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Fernando Nicolazzi, Helena Mollo & Valdei Araujo (org.). Caderno de resumos & Anais do 4º. Seminário Nacional de História da Historiografia: tempo presente & usos do passado. Ouro Preto: EdUFOP, 2010. (ISBN: 978-85-288-0264-1) 1 Memória e História: cem anos de Revolução Mexicana e a construção da identidade nacional Warley Alves Gomes * No presente ano o México se prepara para duas grandes comemorações: o Bicentenário da Independência e o Centenário da Revolução Mexicana. Além das diversas efemérides e festejos, não podemos deixar de lado o convite à reflexão que tais eventos nos permitem. Os temas da nacionalidade, da independência em relação às grandes potências e da identidade mexicana logo vêm à mente nos chamando para repensar o México atual. Cem anos após a Revolução que abalou as estruturas do país, o México parece estar se afastando dos ideais colocados à superfície durante a fase bélica deste evento, e que permaneceram por um bom tempo após a reestruturação do país na década seguinte. As terras ejidais estão ameaçadas pelo grande capital, a independência fragilizada pelo poder econômico de seu vizinho do norte: os Estados Unidos. O partido oriundo da Revolução, e que permaneceu no poder por aproximadamente 70 anos, o Partido Revolucionário Institucional – PRI – está bastante distante de ideais nacionalistas, e parece mesmo é atrelado com o neoliberalismo, que ainda é bastante forte no México. Na verdade o PRI já se mostrava fragilizado desde o final dos anos 60, quando ocorreu o massacre na Plaza de Las Tres Culturas, no qual o governo, em reação aos protestos de estudantes que reivindicavam uma democracia efetiva, autorizou uma retaliação que matou entre 200 a 300 pessoas. As fontes oficiais registraram apenas 4 mortos e 20 feridos. Diante de uma situação como esta nos propomos a pensar: o que ainda sobrou da Revolução Mexicana? Antes de respondermos a esta pergunta é importante voltarmos no tempo, e pensar como se configurou a identidade nacional pós- revolucionária no México. Ao fazer isto vamos procurar nos apoiar em temas caros ao debate historiográfico contemporâneo, como é o caso da relação entre a memória e a história. Também vamos procurar pensar como a historiografia sobre a Revolução abordou o tema no decorrer dos anos. Procurando entender o presente lançamos nosso * Graduando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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Fernando Nicolazzi, Helena Mollo & Valdei Araujo (org.). Caderno de resumos & Anais

do 4º. Seminário Nacional de História da Historiografia: tempo presente & usos do

passado. Ouro Preto: EdUFOP, 2010. (ISBN: 978-85-288-0264-1)

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Memória e História: cem anos de Revolução Mexicana e a construção da identidade nacional

Warley Alves Gomes*

No presente ano o México se prepara para duas grandes comemorações: o

Bicentenário da Independência e o Centenário da Revolução Mexicana. Além das

diversas efemérides e festejos, não podemos deixar de lado o convite à reflexão que tais

eventos nos permitem. Os temas da nacionalidade, da independência em relação às

grandes potências e da identidade mexicana logo vêm à mente nos chamando para

repensar o México atual. Cem anos após a Revolução que abalou as estruturas do país, o

México parece estar se afastando dos ideais colocados à superfície durante a fase bélica

deste evento, e que permaneceram por um bom tempo após a reestruturação do país na

década seguinte. As terras ejidais estão ameaçadas pelo grande capital, a independência

fragilizada pelo poder econômico de seu vizinho do norte: os Estados Unidos. O partido

oriundo da Revolução, e que permaneceu no poder por aproximadamente 70 anos, o

Partido Revolucionário Institucional – PRI – está bastante distante de ideais

nacionalistas, e parece mesmo é atrelado com o neoliberalismo, que ainda é bastante

forte no México. Na verdade o PRI já se mostrava fragilizado desde o final dos anos 60,

quando ocorreu o massacre na Plaza de Las Tres Culturas, no qual o governo, em reação

aos protestos de estudantes que reivindicavam uma democracia efetiva, autorizou uma

retaliação que matou entre 200 a 300 pessoas. As fontes oficiais registraram apenas 4

mortos e 20 feridos.

Diante de uma situação como esta nos propomos a pensar: o que ainda

sobrou da Revolução Mexicana? Antes de respondermos a esta pergunta é importante

voltarmos no tempo, e pensar como se configurou a identidade nacional pós-

revolucionária no México. Ao fazer isto vamos procurar nos apoiar em temas caros ao

debate historiográfico contemporâneo, como é o caso da relação entre a memória e a

história. Também vamos procurar pensar como a historiografia sobre a Revolução

abordou o tema no decorrer dos anos. Procurando entender o presente lançamos nosso

* Graduando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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olhar em direção a um “outro” sempre desconhecido para nós: o passado. Neste

labirinto sempre tortuoso, a narrativa aparece como uma luz, como uma forma de

entender melhor.

Voltemos então para a década de 1910. O espaço aqui não permite

pormenorizar os diversos eventos ocorridos durante a fase bélica da Revolução, que

durou toda a década. O México viveu cerca de 35 anos sobre a ditadura de Porfírio Diaz

(1876 – 1911), que privilegiou as elites aristocráticas. O governo porfirista se

fundamentou a partir do apoio de uma aristocracia e de uma política voltada para o

darwinismo social e o positivismo spenceriano, excluindo assim os indígenas e mestiços

– parcela considerável da população, e de maioria camponesa (FELL, 1994). O início do

século apontou para uma decadência do governo de Diaz, acompanhada pelo aumento

da censura e pela perseguição política. As condições para os camponeses também se

tornou cada vez mais crítica, devido à baixa na qualidade de vida.

Não tardou para que em 1910 ocorressem vários levantes armados contra o

governo, sendo que os mais diversos conflitos ideológicos e sociais se encontraram em

choque durante toda a década. A Revolução Mexicana foi marcada pela forte conotação

social, pelo seu caráter acentuadamente camponês – embora diversas outras classes

também tenham entrado em combate. Ela mostrou para a América Latina que as classes

populares não poderiam mais ser deixadas de lado, que agora, mais do que nunca, se

constituíam como um importante ator político.

Já na década de 1920, passados os momentos de combates mais intensos, a

nova classe burguesa que se encontrava no poder buscou reestruturar o país. Foram

empreendidas diversas mudanças materiais, como a reconstrução e mudança de diversos

ambientes urbanos, bem como da linha ferroviária, que havia sido bastante danificada

durante os combates. Mas as mudanças não ficaram só no campo material. Era preciso

repensar um novo México, e com isso, um novo “ser mexicano” (BAGGIO, 2002;

MONTFORT, 1994; GOMES, 2010b). Buscou-se assim construir uma nova ideologia

revolucionária que mostrasse este novo México, que agora valorizava elementos que

haviam sido deixados de lado no governo de Porfírio Diaz, como é o caso do

indigenismo e da mestiçagem.

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Pensamos em ideologia aqui de acordo com Marx, Engels e Pierre Bourdieu.

Para os dois primeiros, a ideologia seria uma concepção distorcida da história, ou

mesmo a uma abstração completa desta (MARX; ENGELS, 2005). Assim, a classe que

detêm os meios de produção material e ocupa o poder consegue impor sua realidade

sobre as demais classes dominadas. Bourdieu (BOURDIEU, 2007) pensa a ideologia a

partir de uma série de elementos simbólicos, que partem dos interesses particulares dos

grupos que ocupam o poder e são colocados como interesses universais, comuns à toda

a comunidade. Assim, através das ideologias, balizadas pelo seu poder simbólico,

configura-se a capacidade de confirmar ou transformar a visão da realidade, de fazer ver

e crer, de constituir uma verdade apenas através de sua enunciação. Tal poder simbólico

não é visto como arbitrário, mas antes, é reconhecido pelos dominados, que também

flertam com ele.

O problema de ambas as concepções – as de Marx e Engels e a de Bourdieu – é

que ambas são bastante elitistas. Existe nelas uma concepção do fazer político como

algo reservado apenas às elites e aos profissionais da área. Não concebem que o campo

político e suas condutas também se encontram nas demais classes sociais e nos mais

diversos ambientes, seja no bar, na casa ou no trabalho. Mais do que isto: não

consideram que este tipo de fazer político é legítimo e autônomo. Apesar destas

questões não podemos deixar de lado as importantes contribuições destes autores para o

debate político, e nem mesmo afirmar que seus argumentos são simplistas.

Outro ponto importante a dizer sobre a década de 1920 no México, é a questão

da formação da Revolução enquanto mito político. Aqui, estamos de acordo com Raoul

Girardet (GIRARDET, 1987) quando afirma que o mito é caracterizado por uma

deformação, ou mesmo fabulação, do real. A narrativa legendária teria assim uma

função explicativa, buscaria expressar uma compreensão do presente. Mais do que isso,

o mito teria um aspecto mobilizador no que toca à atuação no presente. Segundo

Girardet:

Como o sonho, o mito se organiza em uma sucessão, seria melhor dizer em uma

dinâmica de imagens e, não mais que para o sonho, não poderia ser questão de

dissociar as frações dessa dinâmica: estas se encadeiam, nascem uma da outra,

chamam uma à outra, respondem-se e confundem-se por um jogo complexo de

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associações visuais, o mesmo movimento que as faz aparecer leva-as para uma

direção muito outra (GIRARDET, 1987: 14)

No caso mexicano, podemos dizer que a Revolução adquire um aspecto mítico ao reunir

em seu espectro diferentes imagens, nem sempre conexas, mas que acabam por se

confundir durante a construção desse mito. É o caso das imagens dos indígenas, dos

mestiços, da violência revolucionária, da idéia de um futuro promissor, dos camponeses,

dos grandes líderes revolucionários, ou mesmo a de Porfírio Diaz. É a imagem de

Zapata no sul do país, de Marx nas escadarias do Palácio do Zócalo, dos fuzilamentos

nas batalhas. Todas se conectam para explicar o que não pode ser compreendido: o

fenômeno revolucionário. Este caráter mítico da Revolução acaba alimentando sua

visão de futuro a partir de elementos retirados do passado: é o poderoso Império Azteca

e suas tradições representando o novo México pós-revolucionário.

Falamos de ideologia e de mitos. Embora ambos possam se confundir é

preciso esclarecer que um não é o outro. O mito, como foi dito anteriormente, se

constituiu a partir da associação de uma série de imagens que “se encadeiam, nasce uma

da outra, chamam uma à outra, respondem-se e confundem-se”, ele se configura como

uma construção coletiva, compartilhada e apropriada de diferentes maneiras pelos mais

distintos grupos sociais em uma sociedade dada, enquanto as ideologias são produtos de

grupos específicos, em grande parte de uma elite dominante, que busca impor seus

valores, costumes e simbolismos aos outros grupos sociais. Pierre Bourdieu define bem

esta diferença entre as ideologias e os mitos: “As ideologias, por oposição ao mito,

produto coletivo e coletivamente apropriado, servem interesses particulares que tendem

a apresentar como interesses universais, comum ao conjunto do grupo” (BOURDIEU,

1989, p.10). A partir destas considerações, podemos dizer que a Revolução Mexicana

enquanto mito político serviu e partiu de concepções de todas as classes e grupos

sociais, tanto dos zapatistas, villistas, quanto das novas elites políticas pós-

revolucionárias. Cada um destes grupos se vincula à Revolução e constrói uma imagem

mítica sobre ela a partir de seu imaginário e ideais. Enquanto construção ideológica, ela

está claramente ligada às elites que chegaram ao poder na década de 1920, que

buscaram formar um novo país seja educando os índios – como é o caso do projeto

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educacional de José Vasconcelos1 -, seja se apropriando de imagens e obras para

construir a nova identidade nacional – como foi o caso dos corridos, da literatura ou das

fotografias da família Casasola (GOMES, 2010b; BARBOSA, 1996, 2006).

Agora passemos à outra questão do problema: o do abuso da memória. A

memória está vinculada ao passado. Ela aponta para um elo com o que já ocorreu,

mesmo quando permeada pela imaginação. Mas algumas vezes ela sofre o que Paul

Ricoeur chama de “abuso de memória” (RICOEUR, 2007). A construção de uma

identidade presume não só uma busca à memória, mas também um suposto

esquecimento, visto que é preciso selecionar elementos. Isso não é diferente quando

pensamos a construção de uma identidade nacional. Em um nível mais elevado, esses

abusos de memória podem chegar ao que Ricoeur chama de uma “memória obrigada”.

Aqui cabe uma determinação do que deve permanecer na memória coletiva. O estado

mexicano pós-revolucionário não só determinou quais elementos seriam necessários

para construir sua ideologia, mas também procurou pensar o que deveria ser lembrado

posteriormente. Construiu heróis e vilões, consagrou alguns eventos históricos e

amaldiçoou outros.

Mas memória e Historia apesar de andarem juntas, também não são a mesma

coisa. Cabe à História fazer uma reflexão crítica sobre a memória, colocá-la à prova.

Para tal processo, o conhecimento histórico faz perguntas à memória, procura fontes nos

arquivos, investiga o passado. Pensemos agora como a historiografia refletiu sobre a

Revolução Mexicana. Ela teria se colocado criticamente em relação ao mito? Contribuiu

ou não para a formação da ideologia pós-revolucionária? Veremos rapidamente como se

deu este processo.

O texto de Carlos Alberto Sampaio Barbosa e Maria Aparecida de Souza

Lopes, A historiografia da Revolução Mexicana no limiar do século XXI: tendências

1 José Vasconcelos foi Ministro da Educação entre 1921 e 1924 e implementou um programa educativo que buscava levar a instrução pública até as áreas mais afastadas do país. Uma de suas principais intenções era educar os povos indígenas ainda não alfabetizados no espanhol. É interessante observar que o modelo educativo proposto por Vasconcelos era voltado para uma educação iluminista, européia e até mesmo homogeneizante.

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gerais e novas perspectivas, nos apresenta um panorama interessante do que foi

pensado sobre a Revolução Mexicana no debate historiográfico. Segundo os autores:

(...) as interpretações acerca das causas e do significado da

Revolução variam bastante, dos primeiros estudos escritos

praticamente durante os levantes armados – alguns dos quais

“satanizavam” o porfiriato e propugnavam o caráter “vencedor”,

“legítimo” e global da Revolução – atravessou-se uma fase de

“regionalização” que colocou em evidência as diversidades locais dos

movimentos.

Podemos pensar, a partir do trecho acima, que a historiografia colaborou sim, ao menos

em seu início, com a idéia de uma memória obrigada. A História, nesse sentido,

funcionou como mais um elemento ideológico das elites para a construção da idéia de

uma Revolução redentora. E não era a idéia de uma redenção qualquer, mas sim a de

uma redenção que serviria bem aos novos grupos no poder. A revisão regionalista

serviria, mais tarde, para questionar esta “redenção”, colocando no centro do debate

historiográfico as diferenças regionais no que toca à idéia de Revolução. Mas vamos

com calma em nosso texto, de forma a trabalhar melhor estas idéias.

Sampaio Barbosa e Souza Lopes dividem as interpretações historiográficas

sobre a Revolução Mexicana em três etapas: a Revolução como triunfo e redenção, a

Revolução revisada, e por fim, a Revolução resgatada. Os autores também afirmam que

o debate em torno do tema anda de mãos dadas com a história do Partido

Revolucionário Institucional. Tal partido proclamou-se como resultado institucional dos

conflitos da primeira década.

Comecemos então a discutir o tema a partir das três fases apresentadas. Na

primeira fase, nos encontramos de frente à uma perspectiva histórica que enfoca o

caráter agrarista e popular da Revolução. Na verdade, iam, além disso, buscando no

passado colonial as causas do evento. Assim, o modelo econômico implantado pelos

espanhóis foi responsável pela divisão da sociedade mexicana entre latifundiários de um

lado, e comunidades indígenas camponeses desprovidos de terra do outro. As

desigualdades foram se agudizando ao longo do desenrolar da história mexicana,

conhecendo seu auge nos anos de 1910, quando irrompe a Revolução. Este evento, de

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acordo com estas interpretações, rompeu com o legado de exploração das massas

camponesas e das populações mais pobres do México. Também podemos dizer que,

apesar de pensar a Revolução Mexicana a partir de um caráter camponês e popular,

nestas interpretações, a atuação das camadas populares se encontra ofuscada pelos feitos

dos grandes homens. Ainda estamos falando daquela velha história política, marcada

pelos grandes eventos, pelos grandes líderes, como bem nos esclarece Jean-François

Sirinelli em seu texto sobre os intelectuais (SIRINELLI, 2003). Aqui, as grandes

personagens são Carranza, Obregón ou Calles, tidos como os grandes homens da

Revolução. Sampaio Barbosa e Souza Lopes apontam os escritos de Frank Tannenbaum

e Jesús Silva Herzog como os grandes representantes desta corrente. Infelizmente o

espaço aqui não nos permite delongar sobre estas obras.

O segundo tipo de abordagem, a revisionista, é dividida pelos autores em dois

grupos: um primeiro grupo que questiona até mesmo a denominação de “revolução”

para os embates ocorridos no México na década de 1910, e um outro grupo, menos

radical, que propõe a análise regional do fenômeno revolucionário, de modo a contestar

as narrativas oficiais que buscavam construir uma espécie de “identidade” homogênea

para o Estado mexicano pós-revolucionário, apresentando uma realidade heterogênea a

partir das múltiplas complexidades das várias regiões do país.

O primeiro grupo dos revisionistas questionava o aspecto revolucionário dos

levantes da década de 1910 justificando que seus líderes mais radicais foram todos

eliminados nesta década, o que não permitiu a consolidação da Revolução enquanto tal.

Zapata, Pancho Villa, Francisco Madero, Ricardo Flores Magón, todos caíram diante

dos fuzis inimigos, ou foram covardemente traídos por homens mais conservadores. O

México após a década de 1920 não apresentou nenhuma melhoria nas condições de vida

das classes mais pobres, mas antes, se voltou para a consolidação de um novo grupo

opressor no poder, uma nova classe burguesa paternalista e autoritária. O país, ao invés

de conquistar uma autonomia frente aos Estados Unidos, se tornou ainda mais

dependente deste e do grande capital internacional. Foram representantes desta vertente

os escritos de Ramón Eduardo Ruiz (RUIZ, 1980), Arnaldo Córdova (CÓRDOVA,

1992), Adolfo Gilly (GILLY, 1994) e Alan Knight, (KNIGHT, 1996a).

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Também temos que pensar este momento da historiografia mexicana dentro

de um debate mais amplo. Ele está imerso nas décadas de 1960 e 1970, marcadas por

grandes contestações políticas e culturais. O próprio México passava por um de seus

momentos mais críticos: o massacre na Plaza de Lãs Tres Culturas, conforme

mencionamos no início de nosso texto. Tal evento balançou fortemente a autoridade do

PRI, deixando seus representantes em uma situação difícil.

O segundo grupo, os regionalistas, como já dissemos, contesta a interpretação

homogênea feita até então por aqueles que viam na Revolução uma obra redentora, feita

pelos grandes homens. Sampaio Barbosa e Souza Lopes apontam a tese de

doutoramento de Romana Falcón, defendida na Universidade de Oxford, como um dos

estudos mais importantes da historiografia “revisionista”. Esta autora chega até mesmo

a criticar a idéia de que a Revolução Mexicana foi de caráter acentuadamente camponês,

antes apresentando-a como uma luta de caciques políticos, que possuíam o domínio de

suas regiões e defendiam seus interesses pessoais. Estes líderes locais acabaram se

constituindo em um empecilho para a formação do Estado pós-revolucionário, visto que

as novas elites políticas tiveram que lidar com os mais diversos interesses.

No que toca aos estudos regionalistas sobre a Revolução Mexicana, não vamos

nos ater ao texto de Carlos Alberto Sampaio Barbosa e Maria Aparecida de Souza

Lopes. Um outro texto bastante interessante sobre essa abordagem é o de Pablo Serrano

Alvarez, Interpretaciones de La historiografia regional y local mexicana, 1968-1999:

los retos teóricos, metodológicos y líneas de investigación. Alvarez também apresenta a

historiografia regional sobre a Revolução Mexicana como uma historiografia que vai à

contrapelo da historiografia que até então era tida como oficial, que valorizava os

grandes heróis, os acontecimentos de âmbito nacional e global. O autor também

apresenta outros fatores como responsáveis por este crescimento da historiografia

regional, como é o caso do levantamento das fontes existentes em arquivos – que não

são poucas -, dos incentivos dados pelos governos para os arquivos nacionais, estaduais

e locais, permitindo uma melhor organização de seus acervos, da profissionalização dos

historiadores, agora com novos marcos analíticos e enfoques em centros de ensino e

investigação especializados – no México e fora dele.

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Alvarez apresenta esta renovação da historiografia mexicana em sintonia com

uma renovação historiográfica de âmbito maior. Ela vai ao encontro da micro-história e

dos estudos interdisciplinares que começaram a surgir na historiografia mundial. Não se

trata de abandonar o macro, mas de relacionar diferentes escalas de análise de forma a

obter uma melhor compreensão dos eventos. Entre os representantes deste grupo

Alvarez aponta: Luiz González y González, John Womack, Hector Aguilar Camín,

Carlos Martínez Assad, Romana Falcón e Enrique Krauze.

Por fim, voltemos à terceira fase da divisão de Barbosa e Lopes: a Revolução

Resgatada. Neste tipo de interpretação encontramos um retorno ao caráter agrário e

popular da Revolução. Os autores que se pautam nesta concepção historiográfica

buscam analisar a Revolução desde o governo de Porfírio Diaz, mostrando como o

aumento da pressão e a conseqüente queda na qualidade de vida dos camponeses

contribuíram fortemente para a eclosão do fenômeno revolucionário. Autores como

Alan Knight - que também contribuiu para esta fase da historiografia mexicana –

desclassificam as análises de tipo marxista que abordam a questão da luta de classes

para explicar os conflitos internos ocorridos durante o evento. Além de Alan Knight,

outros importantes representantes desta corrente são John Mason Hart e Hans Werner

Tobler.

Concluindo nosso texto, podemos dizer que a história da Historiografia da

Revolução Mexicana apenas contribuiu em sua primeira fase para a construção do mito

revolucionário. Nas fases seqüentes – que como podemos ver, atuaram em um mesmo

período, a partir dos anos sessenta – não encontramos mais uma visão passiva, uma

postura de concordância com a ideologia colocada em atividade pela elite pós-

revolucionária. Grande parte destas posturas veio em decorrência das atitudes exercidas

pelo próprio partido do poder, o PRI, que o ocupou por aproximadamente 70 anos,

ganhando praticamente todas as disputas para cargos executivos no país – através de

fraudes e mesmo apoio popular.

Pensando na pergunta feita ainda no início de nosso texto – o que sobrou da

Revolução Mexicana? – podemos chegar à grandeza do mito revolucionário. É ele que

ainda permanece cem anos depois do início dos levantes. Para isso basta no voltarmos

para a atuação do Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN) que, como o

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próprio nome indica, busca se apropriar dos ideais de Emiliano Zapata sua luta por

terras. A questão, no caso do EZLN, ainda é a do direito às terras ejidais. Pela primeira

vez, em 1994, o direito aos ejidos, conquistado desde a Constituição de 1917, é

colocado em xeque pelo governo. A intenção era que as terras expropriadas servissem

ao interesse de empresas estadunidenses com a entrada em vigor do NAFTA. Isso era

previsto para acontecer no dia 1º de janeiro de 1994, mas as tropas zapatistas se

levantaram contra as posições do governo, tomando a região de Chiapas, no sul do

México. Outro fator que ainda aponta para esta permanência de resquícios de

permanência do mito revolucionário é o próprio PRI. Basta navegar pelo site do partido

para encontrarmos sua história ligada não ao ano de 1929, em que foi criado, mas sim

ao início dos levantes revolucionários, em 1910. O partido ainda busca se legitimar

buscando apoiar-se na Revolução Mexicana. Podemos constatar o quanto este mito é

poderoso, pois se converge para muitas outras esferas da vida mexicana – social,

política, ideológica. Sem dúvida, podemos afirmar que o mito sustentou a própria

ideologia revolucionária surgida na década de 1920, ele foi sua essência. E durou mais

do que ela. A Revolução enquanto ideologia já se encontrava desgastada desde 1968, e

apenas postergou sua queda. O PRI perdeu as eleições presidenciais para o Partido

Acción Nacional – PAN – no ano 2000, caindo pelo seu próprio peso, que se tornou

insustentável. A hegemonia priista chegava ao fim, mas o mito revolucionário ainda

mantinha certa força. E ainda mantêm.

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