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GALILEU.GLOBO.COM OS CARTÉIS QUE PARECEM GRANDES EMPRESAS 50 POR QUE CIENTISTAS VÃO EMBORA DO BRASIL 72 A PESQUISADORA ARGENTINA QUE QUER DERROTAR A DENGUE E O ZIKA P. 68 298 EDIÇÃO R$ 14,00 MAI. 16 62 MINERAR ASTEROIDES: O PLANO DOS BILIONÁRIOS CARGA TRIBUTÁRIA FEDERAL APROX. 4,65% DOSSIÊ ABORTO 20% DAS BRASILEIRAS COM MENOS DE 40 ANOS JÁ INTERROMPERAM GRAVIDEZ Igrejas neopentecostais incentivam fiéis a negligenciar tratamento médico — e quem paga a conta é o Estado P. 38 QUANDO A CURA É UM BOM NEGÓCIO

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galileu.globo.com

Os cartéis que parecem grandes empresas50

pOr que cientistas vãO embOra dO brasil72

a pesquisadOra argentina que quer derrOtar a dengue e O zika p. 68

298E D I ç Ã O

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R$ 14,00

mai. 16

62 minerar asteroides: O planO dOs biliOnáriOs

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5%

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20%

das brasileiras com menos de 40 anos já

interromperam gravidez

Igrejas neopentecostais incentivam fiéis a negligenciar tratamento médico — e quem paga a conta é o Estado

p. 38

quando a cura é um bom negócio

JESUS SALVAf i é i s d e i g r e j a s n e o p e n t e c o s t a i s a b a n d o n a m t r a t a m e n t o m é d i c o e , q u a n d o a c o n d i ç ã o d e l e s p i o r a , r e c o r r e m a o s i s t e m a p ú b l i c o d e s a ú d e — q u e é s u s t e n t a d o p e l o m e s m o e s t a d o q u e i s e n t a a s i g r e j a s d e i m p o s t o s e p e r m i t e a c o n s t r u ç ã o d e t e m p l o s i r r e g u l a r e s

reportagem Juliana DeoDoro

edição Thiago TanJi

Foto Tomás arThuzzi

design rafael quick

38

maquiagem moisés cosTaprodução beaTriz liranço

vez de exorcizar a segunda participante, que

se contorcia como em um filme de terror.

Por fim, ela cedeu. “Você estava sentindo

alguma coisa?”, perguntou o bispo. “Dores,

muitas dores”, respondeu a mulher. “Pode

ir ao médico que garanto: o seu sofrimento

acabou. A senhora está curada em nome de

Jesus.” Centenas de fiéis, que até então as-

sistiam à cena de mãos dadas e em silêncio,

comemoraram em uníssono: “Amém!”.

Localizada na região central da cidade

de São Paulo, a Catedral do Brás realiza

dois cultos de cura todas as terças-feiras,

um pela manhã e outro à tarde. À noite,

a celebração é no Templo de Salomão,

que fica a menos de cem metros dali e

pertence à mesma congregação religio-

sa, a Igreja Universal do Reino de Deus.

Exorcismos acontecem em quase todos os

cultos, assim como depoimentos de pes-

soas que foram curadas e participaram

de rituais para tirar a doença do corpo.

O bispo distribui bênçãos e conselhos so-

bre como levar a vida, que incluem sem-

pre a premissa de obediência a Deus. Ao

final da celebração, os fiéis recebem um

pacote com um lenço umedecido com a

água do Rio Jordão e são instruídos a pas-

sá-lo na cabeça, nas costas, no peito, nas

mãos e nos pés todos os dias — isso deve

ser feito em casa, após a leitura de um

salmo. Mas se a fé faz parte do processo

de cura, também não se pode esquecer

das contribuições para a igreja feitas por

meio do dízimo ou de doações avulsas que

assistentes recolhem em sacos de veludo

ainda durante os cultos. De acordo com o

discurso das principais lideranças religio-

sas, Deus retribuirá a oferta com recom-

pensas sem fim, uma vida de prosperida-

de e realizações financeiras e pessoais.

Nos cultos, um dos momentos mais va-

lorizados é o dos testemunhos. É ali que

são contadas as histórias de sucesso que

inspiram e incentivam os fiéis, como a de

Dona Lurdes Matos, de 60 anos, que par-

ticipa da Igreja Universal como obreira,

ajudando os pastores durante os cultos.

Ela foi diagnosticada com câncer no reto

e submetida a uma cirurgia para retirar o

tumor em janeiro. Depois de 46 dias inter-

nada, recebeu alta do médico para “mor-

rer em casa”. Em uma terça-feira, faltou

ao tratamento para ir ao culto. O bispo,

então, pediu a ela que comesse um peda-

ço de pão. “Há quanto tempo a senhora

não comia pão?”, perguntou, enquanto ela

o altar, uma senhora em uma

cadeira de rodas, com a pele

amarelada causada por um

câncer no fígado, era exorci-

zada. Com a mão na cabeça da enferma, o

bispo gritava ao demônio responsável pela

doença que saísse daquele corpo imóvel e

aparentemente sem forças. Outra mulher

participava daquela sessão de cura: ajoe-

lhada e com os braços torcidos para trás,

como se estivesse possuída, ela deveria re-

ceber os espíritos ruins da senhora da ca-

deira de rodas. Feita a transferência, foi a

colocava pequenos pedaços do alimento

na boca. Duas semanas depois, a fiel es-

tava de volta: animada, subiu sozinha até

o altar e contou ter ganhado cinco qui-

los desde o último depoimento. “O mé-

dico disse que, se melhorar um pouco

mais, posso deixar de fazer o tratamento.

Há duas semanas, se tivesse ido ao hos-

pital em vez de vir aqui, não teria saído

mais”, afirmou. Satisfeito, o bispo per-

guntou: “Paguei alguma coisa para a se-

nhora falar isso aqui?”. Dona Lurdes e

os fiéis riram. “Nada”, ela respondeu.

N

Elementos reli-giosos do Antigo Testamento são

utilizados na Igreja Universal. O discurso dos pastores tem como base a

ideia de cura e prosperidade

4140

750 metros do Templo de

Salomão, a Unidade Básica

de Saúde (UBS) do Brás atende mais de

12 mil pacientes pelo Programa de Saúde

da Família — o bairro, conhecido pelas

confecções de roupas e pela presença de

comércio popular, conta com uma popu-

lação de cerca de 30 mil pessoas. Os ca-

dastrados, moradores daquela região, são

acompanhados por uma equipe que inclui

médico, enfermeiro e nutricionista, entre

outros especialistas. Em uma área com

mais de 14 igrejas pentecostais e neopente-

costais em seu entorno, o discurso de cura

e salvação dos cultos torna-se

um problema de saúde pública:

são frequentes os casos de

pacientes que pararam de

tomar remédios, deixaram

de comparecer a consultas ou

não receberam os agentes de

saúde em casa motivados pela

religião. Há quatro anos tra-

balhando na UBS, o médico

Victor Hugo Vallois se lembra

de pacientes que recusaram

o tratamento: os sintomas da

doença retornaram com mais

intensidade, e eles tiveram de

voltar ao serviço de saúde de

emergência. “Impressionam esses ca-

sos porque são pacientes que iniciam o

tratamento, têm uma boa resposta e, de

repente, por alguma razão, acabam assu-

mindo esse discurso da crença de forma

impregnada”, afirma o médico.

A região do Brás, por sinal, foi o berço

das primeiras igrejas pentecostais brasilei-

ras: com uma proposta muito menos libe-

ral que o protestantismo clássico, o mis-

sionário ítalo-americano Luigi Francescon

chegou ao bairro paulistano em 1910 para

fundar a Congregação Cristã no Brasil.

A partir de então, o compromisso de evan-

gelização cristã em defesa da cura divina

ganhou popularidade e se espalhou pelo

país com diferentes grupos e lideranças

religiosas — dados do Censo de 2010 in-

dicam que mais de 25 milhões de brasi-

leiros se declaram como evangélicos pen-

tecostais. Presentes em cidades de todos

os tamanhos e nos bairros mais distantes,

essas igrejas conquistam fiéis não somente

pela popularidade dos cultos de cura, mas

por uma proximidade que muitas vezes o

Estado não é capaz de alcançar: se as filas

nos postos de saúde e hospitais são enor-

mes e marcar uma consulta demanda uma

espera de meses, nas igrejas, os pastores

estão sempre à disposição para conversar,

abençoar e “tirar” a doença.

A Secretaria Municipal de

Saúde de São Paulo não tem

estatísticas que apresentem a

quantidade de pacientes que

abandonaram o tratamen-

to ou os motivos para essas

desistências. Porém, em vi-

sita a 12 unidades de saú-

de em diferentes regiões da

capital, a reportagem ouviu

em pelo menos sete delas re-

latos de médicos, enfermei-

ros e agentes de saúde que já

lidaram com situações semelhantes.

“Muitas vezes, não é o líder religioso que

orienta a abandonar o tratamento — é o

próprio paciente que, em um processo

de negação de sua doença, negligencia

os cuidados médicos”, afirma Alexander

Moreira-Almeida, professor de Psiquiatria

da Universidade Federal de Juiz de Fora

(UFJF). Para Elder Cerqueira-Santos, pro-

fessor do Programa de Pós-Graduação em

Psicologia da Universidade Federal de

Sergipe (UFS), é o discurso religioso que

leva as pessoas a abandonar a medicina.

“Se a causa é espiritual, a cura também é.

A

r o t a d a f éBerço do pentecostalismo, o bairro do Brás abriga templos de diferentes congregações

Milhões de brasileiros frequentam igrejas pentecostais f o r ç a r e l i g i o s a

evangélicos no Brasil

pentecostais por região

Maiores pentecostais

fiéis por renda doMiciliar(salários-mínimos per capita)

fiéis por nível de instrução*(grau de escolaridade)

*Luterana, Presbiteriana, Batista

total 42.275.440

evangélicos de missão* 7.686.827

evangélicos pentecostais 25.370.484

evangélico não determinado 9.218.129

assembleia de deus — 12.314.410

congregação cristã do brasil — 2.289.634

universal do reino de deus — 1.873.243

evangelho quadrangular — 1.808.389

deus é amor — 845.383

796.9881.457.227

4.266.9886.711.713

4.677.9341.141.736608.667251.841

77.603

Até 1/8 1/8 a 1/4 1/4 a 1/2 1/2 a 1 1 a 2 2 a 3 3 a 5 5 a 10 10 ou mais

norte3.187.100

nordeste5.348.024

centro-oeste 2.339.845

sudeste 11.508.725

sul 2.986.790

sem instrução e Fundamental incompleto 7.414.036

Fundamental completo e médio incompleto 2.283.005

médio completo e superior incompleto 3.300.552

superior completo 659.458

não determinado 42.876 *25 anos ou mais

FONTE: Censo 2010, IBGE

*UBS

: Uni

dade

Bás

ica

de S

aúde

ubs* belenzinho

ubs* brás

igreja nova geração mundial de deus

igreja casa da bênção

igreja universal do reino de deus

igreja universal do reino de deus

templo de salomão

igreja apostólica plenitude do trono de deus

igreja evangélica avivamento em glória

assembleia de deus

igreja nova geração

igreja mundial renovada

ministério mudança de vida

Av. Celso Garcia

Av. Celso Garcia

R. João B

oemer

R. Belém

4342

Para alguém que está em sofri-

mento, o discurso dogmático

da igreja é mais consolador.”

A questão não é exclusiva

ao Brasil: um estudo divulga-

do em 2011 pela Universidade

do Texas indicou que a taxa de

mortalidade infantil era maior

em comunidades com fiéis que

frequentavam igrejas pentecostais e

outras congregações cristãs mais con-

servadoras. Em 2012, o adolescente Austin

Sprout, de 16 anos, morreu por causa de

uma infecção causada por apendicite depois

que a família se recusou a ir ao hospital.

Eles frequentavam uma igreja neopentecos-

tal do estado do Oregon. Os pais, Russel e

Brandi Bellew, foram condenados a cinco

anos de liberdade condicional. E esse não

foi o primeiro caso envolvendo a mesma

igreja. Também em 2012, uma mulher foi

sentenciada a dois anos de prisão depois de

escolher tratar o diabetes do filho de nove

anos com orações. E, em 2011, o casal Dale

e Shannon Hickman foi condenado a pouco

mais de seis anos de prisão depois de não

buscar auxílio médico para o filho prematu-

ro, que faleceu em casa em poucas horas.

nfectologista especializado no tra-

tamento de Aids, o médico Artur

Timerman já presenciou o abandono de

vários pacientes, inclusive de pessoas pró-

ximas do seu convívio familiar. “Muitas

vezes, parte do interesse dessas igrejas é

econômico. Eles encaram o médico como

concorrente pelo dinheiro daquela pessoa.

O que ela vai gastar com tratamento é um

dinheiro que não vai entrar na igreja.” Na

opinião de Timerman, quando o discurso

de embate religioso é maior que o de con-

ciliação, o único prejudicado é o paciente.

“Estamos todos no mesmo barco. Temos

que remar para a frente, não para trás.”

Diagnosticada com epilepsia, Joana

(nome fictício), de 56 anos, está há três

meses em um centro especial de aco-

lhimento para mulheres na região do

Universal e fundador da Igreja

Mundial do Poder de Deus, tem

fama de milagreiro entre os

fiéis, que querem abraçá-lo, ti-

rar fotos ou pegar uma peça de

roupa do autoproclamado após-

tolo. “Me conhecer não muda nada na sua

vida. A vida de uma pessoa muda quando

ela conhece Deus. Se Deus quiser derro-

tar a ciência, ele derrota”, diz. E continua

pregando: “Eu só ouço o que Deus fala:

nunca li na Bíblia que tenho de viver pela

lógica ou pela ciência, vivo pela fé. Até pos-

so acreditar, mas não como regra. Regra

é o que Deus diz”. Em um culto celebrado

em uma terça-feira na Catedral do Brás, da

Igreja Universal, o discurso de um bispo

era ainda mais incisivo. “Quem é maior:

Deus ou o cardiologista? Quem é maior:

Deus ou o oncologista? Em quem você

deve confiar: em Deus ou nos médicos?”

O maior problema é que, para as lide-

ranças das maiores igrejas neopentecostais

brasileiras, a lógica do “quanto pior, me-

lhor” apresentada nos cultos é fundamen-

tal para manter uma estratégia que alia o

crescimento econômico gerado pelas doa-

ções, o prestígio político por meio do au-

mento das bancadas de congressistas liga-

dos a grupos evangélicos e a influência nos

meios de comunicação. Em nome de Deus,

projetos de leis são criados e embasam os

votos de deputados federais em momen-

tos de definição do futuro do país. “Em

primeiro lugar, quero agradecer a Deus a

oportunidade de ser eleito por um estado

tão maravilhoso como Minas Gerais. Nesse

estado nasceu uma pessoa que admiro mui-

to, que é o apóstolo Valdemiro Santiago, e

aquela Igreja maravilhosa me ajudou neste

trabalho”, disse o deputado Franklin Lima

(PP-MG) durante a sessão da Câmara dos

Deputados que dava prosseguimento ao im-

peachment da presidente Dilma Rousseff.

Lima foi um dos 367 deputados que votou

a favor do impedimento da presidente.

aceitou tomar um dos remédios obrigató-

rios. “Chamamos a equipe de saúde aqui,

porque se depender dela, ela não vai até

a UBS”, diz. “Não podemos obrigar nin-

guém a tomar remédio, mas tentamos

conversar, dizemos que Deus deu a in-

teligência ao homem para que ele possa

ajudar pessoas como ela.” Há duas sema-

nas medicada, Joana não teve nenhuma

outra crise, mas continua frequentando

a igreja e, diariamente, verifica quais são

os remédios administrados, para não to-

mar nenhum a mais do que o acordado.

Apesar de ser uma área negligenciada

por parte dos pesquisadores, há explica-

ções e estudos científicos que compro-

vam a melhora da condição de pacien-

tes que possuem alguma espiritualidade,

especialmente em casos de depressão,

tentativas de suicídio, abuso de subs-

tâncias químicas, estresse e ansiedade.

Recentemente, a Associação Mundial de

Psiquiatria declarou a importância de

incluir o assunto no ensino, pesquisa e

prática clínica. De acordo com Alexander

Moreira-Almeida, há duas explicações

para como a religião pode colaborar ou

promover a cura de um paciente: pela

promoção de comportamentos saudáveis

e pelo fato de que o envolvimento religio-

so pode ocasionar a diminuição de hor-

mônios de estresse e o melhor funciona-

mento imunológico. “A dúvida é se essas

duas vias explicam tudo ou se há realmen-

te algum outro mecanismo que ocorra por

vias ainda não bem compreendidas pela

ciência atualmente”, afirma Almeida.

Em algumas igrejas, entretanto, o dis-

curso dos celebrantes é menos concilia-

dor. Valdemiro Santiago, ex-integrante da

Belenzinho, também em São Paulo.

Quando chegou, ela recusava todos os

remédios anticonvulsivos, além daque-

les que controlavam sua pressão arterial.

“Ela sabe que tem epilepsia e que se não

tomar remédios pode convulsionar. Mas,

ao mesmo tempo, diz que o problema é

espiritual, e não médico, e que a única for-

ma de tratá-lo é na igreja”, conta a psicólo-

ga do centro, Monique de Almeida. Após

duas crises recentes, em que foi necessá-

rio chamar o Samu para resgatá-la, Joana

a cura e o estadoNascido nos Estados Unidos nos primeiros

anos do século 20, o movimento pentecos-

tal cresceu como uma tentativa de resgatar

o cristianismo primitivo, com as experiên-

cias vividas pelos primeiros apóstolos de

Jesus. “O pentecostalismo tenta resgatar

esse cristianismo milagreiro e que envol-

ve a eterna luta entre Deus e seus anjos

e o diabo e seus demônios pela posse da

humanidade”, explica Ricardo Mariano,

doutor em Sociologia pela Universidade de

São Paulo. Desde a chegada dos primeiros

missionários ao Brasil, esses movimentos

cresceram de maneira autônoma e ganha-

ram força a partir da década de 1950, com

o surgimento das igrejas Deus É Amor e

Brasil para Cristo, com concentrações de

fiéis em tendas e campos de futebol e por

se pautarem na cura divina. A partir da

década de 1970, o pentecostalismo assu-

miu nova forma com a criação de igrejas

que pregavam a Teologia da Prosperidade

e ficaram conhecidas como neopentecos-

tais. De acordo com esse movimento, o

cristão tem direito a uma vida abundante,

com saúde e sucesso material.

Maior expoente da Teologia da

Prosperidade no Brasil, a Igreja Universal

do Reino de Deus foi fundada em 1977

por Edir Macedo e seu cunhado, Romildo

Ribeiro Soares (ou RR Soares, para os

mais chegados) — que atualmente con-

ta com a própria congregação, a Igreja

Internacional da Graça de Deus. Ao con-

trário das primeiras igrejas, as neopen-

tecostais são mais liberais em termos de

costumes e têm uma estrutura hierárqui-

ca rígida. “Já podemos falar de um trans-

pentecostalismo, porque temos igrejas

que imitam todas as ondas, elas copiam

o que interessa”, afirma Gerson Leite de

Moraes, doutor em Ciências da Religião

pela Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo (PUC-SP) e professor da

Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Para ele, o que conecta todas essas igrejas

não é protestantismo clássico, mas o ca-

“ n u n c a l i n a b í b l i a q u e t e n H o d e V i V e r p e l a l Ó g i c a o u p e l a c i Ê n c i a ” , d i Z V a l d e m i r o s a n t i a g o , l í d e r d a i g r e j a m u n d i a l

I

t e m p l o d e m i l a g r e s ?Inaugurado em 2014, Templo de Salomão é a joia da Universal

capacidade

altura

pessoas sentadas

o mesmo que um prédio de 11 andares

Quanto foi gasto na construção?

8,2 Milhões

pedras trazidas de israel

pagos com doações de adeptos e membros da universal

de pessoas desde a inauguração

R$ 685 milhões

visitantes

templo e altar revestidos com

74 Mil M2de área construída

3x maior que a basílica de aparecida

10mil

56metros

4544

tolicismo popular. “Eles têm a água benta

e os objetos manuseados que promovem

cura, entre outras práticas. Os protes-

tantes e evangélicos fazem parte dos que

romperam com o monopólio católico, mas

o protestantismo segue uma tendência e o

pentecostalismo, outra”, diz o professor.

Para ganhar corações e mentes, o proje-

to de expansão dessas igrejas depende de

três pilares: a aquisição de espaços na te-

levisão e no rádio para propagação de seus

princípios; a construção de catedrais em

cidades de médio e grande portes para ter

reconhecimento público de legitimidade; e

a eleição de representantes políticos para

garantir a influência conquistada. Gerson

Leite de Moraes explica que o campo reli-

gioso depende da mídia para falar com um

maior número de pessoas. E, para conse-

guir esse espaço, é necessária a influência

política. “São três esferas que se alimen-

tam e se relacionam: o campo religioso

precisa do campo midiático, que só pode

ser conseguido pelo campo político”, diz.

Isentas de impostos, as igrejas movi-

mentam uma quantidade enorme de di-

nheiro, que até deve ser declarado, mas

não é tributado. Em 2015, Edir Macedo foi

incluído pela segunda vez na lista dos bi-

lionários da Forbes. De acordo com a publi-

cação, o patrimônio dele era estimado em

US$ 1,1 bilhão. Mas se atualmente

Macedo conta com um conglomerado de

comunicação, o prestígio dos

quase 2 milhões de fiéis bra-

sileiros da Igreja Universal e

o respeito nos diferentes cír-

culos políticos do Estado —

em abril, a presidente Dilma

Rousseff ligou para ele em

busca de apoio político —, nem

sempre as coisas foram tão

abençoadas assim: em 1992,

o bispo foi preso (e ficou na cadeia du-

rante pouco mais de uma semana) após

denúncia do Ministério Público por “de-

litos de charlatanismo, estelionato e lesão

à crendice popular”. Livre dessas acusa-

ções, também teve sua imagem questio-

nada depois de uma reportagem exibida

em 1995 pelo Jornal Nacional em que aparecia ensinando os

colegas a aumentar as arreca-

dações dos fiéis. “Você tem

que chegar e se impor: ‘Você

vai ajudar na obra de Deus. Se

quiser, bem, se não quiser, que

se dane. Ou dá ou desce’. Você

tem que ser o super-herói do

povo!”, diz, após uma partida

de futebol com seus colegas.

Reportagem publicada pela

Folha de S.Paulo em 2013 con-

seguiu, por meio da Lei de

Acesso à Informação, dados da Receita

Federal sobre o faturamento das igrejas no

Brasil — o que inclui católicas, evangélicas

e protestantes. As informações

se referem a 2011, quando as

denominações arrecadaram

R$ 20,6 bilhões, dos quais

R$ 14,2 bilhões foram doa-

dos pelos fiéis. Como com-

paração, o orçamento apro-

vado em 2016 para o Fundo

de Saúde da Prefeitura de São

Paulo foi de R$ 7,6 bilhões.

Fabio Lanza, Coordenador

do Laboratório sobre Estudos

e m a b r i l , n o a u g e d a c r i s e p o l í t i c a , d i l m a r o u s s e f f l i g o u p a r a e d i r m a c e d o e m b u s c a d e a p o i o p o l í t i c o c o n t r a o i m p e a c H m e n t

das Religiões da Universidade de

Londrina (UEL), afirma que, para o fiel,

tanto a contribuição financeira quanto o

voto em um candidato evangélico são re-

sultado da atividade religiosa. “Para os

fiéis, essa lógica de exploração não existe,

porque, em sua visão, isso é uma conse-

quência da prática religiosa”, destaca. Nos

cultos da Universal há a coleta do dízimo

e doações avulsas, que podem ser feitas

em nome de uma pessoa que está doente.

A cura, afirma o bispo Francisco Decothé

em um culto, também está condicionada

à honestidade do fiel. “Vocês estão vendo

as notícias de corrupção? Vocês querem

ser corruptos com Deus? Pois Deus sabe

quando você doa menos do que pode”,

diz. Na Igreja Mundial há carnês para

cada tipo de necessidade. Para “tirar

uma pedra” do caminho, a contribuição

é de R$ 153. Para conseguir um carro, são

R$ 366. O sonho da casa própria fica

mais salgado: são necessários R$ 1.000

para “abrir as portas dos caminhos”.

A comunicação, a indumentária e as lembrancinhas do Templo de Salomão

1 Quipá

2 Talit

3 Túnica dos ajudantes

4 Bíblia Sagrada

herança judaicaNo templo da Universal, Edir Macedo utiliza quipá, símbolo de temor a Deus, e o talit, utilizado por rabinos em preces.

5 Menorá

6 Souvenir

7 Réplica do Templo de Salomão

lembrancinhasNo Templo de Salomão, o fiel pode comprar souveniers como recordação. E, claro, contribuir com doações.

8 Lenço de obreiras

9 Uniforme oficial das obreiras

10 Fita “Meu Amigo”

acolhimento em comunidadeAlém do trabalho das obreiras, que auxiliam os pastores, a Universal estimula que fiéis con-videm amigos para os cultos.

11 Lenço com água do Rio Jordão

12 Envelope de doação

13 Folha Universal

comunicação é o negócioLenços umedecidos com a água do Rio Jordão, em Israel, ajuda-riam na cura. A igreja também conta com um jornal impresso.

2

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8 9

3

é novo, masparece velhoIgreja Universal utiliza símbolos do Anti-go Testamento para se conectar aos fiéis

1

4746

– J.N.M. procurou um pastor e

foi aconselhado a abandonar os

remédios e a deixar de usar ca-

misinha nas relações sexuais.

Dois meses depois, foi inter-

nado com pneumonia e pas-

sou 40 dias em coma induzido.

A esposa também foi infecta-

da pelo vírus. Na ação impe-

trada no Rio Grande do Sul, a

defesa alegou que a Universal

se aproveitou do estado de

fragilidade do fiel. A igreja, no

entanto, negou que o tivesse

orientado a abandonar o trata-

mento e entrou com um recur-

so, que foi negado. “É um caso

exemplar, uma decisão impor-

tante que vai abrir os olhos da

Universal para o fato de que

não é qualquer pratica que sai-

rá impune”, diz Ortiz.

Acostumado a lidar com pa-

cientes que unem a cura reli-

giosa ao tratamento, Rodrigo

Lima, da Sociedade Brasileira

de Medicina de Família e

Comunidade, afirma que o mé-

dico precisa respeitar a posição

do paciente. “Se o médico assume uma po-

sição de confronto com a crença da pessoa,

ela vai abandonar o tratamento. A crença

é muito mais forte do que a relação do pa-

ciente com o médico. O grande ponto é

ter um discurso conciliador.” Mas se a fé é

ferramenta importante, mais essencial é a

presença do Estado em lugares negligen-

ciados. “Muitas pessoas são levadas pelo

desespero e buscam qualquer coisa para di-

minuir o sofrimento”, diz o médico Abrão

José Cury, presidente do Departamento de

Clínica Médica da Associação Paulista de

Medicina. “Médico não é delegado nem juiz,

tem que ser claro e tem que ter compaixão.

Não devemos abandonar o paciente.”

Aparecida. “Há também a prática das ‘ro-

marias’, com pessoas saindo do Brasil in-

teiro para conhecer o templo”, conta. No

serviço online TripAdvisor, a construção

é a 18ª atração mais indicada para turistas

que querem conhecer São Paulo.

Há um mês frequentando cultos de

cura no Templo de Salomão, o marce-

neiro Ricardo Costa Alves, de 45 anos, já

conseguia enumerar as melhoras que teve

desde que sofreu um AVC. “Agora eu con-

sigo andar sem bengala, já tomo banho e

me visto sozinho.” Ele não atribui a evolu-

ção do seu estado aos oito remédios que

toma todos os dias, nem à acupuntura que

começou a fazer e já pretende abandonar.

“Com certeza é resultado das orações. As

correntes que fiz foram muito importan-

tes. Da igreja eu não saio mais. Só o re-

médio não adianta nada para mim”, diz.

Contatada, a assessoria de imprensa da

Igreja Universal afirmou que não recomen-

da que os fiéis negligenciem os tratamentos

convencionais: “Ao defender preceitos reli-

giosos e atos de fé no auxílio aos enfermos,

a Universal sempre destaca a importância

da rigorosa observância dos tratamentos

médicos prescritos. Jamais devem ser des-

prezadas as recomendações dos profissio-

nais da saúde”. Mas nem todos os pastores

parecem concordar com o posicionamen-

to oficial. Em um dos cultos presencia-

dos pela reportagem, o bispo Francisco

Decothé fez questão de dar a sua opinião

sobre a medicina ao conversar com uma

fiel que havia recebido diagnóstico fatal de

câncer de pulmão. “Existem muitos mé-

dicos que têm o demônio. Não são todos,

mas são muitos”, disse o religioso.

Em setembro do ano passado, a Igreja

Universal foi condenada a indenizar o

fiel J.N.M., portador do vírus HIV, em

R$ 300 mil por danos morais. Ele procurou

a igreja após o conselho de amigos. “Ele

viu na igreja a saída para um problema que

a medicina não conseguia solucionar”, con-

ta o advogado Guilherme Pavanello Ortiz.

Após ir a cultos, orar e ofertar bens a igreja

– ele doou uma televisão e um computador

o Templo de Salomão, os

cultos passam uma sensa-

ção de serem mais “sagrados”. Muito disso

se deve à imponência do lugar. Para entrar

ali, o visitante deve passar antes pelo esta-

cionamento. Lá, é obrigado a deixar todos

os objetos eletrônicos em um guarda-volu-

mes e enfrenta uma revista com detectores

de metal. Só então é autorizado a subir as

escadas que dão acesso ao local do culto,

onde mulheres e homens vestidos com tú-

nicas brancas passam gotas de azeite na

testa, nas costas, no peito, nas mãos e nos

pés de todos que chegam. Sérios, eles indi-

cam o caminho a seguir, pedem silêncio e

repreendem quem segue conversando. Uma

vez acomodado na cadeira, resta esperar,

em oração, a entrada do bispo.

Inaugurado em 2014 com a

presença da presidente Dilma

Rousseff, do vice Michel

Temer, do governador de São

Paulo Geraldo Alckmin, do

prefeito da capital Fernando

Haddad e do ministro do

Supremo Tribunal Federal

Marco Aurélio Mello, o Templo

de Salomão é a joia da coroa

da Igreja Universal do Reino

de Deus. São 74 mil metros

quadrados construídos, que

incluem a nave principal, sa-

las de estudo, apartamentos e

quitinetes, estúdios de rádio e

televisão, estacionamento para

quase 2 mil carros e um museu.

Por dentro, ele é ainda mais

impressionante. Seis menorás

— candelabros de sete braços,

conhecidos como um dos prin-

cipais símbolos do judaísmo — enfeitam

as paredes de cada lado. Uma réplica da

Arca da Aliança do Antigo Testamento e

a frase “Santidade ao Senhor” ocupam

o altar de ponta a ponta. “O Templo de

Salomão veio coroar essa ideia de ocu-

par o espaço público em busca de reco-

nhecimento e legitimidade”, diz Ricardo

Mariano, da USP. Para Fabio Lanza, esse

projeto fez com que a Universal conseguis-

se sintetizar características da

religiosidade nacional em um

grande produto, construindo

um monumento religioso ca-

paz de se equiparar às maiores

referências da Igreja Católica

brasileira, o Cristo Redentor

e a Basílica de Nossa Senhora

Quando deixam o tratamento e apresen-

tam piora no quadro, é quase sempre ao

sistema público de saúde que os pacientes

recorrem. Quem financia esse serviço bá-

sico é o mesmo Estado que isenta as igre-

jas de impostos e é condescendente com

construções de templos em situações irre-

gulares. “Quando se tem um sistema pú-

blico frágil, com uma enorme quantidade

de pessoas sem acesso à saúde, faz senti-

do vender a ideia de prosperidade”, afirma

Elder Cerqueira, da Universidade Federal

do Sergipe. E tudo isso tem pouco a ver

com o discurso de liberdade associado à

fé. “A cura é um mercado e a saúde é uma

grande mercadoria.”

A bancada evangélica, uma das maiores do Congresso com seus 92 parlamentares, entre deputados e senadores, é responsável por pro-jetos conservadores, como a defi-nição de que “família” é apenas a união entre mulher e homem, além de uma lei que cria empecilhos para mulheres vítimas de abuso sexual realizarem aborto. Entre seus líderes estão os parlamentares João Cam-pos (PRB-GO), Marco Feliciano (PSC--SP), Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e os senadores Marcelo Crivella (PRB-RJ) e Magno Malta (PR-ES). Se fosse um partido, seria o maior em número de representantes, ultrapassando o PT

e o PMDB. Deputados evangélicos ocupam 19 cadeiras da Comis-

são de Ciência e Tecnologia, Comuni-cação e Informática. É nessa comis-são que são analisadas concessões de rádio e televisão. O presidente da Comissão de Constituição e Justiça, a mais importante da Câmara, tam-bém é da frente parlamentar. Isso para não mencionar o próprio presi-dente da Casa, o deputado Eduardo Cunha. Em 2015, além dos projetos polêmicos que ainda não foram ao plenário, os parlamentares aprova-ram uma emenda constitucional que amplia as isenções fiscais para as comissões recebidas por pastores e um projeto de lei que isenta do IPTU os imóveis alugados por igrejas.

Vários problemas jurídicos envolvem a construção do Templo de Salomão. Para começar, ele está em uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis), área da cidade demarcada para construção de moradia

para a população de baixa renda. Isso significa que, de acordo com a lei de zoneamento, uma parte do terreno de 74 mil metros quadrados deveria ter sido dedicada para fins habitacionais — o que não ocorreu. Além disso, o Templo foi erguido com um alvará de reforma em vez da permissão para a construção, o que exigiria uma tramitação legal completamente diferente. Todas essas questões, no entanto, só foram descobertas em 2014, na véspera da inauguração. Na época, foi feito um acordo com a prefeitura para autorizar a realização de eventos. Atualmente, o Templo não possui Habite-se, documento que autoriza o funcionamento da construção, mas tem um alvará provisório de visitação com validade até julho deste ano. “Como ainda não conseguiram definir a situação, o alvará foi renovado. Ele funciona de forma regular, mas precária”, diz o promotor de Habitação e Urbanismo, César Ricardo Martins. Há atualmente no Ministério Público um inquérito civil para verificar as condições de zoneamento, o processo de licenciamento e a apresentação das medidas mitigadoras para o trânsito da região. Uma lei aprovada em 2015 pela Câmara permite que a Igreja Universal regularize a situação do Templo caso doe ao município terrenos com dimensão próxima à área da construção. No último ano, foram oferecidos mais de dez lotes, que foram negados por não cumprirem os requisitos necessários.“O problema começou quando fizeram o pedido de reforma. A prefeitura não deveria ter executado”, afirma o promotor. “Como o que havia ali era um galpão antigo, a Universal deve ter acreditado que não precisava cumprir essa exigência. Na realidade, não poderia nem ter começado a construção.” Uma área oferecida pela Igreja está em análise na Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab). Acredita-se que será aceita. Depois da assinatura do termo de doação, será a vez da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) definir quais medidas mitigadoras de trânsito serão executadas pela Universal.

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