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BASILÍADE - REVISTA DE FILOSOFIA ADERE A UMA LICENÇA
CREATIVE COMMONS ATRIBUIÇÃO 4.0 INTERNACIONAL – (CC BY-NC 4.0) DOI: 10.35357/2596-092X.v3n5p9-35/2021
ARTIGOS / ARTICLES
CRISTIANISMO E NEOPLATONISMO EM AGOSTINHO: A PROPÓSITO DE UMA SENTENÇA DO CONTRA
ACADEMICOS (III,19,42): “UNA VERISSIMAE PHILOSOPHIAE DISCIPLINA”
Christianity and Neoplatonism in Augustine: On a Sentence of Contra Academicos
(III,19,42): “Una Verissimae Philosophiae Disciplina”
Bento Silva Santos1 RESUMO: Este artigo examina a questão das relações entre o cristianismo e a philosophia em uma passagem do Contra Academicos. Ora, a referência a Platão e ao “platonismo” ao longo de seus primeiros escritos exige algumas reflexões de esclarecimento quanto ao influxo recíproco de “platonismo” e cristianismo na conversão de Agostinho (386). O Augustinus Philosophus, que compõe uma série de escritos entre 386 e 391, é sensivelmente diverso daquele que é narrado nas Confissões e daquele que será bispo de Hipona em 395? Tratar-se-ia do Agostinho mais um “filósofo platônico” e muito menos “penitente”, que teria sido influenciado em grande parte mais pela filosofia neoplatônica do que pela fé cristã? Como entender, portanto, o pensamento de Agostinho nas primeiras obras, notadamente marcado pela leitura dos Libri platonicorum (Livros dos platônicos), quando confrontado com as obras da maturidade, nas quais atingiu plena consciência das verdades do cristianismo e onde teria superado o “platonismo” das origens? Esta é a celebre questão controversa sobre a “evolução” e/ou a “continuidade” do pensamento de Agostinho que pretendo tratar a partir de uma proposição emblemática do Livro III (19,42) de sua primeira obra filosófica. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia; Platão; Neoplatonismo; Cristianismo; Verdade. ABSTRACT: This article examines the question concerning the relations between Christianity and philosophia in a passage of Contra Academicos. The reference to Plato and “Platonism” throughout Augustine’s first writings requests some reflections on the reciprocal influence of Platonism and Christianity in his conversion (386). Is the Augustinus Philosophus, which composes a series of writings between 386 and 391, so different from that described in the Confessions and from that who will become bishop of Hippo in 395? Is he more a “Platonic philosopher” and much less a “penitent”, who would be more influenced, to a great extent, by the Neoplatonic philosophy than by Christian faith? Thus, how is to be understood the Augustinian thought in his first works, where he is particularly marked by the reading of the so-called Libri platonicorum (Books of the Platonists), in comparison with the works of maturity, where he is fully conscious of the Christian truths and would have overcome the “Platonism” of his
1 Doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: [email protected]
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beginnings? This is the famous controversial question regarding the “evolution” and/or the continuity of Augustine’s thought, which I intend to explore from an emblematic proposition of Book III (19,42) of his first philosophical work. KEYWORDS: Philosophy; Plato; Neoplatonism; Christianity; Truth.
Examinar a relação entre Cristianismo e Neoplatonismo na fase juvenil de Agostinho
implica evocar a questão complexa da recepção do “platonismo” na filosofia patrística do
mundo latino, e para tal questão existe uma gama de posições que vão desde uma total
recusa e hostilidade, uma grande abertura mental e uma assimilação das formas de
pensamento filosófico, uma atitude extremamente crítica – que não excluía, porém, a
recepção de certos elementos –, uma ampla recepção de formas do pensamento filosófico
às vezes em espírito de sincretismo até à recepção associada a uma transformação. Além
disso, o que chamamos hoje de “Neoplatonismo” é a expressão de uma reinterpretação
radical da filosofia platônica realizada por Plotino no século III d.C. e que se estendeu até
o século VI d.C. em diversas escolas e tendências, mas que nos primeiros escritos,
Agostinho, a partir de sua própria compreensão, simplifica afirmando que a essência do
“platonismo”2 se reduz à doutrina dos “dois mundos”: “um inteligível... e outro,
sensível”3.
Ademais, no contexto dos diferentes discursos de sabedoria encontrados por
Agostinho ao longo de seu percurso intelectual – da leitura da obra perdida (Hortensius)
de Cícero às Escrituras, do maniqueísmo ao ceticismo acadêmico, do ceticismo
acadêmico ao Neoplatonismo, do Neoplatonismo ao Cristianismo – o problema é ainda
mais complexo quando tentamos identificar os chamados “libri platonicorum” e seus
respectivos autores: tratar-se-ia de uma série de tratados de Plotino e/ou de Porfírio ou de
algum tipo de combinação recíproca que tais tratados tenham sido apresentados à leitura
de Agostinho? No caso do Contra Academicos, a questão se formularia assim: como
Agostinho julga, a partir de seu próprio ponto de vista teológico, os diferentes sistemas
filosóficos não cristãos? Em que medida Agostinho assimilou em seu próprio pensamento
2 O emprego do vocábulo “platônicos” tem a seguinte implicação: o ponto de vista de Agostinho pressupõe uma compreensão da vera philosophia, que tem suas raízes no Hortensius de Cícero, uma exortação à filosofia, que o Hiponense descobrira muito antes de sua conversão ao Cristianismo. Ora, para Agostinho, os filósofos são Pitágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles, os estoicos, os epicureus, os acadêmicos, etc. A chave interpretativa de seu pensamento procede da leitura de Plotino e Porfírio em traduções latinas hoje perdidas. Cf. M. RUCH, L’Hortensius de Cicéron: histoire et reconstitution. Paris: Les Belles Lettres, 1958. 3 AGOSTINHO, Contra Academicos III,17,37. Utilizo a seguinte crítica do Contra Academicos: SANCTI AURELII AUGUSTINI, Opera, pars II, 2 (CCL = Corpus Christianorum. Series Latina, XXIX). Turnholti, 1970, 3-61.
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teológico as contribuições da especulação filosófica do mundo antigo? Agostinho terá
tido ao mesmo tempo uma posição essencialmente tradicionalista frente à tradição
doutrinal da Igreja e uma atitude essencialmente eclética frente à filosofia “platônica”?
Portanto, no quadro mais amplo do itinerário intelectual de Agostinho, e no contexto de
seu período cético enquanto “tempo de dúvida” (tempore dubitationis), como
compreender a passagem do ceticismo ao Neoplatonismo e, em seguida, ao Cristianismo
em 386? À luz do Livro V das Confissões e do Livro I do Contra Academicos, podemos
formular a seguinte questão: Agostinho terá assimilado perfeitamente a dimensão
propriamente filosófica do ceticismo acadêmico como procura real da sabedoria e da
felicidade, mas a impossibilidade de encontrá-la o terá conduzido a uma desesperança
soteriológica no sentido de que a incapacidade para apreender a verdade absoluta é
desesperadora? Em suma: nas leituras filosóficas de Agostinho, como se desdobraram a
descoberta de um possível acesso à certeza da existência da Verdade (Neoplatonismo) e,
em seguida, a união à Verdade inacessível ao Neoplatonismo (Cristianismo)?
Em minha proposta de estudo da passagem do Contra Academicos (Livro III, capítulo
19, § 42)4 no contexto dos primeiros escritos de Agostinho, procurarei discutir essas
questões para formular uma alternativa na compreensão da obra agostiniana: em vez de
evocar a antiga querela de saber se Agostinho foi ou não um filósofo ou se ele descreve
somente uma teoria filosófica existente, pretendo esboçar como o Hiponense concebia o
que devia ser a filosofia, tentando evidenciar sua própria posição frente às
“possibilidades” ofertadas pelos discursos de sabedoria. Sob este aspecto, eu me limitarei
à questão da passagem do ceticismo acadêmico ao neoplatonismo e, deste último ao
Cristianismo, tal como se entrevê no juízo sobre o platonismo na passagem selecionada
do Contra Academicos. Globalmente, eis o itinerário de minha análise:
Em primeiro lugar, após mostrar em que sentido deve-se entender o “tempo da dúvida”
pelo qual passou Agostinho, será preciso levar em conta as características peculiares da
filosofia neoplatônica para descortinar o efeito decisivo em sua alma. Esta abordagem
4 Sobre o diálogo Contra Academicos, ver a introdução e as notas que elaborei para a tradução brasileira publicada na coleção “PATRÍSTICA”: S. AGOSTINHO, Contra os Acadêmicos, A Ordem, A Grandeza da Alma, O Mestre. Organizado por Bento SILVA SANTOS. São Paulo: Paulus, 2008, 9-27. Cf. também G. CATAPANO, Il concetto di filosofia nei primi scritti di Agostino. Analisi dei passi metafilosofici dal Contra Academicos al De vera religione. Roma: Institutum Patristicum Augustinianum, 2001, 21-174; IDEM, I Dialoghi di Agostino: genesi e caratteristiche letterarie, em CATAPANO, G. (a cura di), AGOSTINO, Tutti i Dialoghi, XXXV-LV.5-221; T. FUHRER, em AUGUSTIN, Contra Academicos (vel De Academicis), Bücher 2 und 3. Einleitung und Kommentar von T. Fuhrer. Berlin-New York, 1997. P. M. PALACIOS, O Estamento da verdade no Contra Academicos de Agostinho (Tese de doutorado em filosofia defendida em 2006 no Departamento de Filosofia da USP).
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permitirá compreender o sentido provável da proposição central do texto. E poderíamos
perguntar ainda: Agostinho terá acreditado que, uma vez experimentado os efeitos da
filosofia neoplatônica, os seus contemporâneos deveriam desembocar, logicamente na
conversão ao Cristianismo como a “filosofia” superior a todos os discursos de sabedoria
da época?
Em segundo lugar, analisarei ao longo do artigo as principais partes do parágrafo em
questão, a fim de explicitar o sentido conferido ao termo philosophia no contexto das
primeiras obras de Agostinho. Neste sentido, examinarei o porquê da menção das escolas
filosóficas contemporâneas, a apresentação da verissimae philosophiae disciplina e a
contraposição entre a ratio subtilissima e a divinis intellectus auctoritas quanto à questão
da eficácia diversa de reconduzir as almas ao mundo inteligível. No caso do Contra
Academicos a existência de una verissimae philosophiae disciplina é motivada pelo
acordo entre Aristóteles e Platão, mas saber de que philosophia se trata é ainda objeto de
discussão: Agostinho terá pensado no platonismo ou na doutrina dos dois mundos (1), ou
na síntese de platonismo e aristotelismo, realizada concretamente pelo neoplatonismo (2),
ou na filosofia de Plotino (3), ou na sabedoria cristã, que abarcava a doutrina do Verbo
encarnado e que coincidia com a vera et germana philosophia do De Ordine II,5,16 (4),
ou na doutrina do Logos divino, supostamente idêntica no neoplatonismo e no
Cristianismo? (5).
1. A questão “filosófica” de Agostinho: do possível acesso à certeza da existência
da Verdade à união com a Verdade inacessível ao Neoplatonismo
Após os estudos de Pierre Courcelle não se pode mais duvidar da sinceridade da
conversão de Agostinho em 386. Tratar-se-ia de saber como o neoconvertido combinou
a filosofia “platônica” e o dogma cristão na inteligência da fé que desejou elaborar5. Do
ponto de vista filosófico, esta conversão é a libertação de seu espírito, a descoberta da
pura espiritualidade de Deus e da alma. Não sem razão, François Masai afirmava que ela
marca o evento do espiritualismo no Ocidente6. Antes que a fé de Agostinho comportasse
um assentimento à cristologia católica e a esta reconhecesse uma autoridade absoluta, os
seus primeiros escritos e os relatos das Confissões sobre sua conversão testemunham a
5 P. COURCELLE, Recherches sur les Confessions de Saint Augustin. Paris: Boccard, 1950 (21968). 6 Cf. F. MASAI, Lês conversions de Saint Augustin et lês débuts Du spitualisme en Occident, Le Moyen Age 67 (1961) 1-40.
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impregnação progressiva de seu espírito pela verdade do Cristianismo. O itinerário
intelectual de Agostinho é marcado por um constante e complexo “ato de conversão”, que
se expressou ao longo de suas buscas pela verdade de sua existência. Sob qualquer forma
que se apresente, tal “conversão” possibilita o acesso à liberdade interior, a uma nova
percepção de Deus e do mundo, mas Agostinho percorreu muitas fases de “flutuação
intelectual” até descortinar nos “livros platônicos” a “moité de la vérité” do Cristianismo,
segundo a expressão de O. Du Roy7.
A julgar pela menção das escolas filosóficas “contemporâneas” no Contra Academicos
(III,19,42), e pelas Confissões8, a obra de Agostinho é o resultado de um longo processo
de formação durante o qual ele mesmo se formou9. Esta evolução consiste no
encadeamento das doutrinas pelas quais ele passou: Agostinho não transmite somente
uma compreensão das doutrinas filosóficas que ele encontrou; transmite, antes de tudo, o
testemunho do vir a ser de um caminho da interioridade ou da introspecção. Este consiste
em procurar a verdade olhando para si mesmo, segundo a fórmula emblemática “Noli
foras ire; in interiore homine habitat veritas”. A narração dos Livros I a IX das
Confissões nos mostra Agostinho passando de doutrina em doutrina, de uma maneira que
surpreende duplamente: não somente porque o compartilhamento entre as posições
filosóficas e as posições religiosas, ao qual estamos habituados, é inteiramente ignorado,
mas também porque as etapas de seu itinerário intelectual parecem escapar a toda lógica:
leitura do Hortensius de Cícero; em seguida, da Bíblia, enveredando para a doutrina
maniqueia e, depois, passando para o ceticismo dos acadêmicos, audição dos sermões de
S. Ambrósio de Milão, leitura de “certos livros dos platônicos” e erro cristológico
consecutivo10; e enfim, adesão ao Cristianismo.
Chama a atenção neste percurso a aparente ausência de distinção entre as finalidades
das posições filosóficas, gnóstico-maniqueia e cristã, que parece implicar. Certamente
7 O. DU ROY, L'intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin. Paris: Études Augustininnes, 1966, 64-66. 8 Cf. a monumental edição comentada das Confessiones em VV. AA., Sant’Agostino. Confessioni vol. 1: Libri I-III; vol. 2: Libri IV-VI; vol. 3: Libri VII-IX; vol. 4: Libri X-XI; vol. 5: Libri XII-XIII. Milano: Fondazione Lorenzo Valla-Arnaldo Mondadori Editore, 1994-1997. 9 Isto é confirmado também pela leitura assídua das obras de Cícero por parte de Agostinho: Cf. M. TESTARD, Saint Augustin et Cicéron. 2 vol. Paris: Études Augustiniennes, 1958. O index apresentado no volume II (Répertoire des textes, 117-128) indica que Agostinho se servira abundantemente de Cícero, sendo capaz de citar de memória vários de seus textos. Neste sentido, Agostinho não podia ignorar as apresentações doutrinais das diferentes escolas filosóficas – estoicismo, aristotelismo, epicurismo, academicismo e platonismo – nem o uso que fazia Cícero da filosofia. 10 Cf. AGOSTINHO, Confessiones VII, 19,25. Cf. também J. BRACHTENDORF, Confissões de Agostinho. São Paulo: Loyola, 2008, 121-155.
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não quero dizer que Agostinho tenha confundido as doutrinas filosóficas (por exemplo,
acadêmica), maniqueia e cristã, mas que ele entra em relação com elas sob uma maneira
particular, o que leva inevitavelmente à seguinte questão: qual seria a intenção que subjaz
às leituras de Agostinho, quer dos discursos filosóficos (particularmente os da época
imperial [de Cícero a Plotino e Porfírio]) 11, quer dos discursos oraculares, revelados, quer
dos discursos exegéticos, que propõem um salvador, uma gnose (essencialmente, pensa
na gnose maniqueia, enquanto ela se propõe como uma exegese da Bíblia que conduz à
salvação)? Discursos filosóficos e escrituras santas, recebidas segundo a exegese
gnóstico-maniqueia ou segundo a exegese cristã, são assim considerados de modo
idêntico como discursos de sabedoria.
Problematizando o itinerário intelectual de Agostinho poderíamos afirmar que dois
tipos de questão se cruzam aqui: 1ª) Qual é a filosofia elaborada por Agostinho, que
acabou rompendo com as filosofias de sua época, como sabemos através de seu relato nas
Confissões I-IX, em direção à superioridade do cristianismo afirmada na passagem do
Contra Academicos que examinaremos mais adiante e confessada no Livro VII das
Confissões? Qual é o modo de compartilhamento entre posições filosóficas e posições
religiosas? Se os dois campos se constituem mutuamente e por interação, qual é a regra
comum de sua constituição? 2ª) Que tipo de coerência leva Agostinho a passar de doutrina
em doutrina? Qual é a questão (de cunho gnosiológico e/ou soteriológico?) que o conduz
a interessar-se sucessivamente por Cícero, pela Bíblia, pelo maniqueísmo, pelo ceticismo
acadêmico, pelo “platonismo” e, por fim, pelo Cristianismo? Como apreender
adequadamente o sentido das leituras filosóficas de Agostinho? À luz das Confissões, a
atitude de Agostinho terá sido orientada por uma única questão, a saber: como unir-se ao
Cristo? Qual é a doutrina justa, isto é, na real posse do nome de Cristo, identificado com
a sabedoria?
11 Embora compartilhe certas teses com a filosofia “platônica” nos diálogos iniciais, Agostinho faz, porém, algumas críticas ao platonismo (única escola à qual ele reconhece uma proximidade com o Cristianismo) no último de seus escritos anteriores à ordenação presbiteral (391). Trata-se da obra De Vera Religione (II-III). Endereçado ao amigo Romaniano, sequaz do maniqueísmo, o De vera Religione se concentra inteiramente sobre o tema do monismo ontológico, da unicidade do princípio primeiro: a religião católica, confessada no reconhecimento fideísta pela autoridade das Escrituras, é verdadeira pelo seu concordar com a razão em afirmar a única origem, a única verdade e o único fim do homem e do universo. A crítica se desenvolve em três momentos em torno da questão cristológica: não se encontra, nas doutrinas filosóficas, o reconhecimento de que Cristo é mediador da salvação (I), mas, ao contrário, uma impotência em unir-se a Deus contrastando com sua pretensão soteriológica (II), e, finalmente, crenças e ideias incompatíveis com o Cristianismo, particularmente sobre a substância da alma, sua proveniência e seu destino (III). Cf. G. LETTIERI, Il senso della storia in Agostino d’Ippona. Roma: Borla, 1988, 22-27.
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Por trás dessas leituras emerge um Agostinho animado de uma preocupação
soteriológica12, mas sem ter recebido ainda a instrução cristã sobre a fé cristã, razão pela
qual, fascinado pela exortação do Hortensius de Cícero, ele iniciou sua busca pelo sentido
de sua existência nos diversos discursos de sabedoria encontrados na época. Se
considerarmos brevemente este percurso, compreenderemos o processo de exclusão e
redução que Agostinho fará propósito das escolas filosóficas mencionadas na passagem
em exame do Contra Academicos até admitir a superioridade do Cristianismo ao qual se
convertera em 38613. Mas em função do objetivo que me propus neste artigo, não será
possível elaborar um estudo completo deste itinerário. Eu me limitarei a algumas
observações essenciais que possam iluminar o sentido das leituras filosóficas de
Agostinho.
1.1. A leitura agostiniana do ceticismo acadêmico
A desilusão em relação ao maniqueísmo induziu Agostinho, durante a sua permanência
em Roma no ano de 383, a abraçar por um certo período as doutrinas céticas: “Ocorreu
ao pensamento ter havido uns filósofos acadêmicos, mais prudentes do que os outros,
porque julgavam que de tudo se havia de duvidar e sustentavam que nada de verdadeiro
podia ser compreendido pelo homem”14. Decepcionado, em Cartago, por seu encontro
com Fausto, Agostinho parte para Roma onde fica doente por ocasião de sua chegada.
Ele reencontra ainda maniqueus com os quais partilha algumas opiniões, mas não hesita
em criticá-los. Este período começa a terminar a partir de 384 quando Agostinho residia
em Milão. Encontrando o bispo Ambrósio, o Hiponense ouviu suas homilias, repletas de
reminiscências platônicas. Neste ambiente de cristãos platônicos Agostinho encontrará,
juntamente com a leitura dos “livros platônicos” em 386, o ensinamento cristão que
procurava15.
A experiência da “dúvida cética” de Agostinho e o uso que é feito da doutrina
correspondente em sua evolução intelectual devem ser interpretados a partir de suas
afirmações no Livro V das Confissões e da leitura cursiva do Contra Academicos, mas
isto pressupõe apresentar alguns elementos que dificultam a compreensão das relações de
12 Uma confirmação desta tese encontra-se no exame dos Livros III, V e VII das Confessiones. 13 Esta superioridade é evidenciada com rigor por A. MAGRIS, La filosofia greca e la formazione dell’identità cristiana, ASE 21/1 (2004) 59-107. 14 AGOSTINHO, Confessiones V,10,19. 15 Cf. AGOSTINHO, Confessiones V, 10,18; V,10,19; V, 13,23.
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Agostinho com a doutrina dos céticos acadêmicos: de um lado, a questão de saber em que
sentido Agostinho adotou a posição acadêmica; de outro lado, por qual regra de coerência
ele passou de Cícero à Bíblia, da Bíblia ao maniqueísmo e do maniqueísmo ao ceticismo;
enfim, se Agostinho permaneceu cético ou deixou de sê-lo, isto é, sua relação com o(s)
projeto(s) filosófico(s) e sua maneira de apreender o sentido do(s) mesmo(s)16.
Se Agostinho, ao menos durante o tempo que vai de seu encontro com Fausto à sua
leitura dos neoplatônicos, adere às teses acadêmicas, é sob a condição de resumir sua
relação com esta doutrina em cinco proposições: (I) A indagação acerca de uma união
salvífica com a divindade (o Cristo identificado com a sabedoria e com a verdade)
condiciona suas pesquisas doutrinais, de sorte que é (2) uma “desesperança soteriológica”
que o aproxima do ceticismo acadêmico, mesmo se é verdade (3) que sua “desesperança
gnosiológica” serviu-lhe para terminar de refutar as pretensões maniqueias de possuir a
gnose verdadeira e salvífica; de outro lado (4) Agostinho parece-nos ter interpretado a
tese acadêmica da incapacidade do homem de formar uma representação compreensiva
da verdade no sentido de uma impotência do homem em unir-se a Deus, sem (5) ter
aceitado a possibilidade de atingir a ataraxia pela suspensão do juízo nem a beatitude
pela pura pesquisa do verdadeiro17. A rigor, Agostinho não oferece uma apresentação da
doutrina acadêmica, mas distribui o entendimento que dela possuía em dois pontos,
designando sua própria compreensão como imperfeita: (1) Deve-se duvidar de tudo (de
omnibus dubitandum esse); (2) nada de verdadeiro podia ser compreendido pelo homem
(Nec aliquid veri ab homine comprehendi posse); (3) na verdade os acadêmicos tinham
escondido sua “intenção” e o verdadeiro sentido de sua doutrina, a fim de que o “vulgar”
não tivesse acesso a ela: a prudência deles não é somente de ordem gnosiológica, mas ela
dissimula uma verdade mais profunda18.
16 Cf. sobretudo É. DUBREUCQ, Augustin et le scepticisme académicien, Recherches de Science Religieuse 86/3 (1998) 335-365. 17 Cf. também S. FERRETTI, Il giudizio di Sant’ Agostino sulla Nuova Accademia tra scetticismo ed esoterismo, Filosofia 41 (1990) 155-183; M. WAGNER, San Agustin y el escepticismo, Avgvstinvs 37 (1992) 105-143; J.-J. O’DONNEL, Augustine Confessions II. Oxford: Clarendon Press, 1992, 314-315; É. DUBREUCQ, Augustin et le scepticisme académicien, passim. 18 Cf. AGOSTINHO, Contra Academicos III, § 37 ao § 43. Agostinho elabora nesses parágrafos uma “hipótese histórica” sobre as vicissitudes da Academia platônica. Nesta reinterpretação da filosofia de Platão discutida na Academia vê-se que Agostinho assume a tese de que houve um forte dogmatismo em Platão e nos desenvolvimentos posteriores estoicos e neoplatônicos. Nesse caso, nem Platão, nem, supostamente, Arcesilau ou Carnéades seriam céticos (ou seriam anomalias), e este título só conviria aos pirrônicos. Sobre a ideia de que na Academia se preservava a parte dogmática do platonismo, ver especialmente C. LÉVY, Scepticisme et dogmatisme dans l’academie: ‘l’ésoterisme” d’Arcesilas, Revue dês Études Latines 56 (1978) 335-348. Cf. também R. ROMÁN ALCALÁ, El enigma de la Academia de Platón: Escépticos contra dogmáticos en la Grecia Clásica. Cordoba: Berenice, 2007, 35-50.
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1.1.1. O “tempo cético” de Agostinho segundo o Livro V das Confissões
A partir da leitura do livro V das Confissões podemos entender o “tempo cético” da
seguinte maneira: Se Agostinho achou sedutora a tese maniqueísta concernente à origem
do mal e à natureza da alma, ele experimentou certamente alguma repugnância em aderir
às narrações cosmogônicas que a sustentam: ele esperava Fausto como aquele que
resolveria todas essas dificuldades que ele não pudera elucidar, não obstante todas suas
leituras dos escritos dos filósofos (isto é, a filosofia da natureza)19. Os elementos do
“tempo” cético – que caracterizariam perfeitamente a atitude dos acadêmicos – são
entendidos por Agostinho como desesperança e instabilidade. Mas é de seu próprio
desespero que a narração das Confissões faz nascer a aproximação de Agostino com as
posições acadêmicas que ele já conhecia por já tê-las encontrado em Cícero. Não se trata
de adotar a posição cética como tal, suspendo o juízo para conseguir a sabedoria sob a
forma da ataraxia; quando não se pode ter nenhuma posição afirmativa e certa, que
atitude assumir para melhor conduzir a vida? Agostinho tem o conhecimento de uma tese
negativa, segundo o Contra Academicos (III,9,18): “negant Academici sciri aliquid
posse”: os acadêmicos não são, portanto, aqueles que afirmam que o saber é inacessível
ao homem, mas aqueles que negam que o homem possa saber o que quer que seja. O
coração da doutrina concerne à possibilidade de uma certeza vivida, e isto é fundamental
para compreender como o ceticismo acadêmico penetra na vida de Agostinho. A
desesperança teórica ou gnosiológica é bem menos decisiva na maneira como Agostinho
recebe o ceticismo acadêmico do que sua desesperança vivida, que se situa no plano da
questão da salvação pessoal. Mas é preciso observar que a desesperança não é gerada pelo
ceticismo, mas nasce, antes de tudo, da decepção engendrada por Fausto e, a fortiori,
pelos outros maniqueus. A desesperança de Agostinho deve ser entendida no sentido
soteriológico: de que ou de quem esperar a salvação, uma vez que o maniqueísmo se
mostrou pura quimera? Segundo as Confissões, Agostinho continuava a frequentar os
maniqueus mesmo já desesperando de poder alcançar a verdade por meio desta falsa
doutrina, ou seja, Agostinho, renunciara a tornar-se um Eleito e assim assegurar sua
salvação pela doutrina de Manés. Esta desesperança concerne à salvação, e Agostinho
desesperava até mesmo de realizar sua salvação na Igreja católica, uma vez que os
maniqueus o enganaram fazendo-lhe crer ser impossível de encontrar nela a verdade.
19 Cf. AGOSTINHO, Confessiones V,7,12.
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Vejamos, portanto, algumas passagens onde aparecem o termo desesperare e seus
derivados: “Comecei a desesperar (desesperare) da sua [= Fausto] capacidade para me esclarecer...desesperei (desperans) ainda mais dos seus restantes mestres...Mas, já desesperado (desperans) de poder alcançar a verdade por meio desta falsa doutrina... desesperava (desperantem) de poder encontrar na vossa Igreja a verdade de que me tinham apartado...Comecei a amá-lo [Ambrósio), ao princípio não como mestre da Verdade – pois desesperava (desperabam) de encontrá-la na Vossa Igreja – mas... perdidas já todas as esperanças (desperanti) de que se patenteasse ao homem o caminho para Vós...Desconfiava e desesperava (desperabam) de encontrar a verdade...Encontrou-me em grave perigo, na desesperação (desperatione) de buscar a verdade”20.
O outro elemento – a instabilidade – deve ser compreendido à luz da desesperança
soteriológica: não poder encontrar salvação em Deus através da interpretação da boa
doutrina significa errar em uma existência doravante privada de todo sentido e ser
condenado irremediavelmente à obscuridade e à perda sem retorno. Na abertura do Livro
VI das Confissões Agostinho resume o estado de seu espírito na época: “Minha mãe, forte na piedade, já tinha vindo ao meu encontro, seguindo-me por terra e por mar, com a segurança posta em Vós, no meio de todos os perigos. Era ela que, nos riscos dos mares, incutia coragem aos próprios marinheiros que costumam animar os inexperientes navegadores do abismo, quando se perturbam: prometia-lhes a chegada a salvo, porque Vós, em visão, lhe havíeis prometido isso. Encontrou-me em grave perigo, na desesperação de buscar a verdade; mas, enfim, descobrindo-lhe que já não era maniqueia e que também ainda não era católico, não saltou de alegria, como quem ouve qualquer nova imprevista [...]. Não foi, portanto com imoderado júbilo que seu coração estremeceu, ao ouvir que em grande parte me tinha convertido, graça que ela todos os dias Vos pedia com lágrimas. Ainda não havia me tornado adepto da verdade, mas já me tinha arrancado do erro”21.
A passagem em questão nos oferece duas coisas importantes: a viagem marítima de
Mônica tornou-se uma metáfora da existência humana. Considerando a associação entre
a desesperança e a verdade, emerge a seguinte interpretação: não saltar de alegria significa
que Mônica percebeu que seu filho, mesmo não sendo mais maniqueu, não é ainda
verdadeiramente cristão. A instabilidade da existência, expressa sob a metáfora marítima,
é o correlato da desesperança soteriológica. Quem não possui esperança de realizar sua
salvação só resta a vacuidade ontológica de uma existência efêmera. É justamente esta
atitude que é descrita na alternativa das doutrinas maniqueias, acadêmica e cristã:
encontrando-se na desesperação de buscar a verdade, Agostinho abandona o
maniqueísmo, mas, assim procedendo, ele permanece desprovido de todo recurso, pois
ainda não encontrou a doutrina da salvação. Ele não “havia ainda se tornado adepto da
verdade”. E esta verdade é a Verdade divina, isto é, Cristo (e não somente as verdades às
20 AGOSTINHO, Confessiones V,7,12; V, 7,13; V, 10,18; V, 10,19; V,13,23; V,14,24; VI,1,1. 21 AGOSTINHO, Confissões VI,1,1 (o grifo é nosso).
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quais a inteligência humana é capaz de atingir)22. Trata-se aqui novamente de uma
desesperança soteriológica. Segundo Éric Dubreucq, a passagem da doutrina maniqueia
à cristã tem como ponto de ligação a busca da união com Cristo; as doutrinas acadêmicas
e neoplatônicas nada mais do que tempos intermediários nesta busca23. Embora considere
a doutrina acadêmica superior à maniqueia, ainda que incapaz ao nível soteriológico,
Agostinho não adota a atitude fundamental do cético, a saber: a suspensão do juízo. Em
lugar desta atitude, Agostinho adota a da instabilidade e a da flutuação. A julgar, portanto,
pelos dizeres do próprio Agostinho nas Confissões e pela indivisível unidade de discurso
filosófico e vida filosófica como marca da concepção antiga da filosofia, o seu chamado
período cético não é a descoberta da sabedoria cética, mas, antes um “tempo de dúvida”
(tempore dubitationis) do que uma construção intelectual: “Por essa razão (Itaque),
duvidando de tudo, à maneira dos acadêmicos – como os julga a opinião mais seguida –
e flutuando entre todas as doutrinas, determinei abandonar os maniqueístas, parecendo-
me que não devia, neste tempo de dúvida, permanecer naquela seita à qual já antepunha
alguns filósofos. Porém... esses filósofos desconheciam o nome salutar de Cristo.
Portanto (ergo), resolvi fazer-me catecúmeno na Igreja católica”24. Comparando os
termos itaque e ergo desta passagem com o itaque (Confesssiones III,V,9) que introduz
a passagem de Cícero à Bíblia e ao maniqueísmo, verificamos o que é decisivo aos olhos
de Agostinho: o nome de Cristo. Portanto, sua atitude é essencialmente orientada por uma
questão religiosa - como unir-se ao Cristo? Qual é a justa doutrina depositária do nome
de Cristo? – e não por uma questão “filosófica” no sentido clássico da Antiguidade tardia:
“Mas Vós sabeis, Luz do meu coração, que naquele tempo ainda não me eram conhecidos estes ensinamentos do Apóstolo S. Paulo [Cl 2,8]. Apenas me deleitava, naquela exortação [o Hortênsio de Cícero], o fato de essas palavras me excitarem fortemente e acenderem em mim o desejo de amar, buscar, conquistar, reter e abraçar, não esta ou aquela seita, mas sim a própria sabedoria (ipsam sapientiam), qualquer que ela fosse. Uma só coisa me magoava no meio de tão grande ardor: o nome de Cristo (nomen Christi) não se encontrava aí. [...] Por essa razão (Itaque), dediquei o meu espírito ao estudo das Sagradas Escrituras, e ver o que elas eram [...] Por essa razão (Itaque) caí nas mãos de homens orgulhosamente extravagantes, demasiado carnais e loquazes. Havia na sua boca laços do demônio e um engodo, preparado com a mistura de silabas do Vosso nome, de Nosso Senhor Jesus Cristo e do Espírito consolador, o Espírito Santo. [...]25.
22 Cf. Jo 14,6. Ao longo de seus escritos Agostinho utiliza frequentemente esta passagem (em conjunção com textos paulinos: por exemplo, 1Cor 1,24 em Contra Academicos II,1,1, Cristo como virtus et sapientia Dei) para falar que Cristo, Filho de Deus, Sabedoria de Deus, é a Verdade. 23 Cf. É. DUBREUCQ, Augustin et le scepticisme académicien, 344 et passim. 24 AGOSTINHO, Confessiones V,14,25 (o grifo é nosso). 25 Ver AGOSTINHO, Confessiones III,4,8; III,5,9; III,6,10; V,14,25 (o grifo é nosso).
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1.1.2. O ceticismo acadêmico assimilado por Agostinho
O breve exame das leituras agostiniana e ciceroniana do ceticismo acadêmico
confirmará que Agostinho podia interpretá-lo mais em sentido soteriológico do que
gnosiológico. Examinemos as teses do ceticismo acadêmico a fim de compreender a
natureza da tentação filosófica que aí se manifesta e, deste modo, verificar o que
Agostinho entendia por “ceticismo”. As leituras de Cícero e de Agostinho sobre o
ceticismo dos acadêmicos serão examinadas a partir da tese puramente negativa – “nada
é compreensível” – e sua consequência lógica de que “deve-se duvidar de tudo”.
Mas compreender tais leituras implica uma breve caracterização do contexto em que
se confrontarão os dogmáticos estoicos e os céticos acadêmicos26. O largo conflito entre
a Academia e a Stoa que começará entre Arcesilau (ca. 315-260 a.C.) e Zenão
(ca.333/332-262 a.C.), e que continuará quase cem anos depois com Carnéades (ca. 219-
129 a.C.) e com o estoico Crisipo (280-204 a.C.)., produzirá uma excelente filosofia
associada à questão do conhecimento e ao problema da verdade. Um dos problemas
clássicos que se apresenta na filosofia helenística como guia da discussão é o do critério
da verdade27: o termo krithvrion designa uma medida de compreensão. O critério
racional ou lógico se distingue dos critérios naturais (como a vista, a audição, o gosto) e
dos critérios tecnológicos, como a balança, a regra e o compasso. Todos esses critérios
são medidas de compreensão, mas somente o critério lógico depende da parte lógica da
filosofia e parece chamar-se “critério de verdade”.
1.1.2.1. A “phantasia katalēptikē” como critério de verdade entre os estoicos
O problema do “critério da verdade” era assaz debatido nas escolas de Atenas no tempo
de Arcesilau, sobretudo pelos estoicos, para os quais esta questão tinha uma importância
26 A propósito, ver sobretudo J. REID, Tulli Ciceronis Academica. London, 1885, 1-73; J. PIMENTEL, Cuestiones Acadêmicas. México, 1980, VII-XI; T. FUHRER, Das Kriterium der Wahrheit in Augustins “Contra Academicos”, Vigiliae Christianae XLVI (1992) 257-275; cf. também R. ROMÁN ALCALÁ, El enigma de La Academia Platônica. Escépticos contra dogmáticos en la Grecia Clasica, passim; V. BROCHARD, Os Céticos gregos. São Paulo: Odysseus, 2009, passim. 27 Não é aqui o lugar para desenvolver exaustivamente a discussão sobre o critério de verdade. Neste sentido, remeto para estudos clássicos sobre o assunto: G. STRIKER, The problem of the criterion, in Essays on Hellenistic Epistemology and Ethics. Cambridge: Crambridge University Press, 1996, 150-165; J. BRUNSCHWIG, Le problème de l’héritage conceptuel dans le scepticisme: Sextus Empiricus et la notion de krithvrion, in Études sur lês philosophies hellénistiques. Paris: PUF, 1995, 289-319. T. FUHRER, Das Kriterium der Wahrheit in Augustins “Contra Academicos”..., 257ss; J.-B. GOURINAT, La dialectique dês Stoïciens. Paris: J. Vrin, 2000, 59-68.
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crucial, ao considerar a lógica como base de toda sua filosofia. Antes de tudo, convém
precisar que devemos a Cícero a introdução no vocabulário filosófico dos termos
“compreensão” e “percepção” para traduzir o termo grego katavlhyi": mas deve-se a
Zenão a invenção do termo e grego e de seu corolário, a katavlhyi" fantasiva. O embate
crítico é sugerido pela segurança com que os estoicos acreditam ter encontrado a verdade
através de um critério indubitável. Assim, Zenão encontrava tal critério no que era
chamado de “representação kataléptica (= compreensiva)” (phantasia katalēptikē).
Explicando os termos: “phantasia” é cópia ou imagem mais ou menos aperfeiçoada de
um original, o qual é necessário como condição de verificação em nossa apreensão do
objeto; “katálēpsis” era para os estoicos um ato de assentimento a uma “representação”
indubitável, isto é, impressões mentais que se produzem a partir “do que existe realmente
e por si mesmo”. Entre as nossas diversas representações há aquelas que nos causam
uma impressão tão particular, tão clara e tão precisa, que se gravam tão vivamente na
alma que é impossível confundi-las com as outras e que trazem em si mesmas o
testemunho da verdade de seu objeto: dão-no a conhecer ao mesmo tempo em que elas
mesmas são conhecidas; em outros termos, são verdadeiras. Essas representações formam
o primeiro grau de conhecimento, e Zenão compara com a mão aberta; ao mesmo tempo
em que se produzem, elas provocam na parte superior da alma, em razão de sua clareza e
de sua força, um assentimento (synkatáthesis) que é como uma resposta ao choque vindo
de fora. Esse ato, emanado da iniciativa da alma, depende da vontade, mas jamais deixa
de se produzir quando a alma experimenta uma representação verdadeira. Este é o
segundo grau de conhecimento, comparado por Zenão à mão ligeiramente fechada. Em
seguida emergem a compreensão (katálēpsis), comparada ao punho, e depois a ciência,
assimilada ao punho fechado e fortemente mantido pela outra mão. Para Zenão o sábio
dá seu assentimento apenas à verdade; caso desse seu assentimento a representações que
não fossem compreensivas, o sábio deixaria de merecer esse nome.
1.1.2.2. O critério de verdade para os acadêmicos
Os argumentos dos acadêmicos contra o critério estoico de verdade são expostos por
Cícero, e com isso vemos claramente o nascimento da negação “nada é compreensível”.
Sem enveredar para a questão da distinção entre os argumentos de Arcesilau e os de
Carnéades, as críticas dos acadêmicos seriam as seguintes: 1. Se duas “representações”
são indistinguíveis, é impossível para uma ser “kataléptica” e para a outra, não, pois
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ambas são indistinguíveis. 2. Algumas “representações” são verdadeiras e outras, falsas.
Portanto, se duas “representações” são indistinguíveis é impossível saber qual delas é
verdadeira e qual é falsa. 3. Como consequência da anterior, qualquer coisa que seja
possível para uma “representação” verdadeira é possível para uma falsa, ao serem
indistinguíveis. Assim, na tese dos acadêmicos resumida por Cícero em Acadêmica
(II,XXVI,83), debate girava em torno da seguinte: “Não há representação verdadeira ao
lado da qual não se encontre uma falsa que se oponha a ela de alguma maneira”. Segundo
Carnéades, a “representação compreensiva” não tem, como sustentavam os estoicos, uma
propriedade intrínseca que a distingue das demais: se várias serpentes estão enroladas
dentro de uma caverna e uma dela levanta a cabeça, não conseguimos discernir com
segurança qual delas fez o movimento. A força do argumento dos acadêmicos contra a
definição estoica de verdade é direcionada contra estas características que tinha o critério
acadêmico, pois a verdade de uma “representação” não pode ser garantida pela própria
impressão. Isto seria um círculo vicioso. A verdade de uma “representação” tem que ser
provada por algo diferente da própria impressão (uma vez que, do contrário, seria o
mesmo que exigir-nos, à maneira de uma petição de princípio, crer como ato de fé na
própria impressão sensorial). Assim, pois, não é a capacidade perceptiva a que está sendo
questionada, mas a incapacidade para distinguir entre as “representações” verdadeiras
e falsas ou, em outras palavras: não duvido das representações que temos, mas de que
estas sejam indubitáveis, verdadeiras, fechadas e concluídas como propuseram os
estoicos. Para não chegar à tese da impossibilidade de saber, que conduziria à suspensão
de todo assentimento e, portanto, a um beco sem saída, a linha argumentativa para
resolver o dilema seria o seguinte: pelo que sabemos, dirá o acadêmico, as
“representações” que temos podem ser persuasivas, dissuasivas ou mais ou menos
persuasivas, conhecemos também que nenhuma “representação” pode ser jamais tão
segura que possamos aderir a ela com total garantia, razão pela qual as “representações”
persuasivas e dissuasivas, em sua pureza, não podem ser reconhecidas como tais. Assim
o único que permanece são as “representações” mais ou menos persuasivas: as mais
razoáveis.
Por conseguinte, posicionando-se contra os excessos dos dogmáticos estoicos, os
acadêmicos afirmam, portanto que o homem só pode perceber representações prováveis
e que não pode conhecer nada de verdadeiro, mas ambos compartilham a seguinte
ambição fundamental: o homem sábio é aquele que dá seu assentimento só às
representações que estão em conformidade ao objeto representado. Em outras palavras: o
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sábio é aquele que pauta toda sua conduta em representações compreensivas;
considerando que tais critérios teóricos são inacessíveis, quem os aceitar demonstrará ser
imprudente e permanecerá, portanto, afastado da sabedoria. Mas, qualquer que seja a
oposição entre os acadêmicos e dogmáticos estoicos, o sábio é sempre aquele que regra
sua conduta unicamente por representações compreensivas, e/ou, na falta delas, recusa
seguir as representações incertas. Descrevendo esta oposição em sua obra Academica,
Cícero se coloca do lado dos acadêmicos porque julga que o sábio não pode resignar-se
às simples conjecturas às quais está restrita a capacidade humana de pensar. O ceticismo
ciceroniano é uma oposição contra as pretensões dogmáticas estoicas, pois não pretende
aniquilar a potência de conhecer no homem, mas reconhecer seus limites, de forma a ser
sábio e não cair no erro mais sutil: crer ter chegado à verdade e à sabedoria absolutas. É
assim que encontramos uma outra possibilidade para redimensionar o dilema dos
acadêmicos: é necessário agir na vida com um critério de verdade, de conduta; daí que
tiveram que criar uma parcela positiva em sua filosofia que justificasse a ação. Se tudo é
incompreensível, o sábio ou suspende seu assentimento ou dá seu assentimento ao
incompreensível, caindo na opinião e até, é possível, no erro. Esta última perspectiva não
é tão negativa se pensamos que o sábio é, acima de tudo, um homem que teria que agir e
necessitaria de uma opinião, conformando-se na maioria dos casos com a simples
aparência da verdade, visto que o conhecimento certo é impossível: “Assim – nas palavras
de Cícero –, o sábio se servirá de toda representação que lhe é mostrada como provável
pelo seu aspecto, se não se apresenta nada que seja contrário a essa possibilidade, e desse
modo governará todo esquema de vida”28. Portanto, o novo sábio tem que aceitar que, ao
opinar, pode errar e equivocar-se; passamos, pois, da katalēptikē phantasia (que
supostamente não oferecia dúvidas) à simples persuasão da phantasia pithanē, mais
honesta, mais humilde, mais flexível. Cícero adverte que esta regra que usam os
acadêmicos, o provável, não é tanto um critério de conhecimento ou verificação da
verdade, mas uma necessidade para conduzir-nos na vida, primeiramente, e na
investigação e na dissertação29.
28 CÍCERO, Acad. II,XXXI,99. 29 CÍCERO, Acad. II,X,32. Cf. também R. ROMÁN ALCALÁ, El enigma de la Academia Platônica, 102-104.
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1.1.2.3. Agostinho e o critério de verdade
Agostinho, por sua vez, certamente compreendeu o ceticismo acadêmico como uma
autêntica “filosofia”, isto é, como uma procura real da sabedoria e da felicidade: é sábio
procurar a verdade sem ser capaz de encontrá-la, mas ele não retira disso nenhuma
segurança para sua salvação. Se a dúvida cética é sábia, esta sabedoria, na leitura que
Agostinho faz do ceticismo, não leva à “ataraxia”, como foi o caso justamente dos céticos
da época imperial e da antiguidade tardia; por essa razão, ela se associa nele a uma
desesperança soteriológica; a partir daqui a incapacidade para apreender a verdade
absoluta é desesperadora. O que mais chocou Agostinho neste período de “dúvida” não
foi tanto a recusa cética de admitir a percepção de uma verdade certa, mas, sim, a
impossibilidade que ele aí via de viver sabiamente. Neste sentido, o âmago deste seu
percurso parece ter sido mais uma desesperança soteriológica do que uma desesperança
gnosiológica.
No debate realizado no Livro I do Contra Academicos, a questão fundamental
concerne à descoberta do verdadeiro (verum) e da verdade (veritas)30. Admitamos ou não
que a mente humana possa atingir proposições verdadeiras, esta é uma questão distinta
daquela da possibilidade do homem relacionar-se, ou até de unir-se, com a verdade. Nesta
eventual relação ou união com a verdade, eis o problema: é preciso limitar-se a uma busca
ou deve-se conduzi-la até a descoberta e a posse do verdadeiro/verdade? Ora, tanto para
Licêncio como para Trigécio, parece que a condição para ter a felicidade é a relação do
homem com o binômio verdadeiro/verdade: “a sabedoria é o reto caminho da vida”
(sapientiam recte vitae esse), “a sabedoria é o reto caminho que conduz à verdade”
(sapientiam est via recta quae ad veritatem ducit)31. Na discussão “verdade” e
“sabedoria” são não somente aquelas que tematizam as filosofias estoicas, acadêmicas e
neoplatônicas, mas também o Cristo, em conformidade à sentença das Escrituras: “Eu sou
o Caminho, a Verdade e a Vida, e ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14,6); “Ele é a
Sabedoria e o Poder de Deus” (1 Cor 1,24)32. Este último texto paulino é citado no Contra
Academicos II,1,1 e, como bem observou T. Fuhrer, “a citação bíblica é [...] fundamental
para a interpretação de todo diálogo: o estudo filosófico da sapientia e – através da
equação sapientia = ueritas – bem como a busca da verdade se transformam assim no
30 Ver AGOSTINHO, Contra Academicos I,3,9. 31 AGOSTINHO, Contra Academicos I,5,13. 32 Cf. É. DUBREUCQ, Augustin et le scepticisme académicien, 359-364.
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esforço de conhecer a Deus”33. O que está em jogo aqui é, portanto, a possibilidade da
comunhão do homem com a verdade e com a sabedoria divinas, isto é, da união do homem
com a pessoa divina de Jesus Cristo e, mediante esta união, da divinização do homem.
Como bem observou também John J. O’Meara, o domínio de Agostinho era a religião e
não a filosofia; por isso, sua educação como professor de retórica e seu interesse pela
dialética se conjugaram para torná-lo estranho às questões filosóficas mais fundamentais
do ponto de vista técnico – por exemplo, a teoria do conhecimento. Convém lembrar que,
quando começa a refutar em 386 as conclusões a que chegam os acadêmicos, Agostinho
já tinha sido convencido pelos platônicos quanto à tese de que o conhecimento sensível
não é um verdadeiro conhecimento, e que o único conhecimento que importa é o
conhecimento inteligível, o qual, ao menos em suas operações mais elevadas e mais
profundas, revela-se independente dos sentidos. Ele reduzia, portanto, a nada todos os
argumentos céticos dos acadêmicos, uma vez que estes se baseavam em um conhecimento
derivado da experiência sensível34.
Em suma: Agostinho interpretou o ceticismo acadêmico como a recusa de admitir no
homem a capacidade de formar representações compreensivas e a invalidação da
pretensão estoica de fundamentar nelas a adesão da vida feliz; e, em um sentido amplo e
de forma inequívoca, como denúncia da impotência das forças humanas na busca da
sabedoria e da verdade; e, portanto, na possibilidade de obter através delas a felicidade.
Assim, Agostinho utilizará positivamente o probabilismo de Carnéades com o objetivo
de juntar-se à fé de seus pais (esta não é certa, mas é provável), que contrasta com a
ausência total da menção da possibilidade de obter a “ataraxia” pela suspensão do juízo e
com o questionamento da busca do verdadeiro e da união com a verdade. Abandonando
o ceticismo acadêmico, ao qual aderiu por um breve intervalo (do outono de 383 até 384,
quando começou a conviver com os meios cristãos em Milão), Agostinho chegará a
admitir o possível acesso à certeza da existência da Verdade quando deparou com os
escritos neoplatônicos. Todavia, este encontro não eliminará o certo “ceticismo” em
Agostinho, desde que o compreendamos no sentido de que entrar em união com a Verdade
não dependerá jamais das forças do homem. O que escapará completamente ao
33 AUGUSTIN, Contra Academicos (vel De Academicis), Bücher 2 und 3. Einleitung und Kommentar von T. Fuhrer, 66. No mesmo sentido se posiciona G. CATAPANO, Il concetto di filosofia nei primi scritti di Agostino. Analisi dei passi metafilosofici dal Contra Academicos al De vera religione, 58-59, nota 142. 34 Cf. J. J. O’MEARA, La jeunesse de Saint Augustin. Introduction aux Confessions de Saint Augustin. Paris-Suisse: Cerf/Éditions Universitaires Fribourg, 1997, 142.146.
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Neoplatonismo é admitir a união do homem com a Verdade divina, com o Logos
Encarnado.
1.2. O desejo de viver o otium filosófico: o choque libertador provocado pelo
Neoplatonismo
À luz de seus primeiros escritos35 e, especialmente, do Livro VII das Confissões36,
sabemos que Agostinho leu alguns “livros platônicos”. Considerando a quase
simultaneidade da redação dos livros Contra Academicos e De Beata Vita, é também
conhecida a existência de um “círculo neoplatônico” de intelectuais em Milão na mesma
época da conversão de Agostinho em 386. A este meio neoplatônico pertencia sem dúvida
S. Ambrósio, cujos Sermões permitiram ao Hiponense conseguir algumas referências
seguras que o conduzirão à conversão, a saber: a descoberta do sentido espiritual da
Escritura, o que lhe permitiria abandonar uma concepção antropomórfica da divindade e
aceder à idéia de uma semelhança espiritual entre o ser humano e Deus37.
Não é caso aqui de evocar a quaestio vexata que concerne à identidade desses “livros
platônicos”, mas, sim, chamar atenção para o fato de que a leitura de tais livros provocou
em Agostinho “un choc libérateur”38. Como bem observou Paula Oliveira e Silva, “ao
conjugar a leitura dos Platonicorum com a dos escritos de S. João e de S. Paulo,
Agostinho é levado a construir, progressivamente, uma simbiose entre os elementos
colhidos nas mundividências neoplatônica e cristã”39. Mas, concretamente, em que
sentido podemos entender o incêndio interior da alma de Agostinho após abandonar o
ceticismo acadêmico e deparar com os neoplatônicos? Este choque libertador pode ser
apresentado sob dois aspectos: teórico e prático. Em primeiro lugar, o encontro com os
“livros platônicos” representou uma enérgica reafirmação do primado do imaterial e uma
estupenda conquista da estrutura do suprassensível. Como o dito “Neoplatonismo” de
Agostinho se identifica pura e simplesmente com um platonismo, cuja base é a distinção
35 AGOSTINHO, Contra Academicos (II,2, 5) e De Beata Vita (I,4). 36 Cf. G. MADEC, Platonisme et christianisme. Analyse du livre VII des Confessions, in CARON, M. (sous la direction). Saint Augustin. Paris: Cerf, 2009, 77-158. 37 Segundo P. Courcelle, “Ambroise paraphrasait dans Le De Isaac uel anima et Le De bono mortis des pages entières des Ennéades”; Disto ele concluiu que Ambrósio era “l’adepte d’um néoplatonisme déjà fortement élaboré” e que por seus “sermons plotiniens”, ele “initiait [Augustin] en même temps au spiritualisme chrétien et aux doctrines plotiniennes”: (Recherches..., 106-138.136.253.138). 38 G. MADEC, Platonisme et christianisme, 91. 39 P. OLIVEIRA E SILVA, Ordem e Ser. Ontologia da Relação em Santo Agostinho. Braga: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007, 63-64.
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entre mundo inteligível e mundo sensível, não é difícil vislumbrar como se revelou
paulatinamente aos olhos do Hiponense a realidade inteligível em sua radical alteridade
e transcendência em relação ao sensível, quando elaborou uma ideia adequada de Deus e
resolveu o problema da origem do mal. A partir da leitura do Livro VII das Confissões,
podemos afirmar que Agostinho, depois de seu contato com os neoplatônicos, foi sempre
contrário a conceber a Deus de modo antropomórfico e assim tornou-se convicto de que
Deus era incorruptível, inviolável e imutável. A imersão de Agostinho nos livros
neoplatônicos permitiu-lhe perscrutar o mundo corpóreo em si mesmo para subir por
degraus da alma até a luz imutável da Verdade que ilumina as mentes. Compreende-se
assim que a certeza obtida por Agostinho através dos Neoplatônicos tenha desencadeado
aquele incrível incêndio narrado no Livro II do Contra Academicos (2,5). Em segundo
lugar, como consequência direta do aspecto teórico, deu-se a renúncia definitiva às
ambições mundanas. Eis aqui, portanto, o aspecto ético da assimilação dos livros
neoplatônicos. A proposta neoplatônica de um “itinerarium mentis in Deum” estava
indissoluvelmente associada a um processo de “conversão” à interioridade e de
purificação moral. Segundo tais filósofos, para chegar a um conhecimento isento de
qualquer conteúdo sensível, era preciso que a alma deslocasse a sua atenção de qualquer
atração terrena – prazeres, honras, riquezas - e voltasse seu olhar, antes de tudo, para si
mesma enquanto realidade imaterial e, posteriormente, aos princípios supremos (o
Intelecto e o Uno), donde ela provém. Uma vez chegada àquela contemplação, a alma
teria provado a verdade bem-aventurança, e todos os chamados “bens” desejados
comumente pelo homem lhe pareceriam desprezíveis.
Além disso, a descoberta da Verdade inteligível obrigava Agostinho a realizar um
projeto antigo, a saber: consagrar-se completamente à sapientia uma vez encontrada.
Neste sentido, duas passagens emblemáticas das Confissões confirmam inequivocamente
o que acabamos de afirmar. A primeira é Confissões VI,11,18: “Admirava-me muito, ao
recordar diligentemente quão longo fora o período do tempo decorrido após os dezenove
anos, idade em que começara arder no desejo da Sabedoria propondo-me, depois de obtê-
la, abandonar todas as esperanças frívolas e todas as loucuras enganosas das vãs paixões”.
A segunda é Confissões VIII,7,17-18, onde Agostinho recorda seu estado de ânimo depois
de ter ouvido a narração de Ponticiano sobre conversão repentina de dois funcionários
imperiais. Em seguida, emerge, a célebre cena do jardim. Ecce, iam certum est: a certeza
que procura, Agostinho a encontrou nos neoplatônicos: nenhuma desculpa mais pode ser
aduzida para nutrir ainda esperança do mundo. Passando do ceticismo acadêmico ao
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neoplatonismo, Agostinho descortinou um possível acesso à certeza da existência da
Verdade, mas falta-lhe ainda chegar à união com a própria Verdade, mas isto era
inacessível ao neoplatonismo. Só o encontro com Cristo, Verdade e Sabedoria de Deus,
foi possível encontrar o que ele procurava desde o início de sua odisseia intelectual.
2. Do Neoplatonismo ao Cristianismo: a proposição una verissimae philosophiae
disciplina
Uma vez explicados os sentidos do período cético de Agostinho e do incredibile
incendium em seu coração provocado pela leitura dos neoplatônicos, passemos,
finalmente, às partes fundamentais do texto escolhido do Contra Academicos (III,19,42):
este constitui a conclusão do excursus iniciado no § 37 do Livro III e representa um dos
textos mais importantes da relação entre “platonismo” e cristianismo no “primeiro
Agostinho”. Antes do exame da passagem40, proponho a seguinte tradução: Portanto (Itaque), nos dias de hoje, dificilmente vemos filósofos que não sejam ou Cínicos, ou Peripatéticos, ou Platônicos, e os Cínicos, na realidade, porque desfrutam de uma certa liberdade e licenciosidade de vida. No que diz respeito, porém, (autem) à instrução, à doutrina e aos costumes, com que se tem cuidado da alma, visto que não faltaram homens de grande agudez e habilidade para ensinar com as suas discussões que Aristóteles e Platão se harmonizam de tal maneira entre si que só aos incompetentes e aos desatentos podiam parecer discordar entre si, foi depurado (com o transcorrer de muitos séculos e muitas disputas), creio eu, um só sistema de filosofia perfeitamente verdadeira (una verissimae philosophiae disciplina). Esta não é, de fato, uma filosofia deste mundo, que os nossos textos sagrados com toda a razão abominam, mas a de outro mundo inteligível, ao qual esta razão sutilíssima jamais teria reconduzido as almas cegadas pelas multiformes trevas do erro e enlameadas com a enorme massa das imundícies provenientes do corpo, se o sumo Deus, com uma espécie de clemência popular, não tivesse inclinado e abaixado até o corpo humano a autoridade do Intelecto divino, de tal modo que, incitadas não somente pelos seus preceitos mas também pelas suas ações, as almas pudessem ter tido a possibilidade de entrar em si mesmas e voltar a olhar para a pátria, mesmo sem a contenda das discussões.
Segundo os comentadores, o parágrafo pode ser dividido em três partes, a saber: a
menção das escolas filosóficas contemporâneas (linhas 1-3), a apresentação da verissimae
philosophiae disciplina (linhas 4-10) e a contraposição entre a ratio subtilissima e a
divinis intellectus auctoritas quanto à questão da eficácia diversa de reconduzir as almas
ao mundo inteligível (linhas 10-19)41. Como já tratamos anteriormente das escolas
filosóficas no quadro do percurso intelectual de Agostinho, vejamos, primeiramente, a
40 Cf., sobretudo, G. CATAPANO, Il concetto di filosofia nei primi scritti di Agostino, passim; IDEM, I Dialoghi di Agostino: genesi e caratteristiche letterarie, em CATAPANO, G. (a cura di), AGOSTINO, Tutti i Dialoghi. Testo latino a fronte. Trad. Maria Bettetini, G. Catapano & G. Reale. Milano: Bompiani, 2006. 41 Cf. AUGUSTIN, Contra Academicos (vel De Academicis), Bücher 2 und 3. Einleitung und Kommentar von T. Fuhrer, in loco.
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penúltima parte do texto em questão para, no tópico seguinte, examinarmos a
superioridade do Cristianismo em relação à ratio subtilissima.
A oposição entre eruditio-doctrina-more, de um lado, e a libertas atque licentia do
Cinismo, de outro lado, sugere uma alusão à tripartição da filosofia (moralis, naturalis e
rationalis), já mencionada no § 37 (“em matéria de moral, ciência das coisas naturais e
divinas...e coroando... com uma disciplina... dialética”)42 em relação a Platão, onde
Agostinho não exprime uma opinião pessoal, mas apresenta um juízo tradicional sobre o
papel de Platão na história da Filosofia43. Pierre Hadot observou que a apresentação da
doutrina platônica no Diálogo em questão corresponde ao esquema ternário utilizado
pelos manuais escolásticos e insiste, em conformidade com o tema geral da obra, na
oposição entre verdade e verossimilhança em cada um dos três níveis da física, da lógica
e da ética44. No caso de admitir-se uma alusão a tal doutrina, a eruditio corresponderia à
naturalium divinarumque rerum peritia; a doctrina, à dialectica e os mores,
evidentemente, à ética. Falar de “um só sistema de filosofia perfeitamente verdadeira” só
é possível graças à harmonia entre Aristóteles e Platão. Neste sentido, quem são os
“homens de grande agudez e habilidade” (acutissimi et sollertissimi viri) que ensinaram
tal harmonização? Há três hipóteses45, a saber: 1ª) Porfírio, que escreveu um tratado
(perdido) intitulado Peri; tou' mivan ei[nai Plavtwno" kai; !Aristotevlou" ai[resin (=
“Sobre a unidade das escolas de Platão e Aristóteles”), hoje perdido. Confirmação desta
hipótese emerge do fato de que na Epistula 118,5,33 Agostinho adota uma mesma
expressão (acutissimi et sollertissimi viri) para designar os condiscípulos da schola
Plotini; 2ª) Cícero, que em vários lugares das suas obras asseverara a identidade
42 Esta divisão era comum e abarcava a lógica, a ética e a física e, segundo Cícero, a filosofia contemplava, portanto, uma tríplice forma de pesquisa que vinha da época de Platão. Sobre tal esquema, ver AGOSTINHO, De Civitate Dei XI,25: physica (naturalis, natura, ingenium, causa naturae), logica (rationalis, doctrina, scientia, forma scientiae), ethica (moralis, usus, usus, summa vitae): a física corresponde à ordem do ser; a ética, à ordem da vida; a lógica, à ordem do pensamento. 43 Convém lembrar que, ao reconstruir as vicissitudes especulativas da Academia no Contra Academicos III,15,33-16,36, Agostinho distingue a suas opiniões pessoais das informações históricas recebidas precisamente quando introduz as primeiras com expressões tais como “parece-me” (mihi videtur), “eu suspeito, suponho” (suspicor), “na minha opinião” (quantum arbitror), “eu creio” (ut opinor), e as outras com o verbo “diz-se” (dicitur). 44 Cf. P. HADOT, La présentation du Platonisme par Augustin, in RITTER, A.M. (hg. von). Kerygma und Logos Beiträge zu den geistesgeschichtlichen Beziehungen zwischen Antike und Christentum. Göttingen, 1979, 272-279, especialmente 272-273; IDEM, O que é Filosofia Antiga?. São Paulo: Loyola, 1999. É possível então encontrar a correspondência entre a lógica – que será a primeira obra –, e o Contra Academicos, onde se examinará o critério da verdade; entre a ética – que virá em segundo lugar –, e o De Beata Vita, n aqual se tratará do summum bonum, onde a felicidade não será senão o perfeito conhecimento de Deus; entre a física e o De Ordine, que completará o quadro, cujo tema será a “ordo rerum” ou o mal e a providência divina. 45 Cf. G. CATAPANO, Il concetto di filosofia nei primi scritti di Agostino, 159ss.
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substancial das cosmovisões da Academia e do Peripato; 3ª) As correntes conciliatórias
do médio e do neoplatonismo. As propostas mostram como a ideia da harmonia entre
platonismo e aristotelismo, enquanto projeto unitário do neoplatonismo, era
suficientemente difundida para que Agostinho pudesse julgá-la como boa.
Qualquer que tenha sido a demonstração do consenso entre platonismo e aristotelismo
por parte desses “homens de grande agudez e habilidade”, o efeito foi extraordinário,
segundo Agostinho: “foi depurado um só sistema de filosofia perfeitamente verdadeira”
(eliquata est una verissimae philosophiae disciplina). Antes de tudo, assinalamos a
multiplicidade de traduções feitas em função do significado atribuído ao termo
“disciplina” (“escola”, “disciplina”, “doutrina”, “sistema”, “ensinamento”,
“metodologia”). Para justificar a minha tradução e o sentido do termo philosophia,
examinemos a expressão detalhadamente. Antes de tudo, o adjetivo una. Como assevera
o próprio texto, a “unicidade” é o resultado de um processo que exigiu muitos séculos e
muitas disputas, reduzindo progressivamente as múltiplas philosophiae disciplinae a uma
só. Não difícil deduzir que tal processo abarcou duas fases: histórica e teórica. Na fase
histórica houve a eliminação do estoicismo e do epicurismo por obra do ceticismo
acadêmico. O perigo materialista foi afastado graças à prudente e à hábil conduta de
filósofos como Arcesilau, Carnéades, Fílon de Larissa e Cícero, e a doutrina platônica
voltou a brilhar, especialmente em Plotino, como declara expressamente Agostinho no §
41: “Não muito tempo depois daquela época, cessada toda obstinação e contumácia, a doutrina de Platão, a mais pura e luminosa da filosofia, expulsou as nuvens do erro46 e voltou a brilhar, principalmente em Plotino, filósofo platônico, que foi julgado tão semelhante ao seu mestre que se diria terem vivido juntos, se o longo tempo que os separa não obrigasse a crer que Platão reviveu em Plotino”47.
A segunda fase consiste em um momento teórico de exclusão e redução. O Cinismo é
excluído porque é um pretexto para viver sem regras e nada tem a dizer acerca da
educação intelectual e moral da alma. Platonismo e aristotelismo são, por sua vez,
harmonizados através da demonstração feita por “homens de grande agudez e
habilidade”. Só permanece então “uma só” philosophiae disciplina, onde disciplina
designa fundamentalmente uma “escola” ou um “sistema doutrinal”. Em segundo lugar,
46 A dispersão das “nuvens do erro” aqui está associada fundamentalmente à ação de Fílon de Larissa e de Cícero. O termo “erro” mencionado nesta passagem se insere em contexto diverso daquele em que o mesmo termo aparece na Epístula 118 (“erros dos gentios”): no primeiro caso (Contra Academicos III), trata-se da condenação da doutrina materialista dos estoicos no quadro da oposição ontológica de “mundo sensível” e “mundo inteligível”; no segundo caso (Epístula 118), o termo concerne à filosofia pagã em geral no contexto histórico-cristão. 47 AGOSTINHO, Contra Academicos III, XVIII,41.
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passemos ao predicado verbal eliquata est, que traduzimos por “foi depurado”. O verbo
eliquo significa “depurar”, “filtrar”, isto é, privar um líquido das impurezas ou um metal
das escórias. No sentido originário, “o verbo se refere à lavagem do mineral do ouro; este
exprime, portanto, um processo de purificação durante o qual elementos estranhos são
eliminados”48, o que explicaria, ao menos, parcialmente o superlativo verissima. Nesse
contexto, Agostinho tem em vista uma tradição eclesiástica já existente de ecletismo
filosófico. Os sistemas de Platão e de Aristóteles contêm elementos consideráveis de
verdade, mas nenhum deles constituía a verdade. No contexto das discussões
desenvolvidas do § 37 ao § 42, a verissimae philosophiae disciplina se identifica
substancialmente com a distinção platônica entre mundus intellegibilis e mundus
sensibilis e com as suas implicações ao nível gnosiológico e ético49. Se tomarmos como
base Cl 2,8 na versão da Vulgata (Videte ne quis uos decipiat per philosophiam et inanem
fallaciam secundum traditionem hominum secundum elementa mundi et non secundum
Christum), a alusão feita no De Ordine I,11,32 e a citação explícita no De Mor. I,21,3850,
a “filosofia deste mundo” é para Agostinho o materialismo estoico e epicureu, ao passo
que a “filosofia do outro mundo”, que não é incompatível com os sacra nostra, Agostinho
tem confiança de encontrá-la, naturalmente, junto aos platônicos51.
48 R. HOLTE, Béatitude et Sagesse. Saint Augustin et le problème de la fin de l’homme dans la philosophie ancienne. Paris-Worcester, 1962, 107. 49 Esta distinção evoca a célebre passagem do Fédon. Os fundamentos essenciais do platonismo, que serão retomados e transformados posteriormente pelos platônicos sob o nível ontológico-metafísico, são os seguintes: 1) a admissão da existência de dois planos da realidade e do ser, o inteligível e o sensível (essa é a conquista essencial da que o próprio Platão chamou de “segunda navegação” [deuvtero" plou'"]: expressão utilizada para indicar o processo de pensamento que levou à descoberta do supra-sensível, das Idéias). Platão distingue no Fédon “duas espécies de seres” (duvo ei[dh tw'n o[ntwn: 79 a-d). Os dois planos da realidade são descritos como “de um lado, o visível; de outro lado, o invisível - to; me;n o;ratovn, to; de; ajeidev"; 2) o explícito reconhecimento do fato de que o inteligível é a “verdadeira causa” do sensível (o sensível não é capaz de explicar a si próprio). Cf. minha obra A imortalidade da alma no “Fédon” de Platão. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. 50 A julgar pela observação judiciosa de T. FUHRER – na Vulgata e nas demais versões veterolatinas de Cl 2,8 falta o demonstrativo huius –, Agostinho fundamentou-se no texto de uma tradução utilizada nas dioceses de Milão na segunda metade do século IV. Consequentemente, é possível que a interpretação agostiniana do versículo tem sofrido o influxo do ambiente neoplatônico-cristão de Milão. Cf. AUGUSTIN, Contra Academicos (vel De Academicis), Bücher 2 und 3. Einleitung und Kommentar von T. Fuhrer, 453-454. 51 Cf. AGOSTINHO, Contra Academicos III,20,43: “apud Platonicos me interim, quod sacris nostris non repugnet, reperturum esse confido”.
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3. A superioridade do Cristianismo mediante a contraposição entre ratio
subtilissima e divinis intellectus auctoritas
A última parte do texto do Contra Academicos (III,19,42) foi objeto de leituras
diferentes e frequentemente contrastantes entre os comentadores, mas preferimos
interpretá-la aqui sem polemizar: a “declinatio e a “submissio” da autoridade do Intelecto
divino até o corpo humano designa fundamentalmente o evento histórico da Encarnação
do Verbo, mas como entender o uso dos subjuntivos imperfeitos (revocaret... declinaret
atque summitteret), uma vez que são utilizados normalmente na sintaxe latina para
enunciar uma hipótese irreal no presente? Para uma compreensão mais adequada,
vejamos, antes tudo, a estrutura gramatical da passagem. A apódose do período hipotético
é introduzida pelo nexo relativo cui, que substitui o pronome relativo ei (= alteri
<mundo> intelligibili) acompanhado por uma conjunção adversativa: “mas (sed) a de
outro mundo inteligível, ao qual (cui) esta razão sutilíssima (ratio subtilissima) jamais
(nunquam... nisi) teria reconduzido (revocaret) as almas cegadas pelas multiformes trevas
do erro e enlameadas com a enorme massa das imundícies provenientes do corpo, se o
sumo Deus, com uma espécie de clemência popular, não tivesse inclinado e abaixado
(declinaret atque summitteret) até o corpo humano a autoridade do Intelecto divino...”.
Se o uso do subjuntivo imperfeito é bastante comum em referência ao passado quando
justamente se tem em vista uma nuança potencial52, então o texto em questão pode ser
entendido assim: a ação expressa na apódose não teria jamais podido acontecer sem a
condição indicada na prótase: a ratio subtilissima não teria jamais conseguido reconduzir
as almas... ao mundo inteligível, se não tivesse acontecido a Encarnação. Assim, como
acontece no § 43, a ratio subtilissima indicaria em geral a argumentação racional de
sistemas doutrinais filosóficos, e o ato de “reconduzir” ao mundo inteligível realizado por
tal ratio concerne às almas impregnadas de erros intelectuais e de vícios morais. Nas
linhas finais da passagem em questão, Agostinho afirma que as almas foram estimuladas
pelos preceitos e pelas ações do Intelecto encarnado, e assim elas puderam voltar-se para
si mesmas, ainda que sem a contenda das discussões. O fascínio desta excitatio se deve
52 Cf. A. TRIANA-T. BERTOTTI, Sintassi normativa della lingua latina. Bologna, 1985, 436, nota 1: passagens extraídas de Cícero: [In senatum] si tum ueniret [“tivesse vindo”], me socium suorum in re publica consiliorum uideret posset (“teria podido ver-me politicamente ao seu lado”) (Pro Sest. 20,63).
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ao exemplo concreto da vida de Cristo, aos seus milagres, à sua morte e à sua
ressurreição53.
Portanto, se a obra de Cristo não tivesse criado um espaço favorável para o
acolhimento de uma “verissima philosophia” que reconhece, acima deste mundo sensível,
a existência de um mundo inteligível, sede da verdade e meta das almas, a capacidade
discursiva da alma não teria convidado os homens para retornar à pátria. Dentro do
programa projetado por Agostinho no Contra Academicos, para atingir a sabedoria
humana, é preciso percorrer as seguintes etapas: firme adesão à autoridade de Cristo,
demonstrando-se a mais eficaz, e utilização de conceitos e categorias “platônicas” para
aproximar-se de uma compreensão racional da revelação bíblica. Portanto, Agostinho
identificou o nous-intellectus neoplatônico com o Cristo, que é igualmente considerado
como portador do mundus intellegibilis (cf. Jo 18,36). Para aquele que deseja descobrir a
verdade pela ratio subtilissima, a fé no Cristo encarnado e na sua autoridade será o ponto
de partida e o caminho universal: Cristo é o Ser divino que nos mostrará a verdade. Tal é
a solução do Contra Academicos.
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53 Cf. Epistula 118 de Agostinho onde se tematizam e se desenvolvem todas as implicações da correlação entre os efeitos do exemplum fornecido por Cristo e a revocatio realizada pelos platônicos.
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