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4º CONGRESSO DE PESQUISA DO ENSINO -
SINPROSP
A EMERGÊNCIA DE MOVIMENTOS SOCIAIS DENTRO DA FENOMENOLOGIA DA ‘DESRAZÃO’
Autor: Gilberto Miranda Junior (Graduando em Licenciatura em Filosofia)
Docente Responsável: Suely Benati de V. Mendes Cruz
Modalidade: Comunicação Científica
Eixo Temático: O espaço urbano e os movimentos sociais
Resumo
A presente comunicação traça um paralelo entre a emergência dos movimentos sociais no sec. XXI e aquilo que o autor define como ‘desrazão’ na modernidade a
partir da prevalência da racionalidade instrumental como fenômeno refratário ao ideário iluminista e consolidado no neoliberalismo. Tem por base a percepção social-empírica do recrudescimento da polarização entre os atuais movimentos
urbanos e a resistência interna de um discurso pré-fascista conservador e reacionário na atualidade, analisando os caminhos percorridos pela desrazão no domínio das relações sociais, seu imbricamento com o advento da hegemonia do
capitalismo sob a matriz liberal e a organização da sociedade burocrática através dos conceitos de alienação e razão instrumental. No caminho são caracterizadas algumas personagens emergentes nesse contexto sob a perspectiva do pessimismo frankfurtiano e da alternativa de Habermas quanto à razão
comunicativa, aliada à micropolítica deleuziana enquanto resistência, desobediência, rebelião e devir transformador. Por fim procura compor um quadro prospectivo dos atuais movimentos sociais sob a categoria sociológica do ‘Outro
dos Outros’. Esta comunicação tem por base o trabalho de conclusão do curso (TCC) de Licenciatura em Filosofia do autor entregue sob o título Prolegômenos para uma Fenomenologia da Desrazão, onde o enfoque é o desenvolvimento de
conceitos para uma posterior articulação de uma Teoria Crítica Social.
Palavras-Chave
Modernidade, Capitalismo, Razão, Teoria Crítica, Desrazão.
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Problema
Instaurou-se, desde a hegemonia do neoliberalismo, uma crise de representatividade do Estado Nacional e suas instituições: sistema de ensino,
partidos políticos, organizações da sociedade civil, sindicatos e etc. Ao mesmo tempo em que, possivelmente, uma “Nova Esquerda” surge no seio dos novos movimentos sociais antiglobalização, assistimos o recrudescimento de um discurso conservador, reacionário e com elementos pré-fascistas que ocupa espaço nessa
crise de representatividade, tem origem nas camadas médias da população e arregimenta adeptos de outras classes para confirmação do sistema capitalista como superior ética e esteticamente enquanto forma de blindagem a qualquer
crítica possível. Diante de uma esquerda acuada e descaracterizada dentro das instituições, a luta por direitos das classes menos privilegiadas fica à mercê de ações pontuais, populistas e sujeitas à permissão do capitalismo que tem o Estado
como aparelhamento para seu predomínio hegemônico nas relações sociais.
Constata-se que a matriz teórica habermasiana se torna insuficiente para explicar a possibilidade da ação comunicativa enquanto resistência e rebeldia no
Mundo da Vida em relação ao Sistema, a despeito dos novos movimentos sociais deste século.
O problema enfrentado por essa pesquisa centra-se na tentativa de
articulação de uma matriz teórica que explique razoavelmente de que forma o tecido social, sedimentado por uma racionalidade instrumental determinada de forma heteronômica pela burocracia e sua coercitiva exigência da alienação humana, ainda sofre rupturas na emergência desses movimentos. Esse fato se
torna mais problemático na medida em que, enquanto sociedade pós-industrial, a estética capitalista se disseminou para além do mundo das fábricas e se expandiu na mercantilização do Mundo da Vida, revogando a distinção entre Modernidade
Social e Cultural (conceitos habermasianos) e tornando a estética da produção e do mercado na própria ética das relações humanas. Alia-se a esse fato, a percepção empírica de categorias sociológicas que se conflitam dentro da
sociedade com discursos específicos e próprios.
Objetivos
O objetivo mais geral da pesquisa a ser apresentada centra-se na tentativa de um diagnóstico para a situação histórica atual, traçando um paralelo entre a emergência de novos movimentos e manifestações sociais no seio da sociedade
burocrática capitalista e a resistência acrítica de movimentos reacionários e pré-fascistas, seus elementos comuns, díspares e contextualizados na crise de representatividade institucional do sistema.
O objetivo específico é buscar a articulação de pensamentos que confirmem esse diagnóstico e o explique de forma a abrir um caminho para a construção de uma nova Teoria Crítica Social.
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Metodologia
O trabalho tem como metodologia a revisão bibliográfica dirigida ao encontro do problema exposto, buscando a caracterização do surgimento do ideário liberal
no período iluminista e o predomínio da razão instrumental como meio de eficácia para a hegemonia do capitalismo como sistema de produção e infraestrutura das relações sociais. Posteriormente é caracterizado o conceito de “desrazão” enquanto episteme social oriunda da razão instrumental, bem como articulado
algumas categorias sociológicas que descrevem empiricamente o que o autor denominou de “Homem Normal”, os “Outros” e o “Outro dos Outros”. A partir dessa última categoria, procura-se traçar as características dos novos movimentos
sociais do século XXI. São utilizados conceitos a partir da Teoria do Agir Comunicativo de Jürgen Habermas e o conceito de Razão Instrumental de Horkheimer, caracterizado na definição de burocracia em Max Weber. Busca-se
auxílio na leitura de Gilles Deleuze em seu conceito de devir-minoritário, além das ideais de Foucault acerca do poder enquanto fluxos e agenciamentos. Outros autores são usados como suporte para as articulações principais merecendo
destaque Karl Marx e pesquisadores nacionais através de artigos que se aprofundam em pontos específicos tratados.
Esboço de Fundamentação Teórica
A razão redentora iluminista e o liberalismo econômico
A modernidade se inicia sob o signo da emancipação humana. A própria ideia de conhecer passa a significar domínio da realidade e de si próprio e,
consequentemente, emancipação e autonomia. Essas ideias ganham, no período Iluminista, um estatuto moral, político e social. O Iluminismo é um fenômeno de classe que inaugura uma razão que justifica a luta por autonomia e traduz o
sentimento da burguesia ávida por libertar-se das determinações do mercantilismo dentro de regimes autoritários.
O uso da razão no iluminismo significa não só a emancipação humana, mas também a construção consciente do próprio progresso da humanidade enquanto
civilização. É importante pontuar que a filosofia até então se circunscrevia em uma teoria objetiva da razão (HORKHEIMER, 2007), o que equivale a dizer que a razão, em todos os seus aspectos, nos servia para a construção de um fim; uma
conciliação entre seu aspecto objetivo e subjetivo na construção de uma perspectiva ou cosmovisão objetiva. O aspecto mediador da razão na construção dos meios para se chegar aos fins se constituía na práxis racional como dedução
consequente da sua causa final: um Télos pelo qual todo um edifício de pensamento teria sido erigido tendo a humanidade como sua causa eficiente e final. Por dedução toda causa final (razão objetiva) requer uma deontologia como
aparelhamento da razão subjetiva.
Abrem-se aqui duas questões. A primeira diz respeito à razão subjetiva. Se
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até então a razão do sujeito se tornaria afim com um télos objetivo que se abriria
via esclarecimento, por que os fatos históricos estariam negando essa filiação? Para essa questão Horkheimer nos esclarecer que a razão subjetiva:
Relaciona-se essencialmente com meios e fins, com a adequação de
procedimentos a propósitos mais ou menos tidos como certos e que se
prescrevem autoexplicativos. Concede pouca importância à indagação de
se os propósitos como tais são racionais. (HORKHEIMER, 2007, p. 9-10)
A segunda questão, imbricada com a primeira, refere-se ao deslumbre dos avanços científicos e tecnológicos como prova cabal da capacidade e poder emancipatório da humanidade. A crença nessa afinidade teleológica entre a ideia
de um bem para todos os seres humanos e para o planeta (uma razão objetiva) e a existência singular humana (sua razão subjetiva) constitui-se no grande equívoco iluminista. A liberdade não parece ser condição suficiente (embora
necessária) para a autonomia e, tampouco, a autonomia também não parece ser condição suficiente (embora também necessária) para um pensamento ‘cidadanista’ e preocupado com o bem da humanidade como um todo.
A apologia generalizada ao cientificismo e à técnica, própria do iluminismo, gera a necessidade de tornar a economia uma ciência e uma técnica, dando origem a duas escolas que tem como fim um mesmo empreendimento esclarecedor e que inaugurarão o Liberalismo Econômico: a Escola Fisiocrata em
França, cujo maior representante é Quesnay, e a Escola Clássica na Inglaterra, iniciada com a obra do escocês Adam Smith (amigo de Hume), ambas no séc. XVIII e que seguem o modelo indutivista baconiano em que procuram extrair leis
gerais da realidade particular numa praxeologia que justificasse as reivindicações e aspirações da burguesia.
Sob duas noções básicas; a de “Ordem Natural” e a de “Ordem Providencial”,
a escola fisiocrata francesa ganha adeptos e prestígio. A Ordem Natural se dá pela ideia de que a economia é regida por Leis Naturais tais como a própria Natureza, sendo seu corolário1. Concomitante à Ordem Natural desenvolve-se a noção de
Ordem Providencial cujo fundamento é a de que a Ordem Natural seja uma providência divina, ou seja, ela é “desejada por Deus para a felicidade dos homens” (HUGON, 1980, p. 94). Dentro dessa escola e com base nessas noções,
nascem duas proposituras que perdurarão por toda história ocidental e se constituíram as bases do liberalismo econômico: a propriedade privada e a liberdade individual.
A Escola Clássica iniciada com Adam Smith e continuada por diversos
pensadores, ultrapassa a Escola Fisiocrata e prevalece como a base de toda Economia Política feita depois. A inovação de Smith está em estabelecer como atividade produtiva o trabalho e não, por si só, a produção agrícula, mudando
toda a concepção de geração de riqueza. Porém não é somente o trabalho, mas
1 Quesnay, em seu “Tableau Economique” constrói sua teoria de fluxo de rendas com base
na descoberta, em 1628 por Harvey, acerca da circulação do sangue no organismo humano
(HUGON, 1980).
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sua eficiência. Smith atribui à produtividade, a partir da divisão do trabalho2, a
causa da riqueza e prosperidade das nações. Duas dimensões ideológicas se abrem aqui no mascaramento do que parece constituir o conceito de Alienação nos textos críticos e posteriores de Marx: a ideia de que a divisão de trabalho na
produção promove a solidariedade entre os homens e a ideia de que essa solidariedade e necessidade mútua seja fiadora da paz entre as nações (HUGON, 1980). A partir desses conceitos o raciocínio de Smith se estabelece em uma
digressão que desemboca no imperativo do interesse privado como construtor da riqueza, da paz e da realização humana no exercício de sua liberdade individual. Ao mesmo tempo em que Smith se desfaz da metafísica fisiocrática com seus
ordenamentos providenciais, cria uma outra metafísica que estabelece uma harmonia espontânea entre os interesses privados e coletivos, o que ele veio a chamar, metaforicamente, de Mão Invisível.
Foi assim que a ‘desrazão’ instalou-se no seio da Modernidade: a ligação
‘desrazoável’ entre a ideia do homem autônomo, liberto e emancipado construído pelo iluminismo no plano do idealismo e a realidade concreta do homem entregue tão somente a uma racionalidade subjetiva e instrumental. O caráter apenas
ideológico dessa ligação foi traduzida por Max Weber quando este correlaciona a ética protestante com o espírito do capitalismo. Claramente o que esteve em causa nessa configuração foi a ideia de que a salvação é individual e,
principalmente, a ideia de que os homens eram justos (ao contrário do que acreditava e propagava a Igreja Católica) pela fé e não pelas obras. A condenação estava no relaxamento advindo da riqueza, no ócio, no sensualismo e na tentação
da vida social vã, mas não na riqueza em si:
(...) o trabalho é o velho e experimentado instrumento ascético,
apreciado mais do que qualquer outro na Igreja do Ocidente, em
acentuada contradição não só no Oriente mas também com quase todas
as ordens monásticas do mundo. (WEBER, 1999, p. 112-113)
É possível, por fim, inferirmos com certa segurança que a emergência da
classe burguesa ao se apropriar da concepção política libertária do iluminismo, não incorporou sua dimensão laica e autônoma, mas por outro lado, apropriou-se (muito provavelmente de forma conveniente) de uma outra dimensão ética que
individualizasse as relações sociais e recrudescesse a prevalência do interesse privado.
A razão instrumental, burocracia e alienação
Assistimos, historicamente, o pensamento iluminista na construção de Estados Nacionais Democráticos, porém sendo formados como função
estritamente legitimadora dos interesses da classe burguesa. Só a essa classe, portanto, caberia a escolha do esclarecimento para a redenção da humanidade nos moldes iluministas, mas sistematicamente não a fez, pois escolhe acreditar,
convenientemente, que a defesa de seus interesses privados imediatos e
2 Antecipa, assim, os estudos de Taylor e Fayol na administração científica.
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individuais, somados a dos outros de sua classe, promoveria sua própria salvação
e, marginalmente e por si só, o bem estar coletivo.
Um novo modelo de estado baseado na defesa incondicional da propriedade privada e na liberdade individual concilia o ideário iluminista aos interesses
burgueses, dando salvo conduto para que a divisão de classes torne a sociedade mais eficiente, assim como a divisão do trabalho tornara a produção mais eficiente segundo os princípios smithianos.
Caracteriza-se, finalmente, o que Horkheimer definiu como Razão Instrumental: a razão subjetiva que perde seu contato e o compromisso com a razão dos fins, o considera dado e racional por si só, e se entrega à máxima
eficiência dos meios. Aliada à ciência e à técnica, passa a ser controlada por elas e já não questiona para onde está indo, mas se atenta em sua máxima eficiência de onde está; buscando sua autoconservação a todo custo. Analítica, cartesiana, a razão instrumental:
(...) substitui a Lei pela regra e a regra pela fórmula, para o
funcionamento automático do pensamento; criando um princípio de
realidade que reduz todos os aspectos da vida à autoconservação,
impondo o reino da necessidade como medida e conteúdo da vida do
espírito. (MATOS, 2010, p. 157)
Não é por outro modo que o ser humano se aliena ‘voluntariamente’ para o
trabalho no capitalismo3. Max Weber vê a burocracia como um sistema de poder com características bem específicas (LOPES, 1973): a) a existência de princípios de competências que dão autoridade ordenada segundo regras fixas estatutárias; b) a existência de uma hierarquia definida de funções com diferentes níveis de
autoridade; c) a documentação de toda atividade burocrática; d) formação profissional intensa em que ao mesmo tempo em que se aprende a função, também se aprende a estrutura burocrática vigente (especialização técnica); e) A
absorção da vida do funcionário pela função que ele exerce.
A racionalização do trabalho implica na divisão das atividades e na burocracia como estrutura de poder coercitivo para se conseguir a máxima eficiência, o que,
por outro lado, também caracteriza o próprio mundo moderno:
(...) em Weber a expansão atual da burocracia é uma marca do
movimento de racionalização do mundo moderno. Refira-se que a
racionalidade é para Weber definida ao nível dos comportamentos e
considerada do ponto de vista do ator. (LOPES, 1973, p. 57)
Ou seja, se problematizarmos aristotelicamente a produção de mercadoria
como causa final, teremos na alienação sua causa formal, na burocracia sua causa material e na razão instrumental sua causa eficiente. Promove-se, sistematicamente, a desrazão a serviço do sistema e a submissão humana aos
3 Marx destaca em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos quatro tipos de alienação
envolvidos no trabalho capitalista: a alienação do trabalhador em relação ao produto do seu
trabalho (alienação da coisa), a alienação do trabalhador em relação ao seu trabalho, sua atividade
(autoalienação), a alienação do trabalho em relação a sua condição humana (alienação de
espécie), a alienação do trabalhador a outro homem (submissão) (SERRA, 2008).
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interesses privados de poucos agentes sociais que detém a prerrogativa de formar
e controlar as instituições sociais (altamente burocráticas) que reforçam coercitivamente toda uma base moral e ideológica que mantém o ser humano em cativeiro, mas repetindo, inadvertidamente, que gozam da mais plena liberdade e
autonomia em seus atos.
Por outro lado, é importante frisar, as alternativas sistêmicas históricas com base no marxismo não ofereceram nem de longe a construção da autonomia do
homem e sua responsabilização pela construção da vida social, estabelecendo a mesma razão instrumental, alienação e controle burocrático da vida na submissão compulsória de sua humanidade a favor de um Capitalismo de Estado:
O desenvolvimento soviético confirmou de maneira geral a prognose de
Max Weber de uma burocratização acelerada, e a práxis stalinista
confirmou de maneira sangrenta a crítica de Rosa Luxemburgo à teoria
da organização de Lênin e a seus fundamentos histórico-objetivistas.
(HABERMAS, v. I, 2012, p. 630-631)
O Predomínio da Desrazão
Não é mais tão somente o trabalhador que produz quem é alijado das razões que o levam a se tornar instrumento alienado de forma heteronômica e nem é tão
somente ele quem doa sua humanidade para o sistema em troca de autoconservação, mas a própria sociedade como um todo (obviamente formada em grande parte por esses mesmos trabalhadores) se encontra colonizada pelo sistema, impelida ao consumo, ao descaso e à conveniência do uso predatório de
recursos, sem participar ou sequer ter consciência do que fazem ao mundo e suas consequências. A evolução da ciência e da tecnologia apropriadas pelo interesse do capital ultrapassa nossa capacidade de entender suas consequências, no
entanto somos parte ativa desse processo.
Destarte, se definirmos a razão como a faculdade humana capaz de promover nossa emancipação e a consciência de nossa importância como espécie
para o bem do planeta que nos abriga, o único conceito para o predomínio da razão de meios, da razão instrumental e da alienação voluntária a que nos submetemos, chama-se Desrazão. Não é, portanto, pela e na desrazão que o
homem se libertará daquilo que construiu ou permitiu que se construísse para seu próprio cativeiro e determinação. Enquanto Lukács insiste na teoria de reificação marxista e Adorno e Horkheimer a radicalizam “por um viés sociopsicológico, com
a intenção de esclarecer a estabilidade das sociedades capitalistas sem ter de abandonar a abordagem pautada pela crítica do fetichismo da mercadoria” (HABERMAS, v.1, 2012, p. 640), Habermas procura outra saída. Por considerar as posições destes, de certa forma, deterministas, Habermas admite que as
deformações do mundo da vida na sociedade capitalista se deem a partir “de uma reificação de relações comunicativas” (HABERMAS, v.2, 2012, p. 694), mas preserva a ‘saída’ via razão comunicativa pela forma ambivalente instrínseca da
colonização do mundo da vida via comunicação de massa e indústria cultural.
Os críticos da modernidade em geral definem o ser humano atual a partir da
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emergência histórica de um ser desorientado, sem fé (o que não significa sem
religião), mas desorientado existencialmente para sua autoconstrução. Na emergência desse ser, dificilmente na alternativa dada por Habermas em seu conceito de Razão Comunicativa haveria alternativas racionais para sairmos da
situação civilizatória em que estamos. A questão é que os críticos da modernidade, aos quais Habermas dirige seu contraponto, postulam uma desorientação quando, na verdade, há uma orientação sistemática e dirigida,
institucional e pedagógica para uma existência enfurnada na e para a legitimação metafísica de um sistema que nunca foi de produção, mas de acumulação privada da produção social e produtor de fetiches. E isso, irrevogavelmente, condiciona a
própria racionalidade comunicativa ao invés de se colocar sob risco com ela, com ambivalência ou não.
Portanto, uma sociedade que, ao invés de desorientada pelo sistema (como acreditam), na verdade é orientada e coercitivamente determinada para servi-lo
em todos os seus aspectos, sofre de uma rigidez quase intransponível (e vemos seu recrudescimento a cada década), mesmo ela própria estando em crise. Afinal, a própria crise já se incorporou no modus operandis do sistema e não altera
substancialmente o “homem normal”, conservador e eventualmente reacionário.
Esse Homem Normal não tem nada de desorientado como querem ou precisam entendê-lo. Ele é sistematicamente orientado desde seu nascimento ao
receber um ‘kit’ básico de verdades, valores e tendo seu comportamento legitimado pela coletividade a que pertence. Os axiomas que regulam sua existência são reforçados pelo sentimento de pertencimento e pela discriminação
compulsória de todo aquele que não se encaixa nesses axiomas; tidos como anormais. Seus problemas existenciais estão reduzidos às dimensões práticas que reforcem ou não seu modo de vida, cujo norte é o favorecimento ou não do
grande sistema metafísico a que pertence e que ele tem como único refúgio para sua autoconservação e possibilidade de sucesso. Sua crença acrítica na chamada ‘meritocracia’ e a atribuição ideológica de que todo aquele que critica seu modo de vida é incompetente ou preguiçoso, lhe dão a segurança necessária para legitimar
cada vez mais seu preconceito e seu comportamento discriminatório com todos os tipos de minorias. Esse Homem Normal jamais luta para mudanças, luta para conservar o que tem ou reagir ao que pensa ter perdido: tudo o que pensa ser
seu por direito e/ou mérito. Ele se pauta pela falta, pela conservação e, por isso reage e nunca se expande, nunca transborda, apenas explode. Esse homem, embora possa estar proletarizado, oscila entre a apatia, autodestruição ou, não
raro, desenvolvendo elementos característicos do fascismo; tendo matado em si qualquer resquício revolucionário autêntico obliterado por sua racionalidade subjetiva e instrumental: a Desrazão Moderna.
Os desorientados somos nós, os Outros. É permitido que nos agrupemos em torno da noção de que enxergamos um pouco para além da instrumentalização, porém é preciso pontuar que ainda há o Outro dos Outros que falaremos mais
adiante. Nesse Outros há uma parcela dos próprios liberais, agora denominados ‘neoconservadores’: ainda creem em esferas distintas entre cultura e sistema econômico (na verdade torcem por isso), mas não pensam na superação do atual sistema que não seja pela força, a qual rejeitam peremptoriamente. Pregam
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terapêuticas igualmente distintas para a esfera da cultura: dos valores, da vida
urbana; e para a esfera econômica: do desenvolvimento e da política. Para eles, liberais ‘neoconservadores’ é preciso dar prosseguimento ao processo de desenvolvimento para a geração de condições econômicas e sociais que
minimizem os efeitos e corrijam os comportamentos antissociais. Acreditam no ‘Estado Mínimo’, mas diante da crise exigem dos governos intervenções vultosas e providenciais. Na sua versão à esquerda do espectro ideológico (sim, existem),
querem transferir a burocracia do setor privado para o Estado, eliminar a exploração privada e as liberdades individuais, mas mantém a mesma lógica em um Capitalismo de Estado que eles chamam, ainda, de Socialismo. Ou seja, estão,
mesmo que separados do Homem Normal, anda sob o predomínio da desrazão, da instrumentalização, da burocracia e da alienação.
Em um patamar estratosférico, mas dentro ainda desses Outros desorientados, aparecem aqueles inacessíveis, mas com acesso ao grande capital
global. Eles não comparecem a eventos com cobertura da mídia, mas contratam espetáculos, exposições e desfiles para apresentações privadas. Possuem ilhas particulares, compram fora do horário comercial e contratam detetives para
investigar patrimônios de vizinhos e candidatos a ‘amigos’:
Então, quais são seus contatos com o mundo geral? São de dois tipos:
negócios e filantropia (proteger o meio ambiente, combater doenças,
apoiar as artes, etc.). Esses cidadãos globais vivem em geral na natureza
mais pura, seja caminhando na Patagônia, seja nadando nas águas
translúcidas de suas ilhas particulares. Não podemos deixar de notar que
a característica básica desses super-ricos trancafiados é o medo: medo
da própria vida social externa. (ZIZEK, 2011, p. 17)
Esses fazem as regras, compram parlamentares, financiam campanhas partidárias, derrubam e manipulam a bolsa, possuem a mídia e o Estado na mão. Sabem muito bem que a esfera cultural é distinta da lógica sistêmica, mas
controlam com seus tentáculos a Indústria Cultural e o tempo livre das pessoas para que a lógica necessária se perpetue. Eles se constituem na causa eficiente da colonização. Sua desorientação está na base de suas vidas privadas, onde impera
a ganância, os golpes, as negociatas e os conchavos, inclusive entre familiares.
Obviamente que o espectro é longo e com várias outras personas dignas de nota, subgrupos e variantes, mas por hora essas caracterizações são suficientes.
Agora sim nós, o outro dos outros (Os Movimentos Sociais)
Nós, o Outro dos Outros, embora tenhamos consciência da distinção entre as
esferas, sabemos não ser possível, enquanto práxis, separar a esfera da cultura do sistema. Sabemos que não há terapêuticas distintas possíveis. Entendemos o quão integrado e monolítico cada vez mais o mundo da vida se torna via colonização
pelo sistema. Sabemos que a perda dos valores culturais e a desorientação que recrudesce a agressividade do reacionário e nos ameaça com o fascismo vem da própria forma de ser do sistema. Sabemos que, apesar dos inúmeros esforços
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empreendidos há pelo menos dois séculos e meio para entender o sistema, não
houve logro nem em entendê-lo, muito menos em superá-lo. Corremos o risco, como nos alerta Zizek, de assistir o “homem normal” perdendo o mapeamento cognitivo e abrir-se uma franca disputa sobre qual interpretação irá vencer, o que,
em geral, faz com que a explicação mais emocional prevaleça: “nunca esqueça que foi assim que Hitler venceu” (ZIZEK, 2009).
Nós, o Outro dos Outros, nos compomos em devir-minoritário. O que
equivale a dizer com Deleuze que somos oposição criativa à maioria que se constitui duplamente na sociedade enquanto ‘constante’ e ‘referência’, ao passo que somos ‘variável’ e ‘devir’. Só aparecemos como variável, nunca como
constante. Somos os proscritos, os anormais:
(...) a maioria, na medida em que é analiticamente compreendida no
padrão abstrato, não é nunca alguém, é sempre Ninguém — Ulisses —,
ao passo que a minoria é o devir de todo o mundo. (...) É por isso que
devemos distinguir: o majoritário como sistema homogêneo e constante,
as minorias como subsistemas, e o minoritário como devir potencial e
criador, criativo. (DELEUZE e GUATTARI, v. 3, 1995, p. 44-45)
Não entendemos o poder como posse, mas sim como estratégia, como
exercício. Portanto ele pode ser desafiado e disperso na atuação em devir-minoritário, pelo exercício do empoderamento político. A ideologia hipertrofiada em relação à sua vivência concreta é substituída por lutas locais e pontuais
puxando a ideologia à reboque em constante autocrítica. Não se trata de considerar, portanto, um poder centralizado e global concentrado no Estado ou em Partidos ou Sindicatos, mas considerar o Estado como “efeito de uma
multiplicidade de focos de poder” (CARDOSO JR, 2012, p. 158), agenciado atualmente por interesses privados e corporativos que disciplinam e controlam os corpos e a vida em benefício próprio. A luta é contínua e não institucionalizada. É
contra todas as formas de aprisionamento da vida, portanto, contra a ordem privada de aparelhamento do Estado que se coloca contra a liberdade e a verdadeira função do Estado como emergência de fluxos minoritários.
Enquanto Habermas critica o pessimismo determinista frankfurtiano e, ao
mesmo tempo, oferece a possibilidade emancipatória da razão comunicativa sempre a partir de ‘possibilidades’ da resistência do poder manipulativo dos meios de comunicação de massa, curiosamente desdenha a efetividade da emergência
espontânea dos novos movimentos sociais, reduzindo-os à tese de colonização do mundo da vida4.
Dessa forma é em Deleuze que poderemos encontrar uma alusão que dê
corpo e esclareça a fenomenologia de uma mudança efetiva a partir dessa categoria sociológica do Outro dos Outros. Além de sua caracterização a partir do conceito de devir-minoritário, encontramos no conceito de Corpo Sem Órgãos uma
problematização que vai ao encontro da fenomenologia empírica aqui aludida:
4 Ver HABERMAS, v.2, (2012, p. 698-725). Embora Habermas reconheça a chamada
‘Revolução Silenciosa’ aludida por Inglehart e assuma uma pauta a esses movimentos que
transcende as questões de distruibuição, localizando-os em “questões envolvendo a gramática de
formas de vida” (ibidem, p.706), ainda assim os colocam como fruto da colonização do sistema.
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O plano de consistência seria, então, o conjunto de todos os CsO, pura
multiplicidade de imanência, da qual um pedaço pode ser chinês, um
outro americano, um outro medieval, um outro pequeno-perverso, mas
num movimento de desterritorialização generalizada onde cada um pega
e faz o que pode, segundo seus gostos, que ele teria conseguido abstrair
de um Eu, segundo uma política ou uma estratégia que se teria
conseguido abstrair de tal ou qual formação, segundo tal procedimento
que seria abstraído de sua origem.
(...)
Um platô é um pedaço de imanência. Cada CsO é feito de platôs. Cada
CsO é ele mesmo um platô, que comunica com os outros platôs sobre o
plano de consistência. É um componente de passagem.
(DELEUZE e GUATTARI, v. 3, 1996, p. 13-14)
Considerações Finais
Nesta última década assistimos novas formas de ativismo e de mobilização, justamente com as características que Deleuze nos aponta. Aliado às crises estruturais e reincidentes do modo de vida capitalista e à crise na representatividade dos partidos políticos e sindicatos institucionalizados no seio do
sistema (o que pode nos fazer concordar com Habermas como fenômenos próprios da colonização do Mundo da Vida), assistimos a emersão de movimentos que não apenas desafiam os fluxos de poder que legitimam o sistema, como o
próprio sistema e toda a lógica que o sustenta. O próprio nome ‘movimento’ já se opõe ao de ‘organização’. Vemos reuniões espontâneas e descentralizadas, instâncias decisórias que praticam a democracia direta e a horizontal idade em um
resgate inusitado dos ideais da Liga de Spartacus de Rosa Luxemburgo no sec. XIX. Essa versão, no entanto, que não se filia a nenhuma consciência de classe difusa ou ideológica, mas a agendas objetivas de transformações concretas que
agenciam esforços e motivações, independente da origem de seus membros. Nesses movimentos, sem lideranças ou essências ideológicas, é a práxis e a objetividade o seu modo de ser, o que proporciona aquilo que admirou Foucault na
revolta dos estudantes na Tunísia em 1968 e o que o fez compara-la com os movimentos de Paris no mesmo ano (CARDOSO JR, 2012).
O Fórum Social Mundial, não sendo fórum deliberativo, reúne os movimentos sociais espalhados pelo mundo como platôs na discussão de agendas e ações
comuns que podem ser articuladas a favor daquilo que cada um luta em seus locais, preconizando um pensamento global ‘desideologizado’ com ações políticas locais. Essas ações em conjunto com os chamados ‘Occupy’ estão se
transformando no que estão começando a chamar de ‘Altermundialismo’, que é uma alternativa à globalização através do coletivismo e cooperativismo contra as políticas neoliberais e o capitalismo. Os próprios movimentos no interior (do
movimento) criam pautas, agendas e autocrítica constante, tornando-o dinâmico e democrático: devir-minoritário e corpos-sem-órgãos.
Conclui-se que os conceitos de devir-minoritário, CsO e razão comunicativa
estão no bojo da formação desses movimentos, ao passo que sua categoria
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sociológica oposta tem na identidade e na autoconservação uma convergência na
revolta, mas uma oposição no modo de existência e adequação ao sistema. Por fim, conclui-se também a importância da continuidade dessa pesquisa em direção à caracterização desses movimentos à luz dos conceitos elencados, procurando as
bases para uma nova Teoria Crítica Social que supere as aporias existentes e não veja o atual momento de resistência e ativismo social como subproduto da colonização do mundo da vida e nem mero prenúncio de uma deontologia para
uma razão comunicativa enquanto projeto de modernidade.
Bibliografia Consultada
CARDOSO JR, H. R. Ontopolítica e Diagramas Históricos do Poder - Maioria e Minoria
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