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Revista Poder & Cultura. Ano 2. Vol. 1. Junho/2015|www.poderecultura.com OS INTELECTUAIS E AS GUERRAS DE LIBERTAÇÃO NACIONAL: Reflexões sobre o pensamento de Sartre, Fanon e Guevara Priscila Henriques Lima RESUMO: Pretendemos com esse trabalho analisar a lógica do sistema colonial e a função do intelectual no processo de descolonização e, consequentemente, no despertar de uma consciência política dos colonizados, por meio do pensamento de Jean-Paul Sartre, Frantz Fanon e Ernesto Guevara. Para tanto utilizaremos três obras básicas que visam compreender tais questões: “Colonialismo e Neocolonialismo” (1968) de Sartre, “Os Condenados da Terra(1961) de Frantz Fanon e “Obras Escogidas” (1957-1967) de Ernesto Guevara. PALAVRAS-CHAVE: Intelectual; Descolonização; Consciência Política. THE INTELLECTUALS AND THE WARS OF NATIONAL LIBERATION: Reflections on thinking of Sartre, Fanon and Guevara ABSTRACT: This paper analyzes the logic of the colonial system and the role of the intellectual in the decolonization process and in the wake of a political consciousness of the colonized, by the thought of Jean-Paul Sartre, Frantz Fanon and Ernesto Guevara. For this we use three basic works aimed at understanding these issues, "Colonialism and Neo- Colonialism" (1968) - Sartre, "Les Damnés de la Terre" (1961) - Frantz Fanon and the "Obras Escogidas" (1957-1967) - Ernesto Guevara. KEYWORDS: Intellectual; Decolonization; Awareness Politic. *** Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora do Laboratório de Estudos Africanos (LEÁFRICA) do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Revista Poder & Cultura. Ano 2. Vol. 1. Junho/2015|www.poderecultura.com

OS INTELECTUAIS E AS GUERRAS DE LIBERTAÇÃO NACIONAL:

Reflexões sobre o pensamento de Sartre, Fanon e Guevara

Priscila Henriques Lima

RESUMO: Pretendemos com esse trabalho analisar a lógica do sistema colonial e a função do intelectual no processo de descolonização e, consequentemente, no despertar de uma consciência política dos colonizados, por meio do pensamento de Jean-Paul Sartre, Frantz Fanon e Ernesto Guevara. Para tanto utilizaremos três obras básicas que visam compreender tais questões: “Colonialismo e Neocolonialismo” (1968) de Sartre, “Os Condenados da Terra” (1961) de Frantz Fanon e “Obras Escogidas” (1957-1967) de Ernesto Guevara. PALAVRAS-CHAVE: Intelectual; Descolonização; Consciência Política.

THE INTELLECTUALS AND THE WARS OF NATIONAL LIBERATION: Reflections

on thinking of Sartre, Fanon and Guevara

ABSTRACT: This paper analyzes the logic of the colonial system and the role of the intellectual in the decolonization process and in the wake of a political consciousness of the colonized, by the thought of Jean-Paul Sartre, Frantz Fanon and Ernesto Guevara. For this we use three basic works aimed at understanding these issues, "Colonialism and Neo-Colonialism" (1968) - Sartre, "Les Damnés de la Terre" (1961) - Frantz Fanon and the "Obras Escogidas" (1957-1967) - Ernesto Guevara. KEYWORDS: Intellectual; Decolonization; Awareness Politic.

***

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora do Laboratório de Estudos Africanos (LEÁFRICA) do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Não basta escrever um canto revolucionário para participar da revolução africana; é preciso fazer essa revolução com o povo. Com o povo, e os cantos virão por si mesmos.

Sékou Touré

o decorrer do século XX um dos episódios mais relevantes foi o fim dos

impérios coloniais das grandes potências europeias, que foram

construídos ao longo do século XIX.

Com a vitória da URSS sobre a Alemanha em 1945, o modelo socialista

pregado pela nova potência mundial passou a ser exemplo de possibilidades para os

países que até então viviam sob as rédeas do capitalismo, e sua influência nos países

europeus acabou por facilitar o desenvolvimento de uma consciência anticolonialista:

Daí em diante, o nacionalismo adquiriu uma forte associação com as esquerdas durante o período antifascista, associação essa que foi reforçada subsequentemente pela experiência da luta antiimperialista nos países coloniais. Pois as lutas coloniais estavam vinculadas às esquerdas internacionais de várias maneiras. Seus aliados políticos em países metropolitanos encontravam-se, quase invariavelmente, nessas áreas. As teorias antiimperialistas há muito tempo era uma parte orgânica do corpo de pensamentos socialistas

1.

Ainda em 1945, Roosevelt e Churchill, por meio de um novo organismo

internacional da manutenção da paz, a ONU, fixaram como princípios básicos do pós-

guerra na Carta do Atlântico: a) a impossibilidade de aquisição de territórios sem o

consentimento da respectiva população; b) o direito à autodeterminação dos povos; c) o

acesso de todos os Estados ao comércio internacional; d) a liberdade dos mares23.

Apesar da união entre EUA e a URSS para o combate ao inimigo comum, era

perceptível às diferenças entre os interesses das duas nações, culminando no ano de

1947 na Guerra Fria, com a divisão dos países em dois blocos distintos: o bloco

Ocidental representado pelos EUA com sua política capitalista, caracterizados por

uma democracia liberal e pelo livre comércio internacional enquanto que o bloco

Oriental representado pela URSS pregava o controle estatal da economia e da

sociedade. Para aqueles países colonizados, os princípios do bloco oriental

1 HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo: desde 1780 – programa Mito e Realidade. São Paulo:

Editora Paz e Terra, 1990. p.177. 2 LINHARES, Maria Yedda Leite. A Luta contra a metrópole (Ásia e África). São Paulo: Editora

Brasiliense, 1981. p.15 3 HOBSBAWM, Op.Cit., p.177.

N

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representavam um instrumento de luta contra a opressão dos colonizadores, pois

possibilitavam o surgimento de uma nação para além da exploração fomentada pelo

capitalismo:

Desde que Lênin descobrira que a libertação de povos coloniais oprimidos era um argumento potencialmente importante para a revolução mundial, os revolucionários comunistas fizeram o que podiam em favor das lutas de libertação colonial, que, de todo modo, os atraía para afirmações de que qualquer coisa que atrapalhasse os imperialistas metropolitanos deveria ser bem-vinda aos trabalhadores

4.

O neocolonialismo estabelecido durante o século XIX dividiu o continente

africano e asiático entre um pequeno número de países europeus, deixando clara a

divisão entre fortes e fracos, avançados e atrasados.5 Também é possível afirmar que

as duas grandes guerras do século XX tiveram como pano de fundo questões que

envolviam diretamente os países europeus, bem como esta mesma região foi o berço

do capitalismo e da revolução industrial; contudo ao fim da II Guerra, encontramos

uma Europa devastada e o surgimento de novas potências mundiais: EUA e URSS.

De acordo com Maria Yedda Linhares, existe para alguns historiadores, como

por exemplo, Jacques Arnoult, uma conotação eurocêntrica na palavra

“descolonização”. A ideia é que como o processo de colonização foi de origem

europeia, também na descolonização existe a vontade do colonizador de abrir mão

dos seus direitos. Para outros, o eurocentrismo do termo surge do levante contra a

Europa, na figura dos movimentos nacionais.

Para Hobsbawm, o novo modelo de imperialismo compunha uma nova etapa

do capitalismo, onde entre outras características “levava à divisão territorial do mundo

entre as grandes potências capitalistas” 6, e essa expansão econômica e a exploração

ultramarina foram fundamentais para o desenvolvimento dos países capitalistas.

Com as mudanças estruturais, baseadas no keynesianismo e ocorridas nos

países capitalistas europeus no pós-guerra, como a intervenção do Estado na

economia e a participação dos trabalhadores na formulação de práticas que

proporcionasse uma distribuição de renda igualitária, levantou-se a questão de que

estaria surgindo uma nova etapa do capitalismo.

4 HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2007, p. 91.

5 HOBSBAWM, 2007, p. 91.

6 Idem, p.93.

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A burguesia francesa mostrou-se relutante em aceitar as reformas no sistema

capitalista, devido á redução nos lucros no momento que o país voltou a se

reestruturar. Com isso, ocorre a ascensão do processo de politização do sindicato,

confrontando os movimentos populares franceses com as “forças de ordem”, tendo

como cerne da discussão o sistema capitalista e, inevitavelmente a independência das

colônias, como fruto da exploração do trabalho pelo capital.

Essa nova etapa do capitalismo alterou a realidade dos países europeus,

entretanto não diminui as desigualdades sociais, já que o Estado não conseguia mais

intervir de fato no desenvolvimento tecnológico que consequentemente peca nos

desperdícios da produção, por outro lado também a agricultura fica totalmente

subordinada à indústria e as redes de comercialização: “A luta pela descolonização não

podia deixar de ser uma luta contra o capitalismo, sem deixar de ser, também, no sentido

político, uma luta contra as Metrópoles”.7

No âmago do processo de descolonização estava o despertar da consciência

dos povos colonizados através do discurso dos intelectuais colonizados e rebeldes,

que faziam parte do movimento antiimperialista do Ocidente. Um dos arautos do

processo de descolonização foi Jean Paul Sartre. Para África Negra temos Franz Fanon

e escritores negros de expressão francesa com seus discursos:

Um dos aspectos fundamentais da negritude é a afirmação de si, após a longa noite de alienação, como aquele que sai de um pesadelo e apalpa o corpo todo para se reconhecer a si próprio, como o prisioneiro libertado que exclama bem alto: Estou Livre! Embora ninguém lhe pergunte nada

8.

A oposição ao colonialismo começou com a crítica marxista e socialista que o

identificavam como instrumento do capitalismo. Coube ao partido Bolchevique,

vitorioso na Revolução Russa em 1917 o primeiro pronunciamento que condenava a

anexação de territórios, caracterizando o imperialismo como “parasitas por

natureza”. Toda a mobilização Russa contra o colonialismo europeu foi refreada a

partir do momento que o nazismo de Hitler tomou força, mas com o término da II

Guerra toda a formulação de pensamento e a propagação dos ideais contra o

colonialismo foram reiniciados.

7 LINHARES, Maria Yedda. A luta contra metrópole. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p 33.

8 KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra - Vol. 2. Viseu: Biblioteca Universitária, 1972, p.276.

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Voltados para a África, os ideais de independência surgiram através do conceito de

Pan-Africanismo, que contava com o apoio de intelectuais africanos de todo o

continente em prol da autonomia da África, bem como de intelectuais

afrodescendentes, principalmente aqueles localizados na América.

Com o lema: “A África para os africanos! Exclamei (...) Um Estado livre e

independente na África. Queremos poder governar-nos neste nosso país sem

interferência externa. (...)”9, firma-se o princípio do Pan-Africanismo por Kwame

Nkrumah, responsável pela independência da Costa do Ouro, chamada

posteriormente de Gana no ano de 1957. Porém, os movimentos a favor da união do

continente africano têm início ainda no século XIX, com Alexander Crummell e a ideia

de que a África seria a pátria negra, sendo somente o quesito racial responsável por

delegar o direito de falar por ela e de pensar o seu futuro:

Crummell sustentava que havia um destino comum para os povos da África – pelo que devemos sempre entender o povo negro -, não porque eles partilhassem de uma ecologia comum, nem porque tivessem uma experiência histórica comum ou enfrentassem uma ameaça comum da Europa imperial, mas por pertencerem a essa única raça. Para ele o que tornava a África unitária era ela ser a pátria dos negros

10.

Com Henry Sylvester William, o conceito de Pan-Africanismo toma um caráter

mais igualitário, sem discriminação de cor, onde os brancos e negros teriam os

mesmos direitos, sem sofrerem discriminação de raça, credo e origem social, tendo o

primeiro reivindicado em 1900 durante a Conferência de Londres, que era necessário

assegurar os direitos civis e políticos dos africanos em todo o mundo; melhorar as

condições de vida de africanos independente de onde eles estejam; encorajar os

povos africanos o desenvolvimento da educação bem como a criação de indústrias e

do comércio; e reafirmar os laços entre três Estados negros: Haiti, Abissínia e Libéria,

ressaltando a necessidade da consolidação dos seus interesses e da combinação dos

seus esforços no campo diplomático.

Já com William Edward Burhardt Du Bois, o Pan-Africanismo começa a se

formar da maneira como o foi percebido no período pós Segunda Guerra, tendo como

impulso os processos de descolonização, e essa postura se concretiza no Congresso

9 KWAME, Anthony Appiah. Na casa de meu pai – a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Editora

Contraponto, 1997, p.19. 10

KWAME, Op. Cit., p.22.

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de Manchester, realizado na Inglaterra no ano de 1945, onde reivindicava a

independência da Argélia, Tunísia e do Reino do Marrocos.

Temos então dois períodos distintos: o Pan-Africanismo voltado para a

inclusão e igualdade de tratamento, geralmente motivado por afrodescendentes,

americanos, e o segundo momento, caracterizado pelas guerras anticoloniais e com o

envolvimento de nacionalistas africanos ou nascidos na África, tendo como bandeira

a fala “Povos colonizados e subjugados do mundo, uni-vos!”, tornando-se um

movimento de vanguarda.

Para Joseph Ki-Zerbo “o nacionalismo só é justificável quando um povo se

encontra oprimido. Ele concentra então numa aspiração bruta as diversas forças sociais,

igualmente humilhadas e que vivem na esperança”11.

Representante do movimento nacionalista africano Negritude12, Aimé Césaire

afirma em seus estudos que:

Ninguém coloniza inocentemente, nem ninguém coloniza impunemente, que uma nação que coloniza que uma nação que justifica a colonização – portanto, a força – é já uma civilização doente, uma civilização moralmente ferida que, irresistivelmente, de consequência em consequência, de negação em negação, chama o seu Hitler, isto é, seu castigo

13.

O processo de independência das colônias francesas dividiu-se em duas

partes: o processo pacífico de descolonização, tendo seu início em 1958 com a

assinatura da Lei Quadros, que delegava autonomia as colônias africanas, através de

uma proposta de descentralização e o fim da divisão em África Ocidental Francesa e

África Equatorial Francesa, e o processo violento de independência empreendido com

a Argélia.

A Lei-Quadro foi proposta pelo então chefe de estado francês De Gaulle, onde

propunha a criação de uma comunidade francesa, todavia as colônias teriam

11

KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra – vol. II. Lisboa: Biblioteca Universitária, 1972. p. 157. 12

Movimento literário de negros francófonos surgido na década de 30 que buscava resgatar a cultura africana tradicional de maneira a definir e afirmar sua própria identidade, combater o eurocentrismo forjado na África pelo processo de colonização europeu e principalmente despertar o sentimento de valorização da cultura negra no mundo, deixando clara a sua contribuição cultural ao ocidente. Para maiores esclarecimentos: DEPESTRE, René. Bom dia e adeus à negritude. Tradução de Maria Nazareth Fonseca e Ivan Cupertino. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980. pp.82-160. Disponível em http://www.ufrgs.br/cdrom/depestre/depestre.pdf 13

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978. p. 21.

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autonomia através da africanização dos escalões administrativos. Com exceção de

Guiné que escolheu sua independência imediata, todas as demais colônias optaram

por fazer parte da comunidade. Esse sistema durou por dois anos e em 1960 as

demais colônias francesas da África obtiveram sua independência. A Tunísia obteve

sua “interdependência livremente consentida” em 1956.

A história da colonização argelina foi marcada pela utilização constante de

violência por parte da metrópole, visando estabelecer o controle do país, frente à

resistência do povo, e ao contrário das demais colônias, seu processo de

descolonização caracterizou-se por uma longa guerra, culminando na sua

independência em 1962. Foram 120 anos de enfrentamentos entre colônia e

metrópole.

Com o término da Segunda Guerra e a consequente crise pela qual passava a

França, cabia à comunidade de origem francesa e residente na Argélia a posse das

melhores terras e o controle total da economia. Assim sendo, cerca de 75% da

população de origem mulçumana encontrava-se na iminência de total falta de

alimentação. Esse fato somado a inspiração de movimentos de independência, vindo

de todas as partes, acabou culminando em 1954 no início oficial da guerra de

libertação. O processo de independência da Argélia contou com o apoio de grande

parte da opinião mundial. Dentro da França as opiniões divergiam, em alguns casos

com o apoio a Argélia e em outros casos o controle da colônia era fundamental, nem

que para isso fosse necessário utilizar de repressão e violência.

Os apontamentos de Sartre sobre a prática do colonialismo têm como questão

chave o cerceamento da liberdade do indivíduo no aspecto econômico, político,

cultural e social. Com o objetivo de colaborar na criação de uma consciência crítica,

ele visita vários países europeus, americanos, africanos e asiáticos levantando a

bandeira em defesa da liberdade. Entretanto, com o levante das nações colonizadas

em prol de sua soberania, Sartre engaja-se em condenar as guerras da Argélia e do

Vietnã, dedicando-se principalmente à questão argelina por ser a mais importante

colônia francesa.

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Ele observa no conflito entre a metrópole e a colônia um símbolo da luta de

classes entre o campesinato, sendo representado pela Frente de Libertação Nacional

(FLN) contra a burguesia colonialista presente na figura do governo francês.

Sartre analisa que o imperialismo se move na necessidade da burguesia financeira-

industrial em criar reservas de mercado para sua produção, bem como garantir o

fornecimento de matérias-primas e controlar os mercados externos visando

resguardá-los para o investimento de capitais excedentes, ou seja, o interesse colonial

francês resguardava-se na exploração da agricultura e das matérias primas que

abasteceriam o mercado e a indústria francesa, visto que devido à abundância de

mão-de-obra na Argélia, e consequentemente seus baixos salários, ter naquela região

a intenção de um mercado consumidor tornava-se inviável.

Diante da impossibilidade de industrialização na Argélia, o sistema colonial

mantém funciona mantendo sua colônia em dependência e subdesenvolvida

economicamente, isto é, o Estado desempenha desenvolve um projeto de

colonização capaz de criar uma estrutura produtiva com o objetivo de atender as

necessidades da metrópole:

Mas a quem, pois, a indústria nova contava vender seus produtos? Aos argelinos? Impossível: onde encontrariam eles dinheiro para pagar? A contrapartida desse imperialismo colonial, é que é preciso criar um novo poder de compra para as colônias. E, bem entendido, são os colonos que vão se beneficiar de todas as vantagens e que se transformarão nos compradores eventuais. O colono é, em princípio, um comprador artificial, criado com todas as peças em além-mar por um capitalismo que procura novos mercados

14.

Visando a sobrevivência desse sistema, o Estado estabelece uma

infraestrutura administrativa que pretende doutrinar os colonizados dentro de

códigos civis e jurídicos, e que é aplicada por meio da violência do exército que

substitui a força policial. Assim, a prática colonial torna-se violenta por meio da

imposição do terror pelo Estado que estabelece uma rotina de massacre a população

autóctone. Todavia, esse processo violento funciona como um núcleo de sabotagem

dentro do próprio sistema colonial, visto que exterminar a mão-de-obra

extremamente barata dos colonizados arruinaria o sistema por si só.

14

SARTRE, Jean-Paul. Colonialismo e Neocolonialismo – Situações, V. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968, p.25.

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E, diante da prática colonialista, Sartre procura analisar o maniqueísmo dos

colonos, que de acordo com as premissas do neocolonialismo afirmava a existência

de colonos bons e maus. Para ele, existem colonos de maneira geral, pois o sistema

de exploração não se implantou sozinho na colônia. A questão antecede ao confronto

de colonos nas guerras de libertação e do apoio destes as colônias. Em algum

momento o colono participou da implantação desse sistema, foi conivente:

Pois não é verdade que há bons colonos e outros que sejam perversos: há colonos, é tudo. Quando compreendermos isto, compreenderemos porque os argelinos têm razão de se oporem de início politicamente a este sistema econômico, social e político e porque a sua liberação e a da França só podem sair do estilhaçamento da colonização

15.

E, ainda sobre a divisão maniqueísta inadequada dos colonos, cabe destacar o

que Sartre entende como colonialismo enquanto sistema econômico. Ele o

compreende como um sistema racional fruto do Segundo Império francês

caracterizado pela expansão do processo de industrialização e que atua de acordo

com os interesses e as necessidades das empresas coloniais objetivando claramente a

exploração dos recursos sociais e naturais da colônia em benefício da metrópole.

Sendo assim, se o colonialismo é considerado um sistema racional, um produto da

expansão industrial, não cabe afirmar a existência de colonos bons ou maus, existiu a

colonização e isso basta:

Quando falamos de sistema colonial, é preciso compreendermos: não se trata de um mecanismo abstrato. O sistema existe, funciona; o ciclo infernal do colonialismo é uma realidade. Mas essa realidade se encarna num milhão de colonos, filhos e netos de colonos, que foram modelados pelo colonialismo e que pensam, falam e agem segundo os próprios princípios do sistema colonial

16.

Sobre as consequências do colonialismo francês para a Argélia, Sartre aponta

três eixos: primeiro a necessidade de alimentar nove milhões de pessoas, ou seja,

primeiramente seria de natureza econômica. Logo a seguir surge o problema social

com a urgência em aumentar o número de médicos e escolas; e por último um

problema psicológico devido o complexo de inferioridade do argelino face aos

colonos. Neste último ponto Sartre confronta a "obra civilizatória francesa" e seu

projeto de assimilação criado para suprir as necessidades dos argelinos.

15

Idem, p. 23. 16

Idem, p. 36.

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O discurso de assimilação foi muito utilizado por todas as metrópoles em seus

processos de colonização. Buscando arregimentar o apoio dos colonizados, os

colonizadores discursavam todos os benefícios de se viver numa colônia,

principalmente por meio da sua missão civilizatória, ou seja, negavam todo o passado

dos colonizados associando-o a barbárie e afirmavam seu posicionamento "salvador",

onde numa preocupação maternal, cuidariam para que seus filhos não cometessem

os mesmos erros do passado, isto é, valorizassem suas raízes. Para isso, deveriam

portar-se como os colonos, vestir-se, proferir o mesmo idioma. Uma réplica indígena

e inferior, e que sempre seria vista dessa maneira, de um colono europeu.17

Outro ponto relevante no sistema colonial para Sartre é a questão da

superexploração dos colonizados que, ao terem seus salários praticamente

equivalentes a zero, possibilita aos colonos a aquisição de matéria prima a um custo

mínimo e a venda dos produtos manufaturados a um preço elevado, favorecendo

desse modo ao comércio colonial com produtos a um preço mais competitivo que

aqueles produzidos pela exploração do operariado na metrópole. Porém, Sartre

observa nessa relação um ponto negativo para o próprio sistema colonial que não

pode desenvolver a industrialização em sua colônia sem arruinar a própria indústria

francesa:

É indispensável que cedo ou tarde ele se arruíne: é o seu destino. Em outros termos, depois de ter servido a economia capitalista (...) e aos próprios assalariados, ele se transforma inelutavelmente em um parasita insaciável que absorve inutilmente todas as forças do país colonizador. (...) Era absolutamente necessário que a miséria dos argelinos crescesse. Nenhuma medida tomada pela metrópole poderia impedir seu empobrecimento. Em primeiro lugar porque a super exploração só pode se fundar lá pelo crescimento ilimitado da mão-de-obra. Em segundo lugar porque as tímidas reformas projetadas pelo governo devem ser sabotadas pelos colonos que estão lá, ou em todo caso, elas se voltam em seu proveito. Enfim, porque a industrialização da Argélia, única solução do problema econômico, não pode mesmo ser tentada sem ameaçar na França as empresas industriais de mesma natureza.

18

Percebemos com o fragmento acima que a manutenção do sistema colonial

consome todas as forças francesas. Sartre demonstra que a guerra gera um custo alto

para a metrópole, e que desse confronto depende a manutenção do sistema, ou seja,

17

Idem, p. 137. 18

Idem, p.97.

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as colônias custam mais do que produzem. Pela perspectiva política o sistema

colonial recusa o igualar o status do colonizado e do cidadão francês a partir do

momento que nega seus direitos em prol da manutenção do lucro, ou seja, caso

fornecessem, por exemplo, a seguridade social, as alocações familiares, auxílio

desemprego e outros benefícios, eles alcançariam um patamar político que

possibilitaria o pleito a condições de igualdade salarial e, assim, ele aponta o projeto

de assimilação como mito.

Assim, os trâmites democráticos aplicados na metrópole não poderiam ter a

mesma função na colônia; de um lado o Estado francês dotado de instituições

democráticas em que predominam a liberdade de expressão, o direito ao voto e o de

livre associação, entretanto o colono não poderia implementar a mesma política na

colônia, pois estaria possibilitando a aplicação de um sistema democrático que

chocaria com a ideia e a prática do colonialismo.

Dessa maneira, Sartre destaca que a contradição do sistema ocorre em dois

níveis: no nível objetivo, ou seja, do sistema como um todo e no nível subjetivo, pois a

miséria argelina produzida pelo colonialismo fomenta uma oposição ao sistema com

o despertar de uma consciência das massas diante das ações desumanas deste, ou

seja, o sistema colonial oferece munição ao seu adversário.

Com o despertar da consciência das massas, Sartre observa o levante do

Terceiro Mundo, que apesar de não ser homogêneo possuem no passado a marca da

opressão colonial. Juntos, eles poderiam triunfar por meio da Revolução Nacional de

cunho socialista contra a burguesia colonizada. 19 Mas a quem caberia o despertar da

consciência das massas, que de tão imersas num complexo de inferioridade,

adormecia?

Para Fanon, o despertar da consciência caberia aos intelectuais colonizados,

visto que o movimento de libertação geralmente se preocupa com a independência.

Para ele seria imprescindível a formação de uma sociedade consciente diante da

despersonalização fomentada pelo sistema colonial através de seus projetos de

assimilação. O processo seria de legitimar a formação da nação argelina e a cultura

cumpriria um papel fundamental nesse processo:

19

Idem, p.140.

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Os partidos políticos partem do real vivido e é em nome desse real, em nome dessa atualidade que pesa sobre o presente e sobre o futuro dos homens e mulheres, que eles nos convidam à ação. O partido político pode falar em termos comoventes da nação, mas o que lhe interessa é que o povo que escuta compreenda a necessidade de participar do combate, se simplesmente quiser existir

20.

Visando estagnar os movimentos de libertação, o sistema colonial utiliza de

economismo, ou seja, reconhece toda a exploração cometida pela metrópole com

uma “humildade ostensiva” e formula um discurso voltado para o

subdesenvolvimento da região, disponibilizando novos projetos de crescimento.

Essas medidas a princípio podem atrasar o surgimento da consciência nacional,

porém o próprio sistema conclui a inviabilidade de projetos socioeconômicos tão

ousados para satisfazer a massa colonizada. A metrópole percebe que confrontar os

movimentos de libertação no campo econômico equivale uma ação nem mesmo

utilizada no Estado francês. Assim, Fanon destaca que a conscientização do povo

deve surgir através do reconhecimento da incapacidade do colonialismo de

proporcionar condições básicas de vida.21

Cabe ao intelectual colonizado conscientizar o povo a partir da sua realidade

atual, ou seja, de sua situação como explorados. Para Fanon, aos homens da política

destina-se a ação no real, enquanto que os homens da cultura se situam no quadro

histórico. Corresponde a esse homem da cultura o intelectual colonizado que se

coloca em confronto com o sistema colonial e que, por compartilhar de um discurso já

proferido por especialistas na metrópole, conta com uma resistência menor por parte

dos colonizadores.

O discurso da intelligentsia colonizada pauta-se pelo resgate ao passado ante-

colonial almejando suscitar o orgulho de suas raízes:

Inconscientemente talvez, os intelectuais colonizados, não podendo fazer amor com a história presente do seu povo oprimido, não podendo maravilhar-se com a história de suas barbáries atuais, decidiram ir mais longe, descer mais baixo e é – sem dúvida alguma – com um júbilo excepcional que eles descobriram que o passado não era de vergonha, mas de dignidade, de glória e de solenidade.

22

20

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010, p. 240. 21

Idem, p.242. 22

Idem, p.243.

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Esse caminho à memória busca reverter á ação colonizadora que criou nos

indígenas a ideia de um passado de barbárie. O colonizado crê em um passado

violento onde o negro é um preguiçoso. O colonizador traria os benefícios para essa

sociedade tornar-se civilizada atuando, como diz Fanon, “como uma mãe que

monitora seus filhos para que não cometam nenhum delito ou falta grave”.23 Com esse

processo civilizatório de europeizar a sociedade, sonhava-se com a retirada dos

indígenas das sombras e do atraso em que viviam, guiando-os para a luz, num

processo de alienação cultural. O objetivo do colonialismo era despertar a

dependência nos indígenas onde a saída do colono de suas terras acarretaria a volta

da degradação, da animalização.

Entretanto, para que a ação do intelectual colonizado consagre-se vitoriosa,

torna-se imprescindível que ele opte por uma de suas nações. Ele deve posicionar-se

no dilema de “argelino e francês”, mergulhando nas raízes de uma dessas nações.

Todavia, é importante destacar que, de acordo com Fanon, esse intelectual nunca

será aceito plenamente como um cidadão francês; ele sentir-se-á como um membro

não pertencente aquela massa, rejeitado, e é exatamente essa sensação que o

despertará para a sua opção de fato, ou seja, um retorno desesperado em direção do

lugar de origem, de seu povo. 24

O intelectual que optar por assumir a matriz europeia percebe-se como um

estranho, visto que a história ocidental construída é direcionada para sua própria

sociedade, fazendo com que ele se volte para sua matriz de origem, onde abandona

por completo qualquer resquício europeu, pois reencontrar seu povo é fazer-se negro,

o mais indígena possível. O retorno desse intelectual colonizado ao seu povo

contabiliza uma grande perda para o colonizador.

O processo de engajamento do intelectual pode ser compreendido em três

etapas: 1) o intelectual é assimilado e sua produção é voltada para a metrópole; 2) ele

produz somente lembranças de sua época de inserção no povo; 3) ele entra no

combate de libertação produzindo uma literatura engajada que vise o despertar do

povo.24 Toda a produção política desse intelectual, por mais que se apresente em

23

Idem, p.244. 24

Idem, p.256.

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confronto com o colonialismo, acaba utilizando dos mecanismos do colonizador para

fazer-se valer. Um exemplo claro seria a utilização do idioma para a sua produção.

Outro ponto a se destacar são as questões abordadas nessa literatura que, apesar de

algumas vezes fazer valer-se de dialetos específicos, levantam questões que foram

pensadas de fora da colônia.

O fato do intelectual não conseguir desvencilhar-se de todo da influência da

metrópole, serve como parâmetro também para a análise dos efeitos da prática

colonial, no sentido que para Fanon, apesar das produções literárias dos intelectuais

estarem imersas nas raízes indígenas, não poderia de maneira alguma se deixar de

lado o momento que essas raízes foram tiradas do seu povo. A alienação cultural a

que foram submetidos cumpre um papel importante na formação da identidade

daquela nação. A produção desse intelectual deve direcionar-se para o momento de

mudança da identidade do seu povo. Não basta olhar para as raízes daquela

sociedade, mas sim para o momento que essas raízes foram tiradas do povo.

Fanon considera a produção intelectual desses escritores como uma literatura

de combate, a partir do momento que ela clama pela participação do povo na luta em

prol da construção de sua nação. Ela é peça fundamental na formação de uma

consciência nacional porque abre ilimitadas perspectivas, “porque é vontade

temporalizada”.

Dessa maneira, caberia ao intelectual despertar a sociedade para o modelo

desumano de exploração empregado pelo colonizador durante o processo de

assimilação:

[...] o primeiro dever do poeta colonizado é determinar claramente o sujeito povo da sua criação. Só podemos avançar resolutamente se tomamos, primeiro, consciência da nossa alienação. Tomamos tudo do outro lado. Ora, o outro lado não nos dá nada sem, através de mil rodeios, curvar-nos para sua direção; sem, através de dês mil artifícios, cem mil astúcias, atraírem-nos, seduzir-nos, aprisionar-nos.

25

Assim, para Fanon, o homem colonizado que escreve para o seu povo deve

utilizar de suas raízes para descortinar o futuro, clamar pela luta de todos em prol da

libertação. Deve dedicar-se de corpo e alma a ação de combate nacional. Seu

comprometimento não é com a cultura nacional, mas sim com a nação de maneira

25

Idem, p.261.

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global, na qual a cultura é apenas uma parte. “Combater pela cultura nacional, é

primeiro combater pela libertação da nação, matriz material a partir da qual a cultura se

torna possível”26.

Fanon prossegue dizendo que o combate via cultura e o combate popular atua

de maneira conjunta, pois a cultura nacional desenvolve-se durante os

enfrentamentos, na prisão, no confronto direto entre argelinos e militares franceses.

Esse combate compõe primordialmente a criação de uma identidade nacional por

meio da resistência. Dessa forma não basta retornar as raízes dos indígenas em busca

de elementos que corroborem a luta; é necessário trabalhar, lutar na mesma cadência

que o povo, a fim de preparar o futuro. Para ele, “a cultura nacional é o conjunto dos

esforços feitos por um povo no plano do pensamento para descrever, justificar e cantar a

ação através da qual o povo se constituiu e se mantém”27.

Podemos analisar Fanon como “interprete”; de acordo com o conceito de

cultura política, como um porta-voz de uma realidade, como representação de sua

sociedade.

Ao escrever “Os Condenados da Terra” ele falava para os colonizados, não para

os colonizadores, e entende-se aqui colonizados não só da Argélia, mas de todo o

Terceiro Mundo. 28 A obra funcionaria como um manifesto a ser seguido por aqueles

que por tanto tempo se subjugaram aos mandos e desmandos de uma Europa “cínica

e violenta”.

Para tanto, ele clama pela união das novas nações, pois “o jogo europeu está

definitivamente terminado, é preciso achar outra coisa. Podemos fazer tudo hoje, com a

condição de não imitar a Europa, com a condição de não ter a obsessão de alcançar a

Europa”29. Assim, torna-se compreensível a influência que tal obra suscitou por todos

os movimentos de libertação, servindo como bíblia para os militantes

anticolonialistas da década de 60.

É importante ressaltar um ponto fundamental de convergência entre o

pensamento de Fanon e Sartre: a legitimação da revolta e da luta armada. Esse apoio

26

Idem, p.265. 27

Idem, p.268. 28

Idem, p.364. 29

Idem, p.362.

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justifica-se na possibilidade dos colonizados alcançarem a vitória frente ao massacre

e torturas cometidos pelo poder militar visando à manutenção do “estatuto colonial”

que reduzia a população argelina a condições desumanas e a segregação racial. Era

necessário ser ouvido. E, indo além, para Sartre a luta armada era consequência do

próprio sistema colonial. “É a hora do bumerangue, o terceiro tempo da violência: ela

volta para nós, ela nos golpeia, e, como das outras vezes, não compreendemos que ela é

a nossa”.30 Fanon também apresentava a violência dos oprimidos como uma reação

necessária e proporcional, embora às vezes descontrolada, contra a violência

empregada pelos opressores colonialistas, pois para ele “o colonialismo não é uma

máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. É a violência em estado de

natureza e não pode inclinar-se senão diante de uma violência maior”.31

Assim, Fanon e Sartre estavam do mesmo lado que Ernesto Guevara no que

tange o apoio à luta armada e pelo despertar do Terceiro Mundo. Não seria possível

alcançar a vitória se não por meio da luta armada:“Nosotros décimos: frente a la fuerza

bruta, la fuerza ya la decisión; frente a quienes quieren destruirnos, no outra cosa que la

voluntad de luchar hasta el último hombre por defendernos”32.

Também concordavam que a solução dos problemas sociais não poderia partir

do pensamento capitalista. Para ele, diante do histórico da região as medidas cabíveis

para a construção de uma sociedade justa encontram-se na contramão dos interesses

de sobrevivência da classe dominante e, sobretudo do interesse do imperialismo e

neste caso, principalmente o norte-americano. Assim, o confronto entre a população

oprimida e os inimigos colonialistas seria inevitável, principalmente pelos últimos

estarem dispostos à utilização de força militar para a aniquilação de possíveis

insurgentes. Dessa forma a luta armada seria inerente à libertação do controle

colonialista.

Com base nessa afirmação, Guevara aponta a importância da conscientização

política dos povos para a luta militar contra as classes dominantes e neste aspecto

afirma que a revolução deveria acontecer por meio da união do campesinato, da

30

SARTRE, Jean-Paul. Prefácio à edição de 1961. In: Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010, p.37. 31

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010, p.54. 32

GUEVARA, Ernesto. Obras Escogidas (1957-1967). Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 2001, p.501.

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classe operária e dos intelectuais revolucionários, e não através da liderança de uma

burguesia nacional. Portanto, o campesinato por caracterizar-se pelo isolamento

deveria ser instruído politicamente e revolucionariamente pela classe operária e pelos

intelectuais, pois dessa articulação desponta a vitória na luta contra o imperialismo.

E o êxito no confronto só ocorreria através da ação guerrilheira. Ele reforça essa

afirmação em dois pontos específicos:

1) o inimigo lutará sempre para manter o seu poder e para isso utiliza de todo o

seu potencial bélico. Frente a isso, para alcançar a vitória, seria necessário destruir o

exército opressor, arregimentando um exército 33 popular;

2) a luta é de âmbito continental, e neste caso todas as nações que sofrem

com a opressão colonial devem unir-se em prol do objetivo comum: alcançar sua

liberdade.

3) Devido à importância dada por Che ao confronto armado, sua lógica atuava

no campo político-militar, onde a guerra funcionava como uma continuação da

política e reciprocamente. Seu desejo era de que o poder político, e neste caso

também militar, fosse tomado por um novo homem capaz de construir uma nova

sociedade.

Voltando sua análise para todo o Terceiro Mundo, Guevara afirma a

necessidade de união dos três continentes: América, Ásia e África, pois os

movimentos de independência deveriam ir além de seus colonizadores direto. Neste

caso, Guevara faz um alerta sobre o perigo do imperialismo norte-americano para os

continentes que até aquele momento ainda não estava sob seu jugo. Aos explorados

das três regiões caberia o papel de atacar incessantemente e duramente todos os

pontos de confronto com o imperialismo:

El panorama del mundo muestra una gran complejidad. La tarea de la liberación espera aún a países de la vieja Europa, suficientemente desarrollados para sentir todas las contradicciones alcanzarán en los próximos años carácter explosivo, pero sus problemas u, por ende, la solución de los mismos son diferentes a la de nuestros pueblos dependientes y atrasados económicamente

34.

33

Idem, p.504. 34

Idem, p.588.

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Para ele, tomar consciência de que os três continentes sofrem as agruras do

imperialismo é ponto chave para o êxito as lutas de independência, e que apesar dos

países possuírem características próprias, seus continentes apresentam pontos em

comum.

Especificamente no caso do continente africano, suas observações se voltam

para a questão do neocolonialismo norte-americano, enfatizando que neste aspecto a

África até aquele momento (1967) encontrava-se praticamente intocável. 35 Mesmo

que tenham ocorrido mudanças nessas nações a partir de sua independência, para

Che esse continente não estava preparado para a prática imperialista econômica dos

Estados Unidos. Despertar a consciência política nessa região era extremamente

necessário, pois como os norte-americanos não possuíam colônias nesta região

aproveitaram da saída e da imagem deixada pelos europeus para se apresentarem

como a solução eficaz diante de um cenário pós-guerra. E neste ponto mais uma vez

enfatizava a união de todo o Terceiro Mundo visando um aprendizado mútuo a partir

da troca de experiência. Só assim seria possível construir nações socialistas.

Corroborando com o pensamento de Guevara, Sartre afirma a importância do

Terceiro Mundo se descobrir, mesmo com todas suas particularidades:

Sabe-se que ele não é homogêneo e nele ainda se encontram povos escravizados, outros que adquiriram uma falsa independência, outros que se batem para conquistar a soberania, outros, finalmente que conseguiram a plena liberdade, mas que vivem sob a ameaça constante de uma agressão imperialista. Essas diferenças nasceram da história colonial, o que quer dizer da opressão

36.

Assim, a partir da leitura das obras “Colonialismo e Neocolonialismo” de Sartre,

“Os Condenados da Terra” de Fanon e “Obras Escogidas” de Guevara, consideramos

que os três possuem opiniões convergentes no que concerne à prática do sistema

colonial, sendo:

A necessidade do posicionamento no confronto. Ou confronta o sistema ou

omite-se, e a omissão caracteriza apoiar a prática colonialista. Não existe um bom

colonialismo ou um colono bom, ou até mesmo um colono mau. Esse maniqueísmo

não deve ser analisado a partir do sistema colonial já implantado e a aceitação de seus

35

Idem, p.590. 36

SARTRE, Jean-Paul. Colonialismo e Neocolonialismo – Situações, V. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968, p.140.

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ditames. É importante perceber que até na efetivação do colonialismo caberia

movimentos de discordância e ao aceitar a prática da metrópole, o colono se abstém

de qualquer posicionamento.

A revolução de cunho socialista e a criação de novas identidades nacionais

ocorreriam por meio da luta armada, num movimento fomentado pela própria

violência exercida pela manutenção do sistema colonialista. Manter todos sob seu

jugo exigia que o poder militar controlasse os colonizados através da desumanização

dos mesmos e assim o combate a essa ação se daria por reflexo.

A consciência das massas ocorreria em âmbito intercontinental, ou seja, era

necessário o despertar do Terceiro Mundo e isso aconteceria através da troca de

experiência entre seus movimentos de independência.

Os discursos anti-imperialistas continuam em todos os continentes. O cenário

se modificou, entretanto alguns atores permanecem. As disputas ideológicas entre

Estados Unidos e alguns países da América do Sul mudaram o tom, tomando novas

formas. Hoje os blocos que visam integração da região atuam de maneira sutil nesse

sentido; protegem seus mercados por meio de acordos econômicos. No que tange o

continente africano, após as guerras de libertação o que encontramos são países com

estruturas precárias, governos autoritários e estruturas administrativas estatais que

reproduzem o modelo colonialista. E a pergunte que cabe neste caso é: de fato são

países livres? Neste sentido a importância dos apontamentos de Sartre, Fanon e

Guevara funciona como um livro de memória que colaboram sistematicamente no

processo de reflexão da sociedade atual.

Bibliografia

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978.

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010. GUEVARA, Ernesto. Obras Escogidas (1957-1967). Habana: Editorial de Ciencias

Sociales, 2001. HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo: desde 1780 – Mito e Realidade. São Paulo:

Editora Paz e Terra, 1990. KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra - Vol. 2. Viseu: Biblioteca Universitária,

1972.

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KWAME, Anthony Appiah. Na casa de meu pai – a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 1997.

LINHARES, Maria Yedda. A luta contra metrópole. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

SARTRE, Jean-Paul. Colonialismo e Neocolonialismo – Situações, V. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.

Artigo recebido em: 29 de Março de 2015 Artigo aprovado em: 25 de Abril de 2015