4 historia enatureza humana em maquiavel

9
··················· 4 História e natureza humana em Maquiavel ···················· Num informe que, em 1502 – na condição de Secretário do Conselho dos Dez da Guerra, cargo no qual era encarregado dos negócios e relações exteriores da República de Florença –, Maquiavel escreveu sobre a situação de Chiana, informe intitulado “Do modo de tratar os povos do Vale do Chiana rebelados”, ele diz: Ouvi dizer que a história é a mestra das nossas ações e máxime dos príncipes: e o mundo foi sempre, de certo modo, habitado por homens que têm tido sempre as mesmas paixões; e sempre existiu quem serve e quem manda, e quem serve de má vontade e quem serve de bom grado, e quem se rebela e quem se rende. 1 Nesta passagem apresentam-se, de modo concentrado, as questões sobre as quais pretendo refletir neste ensaio. O seu ponto de partida aqui é a história: é ela a “mestra de nossas ações”; ao mesmo tempo, e por isso mesmo, ela parece nos permitir sentenças gerais sobre o comportamento humano: os homens tivemos sempre as mesmas paixões, alguns comandam, outros obedecem, alguns de bom grado, outros não... e assim por diante. _____ João Emiliano Fortaleza de Aquino 68 _____ 1. N. Maquiavel, “Do modo de tratar os povos do Vale do Chiana rebelados”. In: Maquivel. Col. Os pensadores. Trad. br. Lívio Xavier. São Paulo: Nova Cultural, 1987, pp. 322-323; “Del modo di trattare i popoli della Valdichiana ribellati”. In: Tutte le opere storiche, politiche e letterarie. A cura di Alessandro Capata. Roma: Grandi Tascabili Economici Newton, 1998, p. 381. À nossa consciência histórica soa estranho ouvir ao mesmo tempo de história e de generalizações acerca do comportamento dos homens. Poderíamos, quem sabe, tomar essa passagem de Maquiavel apenas como uma constatação: efetivamente, se voltarmos nossos olhos para a experiência histórica até aqui conhecida, talvez não cheguemos a conclusões muito distintas. Além disso, os pares opostos nos quais ali estão ordenadas as atitudes humanas (variáveis que são) indicam possibilidades que, verificadas alternadamente em experiências passadas, dizem também das atuais. Mas, mais do que isso, a relação entre história e comportamento humano presente nessa passagem – inclusive pela ausência de ênfase em qualquer um dos modos possíveis de agir dos homens – apresenta de modo privilegiado um problema que não é menor, precisamente o problema que, nas filosofias da história da modernidade, foi sempre central: o problema da existência ou não de uma substância na história, seja ela a Natureza, a natureza humana, o logos, a Razão..., substância que, nas filosofias da história, o tempo e as circunstâncias deveriam realizar. 2 Seria também este o caso de Maquiavel? Ora, se na trajetória da filosofia da história não poucas vezes a natureza humana constou como sendo a substância da história, 3 quando havemos de perguntar por esta categoria 2. Tomo aqui, como referência para essa breve caracterização da filosofia da história, o livro de Agnes Heller, Uma teoria da história (Rio de Janeiro: Civilizacao Brasileira, 1993). 3. Este seria o caso das filosofias da história iluministas, incluindo, por exemplo, também o iluminismo alemão com I. Kant, que mobiliza

Upload: anonymous-b8lupb

Post on 25-Nov-2015

10 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • 4 Histria e natureza humana em Maquiavel

    Num informe que, em 1502 na condio de

    Secretrio do Conselho dos Dez da Guerra, cargo no qual era encarregado dos negcios e relaes exteriores da Repblica de Florena , Maquiavel escreveu sobre a situao de Chiana, informe intitulado Do modo de tratar os povos do Vale do Chiana rebelados, ele diz:

    Ouvi dizer que a histria a mestra das nossas aes e mxime dos prncipes: e o mundo foi sempre, de certo modo, habitado por homens que tm tido sempre as mesmas paixes; e sempre existiu quem serve e quem manda, e quem serve de m vontade e quem serve de bom grado, e quem se rebela e quem se rende.1

    Nesta passagem apresentam-se, de modo concentrado, as questes sobre as quais pretendo refletir neste ensaio. O seu ponto de partida aqui a histria: ela a mestra de nossas aes; ao mesmo tempo, e por isso mesmo, ela parece nos permitir sentenas gerais sobre o

    comportamento humano: os homens tivemos sempre as mesmas paixes, alguns comandam, outros obedecem, alguns de bom grado, outros no... e assim por diante.

    _____

    Joo Emiliano Fortaleza de Aquino

    68

    _____ 1. N. Maquiavel, Do modo de tratar os povos do Vale do Chiana rebelados. In: Maquivel. Col. Os pensadores. Trad. br. Lvio Xavier. So Paulo: Nova Cultural, 1987, pp. 322-323; Del modo di trattare i popoli della Valdichiana ribellati. In: Tutte le opere storiche, politiche e letterarie. A cura di Alessandro Capata. Roma: Grandi Tascabili Economici Newton, 1998, p. 381.

    nossa conscincia histrica soa estranho ouvir ao mesmo tempo de histria e de generalizaes acerca do comportamento dos homens. Poderamos, quem sabe, tomar essa passagem de Maquiavel apenas como uma constatao: efetivamente, se voltarmos nossos olhos para a experincia histrica at aqui conhecida, talvez no cheguemos a concluses muito distintas. Alm disso, os pares opostos nos quais ali esto ordenadas as atitudes humanas (variveis que so) indicam possibilidades que, verificadas alternadamente em experincias passadas, dizem tambm das atuais. Mas, mais do que isso, a relao entre histria e comportamento humano presente nessa passagem inclusive pela ausncia de nfase em qualquer um dos modos possveis de agir dos homens apresenta de modo privilegiado um problema que no menor, precisamente o problema que, nas filosofias da histria da modernidade, foi sempre central: o problema da existncia ou no de uma substncia na histria, seja ela a Natureza, a natureza humana, o logos, a Razo..., substncia que, nas filosofias da histria, o tempo e as circunstncias deveriam realizar.2

    Seria tambm este o caso de Maquiavel? Ora, se na trajetria da filosofia da histria no poucas vezes a natureza humana constou como sendo a substncia da histria,3 quando havemos de perguntar por esta categoria

    2. Tomo aqui, como referncia para essa breve caracterizao da filosofia da histria, o livro de Agnes Heller, Uma teoria da histria (Rio de Janeiro: Civilizacao Brasileira, 1993).

    3. Este seria o caso das filosofias da histria iluministas, incluindo, por exemplo, tambm o iluminismo alemo com I. Kant, que mobiliza

  • Memria e conscincia histrica

    em Maquiavel, talvez tenhamos que percorrer um caminho inverso: no teremos, neste caso, que explicar a histria pela natureza humana, mas sim buscar compreender em que sentido se pode ou no falar de uma natureza humana em Maquiavel refletindo sobre como a histria tematizada por este pensador.4 Assim, o caminho que percorreremos aqui ser precisamente o de tematizar como a histria aparece como base de suas lies polticas em suas reflexes histricas concretas, particulares. Percebendo que em boa parte dessas anlises concretas, nO prncipe, elas so articuladas com base nos conceitos de fortuna e virt, centralizarei neles a tematizao sobre a histria, tematizao que comear exatamente perguntando pela sua importncia prtica para Maquiavel, isto , o seu papel estratgico; por este caminho, buscarei conjeturar naquela obra a presena e o significado da noo de natureza humana.

    Por que se interessar pelos fatos passados, pela histria? Numa passagem de O prncipe, Maquiavel nos d uma resposta em termos muito semelhantes queles presentes naquele texto de 1502, acima citado:

    _____

    Joo Emiliano Fortaleza de Aquino

    70

    _____

    Porque, caminhando os homens sempre pelas vias trilhadas por outros e procedendo em aes suas com as imitaes [imitazioni], [ainda que] nem podendo as vias de outros ter ao todo, nem a virtude [virt] daqueles que tu imitas [tu imiti] ajuntar, deve um homem prudente entrar sempre pelas vias trilhadas por grandes homens [uomini grandi], e imitar aqueles que foram excelentssimos [quegli che sono stati eccellentissimi imitare] [...].5

    Nesse conselho, que se poderia tomar como de um moralista,6 Maquiavel assume a posio de que o estudo da histria, dos procedimentos e das razes dos acontecimentos e das aes humanas tem um significado estratgico: remete ao conhecimento do presente e da ao nele. Tambm no captulo XIV de O prncipe, este conselho retorna nos seguintes termos, ampliando as exigncias quanto ao estudo da histria, das condies geogrficas das aes de guerra, das aes dos grandes homens e de suas razes; tudo isso com o objetivo de melhor imit-los. Assim, segundo Maquiavel,

    o prncipe deve ler histrias de pases e considerar as aes dos grandes homens [uomini eccellenti], observar como se conduziram nas guerras, examinar as razes de suas vitrias e derrotas, para poder fugir destas e imitar [imitare] aquelas; sobretudo, deve fazer como teriam feito em tempos idos certos grandes homens, que imitavam [che ha preso a imitare] os que antes deles

    o conceito de Natureza tanto no sentido da Providncia quanto no de natureza humana; j no caso de Herder, os conceitos de Natureza e natureza humana ligam-se ao de nao, aportando, assim, a determinao da particularidade que quase sempre faltava a outras filosofias da histria, sem, no entanto, perder nem a centralidade do conceito de Natureza nem a referncia em um discurso universal sobre a histria da humanidade. 5. N. Maquiavel, Il principe. In: Tutte le opere, p. 14. (Optei aqui

    por uma traduo quase imediata, a fim de manter um certo estilo literrio que, na traduo de Lvio Xavier, me parece sacrificada).

    4. Esta tambm a opinio de M. L. Guide, em Maquiavel e os partidos (Tese de doutorado, USP, 1999), ainda que em determinados momentos ele substancialize e, portanto, afirme esse conceito, apesar de buscar, em outros momentos, argumentar pela sua relativizao em Maquiavel.

    6. Alis, Baltasr Gracin, em sua A arte da prudncia, dialoga diretamente com Maquiavel, neste e noutros pontos; precisamente neste ponto, ver a mxima 75 dessa obra.

    69

  • Memria e conscincia histrica

    haviam sido glorificados por suas aes, como consta que Alexandre Magno imitava a Aquiles, Csar a Alexandre, Cipio a Ciro.7

    Na sucesso da sua exposio em O prncipe, essa questo da imitao das aes e da compreenso das razes dos uomini eccellenti do passado est relacionada, talvez intimamente, com o que, no captulo XV (mas que, certamente, percorre todo o livro), ele anuncia como sendo o propsito de discutir como deve um prncipe comportar-se com os seus sditos e seus amigos.8 Considerando que esse um problema j tratado anteriormente por outros, de cujos princpios ele no se prope a afastar-se, Maquiavel afirma que, no entanto, ir se diferenciar de alguns deles no procedimento: j que busca ensinamentos que sejam teis, s poder busc-los nos efeitos das anteriores aes humanas. Como meu intento, diz ele, escrever coisas teis [utili] para os que se interessam, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade efeitual [verit effetuale] das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar [imaginazione di essa].9 Esse trecho, bastante esclarecedor de sua viso do conhecimento histrico, do seu modo de abord-lo e de seus objetivos ao

    faz-lo, tambm bastante instrutivo quanto a nossa questo, isto , o problema da natureza humana em seu pensamento. Ele quer se diferenciar, segundo diz, de muitos dos seus antecessores nesta matria, aqueles que para chegar a suas concluses imaginaram repblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos como verdadeiros.10 A verit effetuale, cujo carter remete histria, s aes humanas e suas conseqncias (e cujas razes devem ser compreendidas para que sirvam ao aprendizado prtico), ope-se assim constituio de princpios normativos abstratos (isto , abstrados da prpria experincia histrica). No estaria aqui uma luz necessria ao esclarecimento de sua posio quanto natureza humana? Afinal, ele chama a ateno para o primado da experincia prtica, cuja verdade est nos efeitos (compreendidas as razes das aes, bem como de seus sucessos e insucessos); como diz, vai tanta diferena entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, sintetizando, assim, a diferena entre seu procedimento e o de certos antecessores seus.

    _____

    Joo Emiliano Fortaleza de Aquino

    72

    Por outro lado, chama a ateno nessas passagens o termo imitar, porque tambm a natureza, segundo diz Maquiavel em outra carta a Vettori, deve ser imitada: ns imitamos a natureza, que varia; e quem imita a natureza no pode ser repreendido (noi imitiamo la natura, che varia; et chi imita quella non pu essere ripreso).11 Que aproximao poderamos ter aqui entre natureza e histria, enquanto coisas que devem ser imitadas? Quando fala aqui em natureza, Maquiavel est se referindo natureza humana? _____

    7. N. Maquiavel, O prncipe. In: Maquiavel, p. 61; Il principe. In: Tutte le opere, p. 33.

    8. Idem, p. 63; idem, p. 33. 9. Idem, ibidem, trad. modificada; idem, ibidem. J na preocupao

    de Polbios com o carter prtico do conhecimento das calamidades alheias estaria prenunciada a verit effettuale que Maquiavel prope. A histria pragmtica de Polbios em sua utilidade se aproximaria, assim, da verit effettuale de Maquiavel pela exigncia, fundamental para que a histria tenha capacidade de ensinar para o presente, de um exame das conseqncias tanto remotas quanto imediatas dos eventos, e acima de tudo as suas causas (Polbios, III, 32).

    10. N. Maquiavel, O prncipe. In: Maquiavel, p. 63; Il principe. In: Tutte le opere, p. 33.

    11. N. Maquiavel, Lettere. In: Tutte le opere, p. 944.

    71

  • Memria e conscincia histrica

    Segundo Ferroni, nessa passagem v-se a reflexo maquiaveliana sobre a instabilidade da natureza [natura] e da fortuna [fortuna], sobre a necessidade de instituir uma relao ativa (conformao) entre a natureza interna do indivduo e as variaes da natureza externa, de saber mudar a prpria natureza individual seguindo a mutao da fortuna.12

    Se assim, que conseqncias isso teria para a nossa questo? Segundo essa interpretao, Maquiavel no pensaria a natureza no homem como uma determinao fixa, mas em movimento; no apenas em movimento histrico, segundo as mudanas das circunstncias e sua determinao sobre os homens, mas segundo a capacidade adquirida pelos homens de mudar sua prpria natureza, em sintonia ou no com as circunstncias. Essa ser a hiptese que adotarei e que buscarei, a seguir, argumentar em favor. E, claro, como visvel, no centro dessa hiptese est exatamente o problema da relao entre virt e fortuna, como sendo aquela relao entre a natureza interna e a natureza externa, a relao entre os indivduos e as circunstncias histricas com as quais se deparam.

    Essa relao, deste modo compreendida, vai ser indicada pelo prprio Maquiavel: referindo-se a Ciro, Rmulo e Teseu, ele afirma que eles no receberam da fortuna [fortuna] mais que a ocasio [occasione] de poder amoldar as coisas como melhor lhes aprouve. Sem aquelas ocasies, suas qualidades pessoais [virt dello animo] se teriam apagado, e sem essas virtudes [virt] a ocasio lhes teria sido

    v.13 A chave do sucesso histrico desses personagens estaria, assim, no encontro do que a fortuna possibilitou com o que foi capaz a virt. notvel, nessa passagem, como na correspondncia fortuna-virt o termo que aparece no o de natureza humana, mas a virt dello animo, as qualidades pessoais das personagens histricas. Virt dello animo diz aqui de um conjunto de caractersticas e potencialidades individuais que, em face de determinadas circunstncias histricas, se tornam decisivas para os acontecimentos que iro causar; tanto quanto, alis, tais circunstncias histricas a fortuna o so em relao s possibilidades de realizao daquelas potencialidades que se concentram na virt, constituindo-a.

    _____

    Joo Emiliano Fortaleza de Aquino

    74

    _____

    Maquiavel diz tambm, em seguida, que a natureza dos povos vria [la natura de populi varia], sendo fcil persuadi-los de uma coisa, mas sendo difcil firm-los na persuaso.14 Desse modo, sendo vria, mutvel, no h, a rigor, nenhuma natureza fixa nos povos. Parece, assim, que a mutabilidade da natureza, mutabilidade presente nos indivduos, tambm se manifesta no comportamento dos povos.

    Antes de prosseguir nessa linha de argumentao, importante perceber que Maquiavel utiliza tambm o termo natura como recurso analgico para explicitar tendncias dos fenmenos histricos, isto , da fortuna. Assim, analisando os principados novos, no captulo VII de O prncipe, ele diz que os Estados que surgem de sbito, como todas as outras coisas da natureza [natura] que se

    13. N. Maquiavel, O prncipe. In: Maquiavel, p. 24; Il principe. In: Tutte le opere, p. 15. 12. Ferroni, La cose vane, citado por Alessando Capata em rodap.

    In: N. Maquiavel, Tutte le opere, p. 944. 14. Idem, p. 25; idem, p. 16.

    73

  • Memria e conscincia histrica

    desenvolvem muito depressa, no podem ter razes ou membros proporcionados e, ao primeiro golpe da diversidade, aniquilam-se.15 A fortuna, enquanto conjunto de circunstncias (nesses casos, favorveis), permanece como uma determinao central da anlise de Maquiavel; no entanto, como uma categoria de anlise histrica, ela mobiliza sempre a de virt. Assim, nesses casos dos principados novos, em que h a tendncia prpria da natureza de no conseguir fincar razes slidas, Maquiavel concebe suas possibilidades histricas na dependncia da virt dos prncipes, na capacidade deste de aproveitar as vantagens da fortuna: a menos que, diz ele em continuidade passagem acima citada, aqueles tais, como dito, que de repente se tornaram prncipes, no sejam seno de tanta virt quanto o que a fortuna lhe concedeu e saibam de repente preparar-se a conserv-lo, e aqueles fundamentos que os outros fizeram antes que eles se tornassem prncipes, estes os faam depois.16

    Quando analisa, ainda nO prncipe, os casos dos principados eclesisticos, Maquiavel sustenta que do mesmo modo dos principados novos antes analisados eles so conquistados ou pela virt ou pela fortuna; e afirma que, entretanto, aqueles se sustentam pelas ordens antiquadas na religio, isto , como prope a traduo de Lvio Xavier, pela rotina da religio. Neste caso, certamente, menor para a manuteno do governo a importncia da virt do prncipe. Tambm quando discute a convenincia

    ou no do uso das foras mercenrias, Maquiavel volta questo da relao entre fortuna e virt. Recusando radicalmente o uso de tropas mercenrias, ele afirma que sem possuir armas prprias, nenhum principado est seguro, antes est merc da sorte [fortuna], no existindo virtude [virt] que o defenda nas adversidades.17 Neste caso, o poder de interveno da virt nas circunstncias, poder este sempre constitudo pelas qualidades pessoais dos indivduos, torna-se impotente frente s circunstncias, coloca-se merc da fortuna precisamente porque faltou, na ao, uma qualidade pessoal fundamental: a sabedoria do prncipe, o discernimento quanto necessidade de possuir e contar com tropas prprias. Assim, esse poder de interveno da virt aqui reafirmado negativamente; a ausncia de um elemento chave para a segurana do Estado despotencializa a capacidade da virt de intervir na fortuna, e isso, como j dito, pela prpria ao do prncipe.

    _____

    Joo Emiliano Fortaleza de Aquino

    76

    Ao l-se O prncipe, tem-se a impresso de que talvez pelo chamado poltico a Lorenzo de Mdicis com que ele encerra a obra , a cada passo, Maquiavel vai dando mais importncia discusso sobre as possibilidades da ao e, portanto, da virt na histria. E precisamente assim ele vai relativizando historicizando mais a determinao da fortuna. No captulo XV da obra em questo, em que se prope a examinar como j dito antes como deve um prncipe comportar-se com os seus sditos e seus amigos, Maquiavel diz que todos os homens, mxime os prncipes, por estarem no mais alto, se fazem notar atravs das qualidades que lhes acarretam reprovao ou louvor.18 E, a _____

    15. Idem, p. 27; idem, p. 17. 16. Idem, N. Maquiavel, Il principe. In: Tutte le opere, p. 17

    (tambm neste caso tive que, sofrivelmente, fazer a minha prpria traduo, a fim de manter os conceitos fortuna e virt que, na traduo de Lvio Xavier, desapareceram completamente).

    17. N. Maquiavel, O prncipe. In: Maquiavel, ed. citada, p. 57; Il principe. In: Tutte le opere, ed. citada, p. 32.

    18. Idem, p. 63; idem, p. 34.

    75

  • Memria e conscincia histrica

    seguir, lista pares opostos de qualidades humanas possveis (sempre, neste caso, referindo-se aos prncipes): liberais ou miserveis, prdigos ou rapaces, cruis ou piedosos, efeminados e pusilnimes ou truculentos e animosos, humanitrios ou soberbos, lascivos ou castos, estpidos ou astutos, enrgicos ou indecisos, religiosos ou incrdulos.

    A no-fixidez natural dessas qualidades manifesta-se no apenas nas oposies, mas tambm, como ele diz em seguida, no fato de que no possvel possu-las coerentemente, isto , ou apenas as boas ou apenas as ms qualidades. E isto se deve, segundo Maquiavel, s condies humanas (condizioni umane): as condies humanas so tais que no consentem a posse completa de todas elas, nem ao menos a sua prtica consistente [non si possono avere tutte n interamente osservare].19 Precisamente por essa potencialidade antropolgica, que cabe a Maquiavel aconselhar aos prncipes serem prudentes, combinando de modo diverso e sempre segundo as circunstncias qualidades que lhes permitam conservar a posse do governo: pois encontrar-se-o coisas que parecem virtudes [virt] e que, se praticadas, lhe acarretariam a runa, e outras que podero parecer vcios [vizio] e que, sendo seguidas, trazem a segurana e o bem-estar do governante.20 Assim, nessa mesma lgica, quando discute, no captulo XVII, se deve ou no o prncipe buscar ser amado ou temido, ele aconselha que mais seguro ser temido do que amado, quando se tenha que falhar numa das duas, posto que note-se difcil reunir ao mesmo tempo as qualidades que do aqueles resultados.21 Somente aps essa passagem, _____

    na qual encontramos o que talvez pudssemos chamar de abertura antropolgica, que vm afirmaes generalizantes (e, se tivermos em conta os pares opostos antes apresentados, unilaterais) acerca do comportamento dos homens: estes seriam, segundo Maquiavel, geralmente [generalmente]... ingratos, volveis, simuladores, covardes e ambiciosos por dinheiro [cupidi del guadgno], alm de prfidos.22

    Joo Emiliano Fortaleza de Aquino

    78

    _____

    Penso que fundamental aqui observar algumas coisas. Primeiro o uso, por parte do prprio Maquiavel, do termo generalmente, o que demonstra a sua conscincia de que est, nessa passagem, fazendo uma generalizao e que, portanto, nada diz de nenhuma anlise concreta, particular. Segundo que, se lida de modo isolado, como uma afirmao de uma natureza humana assim determinada, essa generalizao no poderia ser explicada (seno admitida como contraditria), por exemplo, em relao ao que ele diz no captulo XXI: e os homens no so nunca to maus que queiram oprimir a quem devem ser gratos.23 Alm disso, a anterior afirmao de que as condizioni umane determinam o modo como os indivduos realizam (ou se apropriam, si possono) das possibilidades da virt faz lembrar a sua crtica aos procedimentos de alguns seus antecessores, que partiriam da imaginao, qual ele opunha precisamente a verit effettuale, os efeitos concretos das aes humanas; e tambm faz supor que essas condies humanas indicam aqui a importncia das particularidades histricas.

    Com efeito, em outros momentos, Maquiavel recusa

    19. Idem, p. 64; idem, ibidem. 22. Idem, ibidem; idem, ibidem. 20. Idem, ibidem; idem, ibidem. 23. Idem, p. 91; idem, p. 48. 21. Idem, p. 70; idem, p. 36.

    77

  • Memria e conscincia histrica

    juzos generalizantes, chamando a ateno para que sejam observadas as particularidades concretas a serem analisadas; este o caso de um momento do captulo XX, em que, referindo-se s diversas atitudes dos prncipes, afirma que no se pode nunca julgar em definitivo se no se examinarem as particularidades dos Estados onde se tivesse de tomar alguma deliberao semelhante [non si possa dare determinata sentenza, se non si viene a particulari de quegli stati dove avessi a pigliare alcuna simile deliberazione].24 Esta ateno s particularidades a mesma que mantm quanto virt dos indivduos, tal como sugere a anterior discusso sobre os modos diversos de combinao das possveis qualidades humanas que um prncipe deve buscar possuir. Um trecho deste mesmo captulo , alis, muito esclarecedor da importncia da particularidade e da variao das circunstncias no procedimento Maquiaveliano de anlise histrica; referindo-se s estratgias dos prncipes em certos aspectos de alianas, ele diz: Mas de tal matria no possvel estabelecer regras gerais, pois variam muito as circunstncias de cada caso [Ma di questa cosa non si pu parlare largamente, perch la varia secondo il subietto].25

    Mas, certamente, o penltimo captulo dO prncipe aquele em que a variao e a circunstancialidade da virt so mais solicitadas, ao mesmo tempo em que as aes humanas (nuanadas pela virt) nos acontecimentos mais valorizada. Neste passo, Maquiavel reconhece que h motivos para que muitos acreditem que a fortuna e Deus (de la fortura e da Dio) alis, um tema polibiano determinem o curso das coisas do mundo, de modo que os homens nada podem fazer quanto ao seu destino, cabendo-lhes _____

    apenas deixar-se governar pela sorte (sorte); e isso se explica pela existncia, realmente, de uma grande quantidade em seu tempo (nostri tempi, diz ele) de coisas fora de toda conjuntura humana [fuora di ogni umana coniettura].26 No entanto, diz ele,

    Joo Emiliano Fortaleza de Aquino

    80

    penso que a fortuna seja rbitra [arbitra] da metade [met] de nossas aes, mas que, ainda assim, ela nos deixa governar quase a outra metade [laltra met, o presso]. Comparo-a a um desses rios impetuosos que, quando se encolerizam, alagam as plancies, destroem as rvores, os edifcios, arrastam montes de terra de um lugar para outro: tudo foge diante dele, tudo cede ao seu mpeto, sem poder obstar-lhe [ostare] e, se bem que as coisas se passem assim, no menos verdade que os homens, quando volta a calma, podem fazer reparos e barragens, de modo que, em outra cheia, aqueles rios correro por um canal e o seu mpeto no ser to danoso. Semelhante acontece com a fortuna, a qual demonstra a sua potncia onde no ordenada a virt para resisti-la...27

    Observemos nessa passagem, primeiramente, o esforo de Maquiavel em diferenciar a experincia particular de seu tempo, em que grande parte dos acontecimentos histricos escapa ao clculo humano, e o que devemos pensar em geral da relao fortuna-virt na histria. Segundo, a sua equao dessa relao, apresentada inicialmente nos termos metafricos de uma relao entre quantidades (metade e quase metade), mas melhor definida na posio de resistncia da virt frente fortuna. Claro que a _____

    26. Idem, p. 103; idem, p. 51. 27. Idem, p. 103; idem, p. 52 (itlicos meus, assinalando tambm

    que nesse trecho a traduo foi minha, para manter a presena do conceito de virt, que na traduo de Lvio Xavier est ausente).

    24. Idem, p. 87; idem, p. 45. 25. Idem, p. 57; idem, p. 46.

    79

  • Memria e conscincia histrica

    resistncia da virt aqui no significa, nem poderia, que Maquiavel a toma como nica determinao do curso dos acontecimentos; mas sim que, em face do enorme peso da fortuna, das circunstncias e mesmo das adversidades, possvel virt, atravs da experincia adquirida no passado, obstar-lhes: os homens, quando volta a calma, podem fazer reparos e barragens... Assim, em sua preocupao com pensar a histria a com base no critrio de utilidade para a ao poltica, para a interveno no presente, fundamental a Maquiavel pensar essa possibilidade de oposio da ao fortuna, pensar, como diz, acerca dos obstculos que se podem opor fortuna, em geral [quanto allo opporsi a la fortuna, in universali].28

    Mas o que lhe interessa, diz ele, restringir-se aos casos particulares (particulari); e pensando essas questes com bases nas possibilidades das particularidades, ele constata que se costumam ver hoje o sucesso de um prncipe e amanh a sua runa, sem ter havido mudana na sua natureza, nem em algumas de suas possibilidades [senza avergli veduto mutare natura o qualit alcuna].29 Mudana de natureza (mutare natura)? Mas a natureza humana no a essncia humana, no , segundo a tradio filosfica, aquilo que substancialmente (e universalmente) determina o homem? Como, ento, pensar na possibilidade (e, mais ainda, necessidade) de mudar individualmente o que somos universalmente (como gnero)? Sem dvida, j no estamos mais, quando se toma Maquiavel, na antiga (clssica) posio metafsica da antropologia filosfica (ou psicologia, no dizer de Aristteles). Creio que exatamente aqui nessa relao entre virt e fortuna, entre o _____

    esforo individual de fazer frente s circunstncias (ou opondo-se a elas ou adequando-se a elas, conforme lhe for mais favorvel) e essas mesmas circunstncias (quase nunca escolhidas pelo indivduo) em que aparece de modo ntido o problema da natureza humana em Maquiavel.

    Joo Emiliano Fortaleza de Aquino

    82

    _____

    Efetivamente, segundo ele diz na seqncia da passagem citada h pouco, quando um prncipe se apia totalmente na fortuna [fortuna], arruna-se segundo as variaes delas, sendo, portanto, feliz aquele que combina o seu modo de proceder com as particularidades dos tempos, e infeliz o que faz discordar dos tempos a sua maneira de proceder.30 Mas o que significa precisamente aqui o combinar/conformar (riscontrare)? Significa a necessidade de agir de acordo com, segundo sejam as necessidades particulares dos tempos, segundo precisamente as circunstncias que, ao se alterarem, tornam necessrio que tambm se alterem a natureza e o modo de proceder dos indivduos. Assim, diz ainda Maquiavel, se um se conduz com cautela e pacincia e os tempos e as coisas lhe so favorveis, o seu governo prospera e disso lhe advm a felicidade. Mas se os tempos e as coisas mudam, ele se arruna, porque no alterou o modo de proceder.31 Pessimista quanto possibilidade de o homem ter a prudncia de efetivar essa adequao s circunstncias, Maquiavel afirma que, quando afortunado, se mudasse de natureza, conforme o tempo e as coisas, no mudaria de fortuna [si mutassi natura com e tempi e com le cose, non si muterebbe fortuna].32

    30. Idem, ibidem; idem, ibidem. 31. Idem, ibidem; idem, ibidem. 28. Idem, p. 104; idem, ibidem. 32. Idem, ibidem; idem, p. 53. 29. Idem, ibidem; idem, ibidem.

    81

  • Memria e conscincia histrica

    Observo, assim, que Maquiavel se refere, nessas passagens, muito mais a uma natura dos indivduos do que a uma natureza humana in universalis. E mesma essa singular natureza, essa singular virt necessita mudar diante da mudana das circunstncias, sob o risco, precisamente, de submeter-se aos insucessos. O carter prtico de todo esse discurso evidente: trata-se de saber melhor agir em situaes histricas muito concretas; em outras palavras, a mutabilidade da natureza dos indivduos requisitada, com base na compreenso das experincias histricas do passado, para uma melhor interveno prtica nas situaes vividas. O que faz, assim, fragilizar e relativizar a representao de uma natureza humana no pensamento de Maquiavel (tal como se apresenta nO prncipe) a funo histrica das referncias ao comportamento humano nessa obra: histrica, porque pensado a partir das experincias do passado, nas quais ele se apresenta vrio, mutvel; e histrica tambm porque essa reflexo busca a interveno prtica no presente.33

    _____ 33. De qualquer modo, a leitura da traduo brasileira de O prncipe

    no ajuda nesse discernimento: pelo menos em duas passagens, apresenta-se ora a palavra natureza, ora natureza humana que substituem completamente outros termos que esto no original italiano. A primeira dessas passagens : Somente esses principados, portanto, so, por natureza, seguros e felizes (captulo XI, p. 45); no original esse trecho : Solo adunque questi principati sono sicuri e felici... (p. 26). A segunda passagem : No entanto, os enganos sempre lhe correram medida dos seus desejos, pois ele conhecia muito bem este lado da natureza humana (cap. XVIII, p. 74); no original esse trecho se encontra assim: ...nondimeno sempre gli succederno glinganni ad votum, perch conosceva bene questa parte del mondo (p.38). Pode ser tambm que a interpretao corrente de uma natureza humana em Maquiavel tenha terminado por influenciar a prpria traduo.

    83