Estrutura-se por escolhas livres e por ações pessoais. Em grande parte, o ser humano faz-se por si mesmo. Há de perguntar-se quem é e quem deseja ser, pois não basta existir. É preciso conferir sentido ao existir. Enquanto projeto, o ser humano é chamado a superar ambigüidades, a escolher rumo construtivo, a definir a identidade pessoal, a autoprogramar-se e a optar pelas causas humanas substanciais.

Na tarefa de autocriar-se, o ser humano não pode ser substituído por outros. Elabora-se a si mesmo. Contudo, pode e deve ser ajudado por agentes e fatores sociais. Mas continua a ser o artífice principal na efetivação de seu projeto existencial.

Há setores que procuram interferir no projeto existencial e social das pessoas. Tentam substituir o projeto pessoal pelo projeto do sistema vigorante. Temem que o ser humano adote posição autônoma, e contrarie os interesses do modelo dominante. Sabem que o ser humano, por frágil que seja, é “perigoso”. O projeto de vida independente ameaça a padronização. Com argúcia, François Wahl escreve: “Todo sujeito subverte aquilo que o precede, faz ruptura e salto”. Por isso, os donos do mundo apressam-se a impedir que surjam projetos antropológicos subversivos.

Para sufocar o projeto original autônomo, adotam-se pedagogias massificantes. Procura-se adaptar as pessoas às normas existentes e levá-las a reproduzir-se como cópias da situação predominante. Enquadra-se o rebanho humano no código uniformista. Impõe-se à população o paradigma oficial. E quem diverge do “consenso” é condenado como herege. Assim, o mundo continua a ser o mesmo, dominado pelos mesmos, usado pelos mesmos, usurpado pelos mesmos.

É hora de provocar a emersão do ser humano autônomo. É hora de suscitar a consciência critica, que não se deixa enganar. É hora de fermentar a reflexão emancipatória que se mantém insubmissa. É hora de amadurecer um projeto original que levante gerações de seres humanos independentes e responsáveis. É hora de encorajar o ser humano a concretizar seu projeto de vida comprometido com a justiça, com a solidariedade, com a igualdade social e com a dignidade humana. E comprometido com a erradicação da injustiça, da violência, da miséria e da exclusão humana.

Há soluções políticas, econômicas, científicas e tecnológicas. Mas a solução fontal é o ser humano. Para isso é preciso que o ser humano queira ser solução. Queira ser gente.

ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002, pp. 21-23.

TEXTO 11 - PENSAR E AGIRA realidade pode ser enfocada pela ótica fragmentária e pela ótica articulada. A posição fragmentária focaliza aspectos

da realidade, enquanto a posição articulada abrange o todo da realidade. A visão fragmentária dissocia teoria e prática, e a visão articulada integra saber e agir.

“Teoria” é ver, pensar, raciocinar, conhecer. “Prática” é ação, práxis, realização concreta. A mentalidade fragmentária parcela o conjunto. Alguns preferem a teoria e rejeitam a práxis. Outros preferem a prática e refugam a teoria. A mentalidade articulada associa teoria e prática, pensar e agir, conhecer e produzir. A teoria pode oferecer a amplitude da verdade e a prática pode oferecer a ação da mudança. Essa postura estabelece reciprocidade entre pensamento e ação, entre ver e fazer, entre projetar e edificar. Teoria e prática deveriam andar juntas, e não divorciadas. A separação entre teoria e prática gera incoerência que prejudica a ciência e a vida. Por isso, é importante a articulação que une o ver e o fazer, que engloba teoria e prática.

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É atual o que diz Karl Marx na Tese 11 sobre Feuerbach: “Os filósofos nada mais fizeram do que interpretar o mundo de vários modos. Ora, o que interessa é transformá-lo”. É um chamado para agir e transformar a realidade desumana, e não apenas contemplá-la ociosamente.

O cientista Stephen Jay Gould fala em “trágico otimismo”. O cientista estuda a evolução da humanidade, e diz que, em geral, a sociedade vê os problemas humanos e percebe as necessidades sociais. Isto é motivo de “otimismo”. Mas J. Gould acrescenta que esse otimismo tem seu lado “trágico”, porque a humanidade reconhece os problemas graves, mas não se dispõe a solucioná-los. E, então, cava-se grande distância entre o saber e o agir.

O trágico é que o sistema econômico sabe que há miséria hedionda, mas não promove a transformação da sociedade. A política sabe o que é preciso fazer para eliminar a injustiça, mas não o faz. O governo sabe que a fome deteriora a população, mas continua a ignorar as necessidades vitais dos desnutridos. Conceituados economistas demonstram que é possível erradicar a pobreza. Mas não são ouvidos.

É necessário superar o “trágico otimismo” com o “otimismo militante”. Este otimismo luta para mudar situações que humilham o ser humano, e arrisca-se para impedir que o “futuro seja fatalidade cruel”.

Não basta saber que há milhões de seres humanos demolidos por carências impiedosas. É preciso aplicar o saber em soluções humanizantes. Há que fazer o que se pensa. Urge articular o pensar e o agir. Pensar sem agir redunda em esterilidade. E agir sem pensar resulta em ativismo descabeçado. A humanidade atual é chamada a pensar lucidamente e a agir coerentemente.

ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002, pp. 31-32

TEXTO 12 - SOCIEDADE AVANÇADA Há o avanço cronológico. É o curso do tempo. O hoje avança rumo ao amanhã. O tempo realimenta-se com o depois,

com o futuro. E há o avanço antropológico. É o avanço do ser humano. O homem é itinerante ontológico. Faz-se mais-ser em cada passo. Avançar humanamente é aprofundar a consciência, é dialogar, é autodeterminar-se. O ser humano avança quando matura suas potencialidades, quando se pensa a si mesmo, quando se preocupa com o mundo que o envolve.

Atrasado é o antiquado, o superado, o que perdeu a utilidade. E avançado é o atualizado, o que está na linha de frente e propõe soluções novas. Freqüentemente, atrasado e avançado são vistos através do critério cronológico. Atrasado seria o passado, e avançado seria o presente. Mas essa visão é superficial e incompleta. Atrasado e avançado devem ser entendidos pelo significado humano, e não pela temporalidade. Nesta perspectiva, atrasado é o que perdeu seu valor, e avançado é aquilo que aperfeiçoa a humanidade. Dessa forma, o atrasado é inútil ou nocivo à sociedade. E o avançado promove a evolução da humanidade.

Não se deve confundir atrasado com passado ou antigo, nem confundir avançado com presente ou novidade. Nem sempre o passado é atrasado. E nem sempre o atual é avançado. Há valores do passado que continuam atuais e benéficos. E há situações e procedimentos da atualidade que são retrógrados e maléficos.

A escala de valores nem sempre está vinculada a fases do tempo. Podemos ter valores do passado que continuam a dignificar a humanidade. E podemos ter práticas do presente que degradam a humanidade. Há produções filosóficas, científicas e artísticas do passado que ainda são atuais. E, no presente, há ações cruéis que nos repugnam. No Sudão ainda há escravatura e comércio de escravos. Segundo a ONU e o Banco Mundial, a pobreza continua a aumentar. Na Inglaterra, cresceu o número de pobres em 20 anos de neoliberalismo. A economista Nancy Birdsall, ex-vice-presidente do BID pelos Estados Unidos, diz na revista Foreign Policy que a renda de 20% das famílias mais pobres dos EUA vem decaindo desde 1970. Esta posição é documentada também por Rudiger Dornbusch, professor de economia do Massachusetts Institute of Technology. Citando “os dados econômicos mais recentes” referentes aos Estados Unidos, Dornbusch escreve em novembro de 2000: “A parcela da renda nacional nas mãos das famílias que compõem a camada de 20% mais pobres vem sendo a menor em 30 anos”. No Brasil atual, há chacinas selvagens e desigualdade acintosa. São cenários de atraso no mundo pós-moderno.

A sociedade que garante os direitos humanos a todos, que efetiva a justiça social e respeita o valor das pessoas é sociedade avançada. Mas a sociedade que permanece neutra perante a desigualdade injusta e que privilegia ricos e espolia pobres é sociedade atrasada.

Em Manuscritos econômicos e filosóficos, de 1844, Karl Marx escrevia com visão futurista: “O trabalhador fica mais pobre à medida que produz mais riqueza. O trabalhador torna-se uma mercadoria ainda mais barata à medida que cria mais bens”. Há mais de século e meio, Marx prenunciava, com impressionante acerto, a ditadura do mercado imposta aos trabalhadores de hoje, pelo sistema neoliberal. Neste caso, Marx foi avançado, e o capitalismo neoliberal atrasado.

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Para avaliar avanço e retrocesso da humanidade, há que adotar o critério antropológico, e não apenas o cronológico. Cronologicamente estamos na pós-modernidade, mas antropologicamente temos vastas áreas de retrocesso. A pior mistificação é usar a imagem da pós-modernidade cronológica para disfarçar e esconder a realidade antropológica regressiva. Apresenta-se a máscara cronológica progressista para ocultar a degradação antropológica que envergonha a humanidade.

O senso crítico é indispensável para enxergar onde estão os avanços e onde estão os retrocessos. Projetam-se setores avançados como se representassem toda a população, e conclui-se que a sociedade vai muito bem. Mas não podemos esquecer que, na era da revolução informática, há milhões de seres humanos demolidos pela miséria. Avanços espetaculares e retrocessos aviltantes são contemporâneos. São duas humanidades “estranhas”, segundo análise do sociólogo Zygmunt Bauman.

Há que manter os avanços humanizantes, mas também eliminar os retrocessos desumanizantes. A situação concreta em que vive o ser humano é o parâmetro para medir o avanço e o atraso da humanidade. A verdadeira sociedade avançada é aquela em que o todo da população usufrui qualidade de vida consentânea com a dignidade humana.

ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002, pp. 46-48.

TEXTO 13 - CRITICIDADE Uma das grandes potencialidades do ser humano é a criticidade. Criticidade deriva do grego e significa “discernir,

interpretar, julgar, distinguir entre verdade e erro”. A criticidade mora na medula do ser humano. Sem criticidade, o ser humano é “compacto”, como diz E. Bloch. E deixa de ser “espaço à vida aberta”. Sem criticidade, o ser humano perde a respiração racional, embota a inteligência.

A criticidade manifesta-se de várias formas. A criticidade óptica atua pelo olhar. Uma das maravilhas humanas é o olhar crítico. O olhar crítico desvenda as entranhas da realidade. Capta a intimidade, dedilha nervuras. Olhar crítico não só registra o que aparece, mas sobretudo garimpa o que se esconde. O olhar crítico não se detém na configuração dos fatos, mas esmiúça-lhes as motivações. Descobre o sutil. Sabe lidar com ciladas. Debulha a espiga capciosa. O olhar crítico desfia urdiduras para destrançar trapaças. Desaponta os que escorregam sob a penumbra. Surpreende os astutos.

A criticidade hermenêutica é o conhecimento interpretativo, é a compreensão que vai além do simples olhar. Há olhar embasbacado. Mas não basta ver fatos e procedimentos. Importa extrair deles o significado real, as motivações ocultas. Os mesmos fatos podem abrigar razões diferentes. Alguém comparece e garante que vai resolver os problemas da sociedade. Mas qual é o verdadeiro sentido dessa promessa? É aí que se situa a criticidade. Ver e ouvir estão ao alcance de quase todos. Mas é preciso avaliar o que está escondido naquele ver e ouvir. Paul Ricoeur diz que interpretar é decifrar o sentido oculto no sentido aparente. A sociedade seria muito diferente se praticasse a criticidade hermenêutica, se fosse além das rotulagens que embrulham a população. Não basta ver o acontecimento. O principal é descobrir o que está por trás do acontecimento.

A criticidade kairológica fundamenta a opção. É indispensável que o senso crítico embase solidamente a decisão humana. Perante determinados cenários, as pessoas são provocadas a aderir ou a rejeitar, a concordar ou a discordar. Decidir é definir-se existencial, social e historicamente. Escolher exige apurada criticidade. Muitos aderem a propostas sem avaliação crítica. E empenham apoio em projetos que irão prejudicar a sociedade. Avalizam ingenuamente ou maliciosamente propostas que depois se mostrarão nocivas. A falta de decisão crítica tem legitimado ditaduras políticas, economias selvagens, práticas corruptas e calamidades sociais.

A criticidade praxiológica estimula e orienta o agir humano. Há ações que constroem e ações que destroem. Há atividades que promovem a vida e atividades que a devastam. A criticidade suscita atitudes que amadurecem pessoas e sociedades. É aliada da autonomia humana. O filósofo Gadamer propõe a “criticidade emancipatória”, que leva o ser humano a tornar-se agente de emancipação individual e coletiva. A criticidade tem paixão pela verdade e pela liberdade. Não quer o ser humano cego nem escravo. Mas lúcido e autônomo.

ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002, pp. 51-52.

TEXTO 14 - QUESTIONARPerguntar e responder são atributos do ser humano. Roger Garaudy diz que os animais emitem certas respostas, mas

não perguntam. O ser pensante define-se mais pelo perguntar do que pelo responder. Perguntar é buscar. Buscar sentido. Quem pergunta procura descobrir a verdade. E perguntar denota certa insatisfação. Pergunta-se para obter o que falta, para entender o que ainda não se decifrou.

Questionar é mais que perguntar. É um perguntar ousado. Questionar contém desafio, provocação. Leva dose de irreverência.

Questionar é interpelar. Coloca dúvidas nas certezas. Desconfia das sentenças infalíveis. O questionamento traz germe de discordância. Questiona-se não apenas para recolher uma resposta, mas porque se duvida de certas propostas. O questionar submete informações e fatos a rigoroso exame crítico. Questionar é processo que desenfumaça a verdade. O questionamento rasga a inautenticidade porque exige que versões e procedimentos se manifestem desvendados e comprovados. Aldo G. Gargani escreve que “toda resposta filosófica carrega uma questão que a lacera interiormente e que a ultrapassa como resposta”.

Verifica-se que a humanidade tem sido chamada muito mais a responder do que a questionar. Essa tradição não é inocente. É hábito que debilita o ser humano e o subordina a interesses pedagógicos, políticos, econômicos, sociais, culturais e religiosos. Nota-se que a sociedade vive e movimenta-se orientada por respostas preestabelecidas, que garantem a ordem vigente e perpetuam normas já sancionadas. Em geral, temos sociedades de resposta, e não sociedades de questionamento. As sociedades de resposta são conservadoras, socialmente estratificadas. Resistem a mudanças. Temem o questionamento.

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As sociedades de questionamento abrem espaço a rupturas históricas e a alterações de hegemonia. E isto assusta. Por isso, tende-se a repetir a resposta encardida e a neutralizar o questionamento rebelde.

Para questionar é preciso ser livre. Os escravos respondem, mas não questionam. Os subordinados respondem aos senhores, mas não os questionam. O atual sistema mundial e nacional exige resposta fiel e servil. Aqueles que discrepam desse modelo “totalitário” são suspeitos. E os donos do poder advertem: respondam, e não perguntem. E, acima de tudo, não questionem.

No entanto, mais do que nunca, é necessário questionar o modelo que nos estrangula. E questionar com audácia. Questionar a espoliação da autonomia nacional e a descaracterização da identidade do povo brasileiro. Questionar as restrições econômicas impostas ao país e os privilégios concedidos ao capital internacional. Questionar ignomínias sociais e versões oficiais deturpadas.

Importa mais questionar do que responder. Se a sociedade brasileira questionasse mais, teríamos menos erros praticados por governo submisso a aliados externos. Muitos abusos têm prosperado porque contam com a complacência da sociedade, que não os questiona frontalmente. Questionar práticas lesivas ao país é defender direitos inalienáveis. É robustecer a consciência crítica nacional.

ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002, pp. 54-56..

TEXTO 15 - NÃO NASCEMOS PRONTOS! O sempre surpreendente Guimarães Rosa dizia: “o animal satisfeito dorme”. Por trás dessa aparente obviedade está um dos

mais fundos alertas contra o risco de cairmos na monotonia existencial, na redundância afetiva e na indigência intelectual. O que o escritor tão bem percebeu é que a condição humana perde substância e energia vital toda vez que se sente plenamente confortável com a maneira como as coisas já estão, rendendo-se à sedução do repouso e imobilizando-se na acomodação.

A advertência é preciosa: não esquecer que a satisfação conclui, encerra, termina; a satisfação não deixa margem para a continuidade, para o prosseguimento, para a persistência, para o desdobramento. A satisfação acalma, limita, amortece.

Por isso, quando alguém diz “fiquei muito satisfeito com você” ou “estou muito satisfeita com teu trabalho”, é assustador. O que se quer dizer com isso? Que nada mais de mim se deseja? Que o ponto atual é meu limite e, portanto, minha possibilidade? Que de mim nada mais além se pode esperar? Que está bom como está? Assim seria apavorante; passaria a idéia de que desse jeito já basta. Ora, o agradável é quando alguém diz: “teu trabalho (ou carinho, ou comida, ou aula, ou texto, ou música etc.) é bom, fiquei muito insatisfeito e, portanto, quero mais, quero continuar, quero conhecer outras coisas

Um bom filme não é exatamente aquele que, quando termina, ficamos insatisfeitos, parados, olhando, quietos, para a tela, enquanto passam os letreiros, desejando que não cesse? Um bom livro não é aquele que, quando encerramos a leitura, o deixamos um pouco apoiado no colo, absortos e distantes, pensando que não poderia terminar? Uma boa festa, um bom jogo, um bom passeio, uma boa cerimônia não é aquela que queremos que se prolongue?

Com a vida de cada um e de cada uma também tem de ser assim; afinal de contas, não nascemos prontos e acabados. Ainda bem, pois estar satisfeito consigo mesmo é considerar-se terminado e constrangido ao possível da condição do momento.

Quando crianças (só as crianças?), muitas vezes, diante da tensão provocada por algum desafio que exigia esforço (estudar, treinar, emagrecer etc.) ficávamos preocupados e irritados, sonhando e pensando: por que a gente já não nasce pronto, sabendo todas as coisas? Bela e ingênua perspectiva. É fundamental não nascermos sabendo e nem prontos; o ser que nasce sabendo não terá novidades, só reiterações. Somos seres de insatisfação e precisamos ter nisso alguma dose de ambição; todavia, ambição é diferente de ganância, dado que o ambicioso quer mais e melhor, enquanto que o ganancioso quer só para si próprio.

Nascer sabendo é uma limitação porque obriga a apenas repetir e, nunca, a criar, inovar, refazer, modificar. Quanto mais se nasce pronto, mais refém do que já se sabe e, portanto, do passado; aprender sempre é o que mais impede que nos tornemos prisioneiros de situações que, por serem inéditas, não saberíamos enfrentar.

Diante dessa realidade, é absurdo acreditar na idéia de que uma pessoa, quanto mais vive, mais velha fica; para que alguém quanto mais vivesse mais velho ficasse, teria de ter nascido pronto e ir se gastando...

Isso não ocorre com gente, e sim com fogão, sapato, geladeira. Gente não nasce pronta e vai se gastando; gente nasce não-pronta, e vai se fazendo. Eu, no ano que estamos, sou a minha mais nova edição (revista e, às vezes, um pouco ampliada); o mais velho de mim (se é o tempo a medida) está no meu passado e não no presente.

Demora um pouco para entender tudo isso; aliás, como falou o mesmo Guimarães, “não convém fazer escândalo de começo; só aos poucos é que o escuro é claro”...

CORTELLA, Mário Sérgio. Está faltando espanto. In: Não nascemos prontos – provocações filosóficas. 5ª edição. Petrópolis: Vozes, 2007, pp 11-13.

TEXTO 16 – PERSISTÊNCIA

O ser humano é tecido por diversos fenômenos. Entre os fenômenos, existe a persistência. A persistência é consistência sólida da personalidade, cultivando o significado existencial com a têmpera pessoal.

A persistência é feita de ritmos sequenciais. Articula passos e soma gestos. Acorda a madrugada e aponta o futuro. Mantém o sentido do existir permanente, com o objetivo de preservar valores fundamentais.

Persistir é forma de sustentar a vida com decisão e bravura. Quem acredita na vida não esmorece, não se abate, não se amedronta, não se envergonha, não se cansa e não desiste. Quem persiste é resoluto, não abandona compromissos e não trai a responsabilidade.

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O ser humano persistente é capaz de superar problemas, obstáculos, angústias e sofrimentos. E não se pense que persistir seja felicidade vazia ou vitória banal. Por isso, a persistência não é favor nem vantagem. A persistência é gênese pessoal, é elaboração criativa, é conquista obstinada, é construção arrojada, é resposta a desafios.

Pode acontecer alguma tragédia. O ser humano não é infalível nem perfeito. E pode surgir uma situação dramática em que a vítima seja o inocente. Mas, apesar de momentos sombrios, o ser humano não pode entregar-se ao desespero. O desalento nunca é solução. E o derrotismo desencoraja as pessoas. Por isso o que deve prevalecer é a persistência lúcida. Apesar das tempestades, o ser humano é chamado a manter-se de pé.

Há quem embarque na tentação da fuga para refugiar-se no passado. E até pode acontecer que o passado tenha gerado valores importantes, que mereçam ser respeitados. Mas quem vive no presente não pode amoitar-se no passado. Há situações do passado que não voltam mais. Nesse caso, o que deve vigorar é a persistência ousada que leva a soluções originais e a promover avanços sociais.

Para Rousseau, o homem “pode ser responsável pelo bem ou pelo mal”. E na hora da crise e da ruptura, não se pode abandonar a dignidade, a profissão, a união, o amor, o curso, o lar, os companheiros. E é preciso salvar a humanidade fragmentada. Deve-se assumir a coragem para refazer vidas truncadas e esperanças quebradas. Então, é hora de abraçar corajosamente a persistência para reviver e reencontrar pessoas resolutas.

Vasto universo mora no ser humano. Há um encontro singular entre a persistência e o amor. Há uma convergência salutar entre o amor e a persistência. Todo ser humano guarda em sua intimidade o amor, o afeto e a paixão. Existe uma articulação intensa entre a persistência e o amor. É sublime o encontro entre o persistir e o amar, e entre o amar e o persistir. Persistência e amor vivem misturados. Amor sem persistência é amor arriscado. Por outro lado, persistência sem amor é a seca do sertão árido. E diz Deleuze: “O amor, é o amor que faz o mundo rolar”.

A persistência resguarda as dimensões pessoais no âmbito antropológico. Feliz o ser pensante que pode refletir sobre a polifonia da existência humana. O ser humano pode despedaçar-se, assim como pode recriar-se e reconstruir-se. Habermas convida todos a cultivar a “intercompreensão”, na convivência interpessoal. E assim, pode-se festejar a persistência autêntica que não se dobra, não se cansa nem se curva.

ARDUINI, J. Persistência. In: Ética responsável e criativa. São Paulo: Paulus, 2007, pp.85-86.

TEXTO Nº 17: TERNURA FASCINANTEA vida humana contém múltiplas dimensões. É preciso evitar o reducionismo antropológico que só enxerga um lado

da realidade. É nocivo salientar algumas dimensões humanas e excluir outras; isto atrofia a globalidade do ser humano. A pessoa deve ser interpretada por uma visão abrangente. Cultivar algumas dimensões e esquecer outras é deformar a humanidade. Fracionar o ser humano é desrespeitá-lo. É preciso alcançar a compreensão da personalidade como um todo.

Atualmente, procura-se recuperar e projetar dimensões humanas que estiveram esquecidas ou desprezadas. Entre dimensões humanas importantes, hoje se valoriza a ternura que abriga grande significado. A ternura revela lucidez, firmeza e tenacidade. Não se deve confundir ternura com emocionalismo, sentimento ultrapassado, piegas.

A ternura possui fibra e sustenta causas justas. A ternura mantém fidelidade às pessoas e assume posições sérias. A verdadeira ternura é destemida, não se amedronta e sustenta a verdade, é corajosa, não compactua com a violência, a crueldade e a guerra.

A ternura é coerente e não frustra as pessoas. É autêntica e não engana os outros, é transparente e responsabiliza-se pelo relacionamento com os outros. A ternura não faz estardalhaço porque cultiva o equilíbrio da serenidade e da maturidade.

O mundo violento de hoje estranha a ternura. E pensa que ternura seja fraca perante a truculência brutal. Mas isso é um equívoco. Importa perceber que a ternura tem muito mais sentido do que a violência. Forte é a ternura que permanece resistente. A violência não é forte, é covarde, é cruel. A violência é feroz e manobra o poder. A sociedade deveria expulsar a violência e promover a ternura ousada.

A humanidade está despertando para a ternura, componente fundamental da personalidade. Sem ternura, a personalidade sofre deformação. A ternura mantém a reciprocidade com o diálogo, a afetividade, a compreensão, a amizade, o respeito, o direito, a solidariedade; ela é aberta, não se fecha, ajuda o mundo a ser humano, e não selvagem, alegre, e não triste, pacífico, e não belicoso, justo, e não ensanguentado, limpo e não sujo. Assim, a ternura ética preserva a humanidade, ventilada pelo sopro da dignidade.

A ternura deve ser trabalhada também pela educação através do tempo. A ternura é chamada a impregnar todo ser humano, é expressão da existência pessoal; não é passatempo, mas compromisso, não é questão de fragmentos, mas questão do destino universal.

A ternura é fenômeno íntimo e comunicacional, é forma de viver e de conviver, circula entre as pessoas e luta por nova sociedade, é valor original que se irradia pela vasta verdade. A as ternura acolhe os abandonados, mas não se cansa de amar.

A ternura é cativante porque absorve conteúdo antropológico. Carlo Rocchetta escreve: “Deixar escapar a ternura é deixar escapar a vida”. A ternura leva a pessoa a sentir-se gente. Deve-se buscar a humanidade da ternura, e não a humanidade do ódio e da violência. Por tudo isso, a ternura é fascinante.

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ARDUINI, J. Impor ou expor. In: Ética responsável e criativa. São Paulo: Paulus, 2007, pp.118-119.

TEXTO Nº 18 - SOLIDARIEDADEAtualmente, a “solidariedade” está sendo discutida e projetada como valor medular para o destino da humanidade.

O sociólogo Pierre Rosanvallon, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, na França, diz que “ingressamos em nova idade social”, e que é necessário “refundar a solidariedade”.

Solidariedade deriva do latim “solidare”, que tem o sentido de soldar, fundir, integrar. Solidariedade é vida humana articulada.

Há vários tipos de solidariedade. Há solidariedade econômica constituída por associados no âmbito dos mercados. A solidariedade política congrega cidadãos no campo partidário e na busca do poder. A solidariedade adesista leva pessoas, grupos e nações a circundar polos hegemônicos. A solidariedade diplomática atenua conflitos e modera relações de convivência.

A solidariedade psicoafetiva manifesta-se em forma de compaixão. Há pessoas que confortam sofredores com o sentimento afetivo. A solidariedade filantrópica socorre os necessitados. É assistencialismo que alivia situações dramáticas. A solidariedade de “koinonia” promove o espírito de comunidade, de comunhão fraterna. A solidariedade emancipatória encoraja a humanidade a erguer-se para eliminar a servidão. A “solidariedade substancial” é proposta inovadora e radical. Empenha-se em transformar estruturas socioeconômicas, para que a humanidade se conduza com autonomia e responsabilidade. A Solidariedade “crucificada” tem a audácia de defender os perseguidos e arriscar a vida pelos injustiçados rebelados. A solidariedade profética clama pela justiça e liberta os oprimidos. A solidariedade includente resgata os excluídos, para que sejam reincorporados na dignidade social e na cidadania ativa.

Solidariedade não é apenas aglomerar multidões. É integrar pessoas e povos para que se emancipem e se humanizem. A verdadeira solidariedade é efetiva, e não apenas afetiva. A solidariedade autêntica é exigência sociocultural. Não basta solidariedade morna. Deve-se elaborar uma solidariedade consciente e consistente, que refaça o tecido da humanidade dilacerada. O compromisso da solidariedade é liberar as vítimas de sistemas degradantes, e não envernizar a miséria. Solidariedade não é só pingar esmolas, é lutar ousadamente pelos direitos básicos de todos. Solidariedade não é amaciar sofrimentos, mas é erradicar as causas dos sofrimentos.

Solidariedade é co-participação, é movimento criador, é crescimento recíproco. Solidariedade é recolher energias de todas as raças, culturas e religiões, para desafogar seres humanos cativos e ajudá-los a crescer livres. Ser solidário é decidir e levantar-se, é entrelaçar as mãos para germinar a nova humanidade da justiça, do amor e da paz.

ARDUINI, J. Solidariedade. In: Ética responsável e criativa. São Paulo: Paulus, 2007, pp.22-23.

TEXTO Nº 19: ONTOLOGIA DO AMORAmor é dimensão fecunda e pluriforme da vida do ser humano. O amor impregna a personalidade toda. Amor

não é apenas uma função. Envolve o universo antropológico. O amor revela múltiplas formas: amor a Deus, ao próximo, à ética, à sexualidade. O amor infiltra-se em todas as esferas do viver humano.

O amor é denso e circula pela existência humana. O amor habita a personalidade. Quando o amor se retira, a morada humana esvazia-se. O amor é dialogal, tem sentido interpessoal. O amor é convergente.

O amor é criativo. É antropogenético. É gênese interminável. Amor gera biologia, psicologia, sexualidade, socialidade, cultura, estética, espiritualidade. O amor germina a paz entre pessoas e povos; a paz da vida, não a paz da morte. O amor é inquieto, é inventivo. O amor é pulsação infatigável, é faísca candente.

Amor reparte alegria e prazer. O amor da alegria pode incluir sofrimento. Nietzsche justifica: “dizer sim à alegria é também dizer sim à dor”. Amor que vive somente alegria, é frágil. Amor consistente possui têmpera de luta. Supera obstáculos e remove tropeços. O amor é livre. Forçar o amor é estrangulá-lo. Amor é dádiva, é oferta, é ternura, é leveza, é lealdade.

Existe também o amor “demoníaco”, denominado pelos filósofos gregos como “daimon”. Platão dizia: “Eros é um demônio”. Há o amor superficial, ralo, banal. Há o amor utilitarista, mercantilizado. Há o amor autoritário, escravista. Há o amor narcísico, egocêntrico. Há o amor traído e o amor traidor, amor cínico e amor covarde, amor ingrato e amor magoado. E amor encolerizado, infernizado e tanatológico.

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É necessário orientar o amor demoníaco, educar o amor desumano, integrar as faces e as fases do amor autêntico. O amor não pode ser trapaceiro. Perverter o amor é degradar a pessoa. Trair o amor é enganar a consciência. Sujar o amor é arrastar-se na lama.

O amor não nasce acabado, nem concluído. Amor deve ser cultivado permanentemente. Amor é tarefa de todos os dias e é presença em todas as atitudes. Amor é construção inacabada, é respiração obstinada, é aspiração inapagável. Amor é responsabilidade e não passatempo. Amor é compromisso com as pessoas. Amor é história original. O amor convida a pensar e a repensar o seu real significado. Quem se precipita no amor imaturo, pode arrepender-se. Amor exige maturidade.

Atualmente, há muito amor estragado pelo mundo afora. A explosão da violência espanta e desespera o amor. Com razão, lamenta-se o amor desacertado. Devemos ser realistas, mas não pessimistas. Apesar de tudo, não há motivos para amaldiçoar o amor limpo e inocente.

Amar a humanidade é preciso. Mas o amor não pode camuflar a verdade. Amor consciente e resoluto há de levantar-se para contestar injustiças, miséria, rancor, crueldade e guerras. Amor substancial é encontro, é solidariedade, é libertação, é transparência, é gratidão, é festa, é vida, é futuro. Não podemos esquecer o amor. E jamais devemos culpar o amor. Talvez a culpa seja nossa. O amor tem vibração emocional, tem olhar de criança, tem audácia de profeta e tem sedução de beleza. Mas por que não somos amor? Pois a ontologia do amor é o ser e o existir da personalidade. E não poderia faltar a presença da ontologia para a ética do amor.

ARDUINI, J. Ontologia do amor. In: Ética responsável e criativa. São Paulo: Paulus, 2007, pp. 123-124.

TEXTO Nº 20: A EXISTÊNCIA ÉTICA

Chauí, Marilena. Convite à filosofia. Ed. Ática, S. Paulo, 2010

Senso moral e consciência moral

Muitas vezes, tomamos conhecimento de movimentos nacionais e internacionais de luta contra a fome. Ficamos sabendo que, em outros países e no nosso, milhares de pessoas, sobretudo crianças e velhos, morrem de penúria e inanição. Sentimos piedade. Sentimos indignação diante de tamanha injustiça (especialmente quando vemos o desperdício dos que não têm fome e vivem na abundância). Sentimos responsabilidade. Movidos pela solidariedade, participamos de campanhas contra a fome. Nossos sentimentos e nossas ações exprimem nosso senso moral.

Quantas vezes, levados por algum impulso incontrolável ou por alguma emoção forte (medo, orgulho, ambição, vaidade, covardia), fazemos alguma coisa de que, depois, sentimos vergonha, remorso, culpa. Gostaríamos de voltar atrás no tempo e agir de modo diferente. Esses sentimentos também exprimem nosso senso moral.

Em muitas ocasiões, ficamos contentes e emocionados diante de uma pessoa cujas palavras e ações manifestam honestidade, honradez, espírito de justiça, altruísmo, mesmo quando tudo isso lhe custa sacrifícios. Sentimos que há grandeza e dignidade nessa pessoa. Temos admiração por ela e desejamos imitá-la. Tais sentimentos e admiração também exprimem nosso senso moral.

Não raras vezes somos tomados pelo horror diante da violência: chacinas de seres humanos e animais, linchamentos, assassinatos brutais, estupros, genocídio, torturas e suplícios. Com freqüência, ficamos indignados ao saber que um inocente foi injustamente acusado e condenado, enquanto o verdadeiro culpado permanece impune. Sentimos cólera diante do cinismo dos mentirosos, dos que usam outras pessoas como instrumento para seus interesses e para conseguir vantagens às custas da boa-fé de outros. Todos esses sentimentos manifestam nosso senso moral.

Vivemos certas situações, ou sabemos que foram vividas por outros, como situações de extrema aflição e angústia. Assim, por exemplo, uma pessoa querida, com uma doença terminal, está viva apenas porque seu corpo está ligado a máquinas que a conservam. Suas dores são intoleráveis. Inconsciente, geme no sofrimento. Não seria melhor que descansasse em paz? Não seria preferível deixá-la morrer? Podemos desligar os aparelhos? Ou não temos o direito de fazê-lo? Que fazer? Qual a ação correta?

Uma jovem descobre que está grávida. Sente que seu corpo e seu espírito ainda não estão preparados para a gravidez. Sabe que seu parceiro, mesmo que deseje apoiá-la, é tão jovem e despreparado quanto ela e que ambos não terão

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como se responsabilizar plenamente pela gestação, pelo parto e pela criação de um filho. Ambos estão desorientados. Não sabem se poderão contar com o auxílio de suas famílias (se as tiverem).

Se ela for apenas estudante, terá que deixar a escola para trabalhar, a fim de pagar o parto e arcar com as despesas da criança. Sua vida e seu futuro mudarão para sempre. Se trabalha, sabe que perderá o emprego, porque vive numa sociedade onde os patrões discriminam as mulheres grávidas, sobretudo as solteiras. Receia não contar com os amigos. Ao mesmo tempo, porém, deseja a criança, sonha com ela, mas teme dar-lhe uma vida de miséria e ser injusta com quem não pediu para nascer. Pode fazer um aborto? Deve fazê-lo?

Um pai de família desempregado, com vários filhos pequenos e a esposa doente, recebe uma oferta de emprego, mas que exige que seja desonesto e cometa irregularidades que beneficiem seu patrão. Sabe que o trabalho lhe permitirá sustentar os filhos e pagar o tratamento da esposa. Pode aceitar o emprego, mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou deve recusá-lo e ver os filhos com fome e a mulher morrendo?

Um rapaz namora, há tempos, uma moça de quem gosta muito e é por ela correspondido. Conhece uma outra. Apaixona-se perdidamente e é correspondido. Ama duas mulheres e ambas o amam. Pode ter dois amores simultâneos, ou estará traindo a ambos e a si mesmo? Deve magoar uma delas e a si mesmo, rompendo com uma para ficar com a outra? O amor exige uma única pessoa amada ou pode ser múltiplo? Que sentirão as duas mulheres, se ele lhes contar o que se passa? Ou deverá mentir para ambas? Que fazer? Se, enquanto está atormentado pela decisão, um conhecido o vê ora com uma das mulheres, ora com a outra e, conhecendo uma delas, deve contar a ela o que viu? Em nome da amizade, deve falar ou calar?

Uma mulher vê um roubo. Vê uma criança maltrapilha e esfomeada roubar frutas e pães numa mercearia. Sabe que o dono da mercearia está passando por muitas dificuldades e que o roubo fará diferença para ele. Mas também vê a miséria e a fome da criança. Deve denunciá-la, julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e o proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou deverá silenciar, pois a criança corre o risco de receber punição excessiva, ser levada para a polícia, ser jogada novamente às ruas e, agora, revoltada, passar do furto ao homicídio? Que fazer?

Situações como essas – mais dramáticas ou menos dramáticas – surgem sempre em nossas vidas. Nossas dúvidas quanto à decisão a tomar não manifestam apenas nosso senso moral, mas também põem à prova nossa consciência moral, pois exigem que decidamos o que fazer, que justifiquemos para nós mesmos e para os outros as razões de nossas decisões e que assumamos todas as conseqüências delas, porque somos responsáveis por nossas opções.

Todos os exemplos mencionados indicam que o senso moral e a consciência moral referem-se a valores (justiça, honradez, espírito de sacrifício, integridade, generosidade), a sentimentos provocados pelos valores (admiração, vergonha, culpa, remorso, contentamento, cólera, amor, dúvida, medo) e a decisões que conduzem a ações com conseqüências para nós e para os outros. Embora os conteúdos dos valores variem, podemos notar que estão referidos a um valor mais profundo, mesmo que apenas subentendido: o bom ou o bem. Os sentimentos e as ações, nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal, também estão referidos a algo mais profundo e subentendido: nosso desejo de afastar a dor e o sofrimento e de alcançar a felicidade, seja por ficarmos contentes conosco mesmos, seja por recebermos a aprovação dos outros.

O senso e a consciência moral dizem respeito a valores, sentimentos, intenções, decisões e ações referidos ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem respeito às relações que mantemos com os outros e, portanto, nascem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva.

Juízo de fato e de valor

Se dissermos: “Está chovendo”, estaremos enunciando um acontecimento constatado por nós e o juízo proferido é um juízo de fato. Se, porém, falarmos: “A chuva é boa para as plantas” ou “A chuva é bela”, estaremos interpretando e avaliando o acontecimento. Nesse caso, proferimos um juízo de valor.

Juízos de fato são aqueles que dizem o que as coisas são, como são e por que são. Em nossa vida cotidiana, mas também na metafísica e nas ciências, os juízos de fato estão presentes. Diferentemente deles, os juízos de valor - avaliações sobre coisas, pessoas e situações - são proferidos na moral, nas artes, na política, na religião.

Juízos de valor avaliam coisas, pessoas, ações, experiências, acontecimentos, sentimentos, estados de espírito, intenções e decisões como bons ou maus, desejáveis ou indesejáveis.

Os juízos éticos de valor são também normativos, isto é, enunciam normas que determinam o dever ser de nossos sentimentos, nossos atos, nossos comportamentos. São juízos que enunciam obrigações e avaliam intenções e ações segundo o critério do correto e do incorreto.

Os juízos éticos de valor nos dizem o que são o bem, o mal, a felicidade. Os juízos éticos normativos nos dizem que sentimentos, intenções, atos e comportamentos devemos ter ou fazer para alcançarmos o bem e a felicidade. Enunciam também que atos, sentimentos, intenções e comportamentos são condenáveis ou incorretos do ponto de vista moral.

Como se pode observar, senso moral e consciência moral são inseparáveis da vida cultural, uma vez que esta define para seus membros os valores positivos e negativos que devem respeitar ou detestar.

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Qual a origem da diferença entre os dois tipos de juízos? A diferença entre a Natureza e a Cultura. A primeira, como vimos, é constituída por estruturas e processos necessários, que existem em si e por si mesmos, independentemente de nós: a chuva é um fenômeno meteorológico cujas causas e cujos efeitos necessários podemos constatar e explicar.

Por sua vez, a Cultura nasce da maneira como os seres humanos interpretam a si mesmos e suas relações com a Natureza, acrescentando-lhe sentidos novos, intervindo nela, alterando-a através do trabalho e da técnica, dando-lhe valores. Dizer que a chuva é boa para as plantas pressupõe a relação cultural dos humanos com a Natureza, através da agricultura. Considerar a chuva bela pressupõe uma relação valorativa dos humanos com a Natureza, percebida como objeto de contemplação.

Freqüentemente, não notamos a origem cultural dos valores éticos, do senso moral e da consciência moral, porque somos educados (cultivados) para eles e neles, como se fossem naturais ou fáticos, existentes em si e por si mesmos. Para garantir a manutenção dos padrões morais através do tempo e sua continuidade de geração a geração, as sociedades tendem a naturalizá-los. A naturalização da existência moral esconde, portanto, o mais importante da ética: o fato de ela ser criação histórico-cultural.

Ética e violência

Quando acompanhamos a história das idéias éticas, desde a Antiguidade clássica (greco-romana) até nossos dias, podemos perceber que, em seu centro, encontra-se o problema da violência e dos meios para evitá-la, diminuí-la, controlá-la. Diferentes formações sociais e culturais instituíram conjuntos de valores éticos como padrões de conduta, de relações intersubjetivas e interpessoais, de comportamentos sociais que pudessem garantir a integridade física e psíquica de seus membros e a conservação do grupo social.

Evidentemente, as várias culturas e sociedades não definiram e nem definem a violência da mesma maneira, mas, ao contrário, dão-lhe conteúdos diferentes, segundo os tempos e os lugares. No entanto, malgrado as diferenças, certos aspectos da violência são percebidos da mesma maneira, nas várias culturas e sociedades, formando o fundo comum contra o qual os valores éticos são erguidos. Fundamentalmente, a violência é percebida como exercício da força física e da coação psíquica para obrigar alguém a fazer alguma coisa contrária a si, contrária aos seus interesses e desejos, contrária ao seu corpo e à sua consciência, causando-lhe danos profundos e irreparáveis, como a morte, a loucura, a auto-agressão ou a agressão aos outros.

Quando uma cultura e uma sociedade definem o que entendem por mal, crime e vício, circunscrevem aquilo que julgam violência contra um indivíduo ou contra o grupo. Simultaneamente, erguem os valores positivos – o bem e a virtude – como barreiras éticas contra a violência.

Em nossa cultura, a violência é entendida como o uso da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à sua natureza e ao seu ser. A violência é a violação da integridade física e psíquica, da dignidade humana de alguém. Eis por que o assassinato, a tortura, a injustiça, a mentira, o estupro, a calúnia, a má-fé, o roubo são considerados violência, imoralidade e crime.

Considerando que a humanidade dos humanos reside no fato de serem racionais, dotados de vontade livre, de capacidade para a comunicação e para a vida em sociedade, de capacidade para interagir com a Natureza e com o tempo, nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do conhecimento e da ação, localizando a violência em tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto. Do ponto de vista ético, somos pessoas e não podemos ser tratados como coisas. Os valores éticos se oferecem, portanto, como expressão e garantia de nossa condição de sujeitos, proibindo moralmente o que nos transforme em coisa usada e manipulada por outros.

A ética é normativa exatamente por isso, suas normas visando impor limites e controles ao risco permanente da violência.

Os constituintes do campo ético

Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vício. A consciência moral não só conhece tais diferenças, mas também reconhece-se como capaz de julgar o valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais, sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e pelas conseqüências do que faz e sente. Consciência e responsabilidade são condições indispensáveis da vida ética.

A consciência moral manifesta-se, antes de tudo, na capacidade para deliberar diante de alternativas possíveis, decidindo e escolhendo uma delas antes de lançar-se na ação. Tem a capacidade para avaliar e pesar as motivações pessoais, as exigências feitas pela situação, as conseqüências para si e para os outros, a conformidade entre meios e fins (empregar meios imorais para alcançar fins morais é impossível), a obrigação de respeitar o estabelecido ou de transgredi-lo (se o estabelecido for imoral ou injusto).

A vontade é esse poder deliberativo e decisório do agente moral. Para que exerça tal poder sobre o sujeito moral, a vontade deve ser livre, isto é, não pode estar submetida à vontade de um outro nem pode estar submetida aos instintos e às paixões, mas, ao contrário, deve ter poder sobre eles e elas.

O campo ético é, assim, constituído pelos valores e pelas obrigações que formam o conteúdo das condutas morais, isto é, as virtudes. Estas são realizadas pelo sujeito moral, principal constituinte da existência ética.

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O sujeito ético ou moral, isto é, a pessoa, só pode existir se preencher as seguintes condições:

● ser consciente de si e dos outros, isto é, ser capaz de reflexão e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele;

● ser dotado de vontade, isto é, de capacidade para controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos (para que estejam em conformidade com a consciência) e de capacidade para deliberar e decidir entre várias alternativas possíveis;

● ser responsável, isto é, reconhecer-se como autor da ação, avaliar os efeitos e conseqüências dela sobre si e sobre os outros, assumi-la bem como às suas conseqüências, respondendo por elas;

● ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se como causa interna de seus sentimentos, atitudes e ações, por não estar submetido a poderes externos que o forcem e o constranjam a sentir, a querer e a fazer alguma coisa. A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder para autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta.

O campo ético é, portanto, constituído por dois pólos internamente relacionados: o agente ou sujeito moral e os valores morais ou virtudes éticas.

Do ponto de vista do agente ou sujeito moral, a ética faz uma exigência essencial, qual seja, a diferença entre passividade e atividade. Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus impulsos, inclinações e paixões, pelas circunstâncias, pela boa ou má sorte, pela opinião alheia, pelo medo dos outros, pela vontade de um outro, não exercendo sua própria consciência, vontade, liberdade e responsabilidade.

Ao contrário, é ativo ou virtuoso aquele que controla interiormente seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos, indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de conduta, consulta sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos outros sem subordinar-se nem submeter-se cegamente a eles, responde pelo que faz, julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros. Numa palavra, é autônomoi.

Do ponto de vista dos valores, a ética exprime a maneira como a cultura e a sociedade definem para si mesmas o que julgam ser a violência e o crime, o mal e o vício e, como contrapartida, o que consideram ser o bem e a virtude. Por realizar-se como relação intersubjetiva e social, a ética não é alheia ou indiferente às condições históricas e políticas, econômicas e culturais da ação moral.

Conseqüentemente, embora toda ética seja universal do ponto de vista da sociedade que a institui (universal porque seus valores são obrigatórios para todos os seus membros), está em relação com o tempo e a História, transformando-se para responder a exigências novas da sociedade e da Cultura, pois somos seres históricos e culturais e nossa ação se desenrola no tempo.

Além do sujeito ou pessoa moral e dos valores ou fins morais, o campo ético é ainda constituído por um outro elemento: os meios para que o sujeito realize os fins.

Costuma-se dizer que os fins justificam os meios, de modo que, para alcançar um fim legítimo, todos os meios disponíveis são válidos. No caso da ética, porém, essa afirmação deixa de ser óbvia.

Suponhamos uma sociedade que considere um valor e um fim moral a lealdade entre seus membros, baseada na confiança recíproca. Isso significa que a mentira, a inveja, a adulação, a má-fé, a crueldade e o medo deverão estar excluídos da vida moral e ações que os empreguem como meios para alcançar o fim serão imorais.

No entanto, poderia acontecer que para forçar alguém à lealdade seria preciso fazê-lo sentir medo da punição pela deslealdade, ou seria preciso mentir-lhe para que não perdesse a confiança em certas pessoas e continuasse leal a elas. Nesses casos, o fim – a lealdade – não justificaria os meios – medo e mentira? A resposta ética é: não. Por quê? Porque esses meios desrespeitam a consciência e a liberdade da pessoa moral, que agiria por coação externa e não por reconhecimento interior e verdadeiro do fim ético.

No caso da ética, portanto, nem todos os meios são justificáveis, mas apenas aqueles que estão de acordo com os fins da própria ação. Em outras palavras, fins éticos exigem meios éticos.

A relação entre meios e fins pressupõe que a pessoa moral não existe como um fato dado, mas é instaurada pela vida intersubjetiva e social, precisando ser educada para os valores morais e para as virtudes.

Poderíamos indagar se a educação ética não seria uma violência. Em primeiro lugar, porque se tal educação visa a transformar-nos de passivos em ativos, poderíamos perguntar se nossa natureza não seria essencialmente passional e, portanto: forçar-nos à racionalidade ativa não seria um ato de violência contra a nossa natureza espontânea? Em segundo lugar, porque se a tal educação visa a colocar-nos em harmonia e em acordo com os valores de nossa sociedade, poderíamos indagar se isso não nos faria submetidos a um poder externo à nossa consciência, o poder da moral social. Para responder a essas questões precisamos examinar o desenvolvimento das idéias éticas na Filosofia.

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TEXTO 21 - A CONDIÇÃO HUMANA(Adaptado de Aranha, M.L. de A. e Martins, M. H. P. Temas de filosofia, p. 28 – 34)

Quando eu era pequena e meu pai queria reforçar algum comportamento de coragem e enfrentamento de situações díficeis, costumava dizer: - ‘Seja homem, minha filha!’. Evidentemente, isso era dito em tom de brincadeira, acentuando a contradição entre o masculino e o feminino. Mas, na verdade, ele queria dizer que o homem (enquanto ser humano em geral) deve ser capaz de enfrentar as dificuldades apesar do medo; ou, ainda, que, embora na sociedade machista o papel da coragem seja reservado aos homens (sexo masculino), eu também deveria ser forte, mesmo sendo mulher. Assim, ao mesmo tempo que meu pai se referia a um atributo louvável do ser humano, criticava as concepções de feminilidade que de certa forma desculpam e reforçam a fraqueza da mulher.

1 - Se observarem com atenção, irão constatar que várias vezes por dia colocamos questões como essas abaixo que, no fundo, partem da pergunta fundamental: o que é o homem? Embora não seja formulada de maneira tão explícita, essa questão se encontra subjacente na conversa diária. Vejamos alguns exemplos:

- Aquele lá? Não é gente, mais parece um bicho! " (Isso supõe que eu saiba qual é a diferença entre homem e animal.);

- Essas coisas acontecem desde que o homem é homem!" (A natureza humana seja algo imutável.); - 0 que seria de mim sem a graça de Deus? (0 ser do homem é explicado pelo divino e o homem não é nada sem a

fé.); - Eu uso a cabeça e não me deixo arrastar pelas paixões. (0 homem é um ser racional e as paixões são fraquezas.); - De que adianta o trabalho se não houver futebol e carnaval? (0 homem é um ser de desejo e o prazer é

fundamental no mundo humano.); - Não adianta lutar contra o destino. 0 que tem de ser, será. (0 homem não é livre, mas predestinado.); - A ocasião faz o ladrão. (A natureza humana é má ou tende sempre para o mal.);

2 - A lista poderia não ter fim, pois há diversas situações de vida que exigem reflexão e retomada de valores. Por

exemplo, a perda de emprego, o rompimento de laços de amizade ou de amor, o enfrentamento de risco de vida ou a

morte de um conhecido, a comemoração de uma data especial (18 anos de vida, ou 40 anos ... ). Em todos esses

momentos é feito um balanço do já vivido que leva à reafirmação de alguns valores, ou, dependendo do caso, a uma

mudança radical na forma de pensar e agir.

As meninas-lobo

Na Índia, onde os casos de meninos-lobo foram relativamente numerosos, descobriram-se, em 1920, duas crianças, Amala e Kamala, vivendo no meio de uma família de lobos. A primeira tinha um ano e meio e veio a morrer um ano mais tarde. Kamala, de oito anos de idade, viveu até 1929. Não tinham nada de humano e seu comportamento era exatamente semelhante àquele de seus irmãos lobos. Elas caminhavam de quatro patas apoiando-se sobre os joelhos e cotovelos para os pequenos trajetos e sobre as mãos e os pés para os trajetos longos e rápidos.

Eram incapazes de permanecer de pé. Só se alimentavam de carne crua ou podre, comiam e bebiam como os animais, lançando a cabeça para a frente e lambendo os líquidos. Na instituição onde foram recolhidas, passavam o dia acabrunhadas e prostradas numa sombra; eram ativas e ruidosas durante a noite, procurando fugir e uivando como lobos. Nunca choraram ou riram.

Kamala viveu durante oito anos na instituição que a acolheu, humanizando-se lentamente. Ela necessitou de seis anos para aprender a andar e pouco antes de morrer só tinha um vocabulário de cinqüenta palavras. Atitudes afetivas foram aparecendo aos poucos. Ela chorou pela primeira vez por ocasião da morte de Amala e se apegou lentamente às pessoas que cuidaram dela e às outras crianças com as quais conviveu. A sua inteligência permitiu-Ihe comunicar-se com outros por gestos, inicialmente, e depois por palavras de um vocabulário rudimentar, aprendendo a executar ordens simples.

(B. Reymond,Lê développement social de l'enfant et de l'adolescent, Bruxelas, Dessart, 1965, p. 12-14, apud C. Capaibo, Fenomenologia e ciências humanas, Rio de Janeiro, J. Ozon Ed., p. 25-26.)

a) Natureza e cultura3 - Os animais vivem em harmonia com sua própria natureza. Isso significa que todo animal age de acordo

com as características da sua espécie quando, por exemplo, se acasá-la, protege a cria, caça e se defende. Os instintos

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animais são regidos por leis biológicas, de modo que podemos prever as reações típicas de cada espécie. A etologia se ocupa do estudo comparado do comportamento dos animais, indicando a regularidade desse comportamento.

4 - É evidente que existem grandes diferenças entre os animais conforme seu lugar na escala zoológica: enquanto um inseto como a abelha constrói a colméia e prepara o mel segundo padrões rígidos típicos das ações instintivas, um mamífero, que é um animal superior, age também por instinto mas desenvolve outros comportamentos mais flexíveis, e portanto menos previsíveis.

5 - Diante de situações problemáticas, os animais superiores são capazes de encontrar soluções criativas porque fazem uso da inteligência. Se um macaco está mobilizado pelo instinto da fome, ao encontrar a fruta fora do alcance enfrenta uma situação problemática, que só pode ser resolvida com a capacidade de se adaptar às novidades mediante recursos de improvisação. Também o cachorro faz uso da inteligência quando aprende a obedecer ordens do seu dono e enfrenta desafios para realizar certas tarefas, como, por exemplo, buscar a presa em uma caçada.

6 - No entanto, a inteligência animal é concreta, porque, de certa maneira, acha-se presa à experiência vivida. Por exemplo, se o macaco utilizar um bambu para alcançar a fruta, mesmo assim não existirá esforço de aperfeiçoamento que se assemelhe ao processo cultural humano. Recentemente, pesquisas realizadas no campo da etologia têm mostrado que alguns tipos de chimpanzés conseguem fazer utensílios, e criam complexas organizações sociais baseadas em formas elaboradas de comunicação. As conclusões dessas pesquisas tendem a atenuar a excessiva rigidez das antigas concepções sobre a distinção entre instinto e inteligência e entre inteligência animal e humana. Mas essas habilidades não levam os animais superiores a ultrapassar o mundo natural, caminho esse exclusivo da aventura humana. Só homem é transformador da natureza, e o resultado dessa transformação se chama cultura.

7 - Eis aí a diferença fundamental entre o homem e os animais. Mas, para produzir cultura, o homem precisa da linguagem simbólica. Os símbolos são invenções humanas por meio das quais o homem pode lidar abstratamente com o mundo que o cerca. Depois de criados, entretanto, eles devem ser aceitos por todo o grupo e se tornam a convenção que permite o diálogo e o entendimento do discurso do outro. Os símbolos permitem o distanciamento do mundo concreto e a elaboração de idéias abstratas: com o signo “casa”, por exemplo, designamos não só determinada casa, mas qualquer casa. Além disso, com a linguagem simbólica o homem não está apenas presente no mundo, mas é capaz de representá-lo: isto é , o homem torna presente aquilo que está ausente. A linguagem introduz o homem no tempo, porque permite que ele relembre o passado e antecipe o futuro pelo pensamento. Ao fazer uso da linguagem simbólica, o homem torna possível o desenvolvimento da técnica e, portanto, do trabalho humano, enquanto forma sempre renovada de intervenção na natureza. Ao reproduzir as técnicas já utilizadas pelos ancestrais e ao inventar outras novas - lembrando o passado e projetando o futuro - o homem trabalha. Chamamos trabalho humano a ação dirigida por finalidades conscientes e pela qual o homem se torna capaz de transformar a realidade em que vive.

b) Tornar-se homem8 - 0 homem não nasce homem, pois precisa da educação para se humanizar. Muitos são os exemplos dados por

antropólogos e psicólogos a respeito de crianças que, ao crescerem longe do contato com seus semelhantes,

permaneceram como se fossem animais. Na Alemanha, no século passado, foi encontrado um rapaz que crescera

absolutamente isolado de todos. Kaspar Hauser, como ficou conhecido, permaneceu escondido por razões não

esclarecidas. Como ninguém o ensinara a falar, só se tornou propriamente humano quando sua educação teve início.

Nessa ocasião, ficou constatado que possuía inteligência excepcional, até então obscurecida pelo abandono a que fora

relegado.

9 - 0 caso da americana Helen Keller é similar, embora as circunstâncias sejam diferentes. Nascida cega, surda e muda,

mesmo vivendo entre seus familiares a menina permaneceu afastada do mundo humano até os sete anos de idade,

quando a professora Anne Sullivan lhe tornou possível a compreensão dos símbolos, introduzindo-a no mundo

propríamente humano.

10 - Esses casos extremos servem para ilustrar o processo comum pelo qual cada criança recebe a tradição cultural,

sempre mediada pelos outros homens, com os quais aprende os símbolos e torna-se capaz de agir e compreender a

própria experiência. A linguagem simbólica e o trabalho constituem, assim, os parâmetros mais importantes para distinguir

o homem dos animais. Vamos, então, reforçar algumas características desse "estar no mundo", tão típico do ser humano.

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11 - Não se pode dizer que o homem tem instintos como os dos animais, pois a consciência que tem de si próprio e do mundo o orienta, por exemplo, para o controle da sexualidade e da agressividade, submetidas de início a normas e sanções da coletividade e posteriormente assumidas pelo próprio indivíduo. 0 homem foi expulso do paraíso a partir do momento em que deixou de se instalar na natureza da mesma forma que os animais ou as coisas. Assim, o comportamento humano passa a ser avaliado pela ética, pela estética, pela religião ou pelo mito. Isso significa que os atos referentes à vida humana são avaliados como bons ou maus, belos ou não, pecaminosos ou abençoados por Deus, e assim por diante.

12 - Essa análise é válida para qualquer outra ação humana: andar, dormir, alimentar-se não são atividades puramente naturais, pois estão marcadas pelas soluções dadas pela cultura e, posteriormente, pela crítica que o homem faz à cultura. Ao definir o trabalho humano, assinalamos um binômio inseparável: o pensar e o agir. Toda ação humana procede do pensamento, e todo pensamento é construído a partir da ação. A capacidade de alterar a natureza por meio da ação consciente torna a situação humana muito específica, por estar marcada pela ambigüidade e instabilidade.

13 - A condição humana é de ambigüidade porque o ser do homem não pode ser reduzido a uma compreensão simples, como aquela que temos dos animais, sempre acomodados ao mundo natural e, portanto, idênticos a si mesmos. O homem é o que a tradição cultural quer que ele seja e também a constante tentativa de ruptura da tradição. Assim, a sociedade humana surge porque o homem é um ser capaz de criar interdições, isto é, proibições, normas que definem o que pode e o que não pode ser feito. No entanto, o homem é também um ser capaz de transgressão. Transgredir é desobedecer. Não nos referimos apenas à desobediência comum, mas àquela que rejeita as fórmulas antigas e ultrapassadas para instalar novas normas, mais adequadas às necessidades humanas diante dos problemas colocados pelo existir. A capacidade inventiva do homem tende a desalojá-lo do “já feito”, em busca daquilo que “ainda não é". Portanto, o homem é um ser de ambigüidade em constante busca de si mesmo.

14 - E é por isso que o homem é também um ser histórico, capaz de compreender o passado e projetar o futuro. Saber aliar tradição e mudança, continuidade e ruptura, interdição e transgressão é um desafio constante na construção de uma sociedade sadia.

TEXTO 22: INTRODUÇÃO À MORAL(Adaptado de ARANHA, Maria Lúcia, Filosofando, São Paulo: Moderna, 1998, p. 273-282.)

Cada pessoa responde sozinha pelo que faz, diante de sua própria consciência moral. Contudo o ato moral nunca é solitário e sim solidário, porque traz a exigência do respeito e do compromisso com os outros. Daí a imoralidade de todo preconceito.

I - OS VALORES

01 - Diante de pessoas e coisas, estamos constantemente fazendo juízos de valor (*). Esta caneta é ruim, pois falha muito. Esta garota é atraente. Este vaso pode não ser bonito, mas foi presente de alguém muito especial, por isso, cuidado para não quebrá-lo! Gosto tanto de dia chuvoso, quando não preciso sair de casa! Acho que João agiu mal não ajudando você. Isso significa que fazemos juízos de realidade (ou de fato), dizendo que esta caneta, esta garota, este vaso existem, mas também emitimos juízos de valor quando o mesmo conteúdo mobiliza nossa atração ou repulsa. Nos exemplos, referimo-nos, entre outros, a valores que encarnam a utilidade, a beleza, a bondade.

02 - Mas o que são valores? Embora a preocupação com os valores seja tão antiga quanto a humanidade, só no século XIX surge uma disciplina específica, a teoria dos valores ou axiologia (*) (do grego axios, “valor”). A axiologia não se ocupa dos seres, mas das relações que se estabelecem entre os seres e o sujeito que os aprecia. Diante dos seres (sejam eles coisas inertes, ou seres vivos, ou idéias, etc.) somos mobilizados pela afetividade, somos afetados de alguma forma por eles, porque nos atraem ou provocam nossa repulsa. Portanto, algo possui valor quando não permite que permaneçamos indiferentes. É nesse sentido que García Morente diz:

“os valores não são, mas valem. Uma coisa é o valor e outra coisa é ser. Quando dizemos de algo que vale, não dizemos nada do seu ser, mas dizemos que não é indiferente. A não indiferença constitui esta variedade ontológica (*) que contrapõe o valor ao ser. A não-indiferença é a essência do valor!”1.

03 - Os valores são, num primeiro momento, herdados por nós. O mundo cultural é um sistema de significados já estabelecidos por outros, de tal modo que aprendemos desde cedo como nos comportar à mesa, na rua, diante de estranhos, como, quando e quanto falar em determinadas circunstâncias; como andar, correr, brincar; como cobrir o corpo e quando desnudá-lo; qual o padrão de beleza; que direitos e deveres temos. Conforme atendemos ou transgredimos os padrões, os comportamentos são avaliados como bons ou maus.

04 - A partir da valoração, as pessoas nos recriminam por não termos seguido as formas da boa educação ao não teu cedido meu lugar à pessoa mais velha; ou nos elogiam por sabermos escolher as cores mais bonitas para a decoração de um ambiente; ou nos admoestam por termos faltado com a verdade. Nós próprios nos alegramos ou nos arrependemos ou

1 Garcia Morente, M., Fundamentos de Filosofia; lições preliminares, p. 296

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até sentimos remorsos dependendo da ação praticada. Isso que dizer que o resultado de nossos atos está sujeito à sanção, ou seja, ao elogio ou à reprimenda, à recompensa ou à punição, nas mais diversas intensidades, desde “aquele” olhar da mãe, a crítica de um amigo, a indignação ou até a coerção física (isto é, a repressão pelo uso da força). Embora haja diversos tipos de valores (econômicos, vitais, lógicos, éticos, estéticos, religiosos), estudaremos em seguida apenas os valores éticos ou morais.

II - A MORAL E A ÉTICA05 - Os conceitos de moral e ética, embora sejam diferentes, são com freqüência usados como sinônimos. Aliás, a

etimologia (*) dos termos é semelhante: MORAL vem do latim mos, moris, que significa “maneira de se comportar regulada pelo uso”, daí “costume”, e de moralis, morale, adjetivo referente ao que é “relativo aos costumes”. ÉTICA vem do grego ethos, que tem o mesmo significado de “costume”.

06 - Em sentido bem amplo, a moral é o conjunto de regras de conduta admitidas em determinada época ou por um grupo de homens. Nesse sentido, o homem moral é aquele que age bem ou mal na medida em que acata ou transgride as regras do grupo. A ética ou filosofia moral é a parte da Filosofia que se ocupa com a reflexão a respeito das noções e princípios que fundamentam a vida moral. Essa reflexão pode seguir as diversas direções, dependendo da concepção de homem que se toma como ponto de partida.

07 - Então, à pergunta “o que é o bem e o mal?”, respondemos deferentemente, caso o fundamento da moral esteja na ordem cósmica, na vontade de Deus ou em nenhuma ordem exterior à própria consciência humana. Podemos perguntar ainda: Há uma hierarquia de valores (*)? Se houver, o bem supremo é a felicidade? É o prazer? É a utilidade?

08 - Por outro lado, é possível questionar: os valores são essências? Têm conteúdo determinado, universal, válido em todos os tempos e lugares? (posição universalista) Ou, ao contrário, são relativos? (posição relativista). As respostas a essas e outras questões nos darão as diversas concepções de vida moral elaboradas pelos filósofos através dos tempos.

III - CARÁTER HISTÓRICO E SOCIAL DA MORAL09 - A fim de garantir a sobrevivência, o homem submete a natureza por meio do trabalho. Para que a ação coletiva

se torne possível, surge a moral, com a finalidade de organizar as relações entre os indivíduos. Inicialmente, consideramos a moral como o conjunto de regras que determinam o comportamento dos indivíduos em um grupo social.

10 - É de tal importância a existência do mundo moral que se torna impossível imaginar um povo sem qualquer conjunto de regras. Uma das características fundamentais do homem é ser capaz de produzir interdições (proibições). Segundo o antropólogo francês Lévi-Strauss, a passagem do reino animal ao reino humano, ou seja, a passagem da natureza à cultura, é produzida pela instauração da lei, por meio da proibição do incesto. É assim que se estabelecem as relações de parentesco e de aliança sobre as quais é construído o mundo humano, que é simbólico.

11 - Exterior e anterior ao indivíduo, há portanto a moral constituída, que orienta seu comportamento por meio de normas. Em função da adequação ou não à norma estabelecida, o ato será considerado moral ou imoral. O comportamento moral varia de acordo com o tempo e o lugar, conforme as exigências das condições nas quais os homens se organizam ao estabelecerem as formas efetivas e práticas de trabalho. Cada vez que as relações de produção são alteradas, sobrevêm modificações nas exigências das normas de comportamento coletivo. Por exemplo, na Idade Média se caracteriza pelo regime feudal, baseado na rígida hierarquia de suseranos, vassalos e servos. O trabalho é garantido pelos servos, possibilitando aos nobres uma vida de ócio e de guerra. A moral cavalheiresca que daí deriva reside no pressuposto da superioridade da classe dos nobres, exaltando a virtude da lealdade e da fidelidade – suporte do sistema de suserania – bem como a coragem do guerreiro. Em contraposição, o trabalho é desvalorizado e restrito aos servos. Essa situação se altera com o aparecimento da burguesia, a qual, formada pela classe de trabalhadores oriunda da liberação dos servos, estabelece valores, como a valorização do trabalho e a crítica à ociosidade.

IV - CARÁTER PESSOAL DA MORAL12 - No entanto, a moral não se reduz à herança dos valores recebidos pela tradição. À medida que a criança se aproxima da adolescência, aprimorando o pensamento abstrato e a reflexão crítica, ela tende a colocar em questão os valores herdados. Algo semelhante acontece nas sociedades primitivas, quando os grupos tribais abandonam a abrangência da consciência mítica e desenvolvem o questionamento racional. A ampliação do grau de consciência e de liberdade, e portanto, de responsabilidade pessoal no comportamento moral, introduz um elemento contraditório que irá, o tempo todo, angustiar o homem: a moral, ao mesmo tempo que é o conjunto de regras que determina como deve ser o comportamento dos indivíduos do grupo, é também a livre e consciente aceitação das normas.

13 - Isso significa que o ato só é propriamente moral se passar pelo crivo da aceitação pessoal da norma. A exterioridade da moral contrapõe-se à necessidade da interioridade, da adesão mais íntima. Portanto, o homem, ao mesmo tempo em que é herdeiro, é criador de cultura, e só terá vida autenticamente moral se, diante da moral constituída (*), for capaz de propor a moral constituinte (*), aquela que é feita dolorosamente por meio das experiências vividas.

14 - Nessa perspectiva, a vida moral se funda numa ambigüidade (*) fundamental, justamente a que determina o seu caráter histórico. Toda moral está situada no tempo e reflete o mundo em que a nossa liberdade se acha situada. Diante do passado que condiciona os nossos atos, podemos nos colocar à distância para reassumi-lo ou recusá-lo. A historicidade do homem não reside na mera continuidade no tempo, mas constitui a consciência ativa do futuro, que torna possível a criação original por meio de um projeto de ação que tudo muda.

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15 - Cada um sabe, por experiência pessoal, como isso é penoso, pois supõe a descoberta de que as normas, adequadas em determinado momento, tornam-se caducas e obsoletas em outro e devem ser mudadas. As contradições entre o velho e o novo são vividas quando as relações estabelecidas entre os homens, ao produzirem sua existência por meio do trabalho, exigem um novo código de conduta.

16 - Mesmo quando queremos manter as antigas normas, há situações críticas enfrentadas devida à especificidade de cada acontecimento. Por isso a cisão também pode ocorrer a partir do enredo de cada drama pessoal: a singularidade do ato moral nos coloca em situações originais em que só o indivíduo livre e responsável é capaz de decidir. Há certas “situações-limite”, tão destacadas pelo existencialismo, em que regra alguma é capaz de orientar a ação. Por isso é difícil, para as pessoas que estão “do lado de fora”, fazer a avaliação do que deveria ou não ser feito.

V - CARÁTER SOCIAL E PESSOAL DA MORAL17 - Como vimos, a análise dos fatos morais nos coloca diante de dois pólos contraditórios: de um lado, o caráter

social da moral, de outro, a intimidade do sujeito. Se aceitarmos unicamente o caráter social da moral, sucumbimos ao dogmatismo (*) e ao legalismo (*). Isto é, ao caracterizar o ato moral como aquele que se adapta à norma estabelecida, privilegiamos os regulamentos, os valores dados e não discutidos. Nessa perspectiva, a educação moral visa apenas inculcar

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TEXTO 24 - A CRISE ÉTICO-MORAL EM NOSSA SOCIEDADE

NILO AGOSTINI

Vivernos num “mundo” de perguntas, de incertezas. Ninguém tem segurança nas respostas a serem dadas. As mudanças são permanentes; o antigo, o tradicional parecem não mais servir para as novas gerações. O moderno se impõe. E bem sabemos hoje que este moderno também entra em crise; falamos, então, do pós-moderno. Seja qual for a “era”, o certo é que vivemos num vazio; andamos aborrecidos; fazemos a experiência da ausência de sentido e de normas; nos afundamos num individualismo narcisista; somos tomados por um niilismo, ou seja, por urna descrença absoluta frente à atual situação e sua hierarquia de valores, já que nada existiria de realmente absoluto.

Temos a impressão de que o “mundo” está escapando de nossas mãos. Ele já não é mais marcado pela unanimidade, típica de um passado ainda recente, no qual as pessoas se entendiam facilmente sobre os fatos e os problemas que faziam parte de nossa vida e da sociedade. Estes eram percebidos e avaliados de maneira bastante parecida pelo conjunto das pessoas e da sociedade, pois estava claro o padrão a ser seguido por todos. Hoje já não é mais assim. Por isso, dizemos que o mundo de nossos dias é plural, policêntrico, planetário, ecumênico. Ele não gira mais em torno de uma idéia só das coisas, nem de uma direção única dada à vida. Os símbolos que usamos e a linguagem que faz parte de nosso dia-a-dia são díspares, ou seja, revelam diferentes pólos de origem, apontam para diferentes direções, têm diferentes sentidos e nos fazem assumir práticas diferentes. 1. O choque da modernidade

Nós ainda nos lembramos dos traços da sociedade tradidonal, na qual as mudanças aconteciam muito lentamente. Tudo tinha seu lugar preestabelecido. Cabia a cada pessoa se encaixar no esquema de vida já estabelecido. Os papéis que cada um devia desempenhar, bem como os símbolos e a religião, tinham de antemão o seu lugar; e ai de quem ousasse questionar. Era uma sociedade marcada fortemente pela figura paterna. A família era coesa. E tudo devia conduzir para Deus, numa visão “teocêntrica”. O esforço de todos era o de integrar esta ordem, estabelecida de uma vez por todas. Além disso, era próprio dessa época uma visão também “cosmocêntrica”, típica das sociedades agrárias; o ser humano sentia-se muito ligado à natureza e, de certa forma, dependente e até subjugado às suas forças, as quais deveria acalmar com a invocação de Deus (ou dos deuses) e seus santos (ou mediadores). Mas a modernidade veio balançar tudo isso, mudando muita coisa; muitos dos grandes desafios que encontramos hoje vem dela. A modernidade acabou mudando o modo de pensar e de viver das pessoas. Mas será que tudo o que ela trouxe é conquista e valor? Vamos ver isso.

1.1. A afirmação da autonomia

Inicialmente é bom saber que a modernidade começou a existir há uns 500 anos. Trata-se da época chamada de Idade Moderna que sucedeu ao longo período da Idade Média. Mesmo que alguns digam que o seu começo possa ser buscado num passado muito distante, o certo é que a modernidade, ou a Idade Moderna, surgiu mesmo com as descobertas do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) e sua explicação da estrutura do universo, com a física do astrônomo e físico italiano Galileu Galilei (1564-1642), com a “filosofia prática” do inglês Francis Bacon (1561-1626), com a valorização da “razão” pelo movimento chamado Iluminismo e com a importância dada à produção pela Revolução Industrial (estes dois últimos são dos séculos XVIII e XIX).

A modernidade tem como elemento central a afirmação de que o ser humano é autônomo, sujeito de si e da história. Busca, assim, marcar sua independência frente a toda determinação que venha de fora (tradições, religiões, autoridades, forças da natureza...), ou seja, de toda heteronomia. Por isso, é revolucionária frente à sociedade tradicional, porque esta é

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nas pessoas o medo às conseqüências da não observância da lei. Trata-se, no entanto, de vivência moral empobrecida, conhecida como farisaísmo (*): numa passagem bíblica, um fariseu (membro de uma seita religiosa) louva seu próprio comportamento, agradecendo a Deus por não ser “como os outros” que transgridem as normas. Tal formalismo muitas vezes está ligado à pretensão e à hipocrisia.

18 - Por outro lado, se aceitarmos como predominante a interrogação do indivíduo que põe em dúvida a regra, corremos o risco de destruir a moral, pois, quando ela depende exclusivamente da sanção pessoal, recai no individualismo (*), na “tirania da intimidade” e, consequentemente, na ausência de princípios. Ora, o homem não é um ser solitário, um Robinson Crusoé numa ilha deserta, mas “con-vive” com pessoas, e qualquer ato seu compromete os que o cercam.

19 - Portanto, é preciso considerar os dois pólos contraditórios do pessoal e do social numa relação dialética (*), ou seja, numa relação que estabeleça o tempo todo a implicação recíproca entre determinismo e liberdade, entre adaptação e desadaptação à norma, aceitação e recusa da interdição.

20 - Para tanto, o aspecto social é considerado sob dois pontos de vista. Em primeiro lugar, significa apenas a herança dos valores do grupo, mas, depois de passar pelo crivo da dimensão pessoal, o social readquire a perspectiva humana e madura que destaca a ênfase na intersubjetividade (*) essencial da moral. Isto é, quando criamos os valores, não o fazemos para nós mesmos, mas enquanto seres sociais que se relacionam com os outros.

marcada mais pelos padrões preestabelecidos pelos papéis, ritos e cultos que cada um tem que desempenhar bem delimitados, por uma integração de todos ao status quo, sem questionar nada; nela tudo estava praticamente previsto de antemão.

Isto já não é o mesmo na modernidade. Esta se constrói numa lógica diferente e até oposta. Vejamos as idéias divulgadas por seus maiores pensadores. O francês René Descartes (1596-1650), com o seu famoso “cogito”, deu um dos primeiros grandes impulsos à modernidade. Afirmou que com o pensar (cogito - eu penso) nós poderíamos chegar à certeza sobre as coisas e garantir, assim, a verdade. “Ousa pensar por ti mesmo”, diziam os adeptos do Iluminismo. O filósofo alemão Immanuei Kant (1724-1804) foi mais longe e teve a pretensão de dizer que toda a verdade sobre o ser humano vem unicamente dele mesmo; para ele, o alcance e o valor da razão são tão grandes que a própria moral tem a necessidade de fundamentar-se em imperativos categóricos gerados pela razão prática. Quando falamos assim, estamos afirmando que toda heteronomia cai por terra e que nós nos orientamos a partir da nossa própria razão sem precisar de recorrer a leis externas. Veja que a própria moral brotarja desta razão.

1.2. Uma autonomia questionada

Com Descartes, Kant e o Ilumirnismo, pensou-se que afinal estava criado o “homem da razão”, autônomo, livre, sujeito de si e da história, detentor de direitos, um quase super-homem. Só que pessoas ilustres da própria modernidade acabaram mostrando que não é bem assim. Isto acabou dando uma grande sacudida nesta civilização tão ciosa de si que estava tomando pé e tentando se afirmar. Quatro personagens dos dois últimos séculos nos deixam alguns recados importantes. São eles: o filósofo alemão Karl Marx, o neuropsiquiatra austríaco Sigmund Freud, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche e o estruturalista francês Claude Lévi-Strauss.

Karl Marx (1818-1883) sublinhou o papel das forças sociais que marcam o ser humano como um todo. Segundo ele, nós pensamos e agimos sob a influência destas forças. Marx chega a afirmar, num Prefácio escrito em 1859 e no seu livro ideologia alemã, que “não é a consciência dos homens que determina a sua existência, mas, ao contrário, é a sua existência social que determina a sua consciência”. Esta afirmação tornou-se logo o “a b c” do materialismo histórico.

Sigmund Freud (1856-1939) lembra-nos, por sua vez, a força dos instintos e suas repercussões sobre o agir do ser humano. Ressalta igualmente o papel dos interditos (proibições), através dos quais a sociedade busca fazer frente a esses instintos. Os interditos condicionam nosso sistema de reflexos, formando, assim, o que seria a consciência, o superego. Além disso, a escola freudiana tenta demonstrar a ligação que existe entre o nosso inconsciente e os nossos comportamentos e ações. Estes são percebidos como sintomas de uma realidade psíquica mais profunda, lançando uma enorme dúvida sobre o real espaço de liberdade de que dispomos. Friedrich Nietzsche (1844-1900) nega a existência de princípios ético-políticos gerais para a conduta humana, chegando a negar o próprio Deus como princípio. Numa crítica à sociedade existente, ele mostra as disparidades sócio-culturais das morais e dos costumes em vigor, rejeita a moral existente e nega a validade da organização política vigente. Para ele, não há verdade moral nem hierarquia de valores. Prega que o progresso da sociedade só acontecerá depois que destruirmos sua organização atual. É o niilismo proclamado; chega-se a falar até na “morte de Deus”.

Claude Lévi-Strauss, nascido em 1908, mostra que o cogito, este eu penso, funciona no interior de uma cultura da qual ele é reflexo. Ou seja, eu penso como pensa o “mundo” em volta de mim. Existe aí uma reciprocidade entre o “sujeito” e o “outro” No estruturalismo (de Lévi-Strauss), o centro não está no “eu”, mas no “outro”. Toda a vida coletiva seguiria esta lógica.

Dito e recolhido isto, o ser humano não seria tão poderoso assim, como imaginaram os modernos Ele dependeria, na verdade, de toda uma rede de referências tecidas fora de si mesmo, condicionando-o fortemente. É como se a percepção de si, dos outros e das coisas fosse reflexo de uma visão vinda de fora. Isto influenciaria a formação da própria consciêncIa.

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21 - Essa questão é importante, sobretudo, nos tempos atuais, quando nos encontramos no extremo oposto das sociedades primitivas ou tradicionais, nas quais persiste a homogeneidade do pensamento e valores. Hoje, nas cidades cosmopolitas (*), há múltiplas expressões de moralidade, e a sabedora consiste na aceitação tolerante dos valores dos grupos diferentes, evitando o moralismo (*), que consiste na tentação de impor nosso ponto de vista aos outros.

22 - Isso não deve ser interpretado como defesa do extremo relativismo em que todas as formas de conduta são aceitas indistintamente. O professor Gianotti, assim se expressa:

“Os direitos do homem, tais como em geral tem sido enunciados a partir do século XVIII, estipularam condições mínimas do exercício da moralidade. Por certo, cada um não deixará de aferrar-se à sua moral; deve, entretanto, aprender a conviver com outras, reconhecer a unilateralidade de seu ponto de vista. E com isto está obedecendo à sua própria moral de uma maneira especialíssima, tomando os imperativos categóricos (*) dela como um momento particular do exercício humano de julgar moralmente. Desse modo, a moral do bandido e a do ladrão tornam-se repreensíveis do ponto de vista da moralidade pública, pois violam o princípio da tolerância e atingem direitos humanos fundamentais.”2

2 Gianotti, J. A., Moralidade pública e moralidade privada, in: Novaes, Adalto (org.), Ética, p. 245. Nos últimos dois séculos, cresceu muito a convicção de que ninguém escapa deste tipo de influências. Todos somos, sob alguma forma e medida, condicionados. Por exemplo, vivemos continuamente bombardeados pelas ideologias que buscam no influenciar e, muitas vezes, somos por elas literalmente manipulados.

2. O fascínio da produção

Como vimos, a modernidade deu uma importância crucial à razão. Ao mesmo tempo, fez da produção a mola-mestra para a satisfação de suas necessidades. As ciências passaram a imperar. Vale o que pode ser comprovado cientificamente. Ao mesmo tempo, um processo de secularização colocou-se em movimento por todos os lados.

2.1. A era das ciências, das técnicas e da competição

Podemos falar da racionalidade como uma das pilastras da modernidade. Só que, para o ser humano moderno, a razão é acionada para conhecer e produzir. Passamos, então, a falar de uma produção científica (através das ciências) e de uma produção física, de objetos para o consumo humano (através das técnicas).

A razão está na base do mundo técnico-científico de nossos dias. Este impôs algumas regras de valor. Por exemplo, o conhecimento produzido pelo ser humano deve passar pelo crivo da experiência para ser válido. Vale o que pode ser comprovado por experiências científicas. Para isso, cada ciência, que cuida de um campo da realidade, constrói-se sobre regras próprias, métodos e experimentações. Demarcado o seu campo próprio, ela passa a organizar os conhecimentos e diz o que é legítimo ou não.

Em primeiro lugar está o interesse técnico. Este vai estabelecer o que é útil, eficiente e lucrativo. Tudo passa a ser medido, calculado, verificado. O sucesso está na produtividade, numa política de resultados. Importa, por isso, competir. O mercado mundial, globalizado, transforma-se no grande campo de batalha. No mercado, é necessário ser agressivo; diante do concorrente, é bom sempre desconfiar (costuma ser um conspirador); os que não conseguem usufruir dos produtos deste mercado, que sejam excluídos, mesmo com o sacrifício de suas vidas. Ficam os “bons” (vencedores), ou seja, os que, desbancando os concorrentes, impõem a sua “lógica”, excluindo os inaptos a participar deste selecionado mercado dos que têm dinheiro.

A voracidade do ter, capitalizado, aparece como a tentação constante deste sistema. Quem conta, na verdade, são os que conseguem competir e sobreviver. Os demais, excluídos do sistema, são entregues à própria sorte, sacrificados. E a natureza, por sua vez, é sugada ao máximo, numa visão utilitarista, lucrativa e de acúmulo. Isto levou a uma “lógica” da depredação, apontando para a existência de um desenvolvimento insustentável.

2.1 O processo de secularização

Com a força das ciências e das técnicas, o ser humano buscou emancipar-se, livrar-se de toda determinação que viesse de fora; passou a valer o que pode ser comprovado técnico-cientificamente. O referencial religioso/transcendente foi substituído, criando um novo tipo de relação entre as sociedades modernas e a religião. Um processo de secularização muito profundo fazia-se presente.

O certo é que o Estado moderno queria ser soberano, não tolerando mais estar sob o domínio da instância religiosa; foi o momento da separação entre a Igreja e o Estado, como aconteceu no Brasil em 1891, ano da promulgação da primeira constituição republicana. Além disso, a religião ficou restrita à esfera do privado e a teologia perdeu o estatuto de ciência reconhecida pelo Estado. Vivia-se um momento de relativização dos saberes, cada um confinado a um campo específico. O

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23 – A instauração do mundo moral exige do homem a consciência crítica, que chamamos consciência moral. Formada pelo conjunto de exigências e prescrições (*) que reconhecemos como válidas para orientar a nossa escolha. É esta consciência que julga o valor moral de nossos atos. Assim, um ato será moral ou imoral conforme esteja de acordo ou não com a norma estabelecida na interação entre sociedade e indivíduo, entre social e pessoal.

VI - O ATO VOLUNTÁRIO24 - O que caracteriza fundamentalmente o agir humano é a capacidade de antecipação ideal do resultado a ser

alcançado. O ser humano pode ser prudente e prever o resultado de sua ação. E é justamente essa capacidade de antecipação que torna o ato moral propriamente voluntário, ou seja, um ato de vontade que decide pela busca do fim proposto. Nesse sentido, é importante, não confundir desejo com vontade. O desejo surge em nós com toda sua força e exige

mesmo acontecia com a religião, fato não superado até nossos dias. Cai a idéia de uma ciência das ciências (a teologia) que teria a função de ordenar a totalidade dos conhecimentos.

Esta modernidade, tão ciosa de sua autonomia, mostrou, por sua vez, que pode cair em visões reducionistas do ser humano e da realidade como um todo. Isso acontece quando assume uma visão cientista, estatista ou laicista. Vamos explicar isso.

Se, no passado, a teologia tinha a pretensão de intervir em todas as esferas, mesmo em matéria “profana”, com o surgimento das ciências modernas cai-se, não poucas vezes, no cientismo. O que é isto? É a pretensão de utilizar as leis de uma determinada ciência para todos os outros campos e dar explicações para tudo, mesmo na religião (muitas vezes para esvaziá-la).

Na esfera jurídico-política, pode-se cair nos exageros do estatismo. Isto significa que o Estado faz-se dono do sentido que as coisas devem ter. É ele a esfera última e exclusiva que a tudo confere um sentido. Os regimes totalitários e os disfarces totalitários de regimes hoje no poder mostram que a existência deste exagero não é só coisa do passado.

O laicismo quer aqui apontar para aquela forma de ocupar o espaço público para desvalorizar ou ridicularizar os diferentes credos. Falamos, então, de uma sociedade “laica”, ou seja, sem os referenciais religiosos. Não raro, o laicismo endoutrina as mentes através do cientismo e do estatismo.

Segundo o Concílio Vaticano II (1962-1965), não há mal nenhum no fato de existir muitas ciências. Afirma, inclusive, que a diferenciação dos campos, com seus princípios específicos, devem ser descobertos e aprofundados em proveito da organização da vida humana e social (cf. CS, n2 36). Reconhece a existência de duas ordens de saberes distintos, o da fé e o da razão. Fala em “autonomia das realidades terrestres”, reconhecendo os princípios básicos da modernidade e seu processo de secularização. Porém, a Igreja lembra, neste mesmo Concílio, que o reconhecimento da “autonomia” e da “diferença” não significa aceitar a sua “independência” e a “separação”. Não se separa fé professada e vida quotidiana (cf. GS, nº. 43).

O certo é que a autonomia do temporal não garante por si só a realização do ser humano. A sociedade moderna não pode achar que, uma vez emancipada do religioso, teria encontrado para todas as esferas da vida um fundamento apropriado, estável, regulador. A crise em nosso dia-a-dia nos mostra o quanto há de ser feito neste campo, sobretudo quando verificamos um desequilíbrio nos elementos vitais do humano.

3. A crise no dia-a-dia

O processo de modernização de nossa sociedade está causando um forte impacto na vida das pessoas, nas famílias e na organização da própria sociedade. O processo de urbanização e o da industrialização, das últimas décadas, trouxe mudanças consideráveis em instituições como a família, a escola e a Igreja. Além disso, acabou interferindo sobre a unanimidade em torno de todo um sistema de valores e símbolos que estruturavam a vida de cada dia. Os meios de comunicação acabaram adquirindo uma força maior do que a da família, a escola e a Igreja juntas. Hoje, já se diz que a televisão é como uma babá que educa e deseduca as crianças.

3.1. O indivíduo “perdido”

Um ponto-chave é, sem dúvida, a emergência do “indivíduo” como elemento pivô da modernidade. Na sociedade tradicional, o indivíduo tinha o seu lugar no conjunto social. Na sociedade moderna, a referência primeira e última é ele mesmo. Cabe ao indivíduo encontrar o seu lugar na sociedade, já que não é mais esta que lhe fixa um lugar, que o casa, que o emprega, que o engaja num esquema de pensamento e visão do mundo. Cabe ao indivíduo captar, escolher, decidir-se e “virar-se” diante de uma gama muito grande de saberes e de capacidades exigidas.

Acontece uma virada nas estruturas simbóiicas que sustentam a relação do ser humano com a natureza, com o outro, consigo mesmo e com Deus. A virada ou mudança também marca a relação fundamental homem-mulher. Na verdade,

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a realização; é algo que se impõe, portanto, não resulta de escolha. Já a vontade consiste no poder de parada que exercermos diante do desejo.

25 - Seguir o impulso do desejo sempre que ele se manifesta é a negação da moral e da possibilidade de qualquer vida em sociedade. Aliás, não é essa a aprendizagem da criança, que, a partir da tirania do desejo, deve chegar ao controle do desejo? (Lembremos aqui o que já estudamos sobre a questão do princípio do prazer e do princípio da realidade, ou ainda, da relação entre o Id, o superego e o ego em nossa vida psíquica). Observe que não estamos dizendo repressão do desejo, pois a repressão é uma força externa que coage, enquanto o controle supõe a autonomia do sujeito que escolhe entre os seus desejos, os prioriza e diz: “Este fica para depois”; “Aquele não devo realizar nunca”; “Este realizo agora com muito gosto”...

VII - O ATO RESPONSÁVEL26 - A complexidade do ato moral está no fato de que ele provoca efeitos não só na pessoa que age, mas naqueles

que a cercam e na própria sociedade como um todo. Portanto, para que um ato seja considerado moral, ele dever ser

esse contexto novo está na raiz de um indivíduo moderno extremamente frágil, com dificuldade de uma auto-identificação, incapaz de estabelecer relações duráveis e de assumir engajamentos por um tempo mais longo. O indivíduo da sociedade moderna acaba sendo muito vulnerável. Mesmo se auto-proclamando como capaz de autodeterminação, ele cai facilmente na malha condicionadora e até manipuladora de fora. Basta ver, por exemplo, como os meios de comunicação condicionam e manipulam as pessoas.

A crise é, portanto, permanente, acrescida pela constante insatisfação com relação ao presente, pois os

“progressos” modernos criam a ilusão de um amanhã sempre melhor, porém nunca conquistado. Nos jogam, assim, num consumismo sem freios como forma de compensar os vazios criados.

3.2. A crise afetiva e espiritual

A corrida atrás do que é eficiente, útil e que dá lucro está confundindo o ser humano de nossos dias, pois ele acaba achando que aí está a sua realização. Na verdade, cria-se uma confusão de valores, prioridades e necessidades vitais. Logo percebe que tudo isso cria um vazio existencial; vê que isso, por si só, não realiza ninguém, pois acaba atrofiando dimensões extremamente importantes para a sua vida, tais como o afetivo, o espiritual e tudo o que representa o comunicativo, o humano, o comunitário e o social. Verifica-se um desequilíbrio grave dos elementos vitais, sem os quais criam-se vazios, verdadeiros rombos no ser humano, que o levam a correr atrás de compensações para preenchê-los, compensações muitas vezes redutoras do humano e, não raro, desastrosas.

A modernidade afirma que o “sujeito” é o importante. Porém, passa a vê-lo a partir do processo produtivo. O ser humano constitui-se naquele que transforma a natureza, produz bens de consumo e, sobretudo, se entope destes bens, na ilusão de aí estar a sua realização. A dimensão afetiva acaba ficando em segundo plano. O espiritual não tem espaço. O que importa é “fazer”, é “produzir”, ter “resultados” e, sobretudo, ser capaz de “consumir” muito. Que felicidade!

Este processo é revelador de uma situação que acabou reduzindo o ser humano, tão rico em suas múltiplas dimensões, a uma peça para produzir e consumir. O ativismo passa a dominar. Muitas vezes, isso acontece até em nome de engajamentos sócio-políticos e eclesiais. Sacrifica-se o ser humano, a sua subjetividade, pois ele acaba não alimentando e trabalhando em si dimensões, verdadeiras pilastras de sua vida, como o afetivo, o espiritual, o gratuito, o simbólico, etc. Instala-se, é claro, uma crise que é, sobretudo, afetiva e espiritual.

Quantos militantes e pessoas engajadas de nossas comunidades sentem-se vazias afetiva e espiritualmente. Quantos outros descobrem, depois de um longo período metidos num ativismo de produção e consumo, que lhes falta “trabalhar” aquelas dimensões humanas tão básicas, sem as quais felicidade nenhuma se constrói. Isso explica muito das frustrações de nossos dias, bem como as depressões, as compulsões e a busca de saídas compensatórias de todo tipo, chegando ao suicídio em casos extremos.

3.3. A busca de novas religiosidades

O rombo criado no ser humano com a falta do cultivo do espiritual/transcendente é tão grande que deixou o ser humano num vazio que já compromete a qualidade de sua vida. Está nas suas raízes primeiras, sustentadoras do seu ser, a necessidade de relacionar-se com Deus. Por isso, vem-lhe do mais profundo uma sede que necessita saciar, O surgimento e o sucesso das “novas religiosidades” — seitas e outras — são a expressão desse ser humano moderno que necessita cultivar o espiritual.

Incapazes de um discernimento maior face à sua sede voraz de Deus, pelo vazio criado, as pessoas acabam compensando esta sede com qualquer oferta do religioso, engolindo “produtos” de baixa qualidade, muitos deles se constituindo numa verdadeira extorsão por parte de grupos propositalmente organizados. Numa versão individualista, reflexo da modernidade, essas novas religiosidades dispensam a comunidade, separam-se do social, enfatizam o indivíduo e o intimismo.

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livre, consciente, intencional, mas também é preciso que não seja um ato solitário e sim solidário. O ato moral supõe a solidariedade, a reciprocidade com aqueles com os quais nos comprometemos. O compromisso não deve ser entendido como algo superficial e exterior, mas como o ato que deriva do ser total do homem, como uma “promessa” pela qual ele se encontra vinculado à comunidade.

27 - Dessas características, decorre a exigência da responsabilidade. Responsável é aquele que “responde por seus atos”, isto é, o homem consciente e livre assume a tutoria do seu ato, reconhecendo-o o como seu e respondendo pelas conseqüências dele.

VIII - O DEVER E A LIBERDADE28 - O comportamento moral é consciente, livre e responsável. É também obrigatório, cria um dever. Mas a natureza

da obrigatoriedade moral não reside na exterioridade; é moral justamente porque deriva do próprio sujeito que se impõe a necessidade do cumprimento da norma. Pode parecer paradoxal (*), mas a obediência à lei livremente escolhida não é prisão, ao contrário, é liberdade. A consciência moral, como juiz interno, avalia a situação, consulta as normas estabelecidas, as

Essas “novas religiosidades” conseguem, inclusive, canalizar a busca desesperada de sobrevivência de vastas camadas empobrecidas de nossa população. Estas se lançam na busca de um “salvador” (reflexo da miséria), do maravilhoso e espetacular, das curas milagrosas e soluções mágicas (das igrejas eletrônicas).

Tais religiosidades nos alertam sobre o quanto são importantes as dimensões afetiva e espiritual no ser humano. E nos fazem ver que as nossas instituições, por demais pesadas e vagarosas, nem sempre atendem adequadamente aos membros de nossa Igreja; estes buscam fora o calor humano e a ajuda para o contato com Deus que nós não conseguimos suprir. Além desta crítica às nossas instituições, estas novas vertentes religiosas mostram que já se verifica uma saturação do ser humano em relação a este materialismo, no qual só tem valor o que é concreto, palpável, cientificamente verificável. O “produzir” e o “consumir” reduziram a pessoa ao “ter” num nível que já saturou.

3.4. A sexualidade: o que dizer?

Este quadro afetivo-espiritual em crise pegou a Igreja desprevenida ao se deparar com a rápida liberação sexual. Mais à vontade no campo sócio-econômico e político, a Igreja mostra-se um tanto constrangida quando o assunto é sexualidade. Esta situação dá, porém, sinais de mudança à medida que começa a surgir uma nova maneira de abordar a riqueza do dinamismo sexual. Este perpassa a globalidade da pessoa humana enquanto ser individual e socialmerite sexuado.

O modo de viver a sexualidade explica muito a crise (solidão, vazio, compensações, compulsões...) que o ser humano vive hoje. Temos certamente que refazer o edifício de compreensão e das práticas tendo como eixos a alteridade (ser face aos outros), a humanização (na superação do isolamento), a integração da masculinidade e da feminilidade (por polaridade, complementaridade e/ou reciprocidade).

3.5. A juventude: um desafio permanente

A juventude é particularmente atingida pela crise devido à peculiaridade do momento psicossocial vivido nessa sua fase da vida. Constitui-se numa fase de opções e de definições. Grandes desafios aí se apresentam, tais como: Como desenvolver-se pessoalmente e chegar enfim à plena maturidade diante da atual situação (familiar, econômico-social, política, afetivo-espiritual...)? Como definir-se e realizar-se dentro desta rede de interesses e ideologias tentando nos capturar de qualquer jeito?

Sabemos quão estreitas e difíceis são as reais oportunidades em todos os níveis nesta sociedade moderna. Por outro lado, o desejo que empurra a juventude para a realização pessoal deverá superar/evitar, por um lado, os processos autodestrutivos e, por outro lado, a simples satisfação imediata de suas pulsões. A juventude tem uma tríplice tarefa: construir uma personalidade válida (crítica), depurar novos valores, criar novas relações superando o isolamento, tendo como elementos fundamentais a centralidade da pessoa humana, com o cultivo de suas diferentes dimensões.

3.6. O desequilíbrio da qualidade de vida

Não dá mais para tapar o sol com a peneira. Não adianta fazer de conta que tudo está bem, criando ilusões e simulando mundos paradisíacos numa fuga da realidade que está aí diante de nós. Vivemos, hoje, num desequilíbrio do que é vital para nós. Vidas são excluídas e sacrificadas Os indicadores econô.. micos e Sociaís em nosso país apontam para um escândalo moral diante das desproporções existentes em termos de oportunidade de vida digna. A mentalidade calculista e tecnicista, aliada à rápida industriafização está reduzindo o ser humano a peça de uma máquina de produção e consumo, O individualismo exacerbado embaça nossa visão; elegemos o indivíduo como a medida de tudo, inclusive do que está além dele mesmo. Agredimos a natureza, depredandoa A política continua sendo um palco privilegiado para nossas elites corruptas continuarem sua forma arcaica de domínio oportunista e irresponsável Com isso, até as instituições andam debilitadas; sua legitimidade é posta em dúvida.

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interioriza como suas ou não, toma decisões e julga seus próprios atos. O compromisso humano que daí deriva é a obediência à decisão.

29 - No entanto, o compromisso não exclui a não-obediência, o que determinará justamente o caráter moral ou imoral do nosso ato. Por isso, o filósofo existencialista Gabriel Marcel diz: “O homem livre é o homem que pode prometer e pode trair”. Isso significa que, para sermos realmente livres, devemos ter a possibilidade sempre aberta da transgressão da norma, mesmo daquela que nós mesmos escolhemos.

30 - Para entendermos melhor, consideremos as noções de heteronomia (*) e autonomia (*). A palavra heteronomia (hetero, “diferente”, e “nomos”, “lei”) significa a aceitação da norma que não é nossa, que vem de fora, quando nos submetemos aos valores da tradição e obedecemos passivamente aos costumes por conformismo ou por temor à reprovação da sociedade ou dos deuses. É característica do mundo infantil viver na heteronomia. A autonomia (auto, “próprio”) não nega a influência externa e os determinismos, mas recoloca no homem a capacidade de refletir sobre as limitações que lhe são impostas, a partir das quais orienta a sua ação para superar os condicionamentos. Portanto quando decide pelo dever de cumprir uma norma, o centro da decisão é ele mesmo, a sua própria consciência moral. A autonomia é autodeterminação. Por isso uma vida autenticamente moral não se resume a um ato moral, mas é a repetição e continuidade do agir moral, deve se tornar um hábito, fundado no desejo de continuidade e na capacidade de perseverar no bem. A verdadeira vida moral é a vida que se orienta pelo e para o bem.

EXERCÍCIOS1) O que significa dizer que “a não indiferença é a essência do valor”?2) Sobre o caráter da moral responda: a) Em que consiste o caráter histórico-social da moral? b) Em que consiste o

caráter pessoal da moral?3) Por que, mesmo considerando a tolerância um valor máximo da convivência humana, não podemos aceitar a moral

de grupos como a Máfia, a Klu-Klux-Klan ou grupos neonazistas?4) Qual o significado da afirmação: “Não há moral do desejo; só é moral o ato voluntário”? Justifique.5) Sobre a vida autenticamente moral responda: a) Explique, a partir do texto, o sentido da afirmação: “No mundo

contemporâneo, muitas pessoas não têm condição de vida autenticamente moral”. b) Você concorda com esta afirmação? Justifique.

6) Sobre a afirmação de René Char: “Aquele que vem ao mundo para nada alterar não merece nem consideração nem paciência”, responda: a) Explicite com suas palavras o sentido da afirmação. b) Você concorda com esta afirmação? Justifique.

A modernidade está em crise. Faz-se necessário buscar o “novo” sem medo. Há sinais de que estamos entrando numa nova fase da história, Muitos a chamam de pós-modernidade Esta vem marcada por uma crítica à modernidade e exige a delimitação de novas bases sustentadoras do humano. É necessário acompanhar o ser humano adequadamen neste novo tempo. Recusar-se a este empenho Constitui-se num desserviço à humanidade; é abandonar o ser humano num caminho sem suporte adequado, passível de muitas quedas e capitulações; é torná-lo presa fácil de forças hegemônicas e muito bem aparelhadas que desejam sugá-lo sem escrúpulos, amarrá-lo em função de interesses traiçoeiros, ajustando-o e acomodando-o como “peça” do sistema, rebaixando-o assim ao estado de “objeto”. RETIRADO DE:

AGOSTINI, Nilo. A crise ético-moral em nossa sociedade. In: Teologia Moral. Petrópolis: Editora Vozes, pp.21-33.

EXERCÍCIO DE EXPLORAÇÃO DO TEXTO

1. Levante os principais questionamentos apresentados pelo autor, nos três primeiros parágrafos.2. A partir da perspectiva do autor, situe-se diante da Idade Moderna e caracterize os pensadores

considerados precursores da mesma pelo autor.3. O que diferencia a Idade Moderna da Idade Média e qual o posicionamento do autor frente aos principais

teóricos citados por ele?4. Por que um pensador da Moral e da Ética problematiza a Idade Moderna, sobretudo naquilo que a mesma

tem como seus maiores trunfos?

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TEXTO 23 - ENSINAR A COMPREENSÃO

Edgar MorinA situação é paradoxal sobre a nossa Terra. As interdependências multiplicaram-se. A consciência de ser solidários

com a vida e a morte, de agora em diante, une os humanos uns aos outros. A comunicação triunfa, o planeta é atravessado por redes, fax, telefones celulares, modems, Internet. Entretanto, a incompreensão permanece geral. Sem dúvida, há importantes e múltiplos progressos da compreensão, mas o avanço da incompreensão parece ainda maior.

O problema da compreensão tornou-se crucial para os humanos. E, por este motivo, deve ser uma das finalidades da educação do futuro.

Lembremo-nos de que nenhuma técnica de comunicação, do telefone à Internet, traz por si mesma a compreensão. A compreensão não pode ser quantificada. Educar para compreender a matemática ou uma disciplina determinada é uma coisa; educar para a compreensão humana é outra. Nela encontra-se a missão propriamente espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade.

O problema da compreensão é duplamente polarizado:• Um pólo, agora planetário, é o da compreensão entre humanos, os encontros e relações que se multiplicam entre

pessoas, culturas, povos de diferentes origens culturais.• Um pólo individual é o das relações particulares entre próximos. Estas estão cada vez mais ameaçadas pela

incompreensão (como será indicado mais adiante). O axioma “quanto mais próximos estamos, melhor compreendemos” é apenas uma verdade relativa à qual se pode opor o axioma contrário “quanto mais estamos próximos, menos compreendemos”, já que a proximidade pode alimentar mal-entendidos, ciúmes, agressividades, mesmo nos meios aparentemente mais evoluídos intelectualmente

1. AS DUAS COMPREENSÕESA comunicação não garante a compreensão.A informação, se for bem transmitida e compreendida, traz inteligibilidade, condição primeira necessária, mas não

suficiente, para a compreensão.Há duas formas de compreensão: a compreensão intelectual ou objetiva e a compreensão humana intersubjetiva.

Compreender significa intelectualmente apreender em conjunto, comprehendere, abraçar junto (o texto e seu contexto, as partes e o todo, o múltiplo e o uno). A compreensão intelectual passa pela inteligibilidade e pela explicação.

Explicar é considerar o que é preciso conhecer como objeto e aplicar-lhe todos os meios objetivos de conhecimento. A explicação é, bem entendido, necessária para a compreensão intelectual ou objetiva.

A compreensão humana vai além da explicação. A explicação é bastante para a compreensão intelectual ou objetiva das coisas anônimas ou materiais. É insuficiente para a compreensão humana.

Esta comporta um conhecimento de sujeito a sujeito. Por conseguinte, se vejo uma criança chorando, vou compreendê-la não por medir o grau de salinidade de suas lágrimas, mas por buscar em mim minhas aflições infantis, identificando-a comigo e identificando-me com ela. O outro não apenas é percebido objetivamente, é percebido como outro sujeito com o qual nos identificamos e que identificamos conosco, o ego alter que se torna alter ego. Compreender inclui, necessariamente, um processo de empatia, de identificação e de projeção. Sempre intersubjetiva, a compreensão pede abertura, simpatia e generosidade.

2. EDUCAÇÃO PARA OS OBSTÁCULOS À COMPREENSÃOOs obstáculos exteriores à compreensão intelectual ou objetiva são múltiplos.A compreensão do sentido das palavras de outro, de suas idéias, de sua visão do mundo está sempre ameaçada por

todos os lados:• Existe o “ruído” que parasita a transmissão da informação, cria o mal-entendido ou o não-entendido.• Existe a polissemia de uma noção que, enunciada em um sentido, é entendida de outra forma; assim, a palavra

“cultura”, verdadeiro camaleão conceptual, pode significar tudo que, não sendo naturalmente inato, deve ser aprendido e adquirido; pode significar os usos, valores, crenças de uma etnia ou de uma nação; pode significar toda a contribuição das humanidades, das literaturas, da arte e da filosofia.

• Existe a ignorância dos ritos e costumes do outro, especialmente dos ritos de cortesia, o que pode levar a ofender inconscientemente ou a desqualificar a si mesmo perante o outro.

• Existe a incompreensão dos Valores imperativos propagados no seio de outra cultura, como o são nas sociedades tradicionais o respeito aos idosos, a obediência incondicional das crianças, a crença religiosa ou, ao contrário, em nossas sociedades democráticas contemporâneas, o culto ao indivíduo e o respeito às liberdades.

• Existe a incompreensão dos imperativos éticos próprios a uma cultura, o imperativo da vingança nas sociedades tribais, o imperativo da lei nas sociedades evoluídas.

• Existe freqüentemente a impossibilidade, no âmago da visão do mundo, de compreender as idéias ou os argumentos de outra visão do mundo, como de resto no âmago da filosofia, de compreender outra filosofia.

• Existe, enfim e sobretudo, a impossibilidade de compreensão de uma estrutura mental em relação a outra.Os obstáculos intrínsecos às duas compreensões são enormes; são não somente a indiferença, mas também o

egocentrismo, o etnocentrismo, o sociocentrismo, que têm como traço comum se situarem no centro do mundo e considerar como secundário, insignificante ou hostil tudo o que é estranho ou distante.

2.1 0 egocentrismo

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O egocentrismo cultiva a seIf-deception, tapeação de si próprio, provocada pela autojustificação, pela autoglorificação e pela tendência a jogar sobre outrem, estrangeiro ou não, a causa de todos os males. A self-deception é um jogo rotativo complexo de mentira, sinceridade, convicção, duplicidade, que nos leva a perceber de modo pejorativo as palavras ou os atos alheios, a selecionar o que lhes é desfavorável, eliminar o que lhes é favorável, selecionar as lembranças gratificantes, eliminar ou transformar o desonroso.

O Cercle de Ia Croix, de Iain Peaars, mostra bem, em quatro narrativas diferentes dos mesmos acontecimentos e do mesmo homicídio, a incompatibilidade entre as narrativas devido não somente à dissimulação e à mentira, mas às idéias preconcebidas, às racionalizações, ao egocentrismo ou à crença religiosa. A Féerie por une autre fois, de Louis-Ferdinand Céline, é testemunho único de autojustificação frenética do autor, de sua incapacidade de se autocriticar, de seu raciocínio paranóico.

De fato, a incompreensão de si é fonte muito importante da incompreensão de outro. Mascaram-se as próprias carências e fraquezas, o que nos torna implacáveis com as carências e fraquezas dos outros.

O egocentrismo amplia-se com o afrouxamento da disciplina e das obrigações que anteriormente levavam à renúncia aos desejos individuais, quando se opunham à vontade dos pais ou cônjuges. Hoje a incompreensão deteriora as relações pais-filhos, maridos-esposas. Expande-se como um câncer na vida cotidiana, provocando calúnias, agressões, homicídios psíquicos (desejos de morte). O mundo dos intelectuais, escritores ou universitários, que deveria ser mais compreensivo, é o mais gangrenado sob o efeito da hipertrofia do ego, nutrido pela necessidade de consagração e de glória.

2.2 Etnocentrismo e sociocentrismoO etnocentrismo e o sociocentrismo nutrem xenofobias e racismos e podem até mesmo despojar o estrangeiro da

qualidade de ser humano. Por isso, a verdadeira luta contra os racismos se operaria mais contra suas raízes ego-sócio-cêntricas do que contra seus sintomas.

As idéias preconcebidas, as racionalizações com base em premissas arbitrárias, a autojustificação frenética, a incapacidade de se autocríticar, os raciocínios paranóicos, a arrogância, a recusa, o desprezo, a fabricação e a condenação de culpados são as causas e as conseqüências das piores incompreensões, oriundas tanto do egocentrismo quanto do etnocentrismo.

A incompreensão produz tanto o embrutecimento quanto este produz a incompreensão. A indignação economiza o exame e a análise. Como disse Clément Rosset: “A desqualificação por motivos de ordem moral permite evitar qualquer esforço de inteligência do objeto desqualificado de maneira que um juízo moral traduz sempre a recusa de analisar e mesmo a recusa de pensar”. Como Westermarck assinalava: “O caráter distintivo da indignação moral continua sendo o desejo instintivo de devolver pena por pena”.

A incapacidade de conceber um complexo e a redução do conhecimento de um conjunto ao conhecimento de uma de suas partes provocam conseqüências ainda mais funestas no mundo das relações humanas que no do conhecimento do mundo físico.

2.3 O espírito redutorReduzir o conhecimento do complexo ao de um de seus elementos, considerado como o mais significativo, tem

conseqüências piores em ética do que em conhecimento físico. Entretanto, tanto é o modo de pensar dominante, redutor e simplificador, aliado aos mecanismos de incompreensão, que determina a redução da personalidade, múltipla por natureza, a um único de seus traços. Se o traço for favorável, haverá desconhecimento dos aspectos negativos desta personalidade. Se for desfavorável, haverá desconhecimento dos seus traços positivos. Em um e em outro caso, haverá incompreensão. A compreensão pede, por exemplo, que não se feche, não se reduza o ser humano a seu crime, nem mesmo se cometeu vários crimes. Como dizia Hegel:

“O pensamento abstrato nada vê no assassino além desta qualidade abstrata (retirada de seu complexo) e (destrói) nele, com a ajuda desta única qualidade, o que resta de sua humanidade.”

Além disso, lembremo-nos de que a possessão por uma idéia, uma fé, que dá a convicção absoluta de sua verdade, aniquila qualquer possibilidade de compreensão de outra idéia, de outra fé, de outra pessoa.

Assim, os obstáculos à compreensão são múltiplos e multiformes: os mais graves são constituídos pela cadeia egocentrismo/autojustificação/self-deception, pelas possessões e reduções, assim como pelo talião e pela vingança - estruturas arraigadas de modo indelével no espírito humano, que ele não pode arrancar, mas que ele pode e deve superar.

A conjunção das incompreensões, a intelectual e a humana, a individual e a coletiva, constitui obstáculos maiores para a melhoria das relações entre indivíduos, grupos, povos, nações.

Não são somente as vias econômicas, jurídicas, sociais, culturais que facilitarão as vias da compreensão; é preciso também recorrer a vias intelectuais e éticas, que poderão desenvolver a dupla compreensão, intelectual e humana.

3. A ÉTICA DA COMPREENSÃO A ética da compreensão é a arte de viver que nos demanda, em primeiro lugar, compreender de modo

desinteressado. Demanda grande esforço, pois não pode esperar nenhuma reciprocidade: aquele que é ameaçado de morte por um fanático compreende por que o fanático quer matá-lo, sabendo que este jamais o compreenderá. Compreender o fanático que é incapaz de nos compreender é compreender as raízes, as formas e as manifestações do fanatismo humano. É compreender porque e como se odeia ou se despreza. A ética da compreensão pede que se compreenda a incompreensão.

A ética da compreensão pede que se argumente, que se refute em vez de excomungar e anatematizar. Encerrar na noção de traidor o que decorre da inteligibilidade mais ampla impede que se reconheçam o erro, os desvios, as ideologias, as derivas.

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A compreensão não desculpa nem acusa: pede que se evite a condenação peremptória, irremediável, como se nós mesmos nunca tivéssemos conhecido a fraqueza nem cometido erros. Se soubermos compreender antes de condenar estaremos no caminho da humanização das relações humana.

O que favorece a compreensão é: 3.1 O “bem pensar”Este é o modo de pensar que permite apreender em conjunto o texto e o contexto, o ser e seu meio ambiente, o local

e o global, o multidimensional, em suma, o complexo, isto é, as condições do comportamento humano. Permite-nos compreender igualmente as condições objetivas e subjetivas (self-deception, possessão por uma fé, delírios e histerias).

3.2 A introspecção A prática mental do auto-exame permanente é necessária, já que a compreensão de nossas fraquezas ou faltas é a

via para a compreensão das do outro. Se descobrirmos que somos todos seres falíveis, frágeis, insuficientes, carentes, então podemos descobrir que todos necessitamos de mútua compreensão.

O auto-exame crítico permite que nos descentremos em relação a nós mesmos e, por conseguinte, que reconheçamos e julguemos nosso egocentrismo. Permite que não assumamos a posição de juiz de todas as coisas.

4. A CONSCIÊNCIA DA COMPLEXIDADE HUMANAA compreensão do outro requer a consciência da complexidade humana.Assim, podemos buscar na literatura romanesca e no cinema a consciência de que não se deve reduzir o ser à menor

parte dele próprio, nem mesmo ao pior fragmento de seu passado. Enquanto, na vida comum, nos apressamos em encerrar na noção de criminoso aquele que cometeu um crime, reduzindo os demais aspectos de sua vida e de sua pessoa a este traço único, descobrimos em seus múltiplos aspectos os reis gângsters de Shakespeare e os gângsters reais dos filmes policiais. Podemos ver como um criminoso pode se transformar e se redimir como Jean Valjean e Raskolnikov.

Podemos enfim aprender com eles as maiores lições de vida, a compaixão do sofrimento dos humilhados e a verdadeira compreensão.

4.1 A abertura subjetiva (simpática) em relação ao outroEstamos abertos para determinadas pessoas próximas privilegiadas, mas permanecemos, na maioria do tempo,

fechados para as demais. O cinema, ao favorecer o pleno uso de nossa subjetividade pela projeção e identificação, faz-nos simpatizar e compreender os que nos seriam estranhos ou antipáticos em tempos normais. Aquele que sente repugnância pelo vagabundo encontrado na rua simpatiza de todo coração, no cinema, com o vagabundo Carlitos. Enquanto na vida cotidiana ficamos quase indiferentes às misérias físicas e morais, sentimos compaixão e comiseração na leitura de um romance ou na projeção de um filme.

4.2 A interiorização da tolerânciaA verdadeira tolerância não é indiferente às idéias ou ao ceticismo generalizados. Supõe convicção, fé, escolha ética

e ao mesmo tempo aceitação da expressão das idéias, convicções, escolhas contrárias às nossas. A tolerância supõe sofrimento ao suportar a expressão de idéias negativas ou, segundo nossa opinião, nefastas, e a vontade de assumir este sofrimento.

Há quatro graus de tolerância: o primeiro, expresso por Voltaire, obriga-nos a respeitar o direito de proferir um propósito que nos parece ignóbil; isso não é respeitar o ignóbil, trata-se de evitar que se imponha nossa concepção sobre o ignóbil a fim de proibir uma fala. O segundo grau é inseparável da opção democrática: a essência da democracia é se nutrir de opiniões diversas e antagônicas; assim, o princípio democrático conclama cada um a respeitar a expressão de idéias antagônicas às suas. O terceiro grau obedece à concepção de Niels Bohr, para quem o contrário de uma idéia profunda é uma outra idéia profunda; dito de outra maneira, há uma verdade na idéia antagônica à nossa, e é esta verdade que é preciso respeitar. O quarto grau vem da consciência das possessões humanas pelos mitos, ideologias, idéias ou deuses, assim como da consciência das derivas que levam os indivíduos bem mais longe, a lugar diferente daquele onde querem ir. A tolerância vale, com certeza, para as idéias, não para os insultos, agressões ou atos homicidas.

5. COMPREENSÃO, ÉTICA E CULTURA PLANETÁRIAS Devemos relacionar a ética da compreensão entre as pessoas com a ética da era planetária, que pede a

mundialização da compreensão. A única verdadeira mundialização que estaria a serviço do gênero humano é a da compreensão, da solidariedade intelectual e moral da humanidade.

As culturas devem aprender umas com as outras, e a orgulhosa cultura ocidental, que se colocou como cultura-mestra, deve-se tornar também uma cultura-aprendiz. Compreender é também aprender e reaprender incessantemente.

Como podem as culturas comunicar? Magoroh Maruyama fornece-nos uma indicação útil. Em cada cultura, as mentalidades dominantes são etno ou sociocêntricas, isto é, mais ou menos fechadas em relação às outras culturas. Mas existem, dentro de cada cultura, mentalidades abertas, curiosas, não-ortodoxas, desviantes, e existem também mestiços, fruto de casamentos mistos, que constituem pontes naturais entre as culturas. Muitas vezes os desviantes são escritores ou poetas cuja mensagem pode se irradiar tanto no próprio país quanto no mundo exterior.

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Quando se trata de arte, de música, de literatura, de pensamento, a mundialização cultural não é homogeneizadora. Formam-se grandes ondas transnacionais que favorecem ao mesmo tempo a expressão das originalidades nacionais em seu seio. Foi assim na Europa no Classicismo, nas Luzes, no Romantismo, no Realismo, no Surrealismo. Hoje, os romances japoneses, latino-americanos, africanos são publicados nas grandes línguas européias e os romances europeus são publicados na Ásia, no Oriente, na África e nas Américas. As traduções dos romances, ensaios, livros filosóficos de uma língua para outra permitem a cada país ter acesso às obras dos outros países e de nutrir-se das culturas do mundo, alimentando ao mesmo tempo, com suas obras, o caldo de cultura planetária. Com certeza, aquele que recolhe as contribuições originais de múltiplas culturas está ainda limitado às esferas restritas de cada nação; mas seu desenvolvimento é um traço marcante da segunda metade do século XX e deveria estender-se até o século XXI, o que seria triunfal para a compreensão entre os humanos.

Paralelamente, as culturas orientais suscitam no Ocidente múltiplas curiosidades e interrogações. O Ocidente já havia traduzido o Avesta e os Upanishads no século XVIII, Confúcio e Lao-Tseu no século XIX, mas as mensagens da Asia permaneciam restritas a objetos de estudos eruditos. Foi apenas no século XX que a arte africana, os filósofos e místicos do Islã, os textos sagrados da Índia, o pensamento do Tao, o do budismo transformaram-se fontes vivas para a alma ocidental isolada ao mundo do ativismo, do produtivismo, da eficácia, do divertimento, que aspira à paz interior e à relação harmoniosa com o como.

A abertura da cultura ocidental pode parecer para alguns ao mesmo tempo não-compreensiva e incompreensível. Mas a racionalidade aberta e autocrítica decorrente da cultura européia permite a compreensão e a integração do que outras culturas desenvolveram e que ela atrofiou. O Ocidente deve também incorporar as virtudes das outras culturas, a fim de corrigir o ativismo, o pragmatismo, o “quantitativismo”, o consumismo desenfreados, desencadeados dentro e fora dele. Mas deve também salvaguardar, regenerar e propagar á melhor de sua cultura, que produziu a democracia, os direitos humanos, a proteção da esfera privada do cidadão.

A compreensão entre sociedades supõe sociedades democráticas abertas, o que significa que o caminho da compreensão entre culturas, povos e nações passa pela generalização das sociedades democráticas abertas.

Mas não nos esqueçamos de que, mesmo nas sociedades democráticas abertas, permanece o problema epistemológico da compreensão: para que possa haver compreensão entre estruturas de pensamento, é preciso passar à metaestrutura do pensamento que compreenda as causas da incompreensão de umas em relação às outras e que possa superá-las.

A compreensão é ao mesmo tempo meio e fim da comunicação humana. O planeta necessita, em todos os sentidos, de compreensões mútuas. Dada a importância da educação para a compreensão, em todos os níveis educativos e em todas as idades, o desenvolvimento da compreensão necessita da reforma planetária das mentalidades; esta deve ser a tarefa da educação do futuro.

MORIN, Edgar. Ensinar a compreensão. In: Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paullo: Edições Unesco, 2000, pp. 93-104.

1. Elabore uma síntese dos cinco tópicos constitutivos do texto, devidamente assinalados, discriminados (tópico por tópico).

2. Por meio de um texto de, no mínimo 10 linhas, posicione-se criticamente diante do conteúdo da abordagem do autor.

“A comunicação triunfa, o planeta é atravessado por redes, fax, telefones celulares, modems,Internet. Entretanto, a incompreensão permanece geral. Sem dúvida, há importantes e múltiplos progressos da compreensão, mas o avanço da incompreensão parece ainda maior”.

3. Relacione o conteúdo do texto de Edgar Morin, acima emoldurado, com a seguinte constatação no que diz respeito à qualidade da comunicação na atualidade: “Nós, brasileiros, vivemos num país privilegiado em termos de competência técnica quanto à quantidade e variedade na veiculação de notícias pelos vários meios de comunicação, especialmente o televisivo. Superabundam informações e programas de entretenimentos durante as 24 horas do dia. No entanto, se nos posicionarmos criticamente diante da qualidade do conteúdo das informações, percebemos que existem superficialidades e manipulações deliberadas dos conteúdos em geral”.

4. Explique, a partir da leitura do texto, em que sentido pode haver inteligibilidade na explicação de um texto doutrinário, por parte de um líder religioso, mas não uma compreensão do mesmo, por parte dos membros do grupo religioso ao qual ele se dirige.

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