4as o anjo perdido - planeta · homens eram formosas, ... deixando ver uns feios papos de cor ......

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Javier Sierra O Anjo Perdido António Carlos Carvalho Tradução 4as O Anjo Perdido.indd 5 11/10/03 15:39:43

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Javier Sierra

O Anjo Perdido

António Carlos CarvalhoTradução

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«… E vendo os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram para si esposas entre todas as que mais lhes agradaram. Disse então o Senhor: “O meu Espírito não perma-necerá no homem para sempre; posto que ele é carnal, serão os seus dias cento e vinte anos.”»

Génesis, 6, 2‑3

Qui non intelligit, aut taceat, aut discat.(Quem não compreender, que se cale ou que aprenda.)

John Dee (1527‑1608)

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Doze horas antes

O enorme ecrã de plasma do gabinete do director da Agência Nacio- nal de Segurança iluminou-se enquanto as persianas eléctricas escure-ciam a sala com um zumbido suave. Um homem bem vestido, de aspecto impecável, aguardava atrás de uma mesa de mogno que o todo--poderoso Michael Owen lhe explicasse por que o tinha feito vir a toda a velocidade de Nova Iorque.

– Senhor Allen – disse com voz áspera o gigante negro, cravando o seu olhar nele. – Agradeço que tenha vindo encontrar-se comigo com tanta presteza.

– Suponho que não tinha escolha, senhor – respondeu.Nicholas L. Allen era um agente experiente naquelas jogadas.

Há duas décadas que se movimentava com razoável agilidade na floresta burocrática de Washington DC e contavam-se pelos dedos de uma mão as vezes que tinha posto o pé naquele gabinete. Se o director Owen o tinha convocado para o seu covil em Fort Meade, Maryland, era porque se aproximava uma crise. E das grandes. Comparecer rapidamente era o mínimo que podia fazer.

– Vai ver, coronel Allen – prosseguiu Owen. Os seus olhos ainda o perscrutavam com severidade. – Há seis horas a nossa embaixada em Ancara enviou-nos o vídeo que lhe quero mostrar. Peço-lhe que se concentre em todos os pormenores e que partilhe comigo as suas impressões quando acabar de o ver. Fará isso?

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– Claro que sim, senhor.Nick Allen tinha sido treinado para isso. Para obedecer aos seus

superiores sem opor resistência. Tinha o perfil do soldado perfeito: compleição robusta, quase um metro e oitenta e cinco de altura, rosto quadrado, sulcado por uma ou outra marca feia de combate e um olhar azul que podia ir desde a infinita bondade à fúria mais impiedosa. Dócil, reclinou-se na sua poltrona e aguardou que o ecrã de barras multicores desaparecesse para mostrar a sua primeira imagem.

O que viu fê-lo estremecer.Sentado num quarto cheio de fendas e manchas na parede, aguardava

um homem manietado e com a cabeça coberta por um capuz. Alguém o tinha vestido com um fato-macaco cor de laranja como o das prisões federais dos Estados Unidos. No entanto, os indivíduos que se movimentavam à sua volta estavam muito longe de parecer norte- -americanos. Allen distinguiu dois, talvez três tipos vestidos com jilabas, que escondiam as suas caras atrás de passa-montanhas negros. Fronteira entre a Turquia e o Irão, calculou em silêncio. Talvez Iraque. As imagens da câmara permitiram-lhe reconhecer seguidamente vários grafitos escritos em curdo, impressão que se confirmou quando os ouviu falar. O vídeo tinha uma qualidade razoável, apesar de ter sido filmado com uma câmara de amador. Talvez com um telemóvel. Uma frase mais daqueles tipos foi- -lhe suficiente para identificar a sua procedência. Fronteira com a Arménia, concluiu. Além disso, dois deles tinham ao ombro as respectivas AK-47 e à cintura grandes facas de lâminas curvas, típicas daquela região. Não lhe chamou demasiado a atenção que fosse o operador de câmara quem estava a dirigir a cena. Nem sequer que falasse com o refém num inglês com um sotaque rude que tantas vezes escutara no Noroeste da Turquia.

– Está bem. Agora diga o que deve dizer – ordenou.O prisioneiro remexeu-se ao sentir que umas mãos fortes lhe agar-

ravam o pescoço e o viravam rudemente na direcção da objectiva, enquanto lhe arrancavam o capuz.

– Diga!O homem no ecrã vacilou. Tinha mau aspecto. Barba desleixada.

Cabelo revolto e uma cara suja, definhada e com a pele queimada pelo sol. Nick Allen estranhou não poder vê-lo melhor. A luz era fraca.

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Possivelmente vinha de uma única lâmpada. E apesar de tudo algo naquele perfil lhe parecia familiar.

– Em nome das Forças de Defesa Populares… exijo ao governo dos Estados Unidos que deixe de apoiar o invasor turco – disse então num inglês perfeito. Uma erupção de gritos elevou-se por detrás dele.

– Continua, cão! O pobre homem, que Allen não conseguia identificar, apesar de

se concentrar em cada um dos seus gestos, estremeceu. Balançou o corpo para a frente, mostrando as suas mãos atadas à câmara. Tinha diversos dedos enegrecidos, talvez congelados, e pareciam segurar um pequeno objecto. Uma espécie de pendente opaco, de aspecto irregular, pouco atraente, que fez com que os olhos de Nick Allen se arregalassem.

– Se querem resgatar-me com vida, façam o que eles pedem – disse, como se uma tristeza infinita se tivesse instalado na sua garganta. – A minha vida… A minha vida vale a saída das tropas da NATO de um perímetro de duzentos quilómetros em torno de Agri Daghi.

– Agri Daghi? Só isso? Não pedem resgate?Allen viu como os dois homens que estavam atrás do prisioneiro

voltavam a gritar em curdo. Pareciam muito excitados. Um deles chegou inclusive a sacar a sua adaga e a agitá-la em volta do pescoço do prisio-neiro como se fosse esfaquiá-lo ali mesmo.

– E agora preste bem atenção – sussurrou Owen.O coronel esfregou o nariz e esperou que o vídeo avançasse.– Diga o seu nome!A nova ordem do operador de câmara não o apanhou de surpresa.

Tinha visto demasiadas vezes cenas como essa para saber o que vinha a seguir. Depois de obrigarem o refém a identificar a sua unidade militar, o posto ou a procedência exacta, iriam aproximá-lo da objectiva para que não ficasse dúvida alguma acerca da sua identidade. Se nesse momento o prisioneiro carecesse de interesse, deixá-lo-iam chorar e desesperar enquanto se despedia da sua família e, logo a seguir, obrigá-lo-iam a bai-xar a cabeça para o degolarem. Os mais afortunados acabariam a sua agonia com um tiro de misericórdia. Os que não o fossem, expirariam e esvair-se-iam em sangue até morrerem.

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Mas aquele homem devia ter um grande valor. Michael Owen não o teria chamado se não fosse assim. Afinal de contas, Nick Allen era um perito em operações especiais. No seu currículo figuravam missões de resgate na Líbia, Usbequistão e Arménia, e fazia parte da unidade mais discreta da Agência. Era isso o que queria dele o seu director? Que o trouxesse de volta ao gabinete dele?

O vídeo rugiu de novo:– Não me ouviu? – disse o operador. – Diga o seu nome!O prisioneiro levantou os olhos, deixando ver uns feios papos de cor

roxa e uma fronte dilacerada.– Chamo-me Martin Faber. Sou cientista…O todo-poderoso Michael Owen parou então o vídeo. Tal como

esperava, Allen tinha ficado mudo de espanto.– Compreende agora a minha urgência, coronel?– Martin Faber…! – resmungou Allen, mexendo o seu maxilar de

um lado para o outro, sem querer acreditar. – Pois claro!– E isso não é tudo, coronel.Owen ergueu no ar o comando à distância, traçando um círculo em

torno da imagem paralisada daquele indivíduo.– Viu o que ele segura nas mãos?– É… – O fiel militar esboçou um gesto de profunda inquietação.

– É o que eu imagino, senhor?– Sim, é.Nick Allen franziu os lábios como se não acreditasse no que via.

Aproximou-se o mais que podia do ecrã e olhou com mais atenção.– Se não me engano, senhor, essa é apenas uma das pedras de que

necessitamos.Um brilho malévolo lampejou nos olhos do enorme gorila que dirigia

os desígnios do serviço de informações mais poderoso do mundo.– Tem razão, coronel – sorriu. – A boa notícia é que este documento

revela, sem querer, o paradeiro da que falta.– A sério?– Preste bem atenção, por favor.Michael Owen apontou o comando à distância para o ecrã e accio-

nou-o. A figura escanzelada de Martin Faber voltou a mexer-se como

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por artes de magia. Os seus olhos azuis tinham-se tornado ainda mais aquosos, como se estivesse prestes a desfazer-se em lágrimas.

– Julia – sussurrou. – Talvez não voltemos a ver-nos…– Julia?Ao apreciar a careta de satisfação do seu homem mais capaz,

o director da Agência Nacional de Segurança sorriu. O vídeo ainda não tinha terminado quando a ordem dele se infiltrou no cérebro do seu melhor agente, ocupando o primeiro lugar na sua lista de prioridades:

– Encontre-a, coronel. Imediatamente.

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Capítulo 1

Por alguma estranha razão tinha gerado a ideia de que no dia em que morresse a minha alma soltar-se-ia do corpo e, leve, subiria às alturas. Estava convencida de que, uma vez aí, guiada pela sua irresistível força de atracção, seria arrastada para o rosto de Deus e poderia olhá-lo nos olhos. Nesse instante compreenderia tudo. O meu lugar no Universo. As minhas origens. O meu destino. E até mesmo porque a minha percepção das coisas era tão… singular. Assim mo tinha explicado a minha mãe, quando lhe fazia perguntas sobre a morte. E inclusive o prior da minha paróquia. Ambos sabiam como tranquilizar a minha alma católica. A determinação com que defendiam tudo o que tivesse a ver com o Além, a vida celestial ou as almas penadas era invejável. E agora começava a saber porquê.

Naquela primeira noite de Novembro, eu, como é óbvio, ainda não estava morta. Em contrapartida, era precisamente essa a visão que tinha diante de mim: um semblante gigantesco, sereno, unido a um corpo sentado de quase cinco metros de envergadura, tinha cravado os seus olhos nos meus enquanto se revolvia a escassos palmos das suas bochechas.

– Não fique até muito tarde, rapariga.Manuel Mira, responsável pela segurança da catedral de Santiago

de Compostela, arrancou-me do atordoamento gritando-me do piso inferior. Tinha passado a tarde investigando como devia instalar o equi-pamento de escalada diante do severíssimo Cristo em Majestade do

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Pórtico da Glória, na fachada mais ocidental do templo, e agora que acabava o seu turno, devia sentir remorsos por me deixar ali sozinha, à mercê de cordas e ganchos que não entendia.

Na realidade, não tinha razões para se preocupar. Eu estava em excelente forma física, contava com experiência de sobra em técnicas de escalada e o alarme que vigiava essa parte da catedral andava há dias a denunciar-lhe que eu abandonava sempre o andaime antes da meia--noite.

– Não é bom que trabalhe num lugar tão solitário.O vigilante lamentou-se em voz alta para que o pudesse ouvir.– Vá lá, Manuel. Não penso deixar a pele aqui – respondi com um

sorriso, sem perder de vista o que estava prestes a fazer.– Veja, Julia. Se cair ou se o seu arnês ceder, ninguém dará por nada

antes das sete da manhã. Pense nisso.– Vou arriscar. Isto não é o Evereste. Já sabe disso. E tenho sempre

comigo o meu telemóvel.– Eu sei, eu sei, claro que sei – resmungou. – Mesmo assim, seja

prudente. Boa noite.Manuel, que teria vinte e cinco ou trinta anos mais do que eu e era

pai de uma filha com a minha idade, endireitou o boné, dando-me como intratável. Sabia que enquanto eu estivesse suspensa à altura de um segundo andar, enfiada no meu fato-macaco branco de trabalho, com o capacete estampado com o logótipo da Fundação Barrié de la Maza, óculos de plástico, um diadema de lâmpadas leds à volta do crânio e um tubo de nylon ligado por uma extremidade a um PDA e por outra a uma agulha de liga metálica cravada por baixo do dorso direito do Cristo, era melhor não me contrariar. O meu trabalho era o de um cirurgião que exigia firmeza e uma concentração total.

– Boa noite – aceitei, agradecendo-lhe a sua prudência.– E tenha cuidado com as almas – acrescentou sem um pingo de

humor. – Hoje é noite de defuntos e elas rondam sempre por aqui. Gos-tam deste lugar.

Nem sequer sorri. Tinha nas mãos um endoscópio de trinta mil euros concebido na Suíça de propósito para aquele trabalho. Os mortos, apesar da recordação que acabava de ter, ficavam-me algo distantes.

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Ou talvez não.Após meses a redigir relatórios sobre como conservar a obra-prima

do românico, sabia que me encontrava a um passo de poder explicar a deterioração de um dos conjuntos escultóricos mais importantes do mundo. Um monumento que tinha comovido gerações inteiras, recordando-lhes que depois desta vida aguarda-nos outra melhor. Que importava que fosse noite de defuntos? No fundo era uma coincidência das mais oportunas. As imagens que ia analisar há séculos que acolhiam os peregrinos do Caminho de Santiago, a rota religiosa mais antiga e percorrida da Europa, reavivando a sua fé e recordando-lhes que atra-vessar aquele umbral simbolizava o final da sua vida pecadora e o iní- cio de outra, mais sublime. Daí o seu nome. Pórtico da Glória. As suas mais de duzentas figuras eram portanto autênticos imortais. Um exér- cito alheio ao tempo e aos medos dos humanos. E, no entanto, desde o ano 2000, uma estranha doença estava a desvitalizá-los. Isaías e Daniel, por exemplo, descarnavam-se ao mesmo tempo que alguns dos músicos que tangiam os seus instrumentos pouco mais acima ameaçavam desmoronar-se se não o impedíssemos. Anjos trombeteiros, personagens do Génesis, pecadores e condenados mostravam também sinais preocupantes de enegrecimento. Para não falar da imparável descoloração de todo o conjunto.

Desde a época das cruzadas nenhum ser humano tinha examinado aquelas figuras tão de perto nem tão a fundo como eu. A Fundação Barrié acreditava que estavam a ser atacadas pela humidade ou por bactérias, mas no meu caso não estava tão segura disso. Por isso fazia horas extraordinárias quando não havia turistas a olhar para mim nem peregrinos questionando que tivéssemos escondido a obra-prima do Caminho por detrás de uns andaimes quase opacos. Nem, claro, outros técnicos que pudessem questionar as minhas ideias.

Embora eu tivesse mais uma razão.Uma, a meu ver, tão poderosa que não me tinha granjeado mais do

que problemas.Eu era a única da equipa que tinha crescido perto dali, numa povoação

da Costa da Morte, e sabia – ou, para ser mais precisa, pressentia – que existiam motivos menos mundanos do que líquenes ou ácidos para

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que a pedra estivesse a começar a desagregar-se. Ao contrário dos meus colegas, não deixava que a minha formação científica me impedisse de considerar alternativas menos convencionais. Cada vez que falava a sério com eles e recorria a conceitos como telurismo, forças da terra ou radiações, atiravam-se a mim e riam-se do que dizia. «Não há estudos científicos sobre isso», resmungavam. Felizmente, não estava sozinha na minha obstinação. O deão da catedral apoiava-me. Era um ancião irritadiço que, ao contrário dos outros, eu adorava. Todos lhe chamavam padre Fornés. Eu preferia ficar-me pelo seu nome próprio, Benigno. Suponho que me divertia o muito que aquele nome contrastava com o carácter dele. Foi ele, de facto, quem sempre me defendeu perante a Fundação e quem me animou a continuar.

– Mais tarde ou mais cedo – dizia –, vais tirá-los do seu erro.Algum dia será, pensava eu.

e

Por volta da uma menos vinte, quando já estava há um bom bocado a introduzir o endoscópio em cada uma das nove gretas cartografadas pela nossa equipa, o PDA emitiu três apitos agudos anunciando que estava a transmitir os primeiros dados ao computador que tinha instalado diante do pórtico. Suspirei, aliviada. Se tudo decorresse como estava previsto, no dia seguinte a Universidade de Santiago iria processar os meus dados no departamento de mineralogia da Faculdade de Ciências Geológicas e numa questão de trinta e seis horas poderíamos debater os primeiros dados.

Cansada mas expectante, apeei-me das minhas correias para me certificar de que o envio das leituras do endoscópio se tinha realizado segundo o previsto. O disco duro de cinco terabytes ronronava como um gato satisfeito, enchendo o recinto com um murmúrio que me pôs de bom humor. No seu interior, efectivamente, estavam a acabar de instalar-se os perfis microtopográficos de cada greta, as análises do espectrógrafo e até mesmo o arquivo de vídeo que documentava cada uma das minhas incursões na pedra. À primeira vista tudo parecia correcto, pelo que, com calma, e com a sensação de um trabalho bem

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feito, comecei a desfazer-me do equipamento de protecção e a recolher tudo. Precisava de me oferecer um bom duche, cear algo quente, hidratar a pele e ler algo que me distraísse.

Merecia-o.Mas o Destino joga sempre com vantagem e precisamente nessa

noite tinha-me preparado algo que não esperava. Algo… tremendo.Foi ao desligar as potentes luzes da minha coroa e ao tirar o capacete,

que um movimento invulgar no fundo do templo me sobressaltou. Tive a impressão de que, de repente, a atmosfera se tinha carregado de electricidade estática. A nave inteira, com os seus noventa e seis metros de comprimento e os seus cento e dezoito varandins aximezados, pareceu agitar-se com uma «presença». O meu cérebro tratou de racionalizar aquilo. No fundo, só tinha acreditado ver um lampejo rápido. Uma faísca fugaz. Silenciosa. Um brilho que emergiu quase a rasar o chão, de aparência inofensiva, e que pareceu encaminhar-se para o cruzeiro, a uns vinte ou trinta metros de onde me encontrava.

Não estou sozinha, foi o meu primeiro pensamento. Reparei como a pulsação aumentava rapidamente.

– Olá! Está alguém aí?Somente o eco acolheu as minhas palavras.– Estão a ouvir-me? Há alguém? Olá…! Olá!Silêncio.Tratei de manter a calma. Conhecia aquele lugar como a palma das

minhas mãos. Sabia para onde correr em caso de necessidade. Além disso, tinha um telemóvel e as chaves de uma das portas que davam para a Praça do Obradoiro. Era impossível que me acontecesse alguma coisa. Disse a mim mesma, então, que talvez tivesse sido vítima do contraste entre a zona iluminada do laboratório, no lado oeste, e a penumbra que envolvia o resto da catedral. Às vezes as mudanças de luz provocavam esse género de efeitos. Mas também não conseguia convencer-me. Aquilo não tinha sido um reflexo no sentido estrito do termo. Nem um insecto. Nem tão-pouco a acendalha de um círio estatelando-se na pedra.

– Olá…! Olá…!O silêncio continuou a ser a minha única resposta.

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Ao perscrutar a nave senti-me como se estivesse a assomar às fauces de uma baleia colossal. As luzes de emergência mal serviam para marcar os acessos a algumas capelas e não davam uma ideia das dimensões do monstro. Sem iluminação eléctrica era difícil adivinhar onde estava o retábulo central. Inclusive o acesso à cripta. E os dourados do altar-mor ou o rico busto de madeira policromada do apóstolo Santiago pareciam ter-se esfumado na escuridão.

Ligo para o 112, pensei, enquanto a minha mão tremia, buscando o telemóvel no meu bolso. E se é uma idiotice?

E se é uma alma penada?Descartei esta última ideia por ser estúpida. A minha mente lutava

para não conceder ao medo nem um milímetro de vantagem. E, no entanto, o meu coração batia já acelerado.

Querendo esconjurar aquele formigueiro, peguei no meu anoraque, no saco e na coroa de leds e entrei no templo, encaminhando-me para onde julgara ter visto a luz. Os fantasmas desaparecem quando os enfrentas, lembrei-me. E tremendo de medo enfiei-me pela nave lateral direita do templo, em direcção ao transepto, rezando para que não houvesse ali nada. Quando o alcancei, Deus te salve Maria, virei-me com determinação para a porta de Platerías que a essa hora, claro, já estava fechada.

Então vi-o.De facto, quase choquei com ele. E embora tendo-o ali tão perto, duvidei.Meu Deus! Era um tipo sem rosto, oculto atrás de uma túnica negra, como que

de monge, que parecia remexer em algo que acabara de depositar debaixo do único monumento moderno de toda a catedral. Uma escultura de Jesús León Vázquez que representava o Campus Stellae ou caminho das estrelas. Graças a Deus, a sua atitude era esquiva, não agressiva, como se tivesse acabado de infiltrar-se no templo e ainda não soubesse muito bem onde estava.

Eu devia sair dali a correr e avisar a polícia, mas o instinto, ou talvez os nossos olhares se tivessem cruzado num segundo, levou-me a falar com ele.

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– Que faz você aqui?A pergunta saiu-me da alma.– Não me ouviu? Quem lhe deu autorização para estar na catedral?O ladrão, pois era isso que parecia, deixou o que estava a fazer sem

se alterar com a minha urgência. Ouvi-o a fechar a cremalheira de um saco de nylon preto ao mesmo tempo que se virava para mim como se não se preocupasse de modo nenhum que alguém o tivesse descoberto. Mais ainda: vendo-o agora, estava quase tentada a acreditar que se tinha escondido ali para esperar por mim. Infelizmente, a luz escassa não me ajudou a identificá-lo. Disse algo num idioma que não reconheci e a seguir deu um passo em frente, murmurando qualquer coisa que me desconcertou:

– Ul-á Librez?– Como?O «monge» hesitou, talvez meditando como tornar a sua pergunta

mais precisa.– Ul-ia Alibrez?Perante a minha expressão de perplexidade, reformulou uma vez mais

as suas palavras, fazendo-as tão compreensíveis como desconcertantes.– Jul-ia Álvarez? É… vo-cê?

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Capítulo 2

Fora da catedral voltava a chover com força. O orballo era essa preci- pitação típica do Norte de Espanha que, sem chamar a atenção, se vai infiltrando até ensopar tudo. As pedras da calçada da Praça do Obradoiro contavam-se entre as suas vítimas mais célebres e a essa hora eram incapazes de absorver mais. Por isso, quando um elegante carro de quatro portas, de cor de vinho, a atravessou, estacionando precisamente à porta do Hostal de los Reyes Católicos, levantou uma onda de água que salpicou as paredes do estabelecimento.

Lá dentro, na recepção, o porteiro de serviço deitou uma olhadela pela janela que tinha mais perto de si e apagou a televisão. Chegavam os seus últimos clientes. Solícito, pôs o pé na rua precisamente quando os sinos da catedral davam as doze badaladas. Nesse momento, o condutor desligou o motor do seu Mercedes, apagou os faróis e acertou a hora do relógio de pulso como se aquilo fizesse parte de um ritual.

– Chegámos, querida. Compostela. A mulher que estava ao seu lado desapertou o cinto de segurança

e abriu a porta. Ficou aliviada ao ver o recepcionista aproximar-se com um enorme guarda-chuva negro.

– Boa noite, senhores – disse ele num inglês perfeito. O odor a terra molhada inundou o impecável interior do veículo de aluguer. – Avisa-ram-nos que chegariam tarde.

– Óptimo.– Vou acompanhá-los ao hotel. Nós trataremos de estacionar o carro

e de levar as bagagens ao quarto o mais depressa possível. – Sorriu.

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– Na suíte deixámos-vos um pouco de fruta. A cozinha está fechada a estas horas.

O homem deitou uma olhadela à praça vazia. Gostava da atmosfera que a pedra conferia ao local. Era incrível que um recinto como aquele juntasse em harmonia uma catedral de fachada barroca, o imóvel do século xv em que se encontrava a sua suíte e um palácio neoclássico como o que tinham diante deles.

– Diga-me uma coisa, amigo – sussurrou quando lhe entregou as chaves do Mercedes e uma nota de dez euros –, ainda não terminaram o restauro do Pórtico da Glória?

O porteiro lançou uma olhadela rápida à fachada do templo. Abor-recia-o que os andaimes a desfeassem daquela maneira, afugentando turistas com classe como estes.

– Receio que não, senhor – suspirou. – A imprensa diz que nem mes- mo os técnicos chegam a acordo sobre o estado de conservação da catedral. Certamente vamos ter obras por muito tempo.

– Acha que sim? – O hóspede sacudiu a cabeça, incrédulo. – Então por que fazem turnos de vinte e quatro horas?

O homem disse isso ao ver como as duas colossais janelas que estavam por cima da porta principal da catedral, por debaixo da enorme estátua do Apóstolo peregrino, irradiavam uma luz forte, alaranjada, que oscilava no seu interior com um ar ameaçador.

O porteiro mudou de expressão.Aquilo não parecia serem luzes das obras. Cintilavam e emitiam uns

lampejos alaranjados que não pressagiavam nada de bom. Devia chamar a polícia. E já.

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Capítulo 3

– Julia Ál-varez?Demorei uns segundos a assumir que aquela espécie de «monge»

estava a pronunciar o meu nome. Era evidente que não falava espanhol. E também não parecia que soubesse francês ou inglês. Para cúmulo da desgraça, os meus primeiros esforços para comunicar com ele por sinais não tinham resultado. Ignoro a razão. Chamem-lhe instinto. Mas pela sua atitude, entre tímida e conformada, deduzi que aquele homem se tinha extraviado e não tencionava fazer-me nenhum mal. Não seria a primeira vez que um peregrino ficava fechado na catedral. Alguns dos que vinham de países distantes não eram capazes de perceber os cartazes que davam informações aos visitantes. Esporadicamente, um ou dois ficavam para trás, rezando na cripta diante das relíquias do Apóstolo ou em alguma das suas vinte e cinco capelas menores, e quando se davam conta tinham-nos deixado encurralados no interior, fora do horário das visitas e sem possibilidade de sair ou avisar ninguém… até dispararem os alarmes.

No entanto, havia alguma coisa naquele homem que não conse- guia perceber. A sua proximidade acabava por ser incómoda. Estranha. E inquietava-me, bastante, que soubesse o meu nome e o repetisse de cada vez que lhe fazia uma pergunta.

Quando me atrevi a focá-lo com as minhas luzes, descobri um homem alto, jovem, de tez morena e olhos claros, de um ar algo oriental, com uma pequena tatuagem em forma de serpente debaixo do olho

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esquerdo e uma expressão de infinita gravidade. Teria mais ou menos a minha estatura e era de compleição robusta. Diria que havia algo marcial no seu porte. Atraente, inclusive.

– Lamento. – Encolhi os ombros, enquanto acabava de o examinar. – Não pode estar aqui. Tem de se ir embora.

Mas aquelas ordens também não surtiram efeito nenhum.– Ju-lia Ál-varez? – repetiu pela quarta vez.Era uma situação embaraçosa. Sem perder a calma, tratei de lhe

indicar o caminho para o meu laboratório, e daí, com sorte, encaminhá--lo para a rua. Apontei para o chão, para que recolhesse as suas coisas e me seguisse, mas aparentemente só consegui deixá-lo nervoso.

– Vamos. Acompanhe-me – disse eu, agarrando-lhe um braço.Foi um erro.O jovem sacudiu-se como se o tivesse agredido e agarrou-se ao seu

saco negro, dando um grito. Algo que soou a «Amrak!» deixou-me os cabelos em pé.

Nesse momento assaltou-me uma dúvida terrível. Levaria algum objecto roubado no saco? A perspectiva deixou-me aterrada. Algo valioso…? Do tesouro da catedral, se calhar? E nesse caso como deveria actuar?

– Acalme-se. Está bem – disse eu, tirando o telemóvel do bolso e mostrando-lho. – Vou pedir ajuda para que nos tirem daqui. Está a per-ceber-me?

O homem conteve a respiração. Parecia um animal encurralado.– Juli-a Álva-rez…? – repetiu.– Não lhe vai acontecer nada – ignorei-o. – Vou marcar o número

das emergências … Vê? Logo a seguir você estará fora daqui.Mas ao cabo de uns segundos, o maldito telemóvel ainda não tinha

conseguido obter a ligação.Tentei uma segunda vez. E uma terceira. E em nenhuma das oca-

siões obtive resultados. Aquele tipo observava-me com um rosto inexpressivo, abraçando o seu saco, mas à quarta tentativa, e sem sair de onde estava, pousou-o no chão e apontou-o para que fixasse a minha atenção nele.

– O que é? – perguntei.

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O Anjo Perdido

E o intruso, que pela segunda vez disse algo que não fosse o meu nome, sorriu antes de articular a resposta mais estranha que eu podia esperar. Outro nome. Um nome que eu conhecia muito bem.

– Mar-tin Faber.

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Capítulo 4

Apenas a alguns metros dali, dois veículos da polícia local de Santiago acompanhados por uma carrinha da Guarda Civil e por uma autobomba para a extinção de incêndios, entravam a toda a velocidade na Quintana dos Mortos. Tinham subido pela Rua Fonseca, guiados pelas indicações de outra patrulha que, nesse momento, vigiava a evolução das luzes dentro da catedral. Aparentemente, tinham recebido um aviso de incêndio a partir do Hostal de los Reyes Católicos e o operacional de emergência estava a desesperar-se como um urso que lhe custasse sair do seu letargo.

– Não parece fogo, inspector Figueiras – resmungou o agente que estava há dois minutos diante da porta de Platerías, ensopado até aos ossos, sem perder de vista o telhado do templo.

O inspector, um tipo rude endurecido na luta contra o narcotráfico nas rias galegas, olhou para ele com suspeita. Havia poucas coisas que o aborrecessem mais do que estar debaixo de um aguaceiro com os óculos cheios de salpicos. O seu humor era de cão.

– E como chegou a essa conclusão, agente? – Estou há um bocado parado aqui, senhor, e ainda não vi fumo.

Além disso – acrescentou, confiante –, não cheira a queimado. E como sabe, a catedral está cheia de materiais combustíveis.

– Avisaram o bispado?Antonio Figueiras fez aquela observação com enfado. Odiava ter de

se haver com a Cúria.

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O Anjo Perdido

– Sim, senhor. Vêm a caminho. Mas avisaram-nos que os técnicos do restauro costumam fazer horas extraordinárias e as luzes podiam ser deles. Quer que entremos?

Figueiras hesitou. Se o seu agente tinha razão e não havia outro indício de fogo para além dos brilhos que se reflectiam esporadicamente nas janelas, fazer uma entrada em força só iria trazer-lhes problemas. «Comissário comunista profana a catedral de Santiago.» Quase podia ver os títulos de La Voz de Galicia do dia seguinte. Por sorte, antes de tomar a sua decisão, um terceiro indivíduo vestido com um uniforme azul brilhante aproximou-se deles, solícito.

– E então? – acolheu-o Figueiras. – O que dizem os bombeiros?– O seu agente tem razão, inspector. Não parece que seja um

incêndio. – O sargento-chefe dos bombeiros, um homem resoluto, de sobrancelhas fartas e olhar de felino, partilhou o seu diagnóstico com profissionalismo. – Os alarmes contra incêndios não dispararam e nós fizemos a revisão deles há menos de um mês.

– E então?– Trata-se com certeza de uma avaria no fornecimento de electricidade.

Desde há meia hora, a rede desta zona está sobrecarregada.Aquela informação deixou-o intrigado.– E por que ninguém me disse nada disso?– Pensei que o tivesse deduzido por si – disse o bombeiro, sem

acrimónia, apontando à sua volta. – A iluminação da rua está apagada há um bom bocado, inspector. Só há luz nos edifícios que dispõem de um gerador eléctrico de emergência, e a catedral é um deles.

Antonio Figueiras tirou os óculos para os secar com um lenço de tecido enquanto balbuciava um impropério. Tinham ficado à vista os seus dotes de observação adormecidos. Então ergueu os olhos, ajustou as lentes e viu que a praça, efectivamente, estava apenas iluminada pelos faróis dos veículos deles. Não havia uma única luz acesa nas casas vizinhas e somente junto da torre do relógio emergiam esses descon-certantes lampejos. Irregulares. Eram quase como relâmpagos de uma tempestade.

– Um apagão geral? – sussurrou.– É o mais provável.

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Javier Sierra

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Apesar da chuva e da falta de visibilidade, Figueiras reconheceu a silhueta de um homem enorme que caminhava rapidamente para a porta de Platerías e que parava diante da fechadura dela, como se pretendesse forçá-la.

– Quem é esse? – perguntou em voz alta.O subinspector Jiménez, que se encontrava a seu lado, sorriu.– Oh, esse… Esqueci-me de comentar isso consigo. Chegou esta tarde

à esquadra, vindo dos Estados Unidos. Trazia uma carta de recomen-dação. Disse que trabalhava num caso e que precisava de localizar uma mulher que vivia em Santiago.

– E que faz ele ali?– Bom… – hesitou Jiménez. – Acontece que a mulher que ele procura

trabalha na Fundação Barrié e esta noite faz um turno na catedral. Quando o homem soube desta história do fogo, veio atrás de nós.

– E o que vai fazer?Jiménez, calmo, respondeu com uma evidência.– Não vê, inspector? Vai entrar.

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