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  • 1. FUNDAMENTOS DE HISTRIADO DIREITO

2. ANTONIO CARLOS WOLKMER(ORGANIZADOR)Professor e pesquisador nos cursos de Graduaoe Ps-Graduao em Direito da UFSCDoutor em Direito e Professor Titular de Histriadas Instituies Jurdicas.FUNDAMENTOS DE HISTRIADO DIREITO3aEDIO 2 TIRAGEMREVISTA E AMPLIADABelo Horizonte 2006 3. Copyright 2006 by Editora Del Rey Ltda.Nenhuma parte deste livro poder ser reproduzido, sejam quais forem os meios empregados,sem a permisso, por escrito, da Editora.Impresso no Brasil / Printed in Brazil__________________________________________________________________________EDITORA DEL REY LTDAwww.delreyonline.com.brEditor: Arnaldo OliveiraTel.: (31) [email protected] Editorial: [email protected] / BHRua Aimors, 612 - FuncionriosBelo Horizonte - MG - CEP 30140-070Telefax: (31) [email protected] / SPRua Humait, 569 - Bela VistaTelefax: (11) 3101-9775So Paulo - SP - CEP [email protected] Editorial: Antnio Augusto Canado TrindadeAntonio Augusto Junho AnastasiaAriosvaldo de Campos Pires (In memoriam)Aroldo Plnio GonalvesCados Alberto Penna R. de CarvalhoCelso de Magalhes PintoEdelberto Augusto Gomes LimaEdsio FernandesEugnio Pacelli de OliveiraHermes Vilchez GuerreroJos Adrcio Leite SampaioJos Edgard Penna Amorim PereiraMisabel Abreu Machado DerziPlinio SalgadoRnan Kfuri LopesRodrigo da Cunha PereiraSrgio Lellis SantiagoWille Duarte Costa__________________________________________________________________________Fundamentos de histria de direito / AntonioF981 Carlos Wolkmer, organizador. - 3. ed. 2.tir. rev. e ampl. -Belo Horizonte: Del Rey, 2006.400p. - 15,5x22,5cmISBN 85-7308-759-51. Direito - Histria. I. Wolkmer, AntonioCarlos.CDD: 340.9CDU: 340 (0911__________________________________________________________________________Bibliotecria responsvel: Maria da Conceio ArajoCRB 6/1236 4. SUMRIONOTA 3aEDIO................................................................................................................xiNOTA 2aEDIO..............................................................................................................xiiiAPRESENTAO 1 EDIO ..........................................................................................xvCAPTULO 1O DIREITO NAS SOCIEDADES PRIMITIVASAntonio Carlos Wolkmer1. Introduo ..............................................................................................................................12. Formao do direito nas sociedades primitivas......................................................................23. Caractersticas e fontes do direito arcaico..............................................................................54. Funes e fundamentos do direito na sociedade primitiva.....................................................65. Concluso ...............................................................................................................................96. Referncias bibliogrficas ....................................................................................................10CAPTULO 2DIREITO E SOCIEDADE NO ORIENTE ANTIGO:MESOPOTMIA E EGITOCristiano Paixo Arajo Pinto1. Introduo.............................................................................................................................112. Elementos de transio na sociedade e no direito ................................................................123. Mesopotmia e Egito: aspectos geogrficos, polticos e econmicos..................................163.1 Geografia ............................................................................................................................173.2 Poltica................................................................................................................................193.3 Economia............................................................................................................................214. A vigncia do Direito: seus elementos, manifestaes e instituies...................................224.1 A Mesopotmia: compilaes de normas jurdicas e sua aplicao...................................234.2 O Egito: o princpio de justia divina.................................................................................29Concluso .................................................................................................................................30Referncias consultadas............................................................................................................33CAPTULO 3O DIREITO GREGO ANTIGORaquel de SouzaIntroduo.................................................................................................................................37A escrita grega..........................................................................................................................41A lei grega escrita como instrumento de poder ........................................................................46O direito grego antigo ..............................................................................................................49A retrica grega como instrumento de persuaso jurdica .......................................................54As instituies gregas...............................................................................................................59Concluso .................................................................................................................................63Referncias bibliogrficas ........................................................................................................65CAPTULO 4A INSTITUIO DA FAMLIAEM A CIDADE ANTIGAJenny Magnani de O. NogueiraIntroduo.................................................................................................................................67 5. O culto e as antigas crenas......................................................................................................69A famlia antiga ........................................................................................................................73Concluso .................................................................................................................................79Referncias bibliogrficas ........................................................................................................81CAPTULO 5DIREITO ROMANO CLSSICO:SEUS INSTITUTOS JURDICOSE SEU LEGADOFrancisco Quintanilha Vras Neto1. Introduo.............................................................................................................................832. A importncia do direito romano e a sua presena nos ordenamentos jurdicos modernos.893. As fases histricas da civilizao romana e de suas instituies jurdico-polticas .............914. Leis e institutos romanos: o direito de propriedade e das obrigaes ..................................945. A queda do Imprio Romano e a emergncia do mundo feudal ........................................1046. A retomada pelos estudos romansticos no direito do ocidente europeu ...........................1077. A recepo do direito romano ............................................................................................1088. Concluso ...........................................................................................................................1139. Referncias bibliogrficas ..................................................................................................114CAPTULO 6A NATUREZA HISTRICA DA INSTITUIODO DIREITO DE PROPRIEDADEValcir Gassen1. Introduo...........................................................................................................................1152. A propriedade primitiva e antiga: uma viso como representao da crena dos homens 1173. A propriedade antiga, medieval e moderna a partir do materialismo histrico..................1214. Os pontos de vista em torno da histria da propriedade.....................................................1295. Concluso ...........................................................................................................................1346. Referncias bibliogrficas ..................................................................................................136CAPTULO 7O DIREITO ROMANO E SEU RESSURGIMENTONO FINAL DA IDADE MDIAArgemiro Cardoso Moreira Martins1. Introduo...........................................................................................................................137O direito romano....................................................................................................................1372.1 Breve histrico socioeconmico da Roma antiga............................................................ 1382.2 O direito antigo................................................................................................................ 1442.3 O direito clssico ............................................................................................................. 1452.4 O direito ps-clssico .......................................................................................................147O direito medieval .................................................................................................................149O ressurgimento do direito romano....................................................................................... 1514.1 Fatores culturais................................................................................................................1524.2 Fatores econmicos ..........................................................................................................1544.3 Fatores polticos............................................................................................................... 1564.4 Fatores sociolgicos ........................................................................................................ 1584.5 Fatores epistemo1gicos.................................................................................................. 159 6. Concluso ...............................................................................................................................163Referncias bibliogrficas ..................................................................................................... 167CAPTULO 8A INSTITUCIONALIZAO DA DOGMTICAJURDICO-CANNICA MEDIEVALRogrio Dultra dos SantosIntroduo.............................................................................................................................. 169A Idade Mdia e o vnculo feudal como instrumento de dominao atravs da autoridade .171A Igreja Catlica medieval e a institucionalizaodo direito cannico como prtica repressiva ......................................................................... 177Concluso .............................................................................................................................. 182Referncias bibliogrficas ..................................................................................................... 185CAPTULO 9ASPECTOS HISTRICOS, POLTICOS E LEGAISDA INQUISIOSamyra Hayde Naspolini1.Introduo 1872.Aspectos histricos e polticos 1883.Aspectos legais 1913.1 O processo penal acusatrio 1923.2 O processo por inqurito 1933.3 A tortura 1963.4 A condenao 1984.Concluso 1995.Referncias bibliogrficas 199CAPTULO 10DA DESCONSTRUO DO MODELO JURDICOINQUISITORIALSalo de Carvalho1.Introduo 2012.A utilizao do aparelho judicirio secular pelo clero 2033.Da secularizao e do secularismo 2064.As causas do declnio 2084.1 A jurisprudncia revolucionria 2094.2 O humanismo e o racionalismo 2135.Concluso 2186.Referncias bibliogrficas 220CAPTULO 11DA INVASO DA AMRICA AOS SISTEMAS PENAIS DE HOJE:O DISCURSO DA INFERIORIDADE LATINO-AMERICANAJos Carlos Moreira da Silva Filho1. Introduo 2212. O eurocentrismo da viso moderna 2233.O mundo de Colombo: o conquistador europeu e o genocdio colonial 225 7. 4.O debate de Valladolid: Bartolom de Las Casas e a questo da igualdade dos ndios 2355. A cultura amerndia e o fim do quinto sol 2406. A cultura sincrtica da periferia: os vrios rostos latino-americanos 2487.Os genocdios coloniais e as prticas exterminadoras dos sistemas penais 2518.Concluso 2589.Referncias bibliogrficas 263CAPTULO 12O DIREITO NAS MISSES JESUTICASDA AMRICA DO SULThais Luzia Colao1.Introduo 2652.Organizao interna poltico-administrativa-jurdica 2662.1 O Regimento das Misses 2662.2 O Reducionismo 2692.3 A Organizao do Cabildo 2713.O direito civil nas misses 2743.1 O Sistema de Propriedade 2743.2 As Relaes de Trabalho 2783.3 A Famlia 2804.O direito penal nas misses 2814.1 O Sistema de Vigilncia 2814.2 A idia de pecado 2844.3 A Liberdade Individual 2854.4 O Sistema de Punies 2865. Concluso 2926. Referncias bibliogrficas 294CAPTULO 13O DIREITO NO BRASIL COLONIALClaudio Valentim Cristiani1. Introduo 2952. Fatores que contriburam para a formao/imposio do direito nacional 2963. Concluso 3074. Referncia bibliogrficas 309CAPTULO 14INSTITUIES, RETRICA E O BACHARELISMONO BRASILJos Wanderley Kozima1. Introduo 3112. Estado patrimonial e passado escravocrtico 3143. Dos jesutas aos cursos de direito 3184. O bacharelismo: retrica, formalismo e abstrao 3245. Concluso 3296. Referncias bibliogrficas 330CAPTULO 15O ESCRAVO ANTE A LEI CIVIL E A LEI PENAL NO IMPRIO(1822-1871) 8. Arno Wehling1.Introduo 3312.As fontes jurdicas da escravido no imprio, 1822-1871 3333.Origem e termo da escravido no imprio 3364.O escravo e a lei civil 3395.O escravo e a lei penal 3436.Concluso 3477.Referncias bibliogrficas 349CAPTULO 16UMA INTRODUO HISTRIA SOCIAL E POLTICA DOPROCESSOJos Reinaldo de Lima Lopes1.Introduo 3512.A profissionalizao e os leigos na histria do processo 3533.Modelo adversrio-acusatrio e modelo inquisitrio 3624.O objeto do processo 3655.As funes judiciais 3666.O desenvolvimento do processo moderno na tradio da common law 3696.1 Estados Unidos 3696.2 Inglaterra 3737.O processo brasileiro: desenvolvimento histrico 3748.Concluso 3789.Referncias bibliogrficas 379 9. NOTA 3aEDIO por demais significativo e estimulador o interesse que esta obra tem despertado,bem como a sua recepo nas disciplinas de fundamentao dos cursos jurdicos em nvelnacional, especificamente em atender as demandas crescentes de pesquisa no mbitointrodutrio da historiografia jurdica.J consolidada no pas, Fundamentos de Histria do Direito alcana, agora, sua3aedio, revista e atualizada, pretendendo ampliar ainda mais a discusso, a produo e ainformao das fontes de conhecimento jurdico.Renovando, assim, a preocupao que norteia a presente coletnea -reinterpretao de teor crtico-interdisciplinar da historicidade jurdica - cabe assinalar areviso do captulo 2, de autoria do Prof. Cristiano Paixo A. Pinto, para, posteriormente, ainsero de uma nova contribuio (o captulo 12). Assim, busca-se oferecer um brevepanorama e uma valiosa investigao da Prof Thais Luzia Colao sobre as prticas jurdicasno interior das comunidades missioneiro-jesuticas do sul da Amrica.Certos da costumeira receptividade de nossos alunos e professores, almejamosque a presente edio, por seu enriquecido contedo, favorea ainda mais o estudo peloscaminhos sempre fascinantes da histria da cultura jurdica.Florianpolis, junho de 2004Professor Dr. Antonio Carlos Wolkmer 10. NOTA 2aEDIO com satisfao que estamos encaminhando a presente edio, revista e atualizada,para a comunidade acadmica e, principalmente, para a rea jurdica do pas, Fica o nossoreconhecimento aos professores e aos alunos pela acolhida e pelo xito desta obra, que vemsendo utilizada como fonte instrumental de consulta e pesquisa para disciplinas histricas nombito do Direito.Embora mantenha sua estrutura central, a obra foi enriquecida com mais quatro textosque introduziram temas no trabalhados ou pouco aprofundados na 1 edio, Assim, o 2 Captuloda edio anterior (O despotismo oriental e o modo de produo asitico) foi substitudo, peloprprio autor, por outro artigo em que desenvolvido, com interesse e vigor descritivo, aespecificidade do Direito nas antigas sociedades da Mesopotmia e do Egito, Alm de necessria, atroca tornou-se extremamente oportuna. Outra valiosa e excelente contribuio o aparecimento dainstigante e erudita pesquisa sobre o direito grego antigo, da jovem pesquisadora e estudiosa dasinstituies helnicas Raquel de Souza. Igualmente, com segurana e seriedade, o professorFrancisco Quntanilha Vras Neto contribui com apreciada retomada do Direito Romano Clssico eseus principais institutos. Estas trs investigaes sobre o direito antigo nas sociedades daMesopotmia, do Egito, da Grcia e da Roma Clssica foram solicitadas pelo organizador, levandoem conta ausncias temticas e obedecendo a certos critrios formais, sendo atendidas prontamentepelos autores com eficincia, determinao e competncia.Na seqncia, outro resgate histrico importante a colaborao doProfessor Rogrio Dultra dos Santos, que discute, criticamente, a dogmtica jurdicacannica medieval sob a inspirao interdisciplinar de Pierre Legendre e Michel Foucalt.Por ltimo, a insero de um texto conhecido e j clssico do renomado historiador epesquisador Arno Wehling sobre a regulamentao civil e penal da escravido no Brasil dosculo XIX. Trata-se de trabalho publicado h mais de dez anos pelo Museu Imperial (Rio deJaneiro) e cuja incluso o autor gentilmente permitiu, possibilitando estimular a rica discussohistrica sobre os aspestos jurdicos de um dos grandes temas que dominaram a sociedadebrasileira no tempo do imprio. Fica, portanto, o convite para que, na consulta permanente daobra, todos que se voltam ao passado tenham uma leitura informativa e questionadora, semdeixar de ser prazeirosa.Novembro de 2000Professor Dr. Antonio Carlos Wolkmer 11. APRESENTAO 1 EDIODiante das transformaes da sociedade contempornea, da crise das grandes narrativas defundamentao e das mudanas dos paradigmas cientficos, atualmente, adquire relevnciaredefinir as tradicionais relaes entre o Direito e a Histria. Perde espao e significao o cultivode um historicismo jurdico oculto no mito da neutralidade do saber e na universalidade dosprincpios do formalismo positivista, que serviram de instrumentos de justificao da ordemliberal-individualista e da racionalidade burgus-capitalista. Hodiernamente, vive-se o descrditode uma historiografia jurdica demasiadamente apegada a textos legais, interpretao firmada naautoridade de notveis juristas, a construes dogmticas e abstraes desvinculadas da realidadesocial, acabando por consagrar uma Histria elitista, erudita, idealista, acadmica e conservadora.Busca-se, agora, a renovao crtica da historiografia do Direito, nascida e articulada nadialtica da produo da vida material e das relaes sociais concretas. Trata-se de pensar ahistoricidade do Direito - no que se refere sua evoluo histrica, suas idias e suasinstituies - a partir de uma reinterpretao das fontes do passado sob o vis dainterdisciplinaridade (social, econmico e poltico) e de uma reordenao metodolgica, emque o fenmeno jurdico seja descrito sob uma perspectiva desmistificadora. Naturalmente, parase alcanar esta condio histrico-crtica sobre determinado tipo de sociedade e suasinstituies jurdicas, impe-se, obrigatoriamente, visualizar o Direito como reflexo de umaestrutura pulverizada no s por um certo modo de produo da riqueza e por relaes de forassocietrias, mas, sobretudo, por suas representaes ideolgicas, prticas discursivashegemnicas, manifestaes organizadas de poder e conflitos entre mltiplos atores sociais.Com o intento de recuperao da verdadeira histria, aquela que nem sempre foi escrita,traduzida e interpretada (a histria dos vencidos e perifricos), que surgiu a proposta destasntese de investigaes jurdicas, dentro de um projeto direcionado para uma Nova Histria,fundada na inquietude e no engajamento de uma jovem gerao de juristas imbudos pelafora da crtica, da transgresso, do inconformismo e da postura libertria.Certamente que a coletnea Fundamentos de Histria do Direito vem preencher, demodo muito oportuno e relevante, o imenso espao vazio que existia na produobibliogrfica acadmico-universitria do pas, tanto no que diz respeito a obras sobre aHistria do Direito, Histria das Idias ou Histria das Instituies Jurdicas, quanto depesquisas histricas da cultura legal de uma nova orientao metodolgica: interdisciplinar ecrtico-desmistificadora.Com exceo do primeiro e do ltimo texto, cabe observar que os trabalhos aqui reunidosforam escritos num perodo de dois anos (1994-1995), por alunos-mestrandos, nascidos sob a formade papers, provenientes de apresentaes e debates nos seminrios da disciplina Histria dasInstituies Jurdicas, do Curso de Ps-Graduao em Direito, em nvel de Mestrado, naUniversidade Federal de Santa Catarina.A ordem dos textos no se originou de forma natural e espontnea, mas envolveu critriosmetodolgicos (de acordo com o referencial terico da disciplina), bem como o processo de 12. direcionamento e seleo de mais de duas dezenas de artigos escritos, privilegiando-se certosobjetos, institutos e instituies (controle e sano penal, famlia, propriedade, inquisio,bacharelismo, etc.) e um determinado enquadramento histrico-evolutivo da cultura jurdicaocidental (Antigidade, Idade Mdia, Idade Moderna, Brasil-Colnia e Imprio).Na longa trajetria histrica demarcada para o estudo das instituies jurdicas, o textoescolhido para iniciar a obra foi aquele escrito pelo organizador da coletnea, O Direito nasSociedades Primitivas. A preocupao geral introduzir uma discusso inerente antropologia jurdica, pontualizando alguns aspectos do Direito nas sociedades primitivas, taiscomo a formao, caracterizao, fontes e funes. Privilegiando certas investigaes depesquisadores como B, Malinowski, a reflexo chama ateno para o fato de que o Direito nassociedades primitivas no era escrito e encontrava-se profundamente dominado pelas prticasreligiosas. Alm disso, as regras primitivas de controle social no se reduziam to somente lei criminal, pois j existiam regras de Direito Civil consensualmente aceitas, respeitadas emotivadas por necessidades sociais. Em conseqncia, as regras legais no foram exercidas deforma arbitrria, mas resultantes do acordo recproco entre seus integrantes.O texto seguinte, de autoria de Cristiano Paixo, O despotismo Oriental e o Modo de ProduoAsitico, traz a tona a discusso sobre um tema que se tornou c1ssico no mbito da teoria socialcontepornea, principalmente de vertente marxista. Trata-se do resgate histrico e da contextualizaodo rico debate terico que envolve as origens e evoluo das formas burocrticas de dominao, bemcomo as possibilidades de utilizao de seus pressupostos para o entendimento da estruturao dassociedades asiticas contemporneas. Examina-se o modelo de organizao e administrao do podercom o desenvolvimento da vida social produtiva, em sociedades orientais, constatando-se que acategoria do modo de produo asitico (conceito elaborado por K. Marx), na verdade, configura, aum s tempo, a continuao e a superao da tradicional noo poltica do despotismo oriental. Estacomprovao pode ser verificada na experincia contempornea vivida pela sociedade chinesa.Na seqncia, Jenny M. O. Nogueira toma como referencial de investigao a obra devalor fundamental, A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, para examinar uma das maisimportantes instituies da sociedade greco-romana clssica: a famlia. Ao tecer um recorteespecfico da mais antiga instituio nos marcos do cenrio desenhado pelo historiadorfrancs, a pesquisadora descreve, com clareza e preciso, a influncia das velhas crenas, oritualismo do fogo sagrado, o culto dos mortos e a autoridade do poder paterno naconstituio, hierarquia, imposio e ascendncia da famlia.Concomitantemente escolha da famlia, a propriedade privada, como outra instituioantiga, no poderia ser esquecida, principalmente tendo em conta a dinmica do processo deevoluo histrica. Problematizando a propriedade como instituto imprescindvel, ValcirGassen, em A Natureza Histrica da Instituio do Direito de Propriedade, afirma que a posseda terra nasce das relaes concretas entre os homens, sendo que, na trajetria da propriedade,esta sempre foi o mais importante meio de produo da riqueza. Orientando-se atravs dasnarrativas de F. Coulanges, K. Marx e F. Engels, o autor faz um apanhado crtico ecaracterizador da propriedade antiga, medieval e moderna, em suas diversas modalidades de 13. existncia, desde a propriedade coletiva primitiva at a propriedade privada moderna.No quinto captulo, Argemiro Cardoso M. Martins, em O Direito Romano e SeuRessurgimento no Final da Idade Mdia, dialogando e utilizando-se das anlises eruditas dealguns dos mais importantes historiadores europeus da atualidade, Perry Anderson, JohnGilissen e Antonio M. Hespanha, faz uma descrio densa e genrica das fases de formao edesenvolvimento do Direito Romano, bem como de seu declnio, recepo e renascimento naIdade Mdia Ocidental. Ainda que a narrativa histrica paute por reprodues e transcrieseruditas, carecendo de uma maior originalidade, o investigador supera-se quando traz,primeiramente, consideraes histrico-crticas sobre a estrutura socioeconmica da RomaAntiga, relacionando a materializao do Direito com o escravismo e as lutas sociais.Possivelmente, o melhor momento do texto expresso quando descreve as causasdeterminantes do ressurgimento do Direito Romano no Ocidente: os fatores culturais,econmicos, polticos, sociolgicos e epistemolgicos.Esta reflexo sobre o aparecimento do Direito Romano em fins da Idade Mdia acabapreparando o caminho para uma discusso polmica sobre os procedimentos legais daInquisio, representada por dois artigos com enfoques um pouco distintos. Assim, SamyraHayde Naspolini, no texto Aspectos Histricos, Polticos e Legais da Inquisio, aborda, deforma mais convencional e expositiva, os elementos histricos e polticos que geraram eobjetivaram a Inquisio, criada pela Igreja Romana para combater as heresias e resguardarseu poder e sua riqueza. O estudo reala as mudanas no sistema penal (do processoacusatrio ao processo por inqurito), a consagrao e a utilizao indiscriminada da torturanos interrogatrios. Por outra parte, no ensaio A Desconstruo do Modelo JurdicoInquisitorial, Salo de Carvalho problematiza, com muita criatividade e talento, a poca dodeclnio dos processos por heresia nos tribunais da Inquisio, estimulada por uma revoluojurisprudencial, particularmente, da magistratura francesa, no sculo XVII. No contexto deuma dinmica de secularizao do Direito (fundado na razo) que desencadeou o rompimentoentre o dogmatismo eclesistico e as novas doutrinas jusfilosficas, a prtica jurisprudencialfoi afetada, largamente, no dizer do jovem jurista gacho, pelo avano cientfico, pelohumanismo penal e pela notvel influncia do racionalismo iluminista.Dentro deste mesmo esprito insuflado pelo historicismo problematizante e pela visocrtico-desmistificadora, apresenta-se o longo e compacto ensaio, Da Invaso da Amrica aosSistemas Penais de Hoje: O Discurso da Inferioridade Latino-Americana, de Jos CarlosMoreira da Silva Filho, um dos mais profcuos da toda a coletnea. Trabalhando comreferenciais extrados da filosofia da libertao e do pensamento de Enrique Dussel, opesquisador de Braslia resgata a obra significativa de Bartolom de Las Casas, bem como ariqueza e o sincretismo da herana indgena, questionando, agudamente, os fundamentos doeurocentrismo, advogando uma cultura emancipadora embasada num projeto de alteridadelatino-americana.Os dois ensaios seguintes tm como elo a trajetria do Direito brasileiro entre os sculosXVII e XIX. Depois de uma viagem no imaginrio ocidental do tempo - da Antigidade aos 14. tempos modernos -, finalmente chega-se s terras do Brasil. Nisso reside a importncia destestextos sobre a historicidade nacional: no s oferecem um fechamento coerente com todo odesenvolvimento temtico (do fenmeno jurdico geral para o perifrico), como, sobretudo,situam a narrativa histrica sobre o processo de formao da nossa cultura legal no bojo deuma articulao crtico-desmistificadora.De fato, no artigo O Direito no Brasil Colonial, Cludio Valentim Cristiani discorresobre os fatores sociais, econmicos e culturais que influenciaram o Direito brasileiro noperodo da colonizao. Naturalmente, a legislao da colnia no era expresso da vontadedas populaes originrias e nativas, mas imposio do projeto colonizador portugus, queencontrava respaldo na dominao das elites agrrias. Do mesmo modo, a formao e aorganizao do Poder Judicirio foram implantadas nos moldes da burocracia existente naMetrpole, tendo por finalidade representar os interesses de Portugal e no as aspiraesautnticas e as reais necessidades locais.No penltimo captulo, denominado Instituies, Retrica e o Bacharelismo no Brasil,Jos Wanderley Kozima examina, com desenvoltura e forma ensastica, a questo do bacharelde Direito, ao longo do Imprio, no Brasil. O autor amarra perspicazmente a institucionalizaode um certo tipo de cultura - retrica, formalista e abstrata -, presente na formao e perfil dosadvogados, com o peso de uma herana alimentada por uma organizao polticapatrimonialista, uma estrutura social escravista e um saber clerical-jesutico.O texto final, Uma Introduo Histria Social e Poltica do Processo, do jusfilsofo ehistoriador-jurista da USP, Jos Reinaldo de Lima Lopes, que encerra a coletnea, foielaborao parte e desvinculada do projeto inicial que norte ou a totalidade desta produo.Entretanto, pela seriedade da investigao, pela importncia do resgate de um tema nocontemplado nos outros trabalhos (processo judicial) e pelo tipo de preocupao demonstradana interpretao dos inmeros perodos da processualstica ocidental, o texto acabaaproximando-se e integrando-se ao perfil das demais incurses histricas. Certamente, estaincluso honrosa justifica-se, porquanto o autor discorre, com segurana e densidade, sobre aevoluo histrico-comparativa da tradio processual na Antigidade e Idade Mdia, bemcomo os diferentes caminhos assumidos na modernidade pelo Direito romano-cannico e peloDireito ingls, ora privilegiando a funo decisria dos leigos, ora dos profissionais; oraconsagrando o processo inquisitorial, ora o modelo acusatrio. Em suma, o processo redimencionado numa historicidade que democratiza o acesso justia e contribui para aefetivao dos direitos de cidadania.Enfim, este esforo coletivo de contextualizar uma Nova Histria do Direito, assentadanuma mltipla e rica fragmentao de enfoques e perspectivas crtico-desmistificadoras,revela no s o rumo para uma obrigatria atualizao, profunda reviso e necessria rupturacom as prticas da historiografia jurdica tradicional, como, sobretudo, aponta o desafio decaminhos que avanam na direo de uma historicidade forjada na justia, emancipao esolidariedade.Professor Antonio Carlos Wolkmer 15. Captulo 1O DIREITO NAS SOCIEDADES PRIMITIVASANTONIO CARLOS WOLKMER1SUMRIO: 1. Introduo 2. Formao do direito nassociedades primitivas 3. Caractersticas e fontes do direitoarcaico 4. Funes e fundamentos do direito na sociedadeprimitiva 5. Concluso 6. Referncias bibliogrficas.1. INTRODUOToda cultura tem um aspecto normativo, cabendo-lhe delimitar a existencialidadede padres, regras e valores que institucionalizam modelos de conduta. Cada sociedadeesfora-se para assegurar uma determinada ordem social, instrumentalizando normas deregulamentao essenciais, capazes de atuar como sistema eficaz de controle social. Constata-se que, na maioria das sociedades remotas, a lei considerada parte nuclear de controle social,elemento material para prevenir, remediar ou castigar os desvios das regras prescritas. A leiexpressa a presena de um direito ordenado na tradio e nas prticas costumeiras quemantm a coeso do grupo social.Certamente que cada povo e cada organizao social dispe de um sistemajurdico que traduz a especialidade de um grau de evoluo e complexidade. Falar, portanto,de um direito arcaico ou primitivo implica ter presente no s uma diferenciao da pr-histria e da histria do direito, como, sobretudo, nos horizontes de diversas civilizaes,precisar o surgimento dos primeiros textos jurdicos com o aparecimento da escrita.No s subsiste um certo mistrio, como falta uma explicao cientificamentecorreta e respostas conclusivas acerta das origens de grande parte das instituies jurdicas noperodo pr-histrico. Entretanto, ainda que prevalea uma consensualidade sobre o fato de1Professor Titular de Histria das Instituies Jurdicas da UFSC. Doutor em Direito e membro do Instituto dosAdvogados Brasileiros (RJ). pesquisador integrante do CNPq, CONPEDI e da Fondazione Cassamarca(Treviso Itlia). Professor visitante dos cursos: Mestrado e Doutorado em Histria Ibero-Americana(UNISINOS-RS); Ps-Graduao em Direito Processual do IBEJ (Curitiba-PR) Mestrado em Criminologia eDireito Penal da Universidade Cndido Mendes (RJ); Doutorado em Derechos Humanos y Desarrollo naUniversidad Pablo de Olavide (Sevilha - Espanha). Autor e organizador de inmeros livros, dentre os quais:Direito e justia na Amrica indgena: da conquista colonizao. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1998;Histria do direito no Brasil. 3. ed, Rio de Janeiro: Forense, 2003; Introduo Histria do PensamentoPoltico. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; Humanismo e Cultura Jurdica no Brasil. Florianplis: FundaoBoiteux, 2003; Direitos Humanos e Filosofia Jurdica na Amrica Latina. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004;Fundamentos do Humanismo Jurdico no Ocidente. So Paulo: Manole, 2005. 16. que os primeiros textos jurdicos estejam associados ao aparecimento da escrita, no se podeconsiderar a presena de um direito entre povos que possuam formas de organizao social epoltica primitivas sem o conhecimento da escrita. Autores como John Gilissen questionam aprpria expresso direito primitivo, aludindo que o termo direito arcaico tem um alcancemais abrangente para contemplar mltiplas sociedades que passaram por uma evoluo social,poltica e jurdica bem avanada, mas que no chegaram a dominar a tcnica da escrita. Assimsendo, as inmeras investigaes cientficas tm apurado que as prticas legais de sociedadessem escrita assumem caractersticas, por vezes, primitivas, por outras, expressam um certonvel de desenvolvimento.Certamente que a pesquisa dos sistemas legais das populaes sem escrita no sereduz meramente explicao dos primrdios histricos do direito, mas evidencia, sobretudo, umenorme interesse em curso, porquanto milhares de homens vivem ainda atualmente, na segundametade do sculo XX, de acordo com direitos a que chamamos arcaicos ou primitivos. Ascivilizaes mais arcaicas continuam a ser as dos aborgenes da Austrlia ou da Nova Guin, dospovos da Papusia ou de Bornu, de certos povos ndios da Amaznia no Brasil.2No parece haver dvida de que o processo contemporneo de colonizao gerouum surto de pluralismo jurdico, representado pela convivncia e dualismo concomitante, deum direito europeu (common law nas colnias inglesas e americanas, direitos romanistas nasoutras colnias) para os no indgenas e, por vezes, para os indgenas evoludos; e outro, dotipo arcaico para as populaes autctones.3Tendo em conta estas asseres iniciais, cabe pontualizar alguns aspectos dodireito nas sociedades primitivas como a formao, caracterizao, fontes e funes.2. FORMAO DO DIREITO NAS SOCIEDADES PRIMITIVASA dificuldade de se impor uma causa primeira e nica para explicar as origens dodireito arcaico deve-se em muito ao amplo quadro de hipteses possveis e proposiesexplicativas distintas. O direito arcaico pode ser interpretado a partir da compreenso do tipode sociedade que o gerou. Se a sociedade pr-histrica fundamenta-se no princpio doparentesco, nada mais natural do que considerar que a base geradora do jurdico encontra-seprimeiramente, nos laos de consanginidade, nas prticas de convvio familiar de um mesmo2GILISSEN, John. Introduo histrica do direito. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1988, p. 33.3GILISSEN, John. Op. cit., p. 34. 17. grupo social, unido por crenas e tradies.4 neste sentido que a lei primitiva da propriedade e das sucesses teve em grandeparte sua origem na famlia e nos procedimentos que a circunscreveram, como as crenas, ossacrifcios e o culto aos mortos. Ningum melhor que Fustel de Coulanges para escrever que odireito antigo no resultante de uma nica pessoa, pois se imps a qualquer tipo delegislador. Nasceu espontnea e inteiramente nos antigos princpios que constituram afamlia, derivando das crenas religiosas, universalmente admitidas na idade primitiva dessespovos e exercendo domnio sobre as inteligncias e sobre as vontades. 5Posteriormente, num tempo em que inexistiam legislaes escritas, cdigosformais, as prticas primrias de controle so transmitidas oralmente, marcadas por revelaessagradas e divinas. Distintivamente da nfase atribuda famlia feita por Fustel deCoulanges, H. Summer Maine entende que esse carter religioso do direito arcaico, imbudode sanes rigorosas e repressoras, permitiria que os sacerdotes-legisladores acabassem porser os primeiros intrpretes e executores das leis. O receio da vingana dos deuses, pelodesrespeito aos seus ditames, fazia com que o direito fosse respeitado religiosamente, Daque, em sua maioria, os legisladores antigos (reis sacerdotes)6anunciaram ter recebido as suasleis do deus da cidade. De qualquer forma, o ilcito se confundia com a quebra da tradio ecom a infrao ao que a divindade havia proclamado.Neste aspecto, nas manifestaes mais antigas do direito, as sanes legais estoprofundamente associadas s sanes rituais. A sano assume um carter tanto repressivoquanto restritivo, na medida em que aplicado um castigo ao responsvel pelo dano e umareparao pessoa injuriada.7Para alm do formalismo e do ritualismo, o direito arcaicomanifesta-se no por um contedo, mas pelas repeties de frmulas, atravs dos atossimblicos, das palavras sagradas, dos gestos solenes e da fora dos rituais desejados.Os efeitos jurdicos so determinados por atos e procedimentos que, envolvidospela magia e pela solenidade das palavras, transformam-se num jogo constante de ritualismos.Entretanto, o direito primitivo de matriz sagrada e revelado pelos reis-legisladores (ou chefesreligioso-legisladores) avana, historicamente, para o perodo em que se impe a fora e arepetio dos costumes. Da que, no dizer de H. Summer Maine, o direito antigo compreende,4LUHMANN. Niklas, Sociologia do direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 75, 1983, v. I, p. 182-184.5COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. So Paulo: Hemus, 1975, p. 68-150.6Sobre o papel dos antigos reis-sacerdotes, consultar: FRAZER, Sir James George. O ramo de ouro. So Paulo:Crculo do Livro, [s/d], p. 32-33.7Cf. RADCLIFFE-BROWN, Alfred R. O direito primitivo. In: Estrutura e funo na sociedade primitiva.Petrpolis: Vozes, 1973, p. 262-263, 269. 18. claramente, trs grandes estgios de evoluo: o direito que provm dos deuses, o direito con-fundido com os costumes e, finalmente, o direito identificado com a lei.Nas sociedades antigas, tanto as leis quanto os cdigos foram expresses davontade divina, revelada mediante a imposio de legislador-administradores, que dispunhamde privilgios dinsticos e de uma legitimidade garantida pela casa sacerdotal. Escreve H.Summer Maine que algumas experincias societrias, ao permitirem o declnio do poder real eo enfraquecimento de monarcas hereditrios, acabaram por favorecer a emergncia dearistocracias, depositrias da produo legislativa, com capacidade de julgar e de resolverconflitos.8Mas este momento inicial de um direito sagrado e ritualizado, expresso dasdivindades, desenvolve-se na direo de prticas normativas consuetudinrias. Certamenteque ainda no se trata de um direito escrito, porm de um conjunto disperso de usos, prticas ecostumes, reiterados por um longo perodo de tempo e publicamente aceitos. a poca dodireito consuetudinrio, largo perodo em que no se conheceu a inveno da escrita, em queuma casta, ou aristocracia, investida do poder judicial era o nico meio que poderiaconservar, com algum rigor, os costumes da raa ou da tribo.9O costume aparece comoexpresso da legalidade, de forma lenta e espontnea, instrumentalizada pela repetio deatos, usos e prticas. Por ser objeto de respeito e venerao, e ser assegurado por sanessobrenaturais, dificilmente o homem primitivo questionava sua validez e sua aplicabilidade.A inverso e a difuso da tcnica da escritura, somada compilao de costumestradicionais, proporcionam os primeiros cdigos da Antigidade, como o de Hamurbi, o de Manu,o de Slon e a Lei das XII Tbuas. Constatam-se, destarte, que os textos legislados e escritos erammelhores depositrios do direito e meios mais eficazes para conserv-lo que a memria de certonmero de pessoas, por mais fora que tivessem em funo de seu constante exerccio.10Esse direito antigo, tanto no Oriente quanto no Ocidente, na explicao de H.Summer Maine, no diferenciava, na essncia, a mescla de prescries civis, religiosas emorais. Somente em tempos mais avanados da civilizao que se comea a distinguir odireito da moral e a religio do direito.11Certamente, de todos os povos antigos, foi com osromanos que o direito avanou para uma autonomia diante da religio e da moral.Pode-se dizer, por fim, que outra regularidade desse processo normativo foi a8Cf. SUMMER MAINE, Henry. EI derecho antiguo: parte general. Madrid:Alfredo Alonso, 1893, p. 18-19.9SUMMER MAINE, Henry. Op. cit., p. 20.10SUMMER MAINE, Henry. EI derecho antiguo: parte general. Madrid: Alfredo Alonso, 1893, p. 22.11SUMMER MAINE, Henry. Op. cit. 19. longa e progressiva evoluo das obrigaes e dos deveres jurdicos da condio de status (asobrigaes so fixadas na sociedade, de acordo com o status que ocupam seus membros),inerentes ao direito primitivo, para o da relao contratual dependente da vontade e autonomiadas partes, caractersticas j do direito legislativo e formal.3. CARACTERSTICAS E FONTES DO DIREITO ARCAICOPode-se distinguir, segundo as lies de John Gilissen, algumas caractersticas do direitonas sociedades arcaicas. Primeiramente, o direito primitivo no era legislado, as populaes noconheciam a escritura formal e suas regras de regulamentao mantinham-se e conservavam-se pelatradio. Um segundo fator de conhecimento que cada organizao social possua um direito nico,que no se confundia com o de outras formas de associao. Cada comunidade tinha suas prpriasregras, vivendo com autonomia e tendo pouco contato com outros povos, a no ser em condies debeligerncia. Um terceiro aspecto a considerar a diversidade dos direitos no escritos. Trata-se damultiplicidade de direitos diante de uma gama de sociedades atuantes, advinda, de um lado, daespecificidade para cada um dos costumes jurdicos concomitantes, de outro, de possveis e inmerassemelhanas ou aproximaes de um para outro sistema primitivo. Alm de apontar a inexistncia deuma legalidade no escrita, de uma certa unicidade de jurdico para cada comunidade e, por fim, apluralidade dos direitos no escritos, Gilissen reconhece tambm que o direito arcaico estprofundamente contaminado pela prtica religiosa.12Tal a influncia da religio sobre a sociedade esobre as leis, que se toma intento pouco fcil estabelecer uma distino entre o preceito sobrenatural eo preceito de natureza jurdica. Na verdade, o direito estava totalmente subordinado imposio decrenas dos antepassados, ao ritualismo simblico e fora das divindades. Um secretismo nebulosomesclava e integrava, no religioso, as regras de cunho social, moral e jurdico.13Por ltimo, Gilissen chama ateno para o fato de que os direitos primitivos sodireitos em nascimento, ou seja, ainda no ocorre uma diferenciao efetiva entre o que jurdico do que no jurdico. Assinala-se, no entanto, que as regras de controle podem variarno tempo e no espao. Os critrios que permitem auferir, na sociedade moderna, o que jurdico podem no ser aplicados s comunidades da pr-histria. Admite-se, assim, que umcostume de pocas arcaicas assume em carter jurdico na medida em que, constrangendo,12Cf. GILISSEN, John. Introduo histrica ao direito. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1988, p. 35.13GILISSEN, John. Op. cit. 20. garante o cumprimento das normas de comportamento.14Ainda, seguindo as incurses histricas do erudito pesquisador belga, cabemencionar urna breve passagem pela questo das fontes do direito entre as sociedades semescrita. Do pouco que se sabe e que, com certeza, pode-se apontar, que as fontes jurdicasprimitivas so poucas, resumindo-se, na maioria das vezes, aos costumes, aos preceitosverbais, s decises pela tradio, etc.No que concerne aos costumes, h de se reconhecer corno a fonte mais importantee mais antiga do direito, manifestao que se comprova por ser a expresso direta, cotidiana ehabitual dos membros de um dado grupo social. Novamente, aqui, a religio aparece cornofenmeno determinante, na medida em que o receio e a ameaa permanente dos poderessobrenaturais que garante o rgido cumprimento dos costumes.15Neste quadro, colocam-se, igualmente, certos preceitos verbais, no escritosproferidos por chefes de tribos ou de cls, que se impem pela autoridade e pelo respeito quedesfrutam. Trata-se de verdadeiras leis ainda que no escritas, repousando no prestgiodaqueles que detm o poder e o conhecimento.Por fim, parece significativo mencionar, corno fonte criadora de preceituaesjurdicas nas sociedades arcaicas, certas decises reiteradas utilizadas pelos chefes ou anciosdas comunidades autctones para resolver conflitos do mesmo tipo. Conjuntamente ao quedesigna de precedente judicirio, Gilissen acrescenta tambm os procedimentos oraispropagados por geraes corno os provrbios e adgios.164. FUNES E FUNDAMENTOS DO DIREITO NA SOCIEDADE PRIMITIVAAlgumas reflexes mais genricas sobre a formao, caractersticas e fontes dodireito primitivo, toma-se relevante destacar um pouco mais as funes e os fundamentos dasformas de controle social em sociedades ainda no possuidoras do domnio tcnico da escrita.Para urna outra leitura da natureza e das funes do direito arcaico, tomar-se- em conta asinvestigaes pioneiras e clssicas de Bronislaw Malinowski (1884-1942), feitasempiricamente com populaes das Ilhas Trobriand, ao nordeste da Nova Guin, e queresultaram em 1926, na obra Crime e costume na sociedade selvagem.Inicialmente, constata-se que em cada cultura humana desenvolve-se um corpo de14GILISSEN, John. John. Introduo histrica ao direito. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1988.15GILISSEN, John. Op. cit., p. 37.16GILISSEN, John. Op. cit., p. 37-38. 21. obrigaes, proibies e leis que devem ser cumpridas por motivos prticos, morais ouemocionais. H que se considerar, para Malinowski, que, alm das regras jurdicas sancionadaspor um aparato social com poderosa fora coagente, subexistem outros tipos diferenciados denormas tradicionais gerados por motivos psicolgicos. Naturalmente, a base de todainvestigao do direito primitivo est na imposio rgida e automtica aos costumes da tribo. 17A importncia da interpretao de Malinowski est no fato de que, ainda quepriorize a criminalidade, as formas de castigo e a recomposio da ordem, acaba tratando,igualmente, dos conflitos entre sistemas jurdicos (penal e civil), do direito matrimonial, davida econmica, dos costumes religiosos, do desenvolvimento do comunismo primitivo e doprincpio da reciprocidade corno base de toda a estrutura social. necessrio reconhecer o significado de algumas de suas premissas enquanto primeiratentativa de anlise antropolgica da lei primitiva. Um primeiro aspecto que chama a ateno, naproposta de Malinowski, est na tentativa de desmistificar a lei criminal entendida como ncleoexclusivo de todo e qualquer direito primitivo, pressuposto que se tornou entre alguns antroplogos dodireito. Acertadamente, a regra jurdica primitiva no se reduz to-somente a imposies, nemtampouco a lei dos selvagens somente lei criminal. No se pode pretender que, com mera descriodo crime e do castigo, o tema do direito se esgote no que concerne comunidade primitiva.18Com decorrncia desse processo, o autor dos Argonautos do Pacfico Ocidentalapontou corno segundo aspecto a inconsistncia da tese de que no haveria um direito civilentre as sociedades aborgines. Assim, divergindo da posio de muitos antroplogos de suapoca que insistiam na base religiosa e no teor exclusivamente criminal da jurisprudnciaprimitiva, Malinowski introduz o argumento de que existia um direito civil consensualmenteaceito e respeitado.19As regras de direito civil caracterizadas por uma certa flexibilidade eabrangncia, enquanto ordenao positiva regulamentadora dos diversos momentos daorganizao tribal, compreendiam um conjunto de obrigaes impositivas consideradascomo justas por uns e reconhecidas como um dever pelos outros, cujo cumprimento seassegura por um mecanismo especfico de reciprocidade e publicidade inerentes estrutura dasociedade.20A lei civil primitiva no tem apenas um aspecto negativo no sentido de que todoo descumprimento resulta num castigo, mas assume um carter positivo atravs da recompen-sa para os que cumprem e respeitam as regras de convivncia.17Cf. MALINOWSKI, Bronislaw. Crimen y costumbre en la sociedad salvaje. Barcelona: Ariel, 1978, p, 26, 69 e 70.18MALINOWSKI, Bronislaw. Op. cit., p. 71.19MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 73-74.20MALINOWSKI, B. Crimen y costumbre en la sociedad salvaje. Barcelona: Ariel, 1978, p. 74. 22. Um terceiro aspecto apontar a particularidade de que o direito no funciona porsi mesmo, pois parte integrante da dinmica de uma estrutura. Torna-se desnecessria umamaior constatao, para Malinowski, porquanto as manifestaes legais e os diversos fenme-nos de tipo jurdico encontrados na Melansia no constituem instituies independentes. Odireito mais um aspecto da vida tribal, ou seja, um aspecto de sua estrutura do quepropriamente um sistema independente, socialmente completo em si mesmo.21Ao fazer uma crtica teoria antropolgica do direito, Malinowski avana noexame dos aspectos prticos de determinadas funes do direito, bem como explicitao dosprincpios legais que regem as relaes sociais do grupo. Seu questionamento feitobasicamente contra a falsa perspectiva criada pela antropologia tradicional de que inexiste umdireito civil e que toda lei expresso dos prprios costumes autctones, sendo obedecidosautomaticamente por pura inrcia.22Ora, as normas de controle social que impem obedinciaao homem primitivo so afetadas por necessidades sociais e por motivaes psicolgicas.23 neste contexto que se deve interpretar o direito primitivo. A funo principal dodireito , para Malinowski, liminar certas inclinaes comuns, canalizar e dirigir os instintoshumanos e impor uma conduta obrigatria no espontnea (...), assegurando um modo decooperao baseada em concesses mtuas e em sacrifcios orientados para um fim comum.Uma fora nova, diferente das inclinaes inatas e espontneas, deve estar presente para queesta tarefa seja concluda.24Este fator novo que se distingue das imposies religiosas e das foras naturaisvem a ser revelado pelo conjunto prtico de regras jurdicas civil que, enquanto instrumentointegrador, caracterizado pelos fatores da reciprocidade, incidncia sistemtica, publicidadee ambio.25Assim, o papel do direito fundamental como elemento que regula, em grandeparte, os mltiplos ngulos da vida dos grupos na Melansia e as relaes pessoais entreparentes, membros do mesmo cl e da mesma tribo, fixando as relaes econmicas, oexerccio do poder e da magia, o estado legal do marido e da mulher, etc.26Esta modalidadede regras civis distingue-se das regras fundamentais penais que protegem a vida, apropriedade e a personalidade e que instituem-se pela sanso do castigo tribal. Mas se no hsano religiosa e tampouco castigo penal, quais so as foras poderosas que fazem cumprir21MALINOWSKI, B. Op. cit.22MALINOWSKI, B. Op. cit., p.78.23MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 78-79.24MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 79-80.25MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 83.26MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 82. 23. estas regras de direito civil? Para Malinowski esta fundamentao h de se buscar naconcatenao das obrigaes, que esto ordenadas em cadeia de servios mtuos, seja, umdar e tomar que se estende sobre longos perodos de tempo, cumprindo ambos aspectos deinteresses e atividades (...). Por conseqncia, a fora compulsiva destas regras procede datendncia psicolgica natural pelo interesse pessoal (...) posta em jogo por um mecanismosocial especial, dentro do qual se demarcam estas aes obrigatrias.27Parece claro aqui umadas teses nucleares que explicita e fundamenta a presena do legal nas sociedades autctones:o direito no exercido de forma arbitrria e unilateral, mas produto de acordo com regrasbem definidas e dispostas em cadeia de servios recprocos bem compensados.28Em suma, de todos os sistemas de regras legais das sociedades primitivas, odestaque maior atribudo ao direito matrimonial. No s o mais abrangente sistema legal,como o fundamento essencial dos costumes e das instituies. A fora do direito matriarcaldefine que o parentesco s se transmite atravs das mulheres e que todos os privilgios sociaisseguem a linha materna.29Da decorre a rigidez da lei primitiva com relao ao comrciosexual dentro do cl, fundamentalmente, no que se refere ao crime de incesto (principalmentecom a irm) que gera prticas de punio mais severas.5. CONCLUSOResta, no final, levantar alguns questionamentos crticos sobre interpretaeselaboradas por antroplogos acerca das origens do direito em sociedades primitivas.Certamente uma primeira ponderao, respaldada nos elementos trazidos pelaetimologia jurdica atual, aponta para a fragilidade das teses evolucionistas que do conta deque o direito primitivo passou por uma longa progresso constituda pela comunho degrupos, pelo matriarcado, patriarcado, cl e tribo, Tal evoluo sistemtica , no dizer de JohnGilissen, por demais simplista e sobejamente lgica para ser correta. No h comprovaescientficas de que a legalidade acompanhou e refletiu os diversos estgios das sociedadesprimitivas de acordo com a premissa evolucionista. No existe certeza se o matriarcadorealmente ocorreu e se foi, posteriormente, sucedido pelo patriarcado.30Com relao obra de H. Summer Maine, um dos fundadores da antropologiajurdica moderna, apesar de sua inegvel importncia, no deixou de compartilhar com um27MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 82-83.28MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 61.29MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 99, 100 e 128.30Cf. GILISSEN, John. Introduo histrica ao direito, p. 38. 24. certo evolucionismo darwinista. Sua concepo societria parte de uma lenta evoluo cujoprocesso permitiu que o direito transpusesse o perodo antigo do status para a fase modernado contrato. Naturalmente transpareceu, em sua clssica e erudita investigao, asuperioridade da cultura jurdica europia moderna sobre a ingenuidade e o primarismonormativo das sociedades arcaicas.31Por ltimo, cabe elencar algumas crticas s concepes jurdicas de B.Malinowski, autor que foi privilegiado em boa parte deste artigo. Para isso, seguem-se asconsideraes de Norbert Rouland, para quem as teses jurdicas de Malinowski no gozammais do grande prestgio que alcanaram no passado. Trabalhos de antropologia jurdica maisrecentes apontam certas inverdades sujeitas a comprovao. Um dos erros conceber que, nassociedades primitivas, o direito civil no podia ser violado. Por outro lado, o direito seriaobjeto de consenso, sendo muito mais respeitado entre os autctones do que na sociedademoderna. Escreve Norbert Rouland que algumas investigaes etnogrficas mostram ocontrrio, pois o indivduo, pensando que h menos vantagem do que inconvenincia emrespeitar a lei, acaba muitas vezes violando-a.32Em suma, foi pertinente comear a longa trajetria histrica das instituiesjurdicas atravs de uma breve reflexo sobre as formas, natureza e caractersticas dalegalidade nas sociedades primitivas.6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICASCOULANGES, Fustel de. A cidade antiga. So Paulo: Hemus, 1975.FRAZER, Sir James George. O ramo de ouro. So Paulo: Crculo do Livro, s/d.GIUSSEN, John. Introduo histrica ao direito. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1988.LUHMANN, Nilkas. Sociologia do direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 75, 1983,v.IMAUNOWSKI, Bronislaw. Crimen y costumbre en la sociedad salvage. Barcelona: Ariel, 1978.RADCLIFFE-BROWN, Alfred R. Estrutura e funo na sociedade primitiva. Petrpo1is: Vozes, 1973.ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique. Paris: PUF, 1988.SUMMER MAINE, Henry. El derecho antiguo: parte general. Madrid: Alfredo Alonso, 1893.31Cf. ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique. Paris: PUF, 1988, p. 50.32ROULAND, Norbert. Op. cit., p. 101. 25. Captulo 2DIREITO E SOCIEDADE NO ORIENTE ANTIGO:MESOPOTMIA E EGITOCRISTIANO PAIXO ARAJO PINTO1SUMRIO: 1. Introduo. 2. Elementos de Transio naSociedade e no Direito. 3. Mesopotmia e Egito: aspectosgeogrficos, polticos e econmicos; 3.1 Geografia; 3.2Poltica; 3.3 Economia. 4. A Vigncia do Direito: seuselementos, manifestaes e instituies; 4.1 A Mesopotmia:compilaes de normas jurdicas e sua aplicao; 4.2 O Egito:o princpio de justia divina. 5. Concluso. 6. Refernciasconsultadas.1. INTRODUOO presente ensaio tem por objetivo descrever os principais aspectos relacionados produo, vigncia e aplicao do direito em duas civilizaes orientais da Antigidade:Mesopotmia e Egito. Sero abordados, de incio, alguns fatores histricos que caracterizaramuma mudana fundamental na forma de sociedade e propiciaram a emergncia de novasmanifestaes do direito. Em segundo lugar, apresenta-se uma rpida recapitulao dopanorama geogrfico, poltico e econmico que permeou as civilizaes mesopotmica eegpcia, com observncia de certas similaridades e distines fundamentais naquelassociedades. Passa-se, ento, ao tema central do artigo: as formas de manifestao do direito eas instituies encarregadas de sua aplicao e propagao, tudo em consonncia com asponderaes anteriormente lanadas. E, por fim, sero aventadas algumas possibilidades desubsistncia de institutos jurdicos surgidos na Mesopotmia e Egito nas civilizaes clssicasque se desenvolveram posteriormente.2. ELEMENTOS DE TRANSIO NA SOCIEDADE E NO DIREITONo possvel separar, em qualquer momento histrico que se procure enfocar, a1 1Professor da Faculdade de Direito da UnB. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela UFSC. Doutor emDireito Constitucional na UFMG. Procurador do Ministrio do Trabalho (Braslia-DF). Autor da obra:Modernidade, Tempo e Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. 26. modificao da sociedade e a evoluo do direito. A simples descrio de textos jurdicos einstituies judicirias no suficiente para que se possa aferir o real significado dasmanifestaes do direito que surgem ao longo do tempo. Todo o trabalho retrospectivodirecionado recuperao de documentos, testemunhos, vestgios enfim, fontes histricas - sse justifica a partir de um olhar abrangente; preciso, antes de tudo, ampliar o campohistrico, buscar os elementos fundamentais de cada civilizao e, a partir dessa perspectiva,passar ao estudo do direito propriamente dito. No h direito fora da sociedade. E no hsociedade fora da histria.2Assim, a atividade do historiador do direito envolve duas dimenses: a cartografiadas formas de sociedade (ou, como diria Braudel, a Gramtica das Civilizaes3) e apercepo do fenmeno jurdico que brota na coletividade.Numa obra j tomada clssica nos contextos brasileiro e europeu,4NiklasLuhmann classifica trs grandes grupos de manifestaes do direito - que ele denominaestilos - ao longo da histria: (l) o direito arcaico, caracterstico dos povos sem escrita;5(2)o direito antigo, que surge com as primeiras civilizaes urbanas e (3) o direito moderno,prprio das sociedades posteriores s Revolues Francesa e Americana.6Os dois primeiros modelos de direito antigo (ou seja, o segundo estilo de direitoidentificado por Luhmann) so aqueles verificados na Mesopotmia e no Egito. Assim, a2Adota-se, aqui, a orientao terica j explicitada pela Escola francesa dos Annales, fundada por Bloch eFebvre em 1929, continuada com a obra de Braudel e disseminada no movimento atualmente denominado NovaHistria. Cf., entre vrios: BLOCH, Marc. Introduo histria - edio revista, aumentada e criticada. Trad.Maria Manuel et al. Portugal: Europa-Amrica, 1997. LE GOFF, Jacques (Org.). A histria nova. 3. ed. Trad.Eduardo Brando. So Paulo: Martins Fontes, 1995. VOVELLE, Michel. A histria e a longa durao. In: LEGOFF, Jacques (Org.). A histria nova. Op. cit., p. 68-96. BRAUDEL, Femand. Escritos sobre a histria. 2. ed.Trad. J. Guinsburg e Tereza Cristina Silveira da Mota. So Paulo: Perspectiva, 1992. BURKE, Peter. A escolados Annales (1929-1989) - a Revoluo Francesa da historiografia. Trad. Nilo Odlia. So Paulo: Unesp, 1991.REIS, Jos Carlos. A escola dos Annales - a inovao em Histria. So Paulo: Paz e Terra, 2000. Sobre ainfluncia desse movimento na histria do direito, ver a fundamental obra de LOPES, Jos Reinaldo Lima. Odireito na histria - lies introdutrias. So Paulo: Max Limonad, 2000, especialmente p. 17-28.3Cf. BRAUDEL, Femand. Gramtica das civilizaes. Trad. Antonio de Pdua Danesi. So Paulo: MartinsFontes, 1989, p. 25-55.4LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito (I e II). Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1983 e 1985.5Aqui, fundamental observar a impossibilidade de adoo de um critrio puramente cronolgico.Evidentemente, h sociedades que passaram a dominar a escrita em perodos mais remotos (como o caso dascivilizaes tratadas neste artigo), outras que permaneceram numa espcie de organizao em forma de tribos oucls por um perodo maior (como os reinos chamados brbaros, ou germnicos, que se mantiveram fora domundo clssico, grego e romano, por toda a Antigidade) e aquelas que at os dias atuais conservamcaractersticas tribais ou clnicas e que so fundamentais para o estudo do direito dos povos sem escrita,consoante bem observado por GILISSEN, John. Introduo histrica ao direito. Trad. A.M. Botelho Hespanha eI.M. Macasta Malheiros. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1995, p. 32.6Fenmeno identificado, de forma explcita, com o surgimento do movimento do constitucionalismo, no final dosculo XVIII. Para uma melhor explicitao deste ponto, ver: LUHMANN, Niklas. La costituzione comeacquisizione evolutiva. In: ZAGREBELSKY, Gustavo. PORTINARO, Pier Paolo. LUTHER, Jrg. Il futurodelta costituzione. Torino: Einaudi, 1996. 27. exposio ter de abordar, num primeiro momento, os fatores que marcaram a transio dodireito arcaico para o novo estilo de direito. E, para tanto, ser necessrio identificar asmarcas da passagem da sociedade arcaica para um novo tipo de conformao social.Pode-se ilustrar a transio das formas arcaicas de sociedade para as primeirascivilizaes da Antigidade mediante trs fatores histricos: (l) o surgimento das cidades; (2)a inveno e domnio da escrita e (3) o advento do comrcio e, numa etapa posterior, damoeda metlica. Convm, ento, fazer referncia, ainda que de modo breve, a cada um dessesaspectos.Numa perspectiva histrica expandida, possvel identificar as origens da cidadeno perodo paleoltico. Numa inspirada passagem, Lewis Murnford assinala que a idia decidade - compreendida como um lugar cvico, de satisfao do homem no plano coletivo,desvinculada de aspectos como sobrevivncia, alimentao e proteo contra um ambientehostil - j aparece nos primeiros locais em que eram celebrados ritos, normalmente fnebres.7Com isso, fica superada qualquer concepo estritamente utilitria da origem das cidades;passa-se a considerar o agrupamento humano organizado como uma primeira manifestao daidentidade do prprio homem, de sua temporalidade e de sua diferena em relao a outrosseres vivos. Com a organizao do homem em aldeias, resultante de sua sedentarizao noterritrio, que passa a ser cultivado - fenmeno tpico da Era Neoltica -, a idia moderna decidade vai-se tomando mais prxima. O passo seguinte seria a fundao das primeirascidades. E isso ocorreu, como consenso entre os historiadores, na Mesopotmia.8Consoante a lcida narrao de Ciro Flamarion Cardoso, a formao da cidade na7Veja-se o seguinte extrato: Nesses antigos santurios paleolticos, como nos primeiros tmulos e montes sepulcrais,encontramos, se existem, os primeiros indcios de vida cvica, provavelmente muito antes de poder sequer suspeitar-sede qualquer agrupamento permanente em aldeias (...) Ali no centro cerimonial verificava-se uma associao dedicadaa uma vida mais abundante; no simplesmente um aumento de alimentos, mas um aumento do prazer social, graas auma utilizao mais completa da fantasia simbolizada e da arte, com uma viso comum de uma vida melhor e maissignificativa ao mesmo tempo que esteticamente atraente, uma boa vida em embrio, como a que Aristteles um diairia descrever na Poltica: o primeiro vislumbre da Eutopia. MUMFORD, Lewis. A cidade na histria - suas origens,transformaes e perspectivas. 4. ed. Trad. Neil R. da Silva. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 14.88 Na verdade, a longa escalada que culminou com a formao de cidades tem origem fora do terreno da atualMesopotmia. Foram encontrados, na atual cidade turca de atal Hyk (antiga regio da Anatlia) e no stio deJeric (Tell es-Sultan), no vale do Jordo, vestgios de uma espcie de proto-cidade, constituda por um agrupa-mento de casas e santurios. As diferenas essenciais entre estes agrupamentos populacionais e as primeirascidades mesopotmicas residem nos seguintes fatores: (1) as cidades da Mesopotmia constituram umaverdadeira rede urbana, composta por vrias cidades (as antecessoras, aqui assinaladas, foram casos isolados emsuas localidades); e (2) essa mesma rede urbana perdurou por vrias geraes, fixando-se no tempo, medidaque novas cidades iam surgindo (na prpria Mesopotmia ou em regies prximas). Alm disso, a populao dasproto-cidades, ainda dedicadas agricultura, girava em torno de 1.000 habitantes, enquanto que as primeirascidades mesopotmicas agrupavam cerca de 10 vezes mais. Cf., para melhor aprofundamento dessas questes,JANSON, H.W. Histria geral da arte. Trad. J.A. Ferreira de Almeida et al. So Paulo: Martins Fontes, 1993, v.I, p. 49-50; e DELFANTE, Charles. A grande histria da cidade - da Mesopotmia aos Estados Unidos. Trad.Lus C. Feio. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 23-25. O autor gostaria de registrar seu agradecimento orientao valiosamente concedida, neste tpico, por Eduardo Liberato Nogueira de Sousa. 28. Mesopotmia foi o termo final de um processo lento de destribalizao que se estendeu pelamaior parte do quarto milnio da era pr-crist. Na Baixa Mesopotmia - regio normalmentedesignada como Sumria, nas margens do Rio Eufrates, mais prxima ao Golfo Prsico -, jse contabilizavam cinco cidades nos anos 3100-2900 a.C.: Eridu, Badtibira, Sippar, Larak eShuruppak. No perodo histrico imediatamente subseqente, chamado dinstico primitivo ouprsargnico (2900-2334 a.C.), so registradas, alm daquelas j mencionadas, as seguintescidades: Kish, Akshak, Nippur, Adab, Umma, Lagash, Uruk, Larsa e Ur.9A estrutura dessesprimeiros agrupamentos urbanos era tripartite: (i) a cidade propriamente dita, cercada pormuralhas, em que ficavam os principais locais de culto e as clulas dos futuros palcios reais;(ii) uma espcie de subrbio, extramuros, local em que se misturavam residncias einstalaes para plantio e criao de animais e (iii) o porto fluvial, em que se praticava ocomrcio e que era utilizado como local de instalao dos estrangeiros, cuja admisso, emregra, era vedada nos muros da cidade.Ainda que no seja recomendvel lanar qualquer assertiva postulando uma relaoentre causa e efeito - pois a complexidade do correr do tempo histrico no permite talsimplificao -, possvel afirmar, pelas evidncias hoje existentes, que o processo de inveno econsolidao da escrita possui estreita ligao com o surgimento das cidades (e das modificaesque a revoluo urbana acabou por trazer). Isso porque, se forem desconsideradas formas muitopouco evoludas de inscrio como, por exemplo, puras representaes pictogrficas ou fichas deargila com indicaes de mera quantidade -, tambm na Mesopotmia que se manifesta aprimeira escrita mais complexa, com um maior nmero de sinais e com aspectos ideogrficos efonticos: a escrita cuneiforme. Assim designada pela forma de cunha - construo geomtricaem que os caracteres so dispostos -, a escrita cuneiforme surge na regio da Baixa Mesopotmia,por volta de 3.100 a.C. As razes dessa inovao decorrem da maior complexidade que as recm-fundadas cidades passaram a apresentar. A simples transmisso oral da cultura comea a se tomarinsuficiente para preservao da memria e identidade dos primeiros povos urbanos, que jpossuem uma estrutura religiosa, poltica e econmica mais diferenciada. nesse momento,portanto, que se consolida a passagem da verba volant para a scripta manent. Nesse contexto,Andrew Robinson pondera: em algum momento do fmal do quarto milnio a.C., a complexidadedo comrcio e da administrao nas primeiras cidades da Mesopotmia atingiu um ponto queacabou por superar o poder da memria da elite govemante.109CARDOSO, Ciro Flamarion. Sete olhares sobre a Antigidade. 2. ed. Braslia: UnB, 1998, p. 64.10ROBINSON, Andrew. The story of writing - alphabets, hieroglyphs and pictograms. London: Thames &Hudson, 1999, p. 11. 29. Uma ltima palavra merece ser enunciada, agora em relao ao advento docomrcio. No obstante ser extremamente difcil, em termos exatos, definir a data em quesurge a modalidade de agregao de valor e posterior comercializao de bens, bastanteplausvel citar o incremento e sistematizao das trocas de mercadorias (por intermdio davenda em mercados ou da navegao) como um aspecto preponderante da passagem dassociedades arcaicas para o mundo antigo. De fato, como ser observado a seguir, o comrcio um elemento fundamental na consolidao das civilizaes da Mesopotmia e Egito. Segundoa j clssica contribuio de Engels, a origem do comrcio localiza-se na diviso do trabalhogerada pela apropriao individual dos produtos antes distribudos no seio da comunidade;com a reteno do excedente, a criao de urna camada de comerciantes e a atribuio devalor a determinados bens, o homem deixa de ser senhor do processo de produo. Inaugura-se, ento, segundo Engels, urna as simetria no interior da comunidade, com a introduo dadistino rico-pobre.11A sntese desses trs elementos - cidades, escrita, comrcio representa a derrocadade urna sociedade fechada, organizada em tribos ou cls, com pouca diferenciao de papissociais e fortemente influenciada, no plano das mentalidades, por aspectos msticos oureligiosos. H, nessas sociedades arcaicas, um direito ainda incipiente, bastante concreto,cognoscvel apenas pelo costume e que se confunde com a prpria religio.Mas, aos poucos, vai se construindo uma nova sociedade - urbana, aberta a trocasmateriais e intercmbio de experincias polticas, mais dinmica e complexa -, que demandarum novo direito.As primeiras manifestaes desse novo tipo de sociedade - e, por conseqncia,desse novo estilo de direito - ocorrem na Mesopotmia e no Egito.3. MESOPOTMIA E EGITO: ASPECTOS GEOGRFICOS, POLTICOS EECONMICOSAs civilizaes ora estudadas fornecem um raro exemplo de simultaneidade dotempo histrico: elas so construdas de forma lenta, mas a finalizao do processo demudana d-se no mesmo perodo. Com efeito, existem indcios de existncia de vida humanana Mesopotmia e Egito j na Era Neoltica (ano 7000 a.C. na regio da Mesopotmia12e11ENGELS, Friedrich.A origem da famlia, da propriedade privada e do Estado. 3.ed. Trad. Jos Silveira PaesSo Paulo: Global, 1986.12CARDOSO, Ciro Flamarion. Antigidade oriental- poltica e religio. 2. ed. So Paulo: Contexto, 1997, p. 23. 30. 5500 a.C. no Egito).13Mas no quarto milnio a.C. que a proximidade de datas fica maisevidente. Ambas as civilizaes urbanizam-se e adotam a escrita em perodos muitoprximos. Corno j dito, as primeiras inscries em cuneiforme aparecem na Mesopotmiaem 3100 a.C.; os primeiros textos em hierglifos surgem no Egito no perodo compreendidoentre 3100 e 3000 a.C.14Quanto s cidades, elas j existem na Mesopotmia no lapso detempo situado entre 3100 e 2900 a.C.; no Egito, a urbanizao d-se de forma gradual,concomitante unificao dos povos do Sul e Norte (Baixo e Alto Egito), o que resulta naformao das cidades entre 3100 e 2890 a.C.15Segundo as pesquisas mais recentes, no huma relao de causalidade entre as duas evolues aqui descritas; ainda que existam indciosde contato entre os povos da Mesopotmia e do Egito, possivelmente em virtude da nave-gao, hoje encontra-se superada a tese que atribui forte influncia mesopotmica naunificao do reino egpcio.16As fontes disponveis indicam, ao contrrio, a existncia deprocessos autnomos.17 hora de ressaltar as caractersticas gerais de constituio dessas civilizaes,enfatizando semelhanas e diferenas.3.1 GeografiaA proximidade das datas de consolidao das civilizaes mesopotmica e egpciano pode, por bvio, ser tratada como mera coincidncia histrica. Na verdade, aconformao do espao um elemento vital para a compreenso da durabilidade e xitodessas civilizaes.13ARAJO, Emanuel. Escrito para a eternidade - a literatura no Egito faranico. Braslia/So Paulo: UnB eImprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2000, p. 15.14ROBINSON, Andrew. The story of writing - alphabets, hieroglyphs and pictograms. Op. cit., p. 16.15ARAJO, Emanuel. Escrito para a eternidade - a literatura no Egito faranico.Op. cit.,p. 15.16CARDOSO, Ciro F1amarion. Sete olhares sobre a Antigidade. 2. ed. Braslia: UnB, 1998, p. 72.17A respeito das fontes histricas, duas observaes tomam-se necessrias. preciso ressaltar, em primeirolugar, o papel cada vez mais importante que a arqueologia vem assumindo quanto ao esclarecimento de questesligadas histria antiga. Historiadores de vrias tendncias e mtodos concordam em relao a esse tema. Deoutra parte, cabe acentuar o aumento do grau de conhecimento moderno acerca dos textos antigos em virtude dadecifrao dos idiomas sumrio, acdico e egpcio antigos (escritas cuneiformes e hieroglfica), fundamentalpara a elaborao de modelos histricos sobre o Oriente antigo. Ver, quanto ao primeiro aspecto, entre outros:SCHNAPP, Alain. A arqueologia. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (Org.). Histria - Novas Abordagens.Trad. Henrique Mesquita. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 1-20. FINLEY, M.I. Histria antiga-testemunhos e modelos. Trad. Valter Lellis Siqueira. So Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 11-35. HILBERT,Klaus. Histria antiga e arqueologia - uma pequena e confusa histria de rtulos. In: BAKOS, Margaret M. ePOZZER, Katia M.P. (Org.). III Jornada de Estudos do Oriente Antigo - lnguas, eScritas e imaginrios. PortoAlegre: Ed. PUCRS, 1998, p. 15-22. E, no que se refere decifrao de textos, cf.: ROBINSON, Andrew. Thestory ofwriting - alphabets, hieroglyphs and pictograms. Op. cit., p. 21-35 e 70-91 e ARAJO, Emanuel. Escritopara a eternidade - a literatura no Egito faranico. Op. cit., p. 23. 31. Isso porque as duas regies, situadas no Oriente Prximo,18contavam com umelemento que lhes atribua substancial vantagem em relao s demais localidades adjacentes:a proximidade de bacias hidrogrficas. Ao contrrio de povos que precisavam manter-se emterritrio litorneo, desrtico ou montanhoso - corno os habitantes das regies da Fencia,Sria, Palestina ou Prsia -, os mesopotmicos e egpcios formaram suas civilizaes em tornodos rios Tigre, Eufrates e Nilo. Tal circunstncia permite, por bvio, a existncia de solopropcio agricultura, bem corno a navegao fluvial, essencial para o transporte demercadorias e sofisticao do comrcio. E todos esses fatores contribuem para umcrescimento mais acelerado da populao dessas sociedades, bem como um maiordesenvolvimento poltico e econmico.19Uma diferena, contudo, merece ser notada, em face da repercusso que refletir-se- nas crenas e mentalidades manifestadas pelos povo: aqui estudados. No que se refere aoantigo Egito, os perodos de cheia (recuo das guas do Nilo so previsveis e estveis; em setratando de povos de credo politesta, comum a associao entre as divindades (fenmenosda natureza. Assim, a regularidade do ciclo das guas do Nilo trazia, aos habitantes do Egitoantigo, urna sensao de continuidade, de evaso da passagem do tempo, que acabou por serassociada: um rito de imortalidade: o culto a Osris.20Tal crena - na possibilidade de umciclo natural de vida, morte e renas cimento - no poderia surgir nas cidades da Mesopotmia,j que a cheia e recuo das guas do Tigre e do Eufrates possui um carter pouco regular e18A Mesopotmia antiga corresponde, de modo geral, ao atual Iraque, com algumas regies localizadas empartes das naes hoje designadas Turquia (antiga sia Menor), Ir e Arbia Saudita, enquanto o antigo Egitocompreendia o Estado moderno egpcio e, em alguns perodos, boa parte do atual Sudo, antiga regio da Nbia.Para maior detalhamento das variaes de fronteira ao longo dos sculos, v. KINDER, Hermann;HILGEMANN, Werner. Atlas of World History. Update, edition. London: Penguin, 1995 e McEVEDY, Colin.Atlas da Histria Antiga. 2 ed. Trad. de Antnio G. Mattoso. So Paulo: Verbo, 1990.19Nas palavras de Ciro Flamarion Cardoso: A partir de um longo investimento coletivo de trabalho, adaptando emodificando os dados naturais atravs da construo de diques, barragens, canais, reservatrios, formaram-se nosvales fluviais em questo, sociedades complexas e urbanizadas, baseadas na irrigao. A agricultura irrigada muito produtiva, e por isso o Egito e a Mesopotmia tinham populaes muito mais densas do que as de regiescomo a sia Menor, a Sria- Palestina e o Ir onde a irrigao, pelas condies naturais, s podia ter um papelmuito limitado, onde a agricultura - quase sempre dependente da gua de chuva, s vezes retidas em cisternas - erano conjunto menos produtiva. Este contraste ajuda a entender certa diferenas importantes na organizao poltica eeconmica. CARDOSO, Ciro Flamarion. Antigidade oriental- poltica e religio. Op. cit., p. 16.20Eis a narrativa de Gerald Whitrow: No Egito, onde tudo dependia do Nilo, coroao de um novo fara eramuitas vezes adiada at que um novo incio de ciclo da natureza fornecesse um ponto de partida propcio a seureinado. A cerimnia era marcada de modo a coincidir ou com a cheia do rio, no incio do vero, ou com a baixadas guas, no outono, quando os campos, fertilizados estavam prontos para a semeadura. O ritual real eraestreitamente associado histria de Osris, o prottipo divino que os faras tomavam por modelo, repetindo seusfeitos tradicionais. Osris representava as guas doadoras de vida e o sol, fertilizado pelo Nilo. Depois que o Nilorecuava, a terra conseqentemente parecia morta, mas quando as guas retomavam, revivia. O mito de Osris, quecorporificava esse ciclo de nascimento, morte e renascimento, encerrava uma promessa de imortalidade (...) Deincio esse caminho para a imortalidade era essencialmente uma prerrogativa real, mas acabou-se por considerarque a imortalidade seria conferida a todos que pudessem imitar esses ritos. WHITROW, G.J. O tempo na histria -concepes do tempo da pr-histria aos nossos dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 38-39. 32. previsvel: ao contrrio do fenmeno verificado no Egito, os rios da Mesopotmia tm com-portamento muito menos uniforme que o Nilo. Os habitantes da antiga Mesopotmia eramobrigados a enfrentar variaes climticas, ventos cortantes, chuvas torrenciais e enchentesdevastadoras, que escapavam a seu controle.21Disso decorria a impossibilidade de credo emum ritual de fundo cclico quanto vida e morte. Enquanto no Egito o fara simbolizava otriunfo de uma ordem divina inabalvel sobre as foras do caos, na Mesopotmia a monarquiarepresentava a luta de uma ordem humana, com todas as suas ansiedades e fragilidades, parase integrar ao Universo.22Essa variao no sistema de crenas ter reflexos na poltica e na economia dessespovos do Oriente prximo.3.2 PolticaA principal caracterstica comum da organizao poltica das civilizaes aquianalisadas consiste no fato de que ambas desenvolveram a monarquia como forma degoverno. As diferenas, entretanto, neste terreno, so muito mais evidentes.A primeira dessas distines diz respeito dicotomia fragmentao/ unidade dopoder poltico. No Egito, desde a consolidao da unificao dos reinos do Sul e do Norte (c.3100 a.C.) at o final dos perodos de predomnio persa (525-404 e 343-332 a.C.) e incio dadominao romana (30 a.C.), consolidou-se uma monarquia unificada, com um poder centralbastante definido, titularizado pelo fara, e com uma capital instalada em determinada cidadedo reino (que podia ser Mnfis, Tebas, Sais, entre outras). Ainda que alguns perodos deinstabilidade interna ou invaso externa possam ter abalado a vida poltica do reino, notvela durabilidade da estrutura centralizada do antigo Egito.23Num perodo de aproximadamente3000 anos - observa Jos das Candeias Sales -, extraordinrio o fato de, durante todo essetempo, a tendncia de concentrao poltica ter sempre conseguido sobrepor-se tendncia defragmentao favorecida pela prpria configurao longitudinal do pas.24Conclui, ento, o21Idem, p. 43. No mesmo sentido, CARDOSO, Ciro Flamarion. Antigidade oriental- poltica e religio. Op. cit., p. 40.22WHITROW, G.J. O tempo na histria - concepes do tempo da pr-histria aos nossos dias. Op. cit., p. 44.23Havia, convm notar, uma diviso administrativa no reino egpcio. O territrio era dividido em nomos,expresso que pode ser traduzida como distrito, ou circunscrio administrativa. Cada nomo preservava ritose divindades prprias, sua extenso territorial variava em razo das fronteiras externas do reino e havia umgovernador (nomarca) designado pelo poder central. Mesmo quando o nomarca possua, eventualmente, certaliderana poltica e autonomia administrativa, a regra, no Egito antigo, era a centralizao do poder. No havia,ao menos de forma duradoura, questionamento e desafio do poder do fara pelos representantes dos nomos. Cf.:ARAJO, Emanuel. Escrito para a eternidade - a literatura no Egito faranico. Op. cit., p. 408.24SALES, Jos das Candeias. A ideologia real acdica e egpcia - representaes do poder poltico pr-clssico. Lisboa: Estampa, 1997, p. 19. 33. mesmo autor: mais extraordinrio ainda o fato de, durante os mais de trs milnios, arealeza egpcia nunca ter sido verdadeiramente posta em questo.25Evidentemente, a experincia poltica na Mesopotmia era diversa; desde seusprimrdios, essa civilizao optou pela fundao de cidades - comumente designadas cidades-estado - com alto grau de independncia. Cada cidade tinha seu governante, seus rgospolticos, e, muitas vezes, seu prprio exrcito. Logo, na regio da Sumria havia as cidadesde Ur, Uruk, Lagash e Larsa, entre outras; na Babilnia, alm da cidade do mesmo nome,podem ser mencionadas Kutha, Kish, Borsipa; na regio da Acdia, alm da capitalhomnima, as cidades de Esnunna e Sippar. E, por fim, na Assria, as cidades de Nnive,Assur e Nuzi tinham algum destaque. Todas essas cidades possuam soberanos e divindadesprprios. ntido, ento, o contraste entre unidade do exerccio do poder poltico, no antigoEgito, e a fragmentao desse poder entre as vrias cidades da Mesopotmia.26Uma segunda distino deve ser citada, e diz respeito ao papel conferido aossoberanos. Talvez por influncia da regularidade nas manifestaes da natureza -especialmente das guas do Nilo -, e a criao de um rito de imortalidade a ser cumprido pelofara (imitando o deus Osris), consagrou-se, no Egito, a concepo de que o monarca no eraum simples representante divino na Terra. Ele era o prprio deus. Trata-se do fenmenointitulado teofania. Como descrito por Ciro Flamarion Cardoso, O rei, chamado fara (per-aa: a grande casa ou palcio), rei-deus, encamao do deus Hrus e - sistematicamente apartir da V dinastia, embora o ttulo aparea antes - filho do deus solar Ra, entre muitos outrosttulos, era o mais absoluto dos monarcas.27De modo absolutamente contrrio - e cabe recordar, aqui, as diferenas nocomportamento das guas dos rios que ocupam papel central nas duas civilizaes -, naMesopotmia, com a instabilidade natural j descrita e a fragmentao do poder poltico entrevrios monarcas (os quais, freqentemente, guerreavam entre si), era simplesmente impos-svel fundar a dominao do rei com base na assuno de uma divindade. Na verdade, amonarquia, nas cidades do Tigre e do Eufrates, assumiu um carter mais humano. O rei era,to-somente, um representante de deus (a divindade escolhida pela cidade) na terra. E, nessecontexto, estava tambm submetido a limitaes e contingncias tpicas de qualquer ser25SALES, Jos das Candeias. Op. cit.26Ver, a esse respeito, BRAUDEL, Fernand. Memrias do Mediterrneo Pr-histria e Antigidade. Trad.Teresa Antunes Cardoso et. al. Lisboa: Terramar, 2001, p. 86-87.27CARDOSO, Ciro Flamarion. Sete olhares sobre a Antigidade. Op. cit., p. 79. Vale transcrever, ainda, umexcerto de uma das obras mais antigas da literatura, uma ode fnebre intitulada Textos das pirmides: O reid ordens, o rei concede dignidades, o rei distribui as funes, o rei d oferendas, o rei dirige as oblaes - poistal , de fato, o rei: o rei o nico do cu, um poderoso frente dos cus!. In: CARDOSO, Ciro Flamarion.Antigidade oriental - poltica e religio. Op. cit., p. 43. 34. humano. Um interessante ritual praticado na Babilnia ressalta essa caracterstica.283.3 EconomiaNo plano da economia, h dois aspectos comuns que so essenciais, at mesmocomo elementos distintivos entre a evoluo dos povos que habitavam a Mesopotmia e oEgito e daqueles que estavam alm de suas fronteiras: a utilizao do solo para plantio e ocrescente emprego da navegao como meio de transporte de mercadorias. No entanto, fundamental ressaltar que o Egito era rico em vrios produtos de origem mineral - ouro,cobre, slex, ametista e granito para construo -, mas pobre em madeira, que era importadada regio da Fencia, por meio do porto de Biblos.29Alm disso, as condies de irrigao edrenagem do solo eram bastante favorveis na extenso do Rio Nilo,30ao passo que naMesopotmia havia carncia, em regra, de minerais (com exceo do cobre) e o solo, aindaque bastante frtil, apresentava problemas quanto dificuldade de drenagem e de contenodo avano da vegetao desrtica.No difcil concluir, portanto, que as cidades da Mesopotmia dependiam docomrcio em grau sensivelmente superior ao Egito, o que ter reflexos, como poder-se-observar, no desenvolvimento do direito privado nessas duas civilizaes.4. A VIGNCIA DO DIREITO: SEUS ELEMENTOS, MANIFESTAES EINSTITUIESH que se ponderar, de imediato, que o estudo do direito das sociedades pr-clssicas representa um campo relativamente novo na histria do direito. Muitas dasdescobertas fundamentais, no terreno da arqueologia, so posteriores ao incio do sculo XX.As principais expedies foram enviadas Mesopotmia e ao Egito nos anos vinte: asclebres escavaes em Ur lideradas por Wooley (1922-1929) e a descoberta e catalogaodos tesouros da tumba de Tutankhamon, efetuadas por Carter, no Vale dos Reis (1922-1924).Evidentemente, a reapario de elementos da cultura escrita e material, proporcionada pela28Na Babilnia, por ocasio dos ritos de Ano-Novo no templo de Marduk, o rei era esbofeteado (e nogentilmente: o signo favorvel esperado era que lgrimas saltassem de seus olhos!) por um sacerdote do deus,que lhe retirara previamente os signos da realeza e depois devia pux-lo pelas orelhas para faz-lo prosternar-sediante da imagem divina. Nessa ocasio, o rei deveria declarar divindade estar livre de pecados; entre estespecados no-cometidos constava o de fazer chover golpes na face de um subordinado, e tambm o dehumilhar os sditos. No Egito, algo semelhante seria, mais uma vez, impensvel, sendo o fara um deusencarnado. CARDOSO, Ciro Flamarion Sete olhares sobre a Antigidade. Op. cit., p. 50-51.29Cf. McEVEDY, Colin. Atlas da Histria Antiga. Op. cit., p. 49 e CARDOSO, Ciro Flamarion. Sete olharessobre a Antigidade. Op. cit., p. 20.30CARDOSO, Ciro Flamarion.Antigidade oriental-poltica e religio. Op. cit., p. 40. 35. arqueologia, apenas o incio de um longo trabalho que inclui a decifrao dos textos, acompilao e confronto do material e a posterior tentativa de obter-se uma reproduoaproximada de determinado aspecto de uma sociedade, a saber, algum rito religioso, algumamanifestao poltica ou movimento econmico.31No , dessarte, de se estranhar que umaobra clssica de histria do direito escrita no sculo XIX, como a de Sir Henry SumnerMaine, no dedique uma linha sequer aos direitos da Mesopotmia e do Egito.32Hoje a histria vale-se da lingstica e da arqueologia para tentar aprofundar oestudo dos direitos dos povos do Oriente prximo; possvel, com isso, esclarecer algumascaractersticas dos sistemas jurdicos da poca clssica e posterior. Para tanto, cumpre ressaltarum dado fundamental no incio da presente exposio; tanto os direitos da Mesopotmia como odireito egpcio possuem uma caracterstica comum: a idia de revelao divina.Como j observado no item anterior, as sociedades mesopotmica e egpcia, emface de seu carter urbano e comercial, passaram a desenvolver um grau de complexidade queexigia a vigncia de um direito mais abstrato do que o simples costume ou tradio religiosa.Era necessrio um conjunto de leis escritas, que desse previsibilidade s aes no campoprivado, que estipulasse algum tipo de tribunal ou juiz para resolver controvrsias e que fosseinteiramente seguido em toda a extenso do reino para o qual se destinava. Ambas associedades aqui estudadas atingiram esse estgio. Deve ser ressalvado, contudo, o fato de queuma caracterstica do direito arcaico ainda produziu efeitos nessas civilizaes urbanas: asnormas de direito tinham sua justificao no princpio da revelao divina. A noo deresponsabilidade poltica pela deciso legislativa estranha Mesopotmia e ao Egito.33O exemplo mais enftico dessa revelao consta do Cdigo de Hammurabi: numextenso prlogo, fica ali explicitado que o conjunto de leis foi oferecido ao povo da Babilniapelo deus Sarnas, por intermdio do rei Hammurabi, e no por deciso deste. Na exatadescrio de Aymard e Auboyer, Hammurabi, ao publicar o seu cdigo, quer satisfazer aSarnas, deus da justia, fazer resplandecer o direito no pas, arruinar o mau e o malfeitor,impedir que o forte maltrate o fraco. Mas a justia, no fundo, identifica-se vontade dosdeuses, cujas razes escapam compreenso dos homens: e estes no devem julg-la.34Om