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Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 3, n. 5, p. 9-35, jan./jun. 2021. 9 BASILÍADE - REVISTA DE FILOSOFIA ADERE A UMA LICENÇA CREATIVE COMMONS ATRIBUIÇÃO 4.0 INTERNACIONAL (CC BY-NC 4.0) DOI: 10.35357/2596-092X.v3n5p9-35/2021 ARTIGOS / ARTICLES CRISTIANISMO E NEOPLATONISMO EM AGOSTINHO: A PROPÓSITO DE UMA SENTENÇA DO CONTRA ACADEMICOS (III,19,42): “UNA VERISSIMAE PHILOSOPHIAE DISCIPLINAChristianity and Neoplatonism in Augustine: On a Sentence of Contra Academicos (III,19,42): “Una Verissimae Philosophiae Disciplina” Bento Silva Santos 1 RESUMO: Este artigo examina a questão das relações entre o cristianismo e a philosophia em uma passagem do Contra Academicos. Ora, a referência a Platão e ao “platonismo” ao longo de seus primeiros escritos exige algumas reflexões de esclarecimento quanto ao influxo recíproco de “platonismo” e cristianismo na conversão de Agostinho (386). O Augustinus Philosophus, que compõe uma série de escritos entre 386 e 391, é sensivelmente diverso daquele que é narrado nas Confissões e daquele que será bispo de Hipona em 395? Tratar-se-ia do Agostinho mais um “filósofo platônico” e muito menos “penitente”, que teria sido influenciado em grande parte mais pela filosofia neoplatônica do que pela fé cristã? Como entender, portanto, o pensamento de Agostinho nas primeiras obras, notadamente marcado pela leitura dos Libri platonicorum (Livros dos platônicos), quando confrontado com as obras da maturidade, nas quais atingiu plena consciência das verdades do cristianismo e onde teria superado o “platonismo” das origens? Esta é a celebre questão controversa sobre a “evolução” e/ou a “continuidade” do pensamento de Agostinho que pretendo tratar a partir de uma proposição emblemática do Livro III (19,42) de sua primeira obra filosófica. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia; Platão; Neoplatonismo; Cristianismo; Verdade. ABSTRACT: This article examines the question concerning the relations between Christianity and philosophia in a passage of Contra Academicos. The reference to Plato and “Platonism” throughout Augustine’s first writings requests some reflections on the reciprocal influence of Platonism and Christianity in his conversion (386). Is the Augustinus Philosophus, which composes a series of writings between 386 and 391, so different from that described in the Confessions and from that who will become bishop of Hippo in 395? Is he more a “Platonic philosopher” and much less a “penitent”, who would be more influenced, to a great extent, by the Neoplatonic philosophy than by Christian faith? Thus, how is to be understood the Augustinian thought in his first works, where he is particularly marked by the reading of the so-called Libri platonicorum (Books of the Platonists), in comparison with the works of maturity, where he is fully conscious of the Christian truths and would have overcome the “Platonism” of his 1 Doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: [email protected]

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Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 3, n. 5, p. 9-35, jan./jun. 2021. 9

BASILÍADE - REVISTA DE FILOSOFIA ADERE A UMA LICENÇA

CREATIVE COMMONS ATRIBUIÇÃO 4.0 INTERNACIONAL – (CC BY-NC 4.0) DOI: 10.35357/2596-092X.v3n5p9-35/2021

ARTIGOS / ARTICLES

CRISTIANISMO E NEOPLATONISMO EM AGOSTINHO: A PROPÓSITO DE UMA SENTENÇA DO CONTRA

ACADEMICOS (III,19,42): “UNA VERISSIMAE PHILOSOPHIAE DISCIPLINA”

Christianity and Neoplatonism in Augustine: On a Sentence of Contra Academicos

(III,19,42): “Una Verissimae Philosophiae Disciplina”

Bento Silva Santos1 RESUMO: Este artigo examina a questão das relações entre o cristianismo e a philosophia em uma passagem do Contra Academicos. Ora, a referência a Platão e ao “platonismo” ao longo de seus primeiros escritos exige algumas reflexões de esclarecimento quanto ao influxo recíproco de “platonismo” e cristianismo na conversão de Agostinho (386). O Augustinus Philosophus, que compõe uma série de escritos entre 386 e 391, é sensivelmente diverso daquele que é narrado nas Confissões e daquele que será bispo de Hipona em 395? Tratar-se-ia do Agostinho mais um “filósofo platônico” e muito menos “penitente”, que teria sido influenciado em grande parte mais pela filosofia neoplatônica do que pela fé cristã? Como entender, portanto, o pensamento de Agostinho nas primeiras obras, notadamente marcado pela leitura dos Libri platonicorum (Livros dos platônicos), quando confrontado com as obras da maturidade, nas quais atingiu plena consciência das verdades do cristianismo e onde teria superado o “platonismo” das origens? Esta é a celebre questão controversa sobre a “evolução” e/ou a “continuidade” do pensamento de Agostinho que pretendo tratar a partir de uma proposição emblemática do Livro III (19,42) de sua primeira obra filosófica. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia; Platão; Neoplatonismo; Cristianismo; Verdade. ABSTRACT: This article examines the question concerning the relations between Christianity and philosophia in a passage of Contra Academicos. The reference to Plato and “Platonism” throughout Augustine’s first writings requests some reflections on the reciprocal influence of Platonism and Christianity in his conversion (386). Is the Augustinus Philosophus, which composes a series of writings between 386 and 391, so different from that described in the Confessions and from that who will become bishop of Hippo in 395? Is he more a “Platonic philosopher” and much less a “penitent”, who would be more influenced, to a great extent, by the Neoplatonic philosophy than by Christian faith? Thus, how is to be understood the Augustinian thought in his first works, where he is particularly marked by the reading of the so-called Libri platonicorum (Books of the Platonists), in comparison with the works of maturity, where he is fully conscious of the Christian truths and would have overcome the “Platonism” of his

1 Doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: [email protected]

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beginnings? This is the famous controversial question regarding the “evolution” and/or the continuity of Augustine’s thought, which I intend to explore from an emblematic proposition of Book III (19,42) of his first philosophical work. KEYWORDS: Philosophy; Plato; Neoplatonism; Christianity; Truth.

Examinar a relação entre Cristianismo e Neoplatonismo na fase juvenil de Agostinho

implica evocar a questão complexa da recepção do “platonismo” na filosofia patrística do

mundo latino, e para tal questão existe uma gama de posições que vão desde uma total

recusa e hostilidade, uma grande abertura mental e uma assimilação das formas de

pensamento filosófico, uma atitude extremamente crítica – que não excluía, porém, a

recepção de certos elementos –, uma ampla recepção de formas do pensamento filosófico

às vezes em espírito de sincretismo até à recepção associada a uma transformação. Além

disso, o que chamamos hoje de “Neoplatonismo” é a expressão de uma reinterpretação

radical da filosofia platônica realizada por Plotino no século III d.C. e que se estendeu até

o século VI d.C. em diversas escolas e tendências, mas que nos primeiros escritos,

Agostinho, a partir de sua própria compreensão, simplifica afirmando que a essência do

“platonismo”2 se reduz à doutrina dos “dois mundos”: “um inteligível... e outro,

sensível”3.

Ademais, no contexto dos diferentes discursos de sabedoria encontrados por

Agostinho ao longo de seu percurso intelectual – da leitura da obra perdida (Hortensius)

de Cícero às Escrituras, do maniqueísmo ao ceticismo acadêmico, do ceticismo

acadêmico ao Neoplatonismo, do Neoplatonismo ao Cristianismo – o problema é ainda

mais complexo quando tentamos identificar os chamados “libri platonicorum” e seus

respectivos autores: tratar-se-ia de uma série de tratados de Plotino e/ou de Porfírio ou de

algum tipo de combinação recíproca que tais tratados tenham sido apresentados à leitura

de Agostinho? No caso do Contra Academicos, a questão se formularia assim: como

Agostinho julga, a partir de seu próprio ponto de vista teológico, os diferentes sistemas

filosóficos não cristãos? Em que medida Agostinho assimilou em seu próprio pensamento

2 O emprego do vocábulo “platônicos” tem a seguinte implicação: o ponto de vista de Agostinho pressupõe uma compreensão da vera philosophia, que tem suas raízes no Hortensius de Cícero, uma exortação à filosofia, que o Hiponense descobrira muito antes de sua conversão ao Cristianismo. Ora, para Agostinho, os filósofos são Pitágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles, os estoicos, os epicureus, os acadêmicos, etc. A chave interpretativa de seu pensamento procede da leitura de Plotino e Porfírio em traduções latinas hoje perdidas. Cf. M. RUCH, L’Hortensius de Cicéron: histoire et reconstitution. Paris: Les Belles Lettres, 1958. 3 AGOSTINHO, Contra Academicos III,17,37. Utilizo a seguinte crítica do Contra Academicos: SANCTI AURELII AUGUSTINI, Opera, pars II, 2 (CCL = Corpus Christianorum. Series Latina, XXIX). Turnholti, 1970, 3-61.

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teológico as contribuições da especulação filosófica do mundo antigo? Agostinho terá

tido ao mesmo tempo uma posição essencialmente tradicionalista frente à tradição

doutrinal da Igreja e uma atitude essencialmente eclética frente à filosofia “platônica”?

Portanto, no quadro mais amplo do itinerário intelectual de Agostinho, e no contexto de

seu período cético enquanto “tempo de dúvida” (tempore dubitationis), como

compreender a passagem do ceticismo ao Neoplatonismo e, em seguida, ao Cristianismo

em 386? À luz do Livro V das Confissões e do Livro I do Contra Academicos, podemos

formular a seguinte questão: Agostinho terá assimilado perfeitamente a dimensão

propriamente filosófica do ceticismo acadêmico como procura real da sabedoria e da

felicidade, mas a impossibilidade de encontrá-la o terá conduzido a uma desesperança

soteriológica no sentido de que a incapacidade para apreender a verdade absoluta é

desesperadora? Em suma: nas leituras filosóficas de Agostinho, como se desdobraram a

descoberta de um possível acesso à certeza da existência da Verdade (Neoplatonismo) e,

em seguida, a união à Verdade inacessível ao Neoplatonismo (Cristianismo)?

Em minha proposta de estudo da passagem do Contra Academicos (Livro III, capítulo

19, § 42)4 no contexto dos primeiros escritos de Agostinho, procurarei discutir essas

questões para formular uma alternativa na compreensão da obra agostiniana: em vez de

evocar a antiga querela de saber se Agostinho foi ou não um filósofo ou se ele descreve

somente uma teoria filosófica existente, pretendo esboçar como o Hiponense concebia o

que devia ser a filosofia, tentando evidenciar sua própria posição frente às

“possibilidades” ofertadas pelos discursos de sabedoria. Sob este aspecto, eu me limitarei

à questão da passagem do ceticismo acadêmico ao neoplatonismo e, deste último ao

Cristianismo, tal como se entrevê no juízo sobre o platonismo na passagem selecionada

do Contra Academicos. Globalmente, eis o itinerário de minha análise:

Em primeiro lugar, após mostrar em que sentido deve-se entender o “tempo da dúvida”

pelo qual passou Agostinho, será preciso levar em conta as características peculiares da

filosofia neoplatônica para descortinar o efeito decisivo em sua alma. Esta abordagem

4 Sobre o diálogo Contra Academicos, ver a introdução e as notas que elaborei para a tradução brasileira publicada na coleção “PATRÍSTICA”: S. AGOSTINHO, Contra os Acadêmicos, A Ordem, A Grandeza da Alma, O Mestre. Organizado por Bento SILVA SANTOS. São Paulo: Paulus, 2008, 9-27. Cf. também G. CATAPANO, Il concetto di filosofia nei primi scritti di Agostino. Analisi dei passi metafilosofici dal Contra Academicos al De vera religione. Roma: Institutum Patristicum Augustinianum, 2001, 21-174; IDEM, I Dialoghi di Agostino: genesi e caratteristiche letterarie, em CATAPANO, G. (a cura di), AGOSTINO, Tutti i Dialoghi, XXXV-LV.5-221; T. FUHRER, em AUGUSTIN, Contra Academicos (vel De Academicis), Bücher 2 und 3. Einleitung und Kommentar von T. Fuhrer. Berlin-New York, 1997. P. M. PALACIOS, O Estamento da verdade no Contra Academicos de Agostinho (Tese de doutorado em filosofia defendida em 2006 no Departamento de Filosofia da USP).

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permitirá compreender o sentido provável da proposição central do texto. E poderíamos

perguntar ainda: Agostinho terá acreditado que, uma vez experimentado os efeitos da

filosofia neoplatônica, os seus contemporâneos deveriam desembocar, logicamente na

conversão ao Cristianismo como a “filosofia” superior a todos os discursos de sabedoria

da época?

Em segundo lugar, analisarei ao longo do artigo as principais partes do parágrafo em

questão, a fim de explicitar o sentido conferido ao termo philosophia no contexto das

primeiras obras de Agostinho. Neste sentido, examinarei o porquê da menção das escolas

filosóficas contemporâneas, a apresentação da verissimae philosophiae disciplina e a

contraposição entre a ratio subtilissima e a divinis intellectus auctoritas quanto à questão

da eficácia diversa de reconduzir as almas ao mundo inteligível. No caso do Contra

Academicos a existência de una verissimae philosophiae disciplina é motivada pelo

acordo entre Aristóteles e Platão, mas saber de que philosophia se trata é ainda objeto de

discussão: Agostinho terá pensado no platonismo ou na doutrina dos dois mundos (1), ou

na síntese de platonismo e aristotelismo, realizada concretamente pelo neoplatonismo (2),

ou na filosofia de Plotino (3), ou na sabedoria cristã, que abarcava a doutrina do Verbo

encarnado e que coincidia com a vera et germana philosophia do De Ordine II,5,16 (4),

ou na doutrina do Logos divino, supostamente idêntica no neoplatonismo e no

Cristianismo? (5).

1. A questão “filosófica” de Agostinho: do possível acesso à certeza da existência

da Verdade à união com a Verdade inacessível ao Neoplatonismo

Após os estudos de Pierre Courcelle não se pode mais duvidar da sinceridade da

conversão de Agostinho em 386. Tratar-se-ia de saber como o neoconvertido combinou

a filosofia “platônica” e o dogma cristão na inteligência da fé que desejou elaborar5. Do

ponto de vista filosófico, esta conversão é a libertação de seu espírito, a descoberta da

pura espiritualidade de Deus e da alma. Não sem razão, François Masai afirmava que ela

marca o evento do espiritualismo no Ocidente6. Antes que a fé de Agostinho comportasse

um assentimento à cristologia católica e a esta reconhecesse uma autoridade absoluta, os

seus primeiros escritos e os relatos das Confissões sobre sua conversão testemunham a

5 P. COURCELLE, Recherches sur les Confessions de Saint Augustin. Paris: Boccard, 1950 (21968). 6 Cf. F. MASAI, Lês conversions de Saint Augustin et lês débuts Du spitualisme en Occident, Le Moyen Age 67 (1961) 1-40.

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impregnação progressiva de seu espírito pela verdade do Cristianismo. O itinerário

intelectual de Agostinho é marcado por um constante e complexo “ato de conversão”, que

se expressou ao longo de suas buscas pela verdade de sua existência. Sob qualquer forma

que se apresente, tal “conversão” possibilita o acesso à liberdade interior, a uma nova

percepção de Deus e do mundo, mas Agostinho percorreu muitas fases de “flutuação

intelectual” até descortinar nos “livros platônicos” a “moité de la vérité” do Cristianismo,

segundo a expressão de O. Du Roy7.

A julgar pela menção das escolas filosóficas “contemporâneas” no Contra Academicos

(III,19,42), e pelas Confissões8, a obra de Agostinho é o resultado de um longo processo

de formação durante o qual ele mesmo se formou9. Esta evolução consiste no

encadeamento das doutrinas pelas quais ele passou: Agostinho não transmite somente

uma compreensão das doutrinas filosóficas que ele encontrou; transmite, antes de tudo, o

testemunho do vir a ser de um caminho da interioridade ou da introspecção. Este consiste

em procurar a verdade olhando para si mesmo, segundo a fórmula emblemática “Noli

foras ire; in interiore homine habitat veritas”. A narração dos Livros I a IX das

Confissões nos mostra Agostinho passando de doutrina em doutrina, de uma maneira que

surpreende duplamente: não somente porque o compartilhamento entre as posições

filosóficas e as posições religiosas, ao qual estamos habituados, é inteiramente ignorado,

mas também porque as etapas de seu itinerário intelectual parecem escapar a toda lógica:

leitura do Hortensius de Cícero; em seguida, da Bíblia, enveredando para a doutrina

maniqueia e, depois, passando para o ceticismo dos acadêmicos, audição dos sermões de

S. Ambrósio de Milão, leitura de “certos livros dos platônicos” e erro cristológico

consecutivo10; e enfim, adesão ao Cristianismo.

Chama a atenção neste percurso a aparente ausência de distinção entre as finalidades

das posições filosóficas, gnóstico-maniqueia e cristã, que parece implicar. Certamente

7 O. DU ROY, L'intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin. Paris: Études Augustininnes, 1966, 64-66. 8 Cf. a monumental edição comentada das Confessiones em VV. AA., Sant’Agostino. Confessioni vol. 1: Libri I-III; vol. 2: Libri IV-VI; vol. 3: Libri VII-IX; vol. 4: Libri X-XI; vol. 5: Libri XII-XIII. Milano: Fondazione Lorenzo Valla-Arnaldo Mondadori Editore, 1994-1997. 9 Isto é confirmado também pela leitura assídua das obras de Cícero por parte de Agostinho: Cf. M. TESTARD, Saint Augustin et Cicéron. 2 vol. Paris: Études Augustiniennes, 1958. O index apresentado no volume II (Répertoire des textes, 117-128) indica que Agostinho se servira abundantemente de Cícero, sendo capaz de citar de memória vários de seus textos. Neste sentido, Agostinho não podia ignorar as apresentações doutrinais das diferentes escolas filosóficas – estoicismo, aristotelismo, epicurismo, academicismo e platonismo – nem o uso que fazia Cícero da filosofia. 10 Cf. AGOSTINHO, Confessiones VII, 19,25. Cf. também J. BRACHTENDORF, Confissões de Agostinho. São Paulo: Loyola, 2008, 121-155.

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não quero dizer que Agostinho tenha confundido as doutrinas filosóficas (por exemplo,

acadêmica), maniqueia e cristã, mas que ele entra em relação com elas sob uma maneira

particular, o que leva inevitavelmente à seguinte questão: qual seria a intenção que subjaz

às leituras de Agostinho, quer dos discursos filosóficos (particularmente os da época

imperial [de Cícero a Plotino e Porfírio]) 11, quer dos discursos oraculares, revelados, quer

dos discursos exegéticos, que propõem um salvador, uma gnose (essencialmente, pensa

na gnose maniqueia, enquanto ela se propõe como uma exegese da Bíblia que conduz à

salvação)? Discursos filosóficos e escrituras santas, recebidas segundo a exegese

gnóstico-maniqueia ou segundo a exegese cristã, são assim considerados de modo

idêntico como discursos de sabedoria.

Problematizando o itinerário intelectual de Agostinho poderíamos afirmar que dois

tipos de questão se cruzam aqui: 1ª) Qual é a filosofia elaborada por Agostinho, que

acabou rompendo com as filosofias de sua época, como sabemos através de seu relato nas

Confissões I-IX, em direção à superioridade do cristianismo afirmada na passagem do

Contra Academicos que examinaremos mais adiante e confessada no Livro VII das

Confissões? Qual é o modo de compartilhamento entre posições filosóficas e posições

religiosas? Se os dois campos se constituem mutuamente e por interação, qual é a regra

comum de sua constituição? 2ª) Que tipo de coerência leva Agostinho a passar de doutrina

em doutrina? Qual é a questão (de cunho gnosiológico e/ou soteriológico?) que o conduz

a interessar-se sucessivamente por Cícero, pela Bíblia, pelo maniqueísmo, pelo ceticismo

acadêmico, pelo “platonismo” e, por fim, pelo Cristianismo? Como apreender

adequadamente o sentido das leituras filosóficas de Agostinho? À luz das Confissões, a

atitude de Agostinho terá sido orientada por uma única questão, a saber: como unir-se ao

Cristo? Qual é a doutrina justa, isto é, na real posse do nome de Cristo, identificado com

a sabedoria?

11 Embora compartilhe certas teses com a filosofia “platônica” nos diálogos iniciais, Agostinho faz, porém, algumas críticas ao platonismo (única escola à qual ele reconhece uma proximidade com o Cristianismo) no último de seus escritos anteriores à ordenação presbiteral (391). Trata-se da obra De Vera Religione (II-III). Endereçado ao amigo Romaniano, sequaz do maniqueísmo, o De vera Religione se concentra inteiramente sobre o tema do monismo ontológico, da unicidade do princípio primeiro: a religião católica, confessada no reconhecimento fideísta pela autoridade das Escrituras, é verdadeira pelo seu concordar com a razão em afirmar a única origem, a única verdade e o único fim do homem e do universo. A crítica se desenvolve em três momentos em torno da questão cristológica: não se encontra, nas doutrinas filosóficas, o reconhecimento de que Cristo é mediador da salvação (I), mas, ao contrário, uma impotência em unir-se a Deus contrastando com sua pretensão soteriológica (II), e, finalmente, crenças e ideias incompatíveis com o Cristianismo, particularmente sobre a substância da alma, sua proveniência e seu destino (III). Cf. G. LETTIERI, Il senso della storia in Agostino d’Ippona. Roma: Borla, 1988, 22-27.

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Por trás dessas leituras emerge um Agostinho animado de uma preocupação

soteriológica12, mas sem ter recebido ainda a instrução cristã sobre a fé cristã, razão pela

qual, fascinado pela exortação do Hortensius de Cícero, ele iniciou sua busca pelo sentido

de sua existência nos diversos discursos de sabedoria encontrados na época. Se

considerarmos brevemente este percurso, compreenderemos o processo de exclusão e

redução que Agostinho fará propósito das escolas filosóficas mencionadas na passagem

em exame do Contra Academicos até admitir a superioridade do Cristianismo ao qual se

convertera em 38613. Mas em função do objetivo que me propus neste artigo, não será

possível elaborar um estudo completo deste itinerário. Eu me limitarei a algumas

observações essenciais que possam iluminar o sentido das leituras filosóficas de

Agostinho.

1.1. A leitura agostiniana do ceticismo acadêmico

A desilusão em relação ao maniqueísmo induziu Agostinho, durante a sua permanência

em Roma no ano de 383, a abraçar por um certo período as doutrinas céticas: “Ocorreu

ao pensamento ter havido uns filósofos acadêmicos, mais prudentes do que os outros,

porque julgavam que de tudo se havia de duvidar e sustentavam que nada de verdadeiro

podia ser compreendido pelo homem”14. Decepcionado, em Cartago, por seu encontro

com Fausto, Agostinho parte para Roma onde fica doente por ocasião de sua chegada.

Ele reencontra ainda maniqueus com os quais partilha algumas opiniões, mas não hesita

em criticá-los. Este período começa a terminar a partir de 384 quando Agostinho residia

em Milão. Encontrando o bispo Ambrósio, o Hiponense ouviu suas homilias, repletas de

reminiscências platônicas. Neste ambiente de cristãos platônicos Agostinho encontrará,

juntamente com a leitura dos “livros platônicos” em 386, o ensinamento cristão que

procurava15.

A experiência da “dúvida cética” de Agostinho e o uso que é feito da doutrina

correspondente em sua evolução intelectual devem ser interpretados a partir de suas

afirmações no Livro V das Confissões e da leitura cursiva do Contra Academicos, mas

isto pressupõe apresentar alguns elementos que dificultam a compreensão das relações de

12 Uma confirmação desta tese encontra-se no exame dos Livros III, V e VII das Confessiones. 13 Esta superioridade é evidenciada com rigor por A. MAGRIS, La filosofia greca e la formazione dell’identità cristiana, ASE 21/1 (2004) 59-107. 14 AGOSTINHO, Confessiones V,10,19. 15 Cf. AGOSTINHO, Confessiones V, 10,18; V,10,19; V, 13,23.

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Agostinho com a doutrina dos céticos acadêmicos: de um lado, a questão de saber em que

sentido Agostinho adotou a posição acadêmica; de outro lado, por qual regra de coerência

ele passou de Cícero à Bíblia, da Bíblia ao maniqueísmo e do maniqueísmo ao ceticismo;

enfim, se Agostinho permaneceu cético ou deixou de sê-lo, isto é, sua relação com o(s)

projeto(s) filosófico(s) e sua maneira de apreender o sentido do(s) mesmo(s)16.

Se Agostinho, ao menos durante o tempo que vai de seu encontro com Fausto à sua

leitura dos neoplatônicos, adere às teses acadêmicas, é sob a condição de resumir sua

relação com esta doutrina em cinco proposições: (I) A indagação acerca de uma união

salvífica com a divindade (o Cristo identificado com a sabedoria e com a verdade)

condiciona suas pesquisas doutrinais, de sorte que é (2) uma “desesperança soteriológica”

que o aproxima do ceticismo acadêmico, mesmo se é verdade (3) que sua “desesperança

gnosiológica” serviu-lhe para terminar de refutar as pretensões maniqueias de possuir a

gnose verdadeira e salvífica; de outro lado (4) Agostinho parece-nos ter interpretado a

tese acadêmica da incapacidade do homem de formar uma representação compreensiva

da verdade no sentido de uma impotência do homem em unir-se a Deus, sem (5) ter

aceitado a possibilidade de atingir a ataraxia pela suspensão do juízo nem a beatitude

pela pura pesquisa do verdadeiro17. A rigor, Agostinho não oferece uma apresentação da

doutrina acadêmica, mas distribui o entendimento que dela possuía em dois pontos,

designando sua própria compreensão como imperfeita: (1) Deve-se duvidar de tudo (de

omnibus dubitandum esse); (2) nada de verdadeiro podia ser compreendido pelo homem

(Nec aliquid veri ab homine comprehendi posse); (3) na verdade os acadêmicos tinham

escondido sua “intenção” e o verdadeiro sentido de sua doutrina, a fim de que o “vulgar”

não tivesse acesso a ela: a prudência deles não é somente de ordem gnosiológica, mas ela

dissimula uma verdade mais profunda18.

16 Cf. sobretudo É. DUBREUCQ, Augustin et le scepticisme académicien, Recherches de Science Religieuse 86/3 (1998) 335-365. 17 Cf. também S. FERRETTI, Il giudizio di Sant’ Agostino sulla Nuova Accademia tra scetticismo ed esoterismo, Filosofia 41 (1990) 155-183; M. WAGNER, San Agustin y el escepticismo, Avgvstinvs 37 (1992) 105-143; J.-J. O’DONNEL, Augustine Confessions II. Oxford: Clarendon Press, 1992, 314-315; É. DUBREUCQ, Augustin et le scepticisme académicien, passim. 18 Cf. AGOSTINHO, Contra Academicos III, § 37 ao § 43. Agostinho elabora nesses parágrafos uma “hipótese histórica” sobre as vicissitudes da Academia platônica. Nesta reinterpretação da filosofia de Platão discutida na Academia vê-se que Agostinho assume a tese de que houve um forte dogmatismo em Platão e nos desenvolvimentos posteriores estoicos e neoplatônicos. Nesse caso, nem Platão, nem, supostamente, Arcesilau ou Carnéades seriam céticos (ou seriam anomalias), e este título só conviria aos pirrônicos. Sobre a ideia de que na Academia se preservava a parte dogmática do platonismo, ver especialmente C. LÉVY, Scepticisme et dogmatisme dans l’academie: ‘l’ésoterisme” d’Arcesilas, Revue dês Études Latines 56 (1978) 335-348. Cf. também R. ROMÁN ALCALÁ, El enigma de la Academia de Platón: Escépticos contra dogmáticos en la Grecia Clásica. Cordoba: Berenice, 2007, 35-50.

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1.1.1. O “tempo cético” de Agostinho segundo o Livro V das Confissões

A partir da leitura do livro V das Confissões podemos entender o “tempo cético” da

seguinte maneira: Se Agostinho achou sedutora a tese maniqueísta concernente à origem

do mal e à natureza da alma, ele experimentou certamente alguma repugnância em aderir

às narrações cosmogônicas que a sustentam: ele esperava Fausto como aquele que

resolveria todas essas dificuldades que ele não pudera elucidar, não obstante todas suas

leituras dos escritos dos filósofos (isto é, a filosofia da natureza)19. Os elementos do

“tempo” cético – que caracterizariam perfeitamente a atitude dos acadêmicos – são

entendidos por Agostinho como desesperança e instabilidade. Mas é de seu próprio

desespero que a narração das Confissões faz nascer a aproximação de Agostino com as

posições acadêmicas que ele já conhecia por já tê-las encontrado em Cícero. Não se trata

de adotar a posição cética como tal, suspendo o juízo para conseguir a sabedoria sob a

forma da ataraxia; quando não se pode ter nenhuma posição afirmativa e certa, que

atitude assumir para melhor conduzir a vida? Agostinho tem o conhecimento de uma tese

negativa, segundo o Contra Academicos (III,9,18): “negant Academici sciri aliquid

posse”: os acadêmicos não são, portanto, aqueles que afirmam que o saber é inacessível

ao homem, mas aqueles que negam que o homem possa saber o que quer que seja. O

coração da doutrina concerne à possibilidade de uma certeza vivida, e isto é fundamental

para compreender como o ceticismo acadêmico penetra na vida de Agostinho. A

desesperança teórica ou gnosiológica é bem menos decisiva na maneira como Agostinho

recebe o ceticismo acadêmico do que sua desesperança vivida, que se situa no plano da

questão da salvação pessoal. Mas é preciso observar que a desesperança não é gerada pelo

ceticismo, mas nasce, antes de tudo, da decepção engendrada por Fausto e, a fortiori,

pelos outros maniqueus. A desesperança de Agostinho deve ser entendida no sentido

soteriológico: de que ou de quem esperar a salvação, uma vez que o maniqueísmo se

mostrou pura quimera? Segundo as Confissões, Agostinho continuava a frequentar os

maniqueus mesmo já desesperando de poder alcançar a verdade por meio desta falsa

doutrina, ou seja, Agostinho, renunciara a tornar-se um Eleito e assim assegurar sua

salvação pela doutrina de Manés. Esta desesperança concerne à salvação, e Agostinho

desesperava até mesmo de realizar sua salvação na Igreja católica, uma vez que os

maniqueus o enganaram fazendo-lhe crer ser impossível de encontrar nela a verdade.

19 Cf. AGOSTINHO, Confessiones V,7,12.

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Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 3, n. 5, p. 9-35, jan./jun. 2021. 18

Vejamos, portanto, algumas passagens onde aparecem o termo desesperare e seus

derivados: “Comecei a desesperar (desesperare) da sua [= Fausto] capacidade para me esclarecer...desesperei (desperans) ainda mais dos seus restantes mestres...Mas, já desesperado (desperans) de poder alcançar a verdade por meio desta falsa doutrina... desesperava (desperantem) de poder encontrar na vossa Igreja a verdade de que me tinham apartado...Comecei a amá-lo [Ambrósio), ao princípio não como mestre da Verdade – pois desesperava (desperabam) de encontrá-la na Vossa Igreja – mas... perdidas já todas as esperanças (desperanti) de que se patenteasse ao homem o caminho para Vós...Desconfiava e desesperava (desperabam) de encontrar a verdade...Encontrou-me em grave perigo, na desesperação (desperatione) de buscar a verdade”20.

O outro elemento – a instabilidade – deve ser compreendido à luz da desesperança

soteriológica: não poder encontrar salvação em Deus através da interpretação da boa

doutrina significa errar em uma existência doravante privada de todo sentido e ser

condenado irremediavelmente à obscuridade e à perda sem retorno. Na abertura do Livro

VI das Confissões Agostinho resume o estado de seu espírito na época: “Minha mãe, forte na piedade, já tinha vindo ao meu encontro, seguindo-me por terra e por mar, com a segurança posta em Vós, no meio de todos os perigos. Era ela que, nos riscos dos mares, incutia coragem aos próprios marinheiros que costumam animar os inexperientes navegadores do abismo, quando se perturbam: prometia-lhes a chegada a salvo, porque Vós, em visão, lhe havíeis prometido isso. Encontrou-me em grave perigo, na desesperação de buscar a verdade; mas, enfim, descobrindo-lhe que já não era maniqueia e que também ainda não era católico, não saltou de alegria, como quem ouve qualquer nova imprevista [...]. Não foi, portanto com imoderado júbilo que seu coração estremeceu, ao ouvir que em grande parte me tinha convertido, graça que ela todos os dias Vos pedia com lágrimas. Ainda não havia me tornado adepto da verdade, mas já me tinha arrancado do erro”21.

A passagem em questão nos oferece duas coisas importantes: a viagem marítima de

Mônica tornou-se uma metáfora da existência humana. Considerando a associação entre

a desesperança e a verdade, emerge a seguinte interpretação: não saltar de alegria significa

que Mônica percebeu que seu filho, mesmo não sendo mais maniqueu, não é ainda

verdadeiramente cristão. A instabilidade da existência, expressa sob a metáfora marítima,

é o correlato da desesperança soteriológica. Quem não possui esperança de realizar sua

salvação só resta a vacuidade ontológica de uma existência efêmera. É justamente esta

atitude que é descrita na alternativa das doutrinas maniqueias, acadêmica e cristã:

encontrando-se na desesperação de buscar a verdade, Agostinho abandona o

maniqueísmo, mas, assim procedendo, ele permanece desprovido de todo recurso, pois

ainda não encontrou a doutrina da salvação. Ele não “havia ainda se tornado adepto da

verdade”. E esta verdade é a Verdade divina, isto é, Cristo (e não somente as verdades às

20 AGOSTINHO, Confessiones V,7,12; V, 7,13; V, 10,18; V, 10,19; V,13,23; V,14,24; VI,1,1. 21 AGOSTINHO, Confissões VI,1,1 (o grifo é nosso).

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quais a inteligência humana é capaz de atingir)22. Trata-se aqui novamente de uma

desesperança soteriológica. Segundo Éric Dubreucq, a passagem da doutrina maniqueia

à cristã tem como ponto de ligação a busca da união com Cristo; as doutrinas acadêmicas

e neoplatônicas nada mais do que tempos intermediários nesta busca23. Embora considere

a doutrina acadêmica superior à maniqueia, ainda que incapaz ao nível soteriológico,

Agostinho não adota a atitude fundamental do cético, a saber: a suspensão do juízo. Em

lugar desta atitude, Agostinho adota a da instabilidade e a da flutuação. A julgar, portanto,

pelos dizeres do próprio Agostinho nas Confissões e pela indivisível unidade de discurso

filosófico e vida filosófica como marca da concepção antiga da filosofia, o seu chamado

período cético não é a descoberta da sabedoria cética, mas, antes um “tempo de dúvida”

(tempore dubitationis) do que uma construção intelectual: “Por essa razão (Itaque),

duvidando de tudo, à maneira dos acadêmicos – como os julga a opinião mais seguida –

e flutuando entre todas as doutrinas, determinei abandonar os maniqueístas, parecendo-

me que não devia, neste tempo de dúvida, permanecer naquela seita à qual já antepunha

alguns filósofos. Porém... esses filósofos desconheciam o nome salutar de Cristo.

Portanto (ergo), resolvi fazer-me catecúmeno na Igreja católica”24. Comparando os

termos itaque e ergo desta passagem com o itaque (Confesssiones III,V,9) que introduz

a passagem de Cícero à Bíblia e ao maniqueísmo, verificamos o que é decisivo aos olhos

de Agostinho: o nome de Cristo. Portanto, sua atitude é essencialmente orientada por uma

questão religiosa - como unir-se ao Cristo? Qual é a justa doutrina depositária do nome

de Cristo? – e não por uma questão “filosófica” no sentido clássico da Antiguidade tardia:

“Mas Vós sabeis, Luz do meu coração, que naquele tempo ainda não me eram conhecidos estes ensinamentos do Apóstolo S. Paulo [Cl 2,8]. Apenas me deleitava, naquela exortação [o Hortênsio de Cícero], o fato de essas palavras me excitarem fortemente e acenderem em mim o desejo de amar, buscar, conquistar, reter e abraçar, não esta ou aquela seita, mas sim a própria sabedoria (ipsam sapientiam), qualquer que ela fosse. Uma só coisa me magoava no meio de tão grande ardor: o nome de Cristo (nomen Christi) não se encontrava aí. [...] Por essa razão (Itaque), dediquei o meu espírito ao estudo das Sagradas Escrituras, e ver o que elas eram [...] Por essa razão (Itaque) caí nas mãos de homens orgulhosamente extravagantes, demasiado carnais e loquazes. Havia na sua boca laços do demônio e um engodo, preparado com a mistura de silabas do Vosso nome, de Nosso Senhor Jesus Cristo e do Espírito consolador, o Espírito Santo. [...]25.

22 Cf. Jo 14,6. Ao longo de seus escritos Agostinho utiliza frequentemente esta passagem (em conjunção com textos paulinos: por exemplo, 1Cor 1,24 em Contra Academicos II,1,1, Cristo como virtus et sapientia Dei) para falar que Cristo, Filho de Deus, Sabedoria de Deus, é a Verdade. 23 Cf. É. DUBREUCQ, Augustin et le scepticisme académicien, 344 et passim. 24 AGOSTINHO, Confessiones V,14,25 (o grifo é nosso). 25 Ver AGOSTINHO, Confessiones III,4,8; III,5,9; III,6,10; V,14,25 (o grifo é nosso).

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1.1.2. O ceticismo acadêmico assimilado por Agostinho

O breve exame das leituras agostiniana e ciceroniana do ceticismo acadêmico

confirmará que Agostinho podia interpretá-lo mais em sentido soteriológico do que

gnosiológico. Examinemos as teses do ceticismo acadêmico a fim de compreender a

natureza da tentação filosófica que aí se manifesta e, deste modo, verificar o que

Agostinho entendia por “ceticismo”. As leituras de Cícero e de Agostinho sobre o

ceticismo dos acadêmicos serão examinadas a partir da tese puramente negativa – “nada

é compreensível” – e sua consequência lógica de que “deve-se duvidar de tudo”.

Mas compreender tais leituras implica uma breve caracterização do contexto em que

se confrontarão os dogmáticos estoicos e os céticos acadêmicos26. O largo conflito entre

a Academia e a Stoa que começará entre Arcesilau (ca. 315-260 a.C.) e Zenão

(ca.333/332-262 a.C.), e que continuará quase cem anos depois com Carnéades (ca. 219-

129 a.C.) e com o estoico Crisipo (280-204 a.C.)., produzirá uma excelente filosofia

associada à questão do conhecimento e ao problema da verdade. Um dos problemas

clássicos que se apresenta na filosofia helenística como guia da discussão é o do critério

da verdade27: o termo krithvrion designa uma medida de compreensão. O critério

racional ou lógico se distingue dos critérios naturais (como a vista, a audição, o gosto) e

dos critérios tecnológicos, como a balança, a regra e o compasso. Todos esses critérios

são medidas de compreensão, mas somente o critério lógico depende da parte lógica da

filosofia e parece chamar-se “critério de verdade”.

1.1.2.1. A “phantasia katalēptikē” como critério de verdade entre os estoicos

O problema do “critério da verdade” era assaz debatido nas escolas de Atenas no tempo

de Arcesilau, sobretudo pelos estoicos, para os quais esta questão tinha uma importância

26 A propósito, ver sobretudo J. REID, Tulli Ciceronis Academica. London, 1885, 1-73; J. PIMENTEL, Cuestiones Acadêmicas. México, 1980, VII-XI; T. FUHRER, Das Kriterium der Wahrheit in Augustins “Contra Academicos”, Vigiliae Christianae XLVI (1992) 257-275; cf. também R. ROMÁN ALCALÁ, El enigma de La Academia Platônica. Escépticos contra dogmáticos en la Grecia Clasica, passim; V. BROCHARD, Os Céticos gregos. São Paulo: Odysseus, 2009, passim. 27 Não é aqui o lugar para desenvolver exaustivamente a discussão sobre o critério de verdade. Neste sentido, remeto para estudos clássicos sobre o assunto: G. STRIKER, The problem of the criterion, in Essays on Hellenistic Epistemology and Ethics. Cambridge: Crambridge University Press, 1996, 150-165; J. BRUNSCHWIG, Le problème de l’héritage conceptuel dans le scepticisme: Sextus Empiricus et la notion de krithvrion, in Études sur lês philosophies hellénistiques. Paris: PUF, 1995, 289-319. T. FUHRER, Das Kriterium der Wahrheit in Augustins “Contra Academicos”..., 257ss; J.-B. GOURINAT, La dialectique dês Stoïciens. Paris: J. Vrin, 2000, 59-68.

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crucial, ao considerar a lógica como base de toda sua filosofia. Antes de tudo, convém

precisar que devemos a Cícero a introdução no vocabulário filosófico dos termos

“compreensão” e “percepção” para traduzir o termo grego katavlhyi": mas deve-se a

Zenão a invenção do termo e grego e de seu corolário, a katavlhyi" fantasiva. O embate

crítico é sugerido pela segurança com que os estoicos acreditam ter encontrado a verdade

através de um critério indubitável. Assim, Zenão encontrava tal critério no que era

chamado de “representação kataléptica (= compreensiva)” (phantasia katalēptikē).

Explicando os termos: “phantasia” é cópia ou imagem mais ou menos aperfeiçoada de

um original, o qual é necessário como condição de verificação em nossa apreensão do

objeto; “katálēpsis” era para os estoicos um ato de assentimento a uma “representação”

indubitável, isto é, impressões mentais que se produzem a partir “do que existe realmente

e por si mesmo”. Entre as nossas diversas representações há aquelas que nos causam

uma impressão tão particular, tão clara e tão precisa, que se gravam tão vivamente na

alma que é impossível confundi-las com as outras e que trazem em si mesmas o

testemunho da verdade de seu objeto: dão-no a conhecer ao mesmo tempo em que elas

mesmas são conhecidas; em outros termos, são verdadeiras. Essas representações formam

o primeiro grau de conhecimento, e Zenão compara com a mão aberta; ao mesmo tempo

em que se produzem, elas provocam na parte superior da alma, em razão de sua clareza e

de sua força, um assentimento (synkatáthesis) que é como uma resposta ao choque vindo

de fora. Esse ato, emanado da iniciativa da alma, depende da vontade, mas jamais deixa

de se produzir quando a alma experimenta uma representação verdadeira. Este é o

segundo grau de conhecimento, comparado por Zenão à mão ligeiramente fechada. Em

seguida emergem a compreensão (katálēpsis), comparada ao punho, e depois a ciência,

assimilada ao punho fechado e fortemente mantido pela outra mão. Para Zenão o sábio

dá seu assentimento apenas à verdade; caso desse seu assentimento a representações que

não fossem compreensivas, o sábio deixaria de merecer esse nome.

1.1.2.2. O critério de verdade para os acadêmicos

Os argumentos dos acadêmicos contra o critério estoico de verdade são expostos por

Cícero, e com isso vemos claramente o nascimento da negação “nada é compreensível”.

Sem enveredar para a questão da distinção entre os argumentos de Arcesilau e os de

Carnéades, as críticas dos acadêmicos seriam as seguintes: 1. Se duas “representações”

são indistinguíveis, é impossível para uma ser “kataléptica” e para a outra, não, pois

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ambas são indistinguíveis. 2. Algumas “representações” são verdadeiras e outras, falsas.

Portanto, se duas “representações” são indistinguíveis é impossível saber qual delas é

verdadeira e qual é falsa. 3. Como consequência da anterior, qualquer coisa que seja

possível para uma “representação” verdadeira é possível para uma falsa, ao serem

indistinguíveis. Assim, na tese dos acadêmicos resumida por Cícero em Acadêmica

(II,XXVI,83), debate girava em torno da seguinte: “Não há representação verdadeira ao

lado da qual não se encontre uma falsa que se oponha a ela de alguma maneira”. Segundo

Carnéades, a “representação compreensiva” não tem, como sustentavam os estoicos, uma

propriedade intrínseca que a distingue das demais: se várias serpentes estão enroladas

dentro de uma caverna e uma dela levanta a cabeça, não conseguimos discernir com

segurança qual delas fez o movimento. A força do argumento dos acadêmicos contra a

definição estoica de verdade é direcionada contra estas características que tinha o critério

acadêmico, pois a verdade de uma “representação” não pode ser garantida pela própria

impressão. Isto seria um círculo vicioso. A verdade de uma “representação” tem que ser

provada por algo diferente da própria impressão (uma vez que, do contrário, seria o

mesmo que exigir-nos, à maneira de uma petição de princípio, crer como ato de fé na

própria impressão sensorial). Assim, pois, não é a capacidade perceptiva a que está sendo

questionada, mas a incapacidade para distinguir entre as “representações” verdadeiras

e falsas ou, em outras palavras: não duvido das representações que temos, mas de que

estas sejam indubitáveis, verdadeiras, fechadas e concluídas como propuseram os

estoicos. Para não chegar à tese da impossibilidade de saber, que conduziria à suspensão

de todo assentimento e, portanto, a um beco sem saída, a linha argumentativa para

resolver o dilema seria o seguinte: pelo que sabemos, dirá o acadêmico, as

“representações” que temos podem ser persuasivas, dissuasivas ou mais ou menos

persuasivas, conhecemos também que nenhuma “representação” pode ser jamais tão

segura que possamos aderir a ela com total garantia, razão pela qual as “representações”

persuasivas e dissuasivas, em sua pureza, não podem ser reconhecidas como tais. Assim

o único que permanece são as “representações” mais ou menos persuasivas: as mais

razoáveis.

Por conseguinte, posicionando-se contra os excessos dos dogmáticos estoicos, os

acadêmicos afirmam, portanto que o homem só pode perceber representações prováveis

e que não pode conhecer nada de verdadeiro, mas ambos compartilham a seguinte

ambição fundamental: o homem sábio é aquele que dá seu assentimento só às

representações que estão em conformidade ao objeto representado. Em outras palavras: o

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sábio é aquele que pauta toda sua conduta em representações compreensivas;

considerando que tais critérios teóricos são inacessíveis, quem os aceitar demonstrará ser

imprudente e permanecerá, portanto, afastado da sabedoria. Mas, qualquer que seja a

oposição entre os acadêmicos e dogmáticos estoicos, o sábio é sempre aquele que regra

sua conduta unicamente por representações compreensivas, e/ou, na falta delas, recusa

seguir as representações incertas. Descrevendo esta oposição em sua obra Academica,

Cícero se coloca do lado dos acadêmicos porque julga que o sábio não pode resignar-se

às simples conjecturas às quais está restrita a capacidade humana de pensar. O ceticismo

ciceroniano é uma oposição contra as pretensões dogmáticas estoicas, pois não pretende

aniquilar a potência de conhecer no homem, mas reconhecer seus limites, de forma a ser

sábio e não cair no erro mais sutil: crer ter chegado à verdade e à sabedoria absolutas. É

assim que encontramos uma outra possibilidade para redimensionar o dilema dos

acadêmicos: é necessário agir na vida com um critério de verdade, de conduta; daí que

tiveram que criar uma parcela positiva em sua filosofia que justificasse a ação. Se tudo é

incompreensível, o sábio ou suspende seu assentimento ou dá seu assentimento ao

incompreensível, caindo na opinião e até, é possível, no erro. Esta última perspectiva não

é tão negativa se pensamos que o sábio é, acima de tudo, um homem que teria que agir e

necessitaria de uma opinião, conformando-se na maioria dos casos com a simples

aparência da verdade, visto que o conhecimento certo é impossível: “Assim – nas palavras

de Cícero –, o sábio se servirá de toda representação que lhe é mostrada como provável

pelo seu aspecto, se não se apresenta nada que seja contrário a essa possibilidade, e desse

modo governará todo esquema de vida”28. Portanto, o novo sábio tem que aceitar que, ao

opinar, pode errar e equivocar-se; passamos, pois, da katalēptikē phantasia (que

supostamente não oferecia dúvidas) à simples persuasão da phantasia pithanē, mais

honesta, mais humilde, mais flexível. Cícero adverte que esta regra que usam os

acadêmicos, o provável, não é tanto um critério de conhecimento ou verificação da

verdade, mas uma necessidade para conduzir-nos na vida, primeiramente, e na

investigação e na dissertação29.

28 CÍCERO, Acad. II,XXXI,99. 29 CÍCERO, Acad. II,X,32. Cf. também R. ROMÁN ALCALÁ, El enigma de la Academia Platônica, 102-104.

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1.1.2.3. Agostinho e o critério de verdade

Agostinho, por sua vez, certamente compreendeu o ceticismo acadêmico como uma

autêntica “filosofia”, isto é, como uma procura real da sabedoria e da felicidade: é sábio

procurar a verdade sem ser capaz de encontrá-la, mas ele não retira disso nenhuma

segurança para sua salvação. Se a dúvida cética é sábia, esta sabedoria, na leitura que

Agostinho faz do ceticismo, não leva à “ataraxia”, como foi o caso justamente dos céticos

da época imperial e da antiguidade tardia; por essa razão, ela se associa nele a uma

desesperança soteriológica; a partir daqui a incapacidade para apreender a verdade

absoluta é desesperadora. O que mais chocou Agostinho neste período de “dúvida” não

foi tanto a recusa cética de admitir a percepção de uma verdade certa, mas, sim, a

impossibilidade que ele aí via de viver sabiamente. Neste sentido, o âmago deste seu

percurso parece ter sido mais uma desesperança soteriológica do que uma desesperança

gnosiológica.

No debate realizado no Livro I do Contra Academicos, a questão fundamental

concerne à descoberta do verdadeiro (verum) e da verdade (veritas)30. Admitamos ou não

que a mente humana possa atingir proposições verdadeiras, esta é uma questão distinta

daquela da possibilidade do homem relacionar-se, ou até de unir-se, com a verdade. Nesta

eventual relação ou união com a verdade, eis o problema: é preciso limitar-se a uma busca

ou deve-se conduzi-la até a descoberta e a posse do verdadeiro/verdade? Ora, tanto para

Licêncio como para Trigécio, parece que a condição para ter a felicidade é a relação do

homem com o binômio verdadeiro/verdade: “a sabedoria é o reto caminho da vida”

(sapientiam recte vitae esse), “a sabedoria é o reto caminho que conduz à verdade”

(sapientiam est via recta quae ad veritatem ducit)31. Na discussão “verdade” e

“sabedoria” são não somente aquelas que tematizam as filosofias estoicas, acadêmicas e

neoplatônicas, mas também o Cristo, em conformidade à sentença das Escrituras: “Eu sou

o Caminho, a Verdade e a Vida, e ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14,6); “Ele é a

Sabedoria e o Poder de Deus” (1 Cor 1,24)32. Este último texto paulino é citado no Contra

Academicos II,1,1 e, como bem observou T. Fuhrer, “a citação bíblica é [...] fundamental

para a interpretação de todo diálogo: o estudo filosófico da sapientia e – através da

equação sapientia = ueritas – bem como a busca da verdade se transformam assim no

30 Ver AGOSTINHO, Contra Academicos I,3,9. 31 AGOSTINHO, Contra Academicos I,5,13. 32 Cf. É. DUBREUCQ, Augustin et le scepticisme académicien, 359-364.

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esforço de conhecer a Deus”33. O que está em jogo aqui é, portanto, a possibilidade da

comunhão do homem com a verdade e com a sabedoria divinas, isto é, da união do homem

com a pessoa divina de Jesus Cristo e, mediante esta união, da divinização do homem.

Como bem observou também John J. O’Meara, o domínio de Agostinho era a religião e

não a filosofia; por isso, sua educação como professor de retórica e seu interesse pela

dialética se conjugaram para torná-lo estranho às questões filosóficas mais fundamentais

do ponto de vista técnico – por exemplo, a teoria do conhecimento. Convém lembrar que,

quando começa a refutar em 386 as conclusões a que chegam os acadêmicos, Agostinho

já tinha sido convencido pelos platônicos quanto à tese de que o conhecimento sensível

não é um verdadeiro conhecimento, e que o único conhecimento que importa é o

conhecimento inteligível, o qual, ao menos em suas operações mais elevadas e mais

profundas, revela-se independente dos sentidos. Ele reduzia, portanto, a nada todos os

argumentos céticos dos acadêmicos, uma vez que estes se baseavam em um conhecimento

derivado da experiência sensível34.

Em suma: Agostinho interpretou o ceticismo acadêmico como a recusa de admitir no

homem a capacidade de formar representações compreensivas e a invalidação da

pretensão estoica de fundamentar nelas a adesão da vida feliz; e, em um sentido amplo e

de forma inequívoca, como denúncia da impotência das forças humanas na busca da

sabedoria e da verdade; e, portanto, na possibilidade de obter através delas a felicidade.

Assim, Agostinho utilizará positivamente o probabilismo de Carnéades com o objetivo

de juntar-se à fé de seus pais (esta não é certa, mas é provável), que contrasta com a

ausência total da menção da possibilidade de obter a “ataraxia” pela suspensão do juízo e

com o questionamento da busca do verdadeiro e da união com a verdade. Abandonando

o ceticismo acadêmico, ao qual aderiu por um breve intervalo (do outono de 383 até 384,

quando começou a conviver com os meios cristãos em Milão), Agostinho chegará a

admitir o possível acesso à certeza da existência da Verdade quando deparou com os

escritos neoplatônicos. Todavia, este encontro não eliminará o certo “ceticismo” em

Agostinho, desde que o compreendamos no sentido de que entrar em união com a Verdade

não dependerá jamais das forças do homem. O que escapará completamente ao

33 AUGUSTIN, Contra Academicos (vel De Academicis), Bücher 2 und 3. Einleitung und Kommentar von T. Fuhrer, 66. No mesmo sentido se posiciona G. CATAPANO, Il concetto di filosofia nei primi scritti di Agostino. Analisi dei passi metafilosofici dal Contra Academicos al De vera religione, 58-59, nota 142. 34 Cf. J. J. O’MEARA, La jeunesse de Saint Augustin. Introduction aux Confessions de Saint Augustin. Paris-Suisse: Cerf/Éditions Universitaires Fribourg, 1997, 142.146.

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Neoplatonismo é admitir a união do homem com a Verdade divina, com o Logos

Encarnado.

1.2. O desejo de viver o otium filosófico: o choque libertador provocado pelo

Neoplatonismo

À luz de seus primeiros escritos35 e, especialmente, do Livro VII das Confissões36,

sabemos que Agostinho leu alguns “livros platônicos”. Considerando a quase

simultaneidade da redação dos livros Contra Academicos e De Beata Vita, é também

conhecida a existência de um “círculo neoplatônico” de intelectuais em Milão na mesma

época da conversão de Agostinho em 386. A este meio neoplatônico pertencia sem dúvida

S. Ambrósio, cujos Sermões permitiram ao Hiponense conseguir algumas referências

seguras que o conduzirão à conversão, a saber: a descoberta do sentido espiritual da

Escritura, o que lhe permitiria abandonar uma concepção antropomórfica da divindade e

aceder à idéia de uma semelhança espiritual entre o ser humano e Deus37.

Não é caso aqui de evocar a quaestio vexata que concerne à identidade desses “livros

platônicos”, mas, sim, chamar atenção para o fato de que a leitura de tais livros provocou

em Agostinho “un choc libérateur”38. Como bem observou Paula Oliveira e Silva, “ao

conjugar a leitura dos Platonicorum com a dos escritos de S. João e de S. Paulo,

Agostinho é levado a construir, progressivamente, uma simbiose entre os elementos

colhidos nas mundividências neoplatônica e cristã”39. Mas, concretamente, em que

sentido podemos entender o incêndio interior da alma de Agostinho após abandonar o

ceticismo acadêmico e deparar com os neoplatônicos? Este choque libertador pode ser

apresentado sob dois aspectos: teórico e prático. Em primeiro lugar, o encontro com os

“livros platônicos” representou uma enérgica reafirmação do primado do imaterial e uma

estupenda conquista da estrutura do suprassensível. Como o dito “Neoplatonismo” de

Agostinho se identifica pura e simplesmente com um platonismo, cuja base é a distinção

35 AGOSTINHO, Contra Academicos (II,2, 5) e De Beata Vita (I,4). 36 Cf. G. MADEC, Platonisme et christianisme. Analyse du livre VII des Confessions, in CARON, M. (sous la direction). Saint Augustin. Paris: Cerf, 2009, 77-158. 37 Segundo P. Courcelle, “Ambroise paraphrasait dans Le De Isaac uel anima et Le De bono mortis des pages entières des Ennéades”; Disto ele concluiu que Ambrósio era “l’adepte d’um néoplatonisme déjà fortement élaboré” e que por seus “sermons plotiniens”, ele “initiait [Augustin] en même temps au spiritualisme chrétien et aux doctrines plotiniennes”: (Recherches..., 106-138.136.253.138). 38 G. MADEC, Platonisme et christianisme, 91. 39 P. OLIVEIRA E SILVA, Ordem e Ser. Ontologia da Relação em Santo Agostinho. Braga: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007, 63-64.

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entre mundo inteligível e mundo sensível, não é difícil vislumbrar como se revelou

paulatinamente aos olhos do Hiponense a realidade inteligível em sua radical alteridade

e transcendência em relação ao sensível, quando elaborou uma ideia adequada de Deus e

resolveu o problema da origem do mal. A partir da leitura do Livro VII das Confissões,

podemos afirmar que Agostinho, depois de seu contato com os neoplatônicos, foi sempre

contrário a conceber a Deus de modo antropomórfico e assim tornou-se convicto de que

Deus era incorruptível, inviolável e imutável. A imersão de Agostinho nos livros

neoplatônicos permitiu-lhe perscrutar o mundo corpóreo em si mesmo para subir por

degraus da alma até a luz imutável da Verdade que ilumina as mentes. Compreende-se

assim que a certeza obtida por Agostinho através dos Neoplatônicos tenha desencadeado

aquele incrível incêndio narrado no Livro II do Contra Academicos (2,5). Em segundo

lugar, como consequência direta do aspecto teórico, deu-se a renúncia definitiva às

ambições mundanas. Eis aqui, portanto, o aspecto ético da assimilação dos livros

neoplatônicos. A proposta neoplatônica de um “itinerarium mentis in Deum” estava

indissoluvelmente associada a um processo de “conversão” à interioridade e de

purificação moral. Segundo tais filósofos, para chegar a um conhecimento isento de

qualquer conteúdo sensível, era preciso que a alma deslocasse a sua atenção de qualquer

atração terrena – prazeres, honras, riquezas - e voltasse seu olhar, antes de tudo, para si

mesma enquanto realidade imaterial e, posteriormente, aos princípios supremos (o

Intelecto e o Uno), donde ela provém. Uma vez chegada àquela contemplação, a alma

teria provado a verdade bem-aventurança, e todos os chamados “bens” desejados

comumente pelo homem lhe pareceriam desprezíveis.

Além disso, a descoberta da Verdade inteligível obrigava Agostinho a realizar um

projeto antigo, a saber: consagrar-se completamente à sapientia uma vez encontrada.

Neste sentido, duas passagens emblemáticas das Confissões confirmam inequivocamente

o que acabamos de afirmar. A primeira é Confissões VI,11,18: “Admirava-me muito, ao

recordar diligentemente quão longo fora o período do tempo decorrido após os dezenove

anos, idade em que começara arder no desejo da Sabedoria propondo-me, depois de obtê-

la, abandonar todas as esperanças frívolas e todas as loucuras enganosas das vãs paixões”.

A segunda é Confissões VIII,7,17-18, onde Agostinho recorda seu estado de ânimo depois

de ter ouvido a narração de Ponticiano sobre conversão repentina de dois funcionários

imperiais. Em seguida, emerge, a célebre cena do jardim. Ecce, iam certum est: a certeza

que procura, Agostinho a encontrou nos neoplatônicos: nenhuma desculpa mais pode ser

aduzida para nutrir ainda esperança do mundo. Passando do ceticismo acadêmico ao

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neoplatonismo, Agostinho descortinou um possível acesso à certeza da existência da

Verdade, mas falta-lhe ainda chegar à união com a própria Verdade, mas isto era

inacessível ao neoplatonismo. Só o encontro com Cristo, Verdade e Sabedoria de Deus,

foi possível encontrar o que ele procurava desde o início de sua odisseia intelectual.

2. Do Neoplatonismo ao Cristianismo: a proposição una verissimae philosophiae

disciplina

Uma vez explicados os sentidos do período cético de Agostinho e do incredibile

incendium em seu coração provocado pela leitura dos neoplatônicos, passemos,

finalmente, às partes fundamentais do texto escolhido do Contra Academicos (III,19,42):

este constitui a conclusão do excursus iniciado no § 37 do Livro III e representa um dos

textos mais importantes da relação entre “platonismo” e cristianismo no “primeiro

Agostinho”. Antes do exame da passagem40, proponho a seguinte tradução: Portanto (Itaque), nos dias de hoje, dificilmente vemos filósofos que não sejam ou Cínicos, ou Peripatéticos, ou Platônicos, e os Cínicos, na realidade, porque desfrutam de uma certa liberdade e licenciosidade de vida. No que diz respeito, porém, (autem) à instrução, à doutrina e aos costumes, com que se tem cuidado da alma, visto que não faltaram homens de grande agudez e habilidade para ensinar com as suas discussões que Aristóteles e Platão se harmonizam de tal maneira entre si que só aos incompetentes e aos desatentos podiam parecer discordar entre si, foi depurado (com o transcorrer de muitos séculos e muitas disputas), creio eu, um só sistema de filosofia perfeitamente verdadeira (una verissimae philosophiae disciplina). Esta não é, de fato, uma filosofia deste mundo, que os nossos textos sagrados com toda a razão abominam, mas a de outro mundo inteligível, ao qual esta razão sutilíssima jamais teria reconduzido as almas cegadas pelas multiformes trevas do erro e enlameadas com a enorme massa das imundícies provenientes do corpo, se o sumo Deus, com uma espécie de clemência popular, não tivesse inclinado e abaixado até o corpo humano a autoridade do Intelecto divino, de tal modo que, incitadas não somente pelos seus preceitos mas também pelas suas ações, as almas pudessem ter tido a possibilidade de entrar em si mesmas e voltar a olhar para a pátria, mesmo sem a contenda das discussões.

Segundo os comentadores, o parágrafo pode ser dividido em três partes, a saber: a

menção das escolas filosóficas contemporâneas (linhas 1-3), a apresentação da verissimae

philosophiae disciplina (linhas 4-10) e a contraposição entre a ratio subtilissima e a

divinis intellectus auctoritas quanto à questão da eficácia diversa de reconduzir as almas

ao mundo inteligível (linhas 10-19)41. Como já tratamos anteriormente das escolas

filosóficas no quadro do percurso intelectual de Agostinho, vejamos, primeiramente, a

40 Cf., sobretudo, G. CATAPANO, Il concetto di filosofia nei primi scritti di Agostino, passim; IDEM, I Dialoghi di Agostino: genesi e caratteristiche letterarie, em CATAPANO, G. (a cura di), AGOSTINO, Tutti i Dialoghi. Testo latino a fronte. Trad. Maria Bettetini, G. Catapano & G. Reale. Milano: Bompiani, 2006. 41 Cf. AUGUSTIN, Contra Academicos (vel De Academicis), Bücher 2 und 3. Einleitung und Kommentar von T. Fuhrer, in loco.

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penúltima parte do texto em questão para, no tópico seguinte, examinarmos a

superioridade do Cristianismo em relação à ratio subtilissima.

A oposição entre eruditio-doctrina-more, de um lado, e a libertas atque licentia do

Cinismo, de outro lado, sugere uma alusão à tripartição da filosofia (moralis, naturalis e

rationalis), já mencionada no § 37 (“em matéria de moral, ciência das coisas naturais e

divinas...e coroando... com uma disciplina... dialética”)42 em relação a Platão, onde

Agostinho não exprime uma opinião pessoal, mas apresenta um juízo tradicional sobre o

papel de Platão na história da Filosofia43. Pierre Hadot observou que a apresentação da

doutrina platônica no Diálogo em questão corresponde ao esquema ternário utilizado

pelos manuais escolásticos e insiste, em conformidade com o tema geral da obra, na

oposição entre verdade e verossimilhança em cada um dos três níveis da física, da lógica

e da ética44. No caso de admitir-se uma alusão a tal doutrina, a eruditio corresponderia à

naturalium divinarumque rerum peritia; a doctrina, à dialectica e os mores,

evidentemente, à ética. Falar de “um só sistema de filosofia perfeitamente verdadeira” só

é possível graças à harmonia entre Aristóteles e Platão. Neste sentido, quem são os

“homens de grande agudez e habilidade” (acutissimi et sollertissimi viri) que ensinaram

tal harmonização? Há três hipóteses45, a saber: 1ª) Porfírio, que escreveu um tratado

(perdido) intitulado Peri; tou' mivan ei[nai Plavtwno" kai; !Aristotevlou" ai[resin (=

“Sobre a unidade das escolas de Platão e Aristóteles”), hoje perdido. Confirmação desta

hipótese emerge do fato de que na Epistula 118,5,33 Agostinho adota uma mesma

expressão (acutissimi et sollertissimi viri) para designar os condiscípulos da schola

Plotini; 2ª) Cícero, que em vários lugares das suas obras asseverara a identidade

42 Esta divisão era comum e abarcava a lógica, a ética e a física e, segundo Cícero, a filosofia contemplava, portanto, uma tríplice forma de pesquisa que vinha da época de Platão. Sobre tal esquema, ver AGOSTINHO, De Civitate Dei XI,25: physica (naturalis, natura, ingenium, causa naturae), logica (rationalis, doctrina, scientia, forma scientiae), ethica (moralis, usus, usus, summa vitae): a física corresponde à ordem do ser; a ética, à ordem da vida; a lógica, à ordem do pensamento. 43 Convém lembrar que, ao reconstruir as vicissitudes especulativas da Academia no Contra Academicos III,15,33-16,36, Agostinho distingue a suas opiniões pessoais das informações históricas recebidas precisamente quando introduz as primeiras com expressões tais como “parece-me” (mihi videtur), “eu suspeito, suponho” (suspicor), “na minha opinião” (quantum arbitror), “eu creio” (ut opinor), e as outras com o verbo “diz-se” (dicitur). 44 Cf. P. HADOT, La présentation du Platonisme par Augustin, in RITTER, A.M. (hg. von). Kerygma und Logos Beiträge zu den geistesgeschichtlichen Beziehungen zwischen Antike und Christentum. Göttingen, 1979, 272-279, especialmente 272-273; IDEM, O que é Filosofia Antiga?. São Paulo: Loyola, 1999. É possível então encontrar a correspondência entre a lógica – que será a primeira obra –, e o Contra Academicos, onde se examinará o critério da verdade; entre a ética – que virá em segundo lugar –, e o De Beata Vita, n aqual se tratará do summum bonum, onde a felicidade não será senão o perfeito conhecimento de Deus; entre a física e o De Ordine, que completará o quadro, cujo tema será a “ordo rerum” ou o mal e a providência divina. 45 Cf. G. CATAPANO, Il concetto di filosofia nei primi scritti di Agostino, 159ss.

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substancial das cosmovisões da Academia e do Peripato; 3ª) As correntes conciliatórias

do médio e do neoplatonismo. As propostas mostram como a ideia da harmonia entre

platonismo e aristotelismo, enquanto projeto unitário do neoplatonismo, era

suficientemente difundida para que Agostinho pudesse julgá-la como boa.

Qualquer que tenha sido a demonstração do consenso entre platonismo e aristotelismo

por parte desses “homens de grande agudez e habilidade”, o efeito foi extraordinário,

segundo Agostinho: “foi depurado um só sistema de filosofia perfeitamente verdadeira”

(eliquata est una verissimae philosophiae disciplina). Antes de tudo, assinalamos a

multiplicidade de traduções feitas em função do significado atribuído ao termo

“disciplina” (“escola”, “disciplina”, “doutrina”, “sistema”, “ensinamento”,

“metodologia”). Para justificar a minha tradução e o sentido do termo philosophia,

examinemos a expressão detalhadamente. Antes de tudo, o adjetivo una. Como assevera

o próprio texto, a “unicidade” é o resultado de um processo que exigiu muitos séculos e

muitas disputas, reduzindo progressivamente as múltiplas philosophiae disciplinae a uma

só. Não difícil deduzir que tal processo abarcou duas fases: histórica e teórica. Na fase

histórica houve a eliminação do estoicismo e do epicurismo por obra do ceticismo

acadêmico. O perigo materialista foi afastado graças à prudente e à hábil conduta de

filósofos como Arcesilau, Carnéades, Fílon de Larissa e Cícero, e a doutrina platônica

voltou a brilhar, especialmente em Plotino, como declara expressamente Agostinho no §

41: “Não muito tempo depois daquela época, cessada toda obstinação e contumácia, a doutrina de Platão, a mais pura e luminosa da filosofia, expulsou as nuvens do erro46 e voltou a brilhar, principalmente em Plotino, filósofo platônico, que foi julgado tão semelhante ao seu mestre que se diria terem vivido juntos, se o longo tempo que os separa não obrigasse a crer que Platão reviveu em Plotino”47.

A segunda fase consiste em um momento teórico de exclusão e redução. O Cinismo é

excluído porque é um pretexto para viver sem regras e nada tem a dizer acerca da

educação intelectual e moral da alma. Platonismo e aristotelismo são, por sua vez,

harmonizados através da demonstração feita por “homens de grande agudez e

habilidade”. Só permanece então “uma só” philosophiae disciplina, onde disciplina

designa fundamentalmente uma “escola” ou um “sistema doutrinal”. Em segundo lugar,

46 A dispersão das “nuvens do erro” aqui está associada fundamentalmente à ação de Fílon de Larissa e de Cícero. O termo “erro” mencionado nesta passagem se insere em contexto diverso daquele em que o mesmo termo aparece na Epístula 118 (“erros dos gentios”): no primeiro caso (Contra Academicos III), trata-se da condenação da doutrina materialista dos estoicos no quadro da oposição ontológica de “mundo sensível” e “mundo inteligível”; no segundo caso (Epístula 118), o termo concerne à filosofia pagã em geral no contexto histórico-cristão. 47 AGOSTINHO, Contra Academicos III, XVIII,41.

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passemos ao predicado verbal eliquata est, que traduzimos por “foi depurado”. O verbo

eliquo significa “depurar”, “filtrar”, isto é, privar um líquido das impurezas ou um metal

das escórias. No sentido originário, “o verbo se refere à lavagem do mineral do ouro; este

exprime, portanto, um processo de purificação durante o qual elementos estranhos são

eliminados”48, o que explicaria, ao menos, parcialmente o superlativo verissima. Nesse

contexto, Agostinho tem em vista uma tradição eclesiástica já existente de ecletismo

filosófico. Os sistemas de Platão e de Aristóteles contêm elementos consideráveis de

verdade, mas nenhum deles constituía a verdade. No contexto das discussões

desenvolvidas do § 37 ao § 42, a verissimae philosophiae disciplina se identifica

substancialmente com a distinção platônica entre mundus intellegibilis e mundus

sensibilis e com as suas implicações ao nível gnosiológico e ético49. Se tomarmos como

base Cl 2,8 na versão da Vulgata (Videte ne quis uos decipiat per philosophiam et inanem

fallaciam secundum traditionem hominum secundum elementa mundi et non secundum

Christum), a alusão feita no De Ordine I,11,32 e a citação explícita no De Mor. I,21,3850,

a “filosofia deste mundo” é para Agostinho o materialismo estoico e epicureu, ao passo

que a “filosofia do outro mundo”, que não é incompatível com os sacra nostra, Agostinho

tem confiança de encontrá-la, naturalmente, junto aos platônicos51.

48 R. HOLTE, Béatitude et Sagesse. Saint Augustin et le problème de la fin de l’homme dans la philosophie ancienne. Paris-Worcester, 1962, 107. 49 Esta distinção evoca a célebre passagem do Fédon. Os fundamentos essenciais do platonismo, que serão retomados e transformados posteriormente pelos platônicos sob o nível ontológico-metafísico, são os seguintes: 1) a admissão da existência de dois planos da realidade e do ser, o inteligível e o sensível (essa é a conquista essencial da que o próprio Platão chamou de “segunda navegação” [deuvtero" plou'"]: expressão utilizada para indicar o processo de pensamento que levou à descoberta do supra-sensível, das Idéias). Platão distingue no Fédon “duas espécies de seres” (duvo ei[dh tw'n o[ntwn: 79 a-d). Os dois planos da realidade são descritos como “de um lado, o visível; de outro lado, o invisível - to; me;n o;ratovn, to; de; ajeidev"; 2) o explícito reconhecimento do fato de que o inteligível é a “verdadeira causa” do sensível (o sensível não é capaz de explicar a si próprio). Cf. minha obra A imortalidade da alma no “Fédon” de Platão. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. 50 A julgar pela observação judiciosa de T. FUHRER – na Vulgata e nas demais versões veterolatinas de Cl 2,8 falta o demonstrativo huius –, Agostinho fundamentou-se no texto de uma tradução utilizada nas dioceses de Milão na segunda metade do século IV. Consequentemente, é possível que a interpretação agostiniana do versículo tem sofrido o influxo do ambiente neoplatônico-cristão de Milão. Cf. AUGUSTIN, Contra Academicos (vel De Academicis), Bücher 2 und 3. Einleitung und Kommentar von T. Fuhrer, 453-454. 51 Cf. AGOSTINHO, Contra Academicos III,20,43: “apud Platonicos me interim, quod sacris nostris non repugnet, reperturum esse confido”.

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3. A superioridade do Cristianismo mediante a contraposição entre ratio

subtilissima e divinis intellectus auctoritas

A última parte do texto do Contra Academicos (III,19,42) foi objeto de leituras

diferentes e frequentemente contrastantes entre os comentadores, mas preferimos

interpretá-la aqui sem polemizar: a “declinatio e a “submissio” da autoridade do Intelecto

divino até o corpo humano designa fundamentalmente o evento histórico da Encarnação

do Verbo, mas como entender o uso dos subjuntivos imperfeitos (revocaret... declinaret

atque summitteret), uma vez que são utilizados normalmente na sintaxe latina para

enunciar uma hipótese irreal no presente? Para uma compreensão mais adequada,

vejamos, antes tudo, a estrutura gramatical da passagem. A apódose do período hipotético

é introduzida pelo nexo relativo cui, que substitui o pronome relativo ei (= alteri

<mundo> intelligibili) acompanhado por uma conjunção adversativa: “mas (sed) a de

outro mundo inteligível, ao qual (cui) esta razão sutilíssima (ratio subtilissima) jamais

(nunquam... nisi) teria reconduzido (revocaret) as almas cegadas pelas multiformes trevas

do erro e enlameadas com a enorme massa das imundícies provenientes do corpo, se o

sumo Deus, com uma espécie de clemência popular, não tivesse inclinado e abaixado

(declinaret atque summitteret) até o corpo humano a autoridade do Intelecto divino...”.

Se o uso do subjuntivo imperfeito é bastante comum em referência ao passado quando

justamente se tem em vista uma nuança potencial52, então o texto em questão pode ser

entendido assim: a ação expressa na apódose não teria jamais podido acontecer sem a

condição indicada na prótase: a ratio subtilissima não teria jamais conseguido reconduzir

as almas... ao mundo inteligível, se não tivesse acontecido a Encarnação. Assim, como

acontece no § 43, a ratio subtilissima indicaria em geral a argumentação racional de

sistemas doutrinais filosóficos, e o ato de “reconduzir” ao mundo inteligível realizado por

tal ratio concerne às almas impregnadas de erros intelectuais e de vícios morais. Nas

linhas finais da passagem em questão, Agostinho afirma que as almas foram estimuladas

pelos preceitos e pelas ações do Intelecto encarnado, e assim elas puderam voltar-se para

si mesmas, ainda que sem a contenda das discussões. O fascínio desta excitatio se deve

52 Cf. A. TRIANA-T. BERTOTTI, Sintassi normativa della lingua latina. Bologna, 1985, 436, nota 1: passagens extraídas de Cícero: [In senatum] si tum ueniret [“tivesse vindo”], me socium suorum in re publica consiliorum uideret posset (“teria podido ver-me politicamente ao seu lado”) (Pro Sest. 20,63).

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ao exemplo concreto da vida de Cristo, aos seus milagres, à sua morte e à sua

ressurreição53.

Portanto, se a obra de Cristo não tivesse criado um espaço favorável para o

acolhimento de uma “verissima philosophia” que reconhece, acima deste mundo sensível,

a existência de um mundo inteligível, sede da verdade e meta das almas, a capacidade

discursiva da alma não teria convidado os homens para retornar à pátria. Dentro do

programa projetado por Agostinho no Contra Academicos, para atingir a sabedoria

humana, é preciso percorrer as seguintes etapas: firme adesão à autoridade de Cristo,

demonstrando-se a mais eficaz, e utilização de conceitos e categorias “platônicas” para

aproximar-se de uma compreensão racional da revelação bíblica. Portanto, Agostinho

identificou o nous-intellectus neoplatônico com o Cristo, que é igualmente considerado

como portador do mundus intellegibilis (cf. Jo 18,36). Para aquele que deseja descobrir a

verdade pela ratio subtilissima, a fé no Cristo encarnado e na sua autoridade será o ponto

de partida e o caminho universal: Cristo é o Ser divino que nos mostrará a verdade. Tal é

a solução do Contra Academicos.

Referências

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53 Cf. Epistula 118 de Agostinho onde se tematizam e se desenvolvem todas as implicações da correlação entre os efeitos do exemplum fornecido por Cristo e a revocatio realizada pelos platônicos.

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