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Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009�

Fundação Luso-Americana

ConseLho DireCtivo: Teodora Cardoso (Presidente)Embaixador dos Estados Unidos da AméricaJorge Figueiredo DiasJorge TorgalLuís Braga da CruzLuís Valente de OliveiraMaria Gabriela CanavilhasMichael de MelloVasco Graça Moura

ConseLho exeCutivo:Rui Chancerelle de Machete (Presidente)Charles Allen Buchanan, JrMário Mesquita

seCretário-GerAL: Fernando Durão

DireCtores: Fátima Fonseca, Paulo Zagalo e Melo, Miguel Vaz

subDireCtores: António Vicente, Rui Vallêra

responsáveL peLos serviços FinAnCeiros: Maria Fernanda David

responsáveL peLos serviços ADministrAtivos: Luiza Gomes

Assessores: João Silvério, Paula Vicente

Rua do Sacramento à Lapa, �1 1�49-090 Lisboa | PortugalTel.: (+351) �1 393 5800 • Fax: (+351) �1 396 3358Email: [email protected] • www.flad.pt

paralelo

DireCtor: Rui Chancerelle de Machete

eDitorA: Sara Pina

CoorDenADorA: Paula Vicente

seCretAriADo DA reDACção: Cristina Cambezes e Sofia Roquete

CoLAborAm neste número: Alexandre Soares, Ana Brasil, Ana Catarina Santos, Ana Luísa Rodrigues, António Vicente, Bruno Marchand, Carla Martins, Carlos Moura, Catarina Gomes, Catarina Neves, Claúdia Gameiro, Charles Buchanan, Clara Pinto Caldeira, Cristina Lai Men, Fabiana Coelho, Joana Fernandes, Joana Godinho, João Carita, Filipe Santos Costa, Filipe Vieira, Filipa Simas, Francisco Belard, James R. Dickenson, James Roosevelt, Manuel Jacinto Nunes, Marco Leitão Silva, Margarida Pimenta, Maria Inácia Rezola, Maria João Guimarães, Mário Bettencourt Resendes, Mário Mesquita, Mário Soares, Marta Amorim, Martha Mendes, Michael Werz, Nuno Costa Santos, Patrícia Fonseca, Rui Catalão, Rui Chancerelle de Machete, Rui Vallera, Sara Pina, Sónia Graça, Susana Neves, Susana Salgado, Susana Paula e Vanda Mendonça

DesiGn: José Brandão | Susana Brito [Atelier B�]

revisão: António Martins

impressão: www.textype.pt

tirAGem: 3000 exemplares

niF: 501 5�6 307nº De reGisto nA erC: 1�5 563perioDiCiDADe: semestral

[email protected]

Depósito legal: �69 114/07ISSN 1646-883X

© Copyright: Fundação Luso-Americana para o DesenvolvimentoTodos os direitos reservados

Caro leitor

“Belo céu azul [aqui em Nova Iorque] que me leva a pensar que nós estamos na mesma latitude de Lisboa, o que tenho dificuldade em imaginar.” Albert Camus, Cahier V (1946)

Oúnico limite para a nossa realização no futuro são as

dúvidas que temos hoje. Sigamos em frente com fé

diligente e forte.” Esta podia ser uma frase de Obama

levando muitos a ultrapassarem medos e preconceitos e “emergir de

uma relação abusiva com os líderes do nosso país no século XXI”, como

escrevia o New York Times. Mas a declaração é de Roosevelt, feita há mais de

sessenta anos.

Em comum, os dois presidentes conseguiram reavivar a crença na

mudança – mobilizaram os americanos. Os milhares de pessoas que

afluíram ao Mall e pacientemente esperaram nas estações de metro,

onde parecia não caber mais uma agulha, para assistir ao juramento de

Obama são disso um bom exemplo.

Roosevelt foi vivamente lembrado com a recente eleição, mas já antes

a FLAD concretizava o Fórum, a ele dedicado, que decorreu em São

Miguel, no Verão passado, para analisar e debater as relações transatlân-

ticas, celebrando a visita de FDR aos Açores que nunca esqueceu.

Dado o interesse suscitado e a vontade de fazer uma revista melhor e

dirigida a mais pessoas, a Paralelo passa a ser vendida ao grande público.

Está, portanto, nas bancas este número especialmente dedicado aos dois

presidentes: Obama e Roosevelt. sArA pinA

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 3

índice

CAPA deAndré Carrilho

14 | Prioridades energéticas e ambientais por Charles Buchanan

15 | A mudança que o mundo precisa por Manuel Jacinto Nunes

16 | A realidade do sonho por Joana Godinho

22 | BLOCO DE NOTAS

O novo ciclo americanoou a analogia Roosevelt de Mário Mesquita

08 | O que vai mudar?por Filipe Vieira

11 | Testemunho por Mário Soares

12 | O que esperar? por Lídia Jorge

13 | Desafios à nova Presidência por João de Vallera

05 | Editorial de Rui Chancerelle de Machete

Reconstruir a América

[portuGAL/euA]

46 | Carlucci vs. Kissinger

49 | Os Capelinhose a emigração açoriana

52 | Perfil de Luís dos Santos Ferro

[portuGAL/euA]

59 | Liderança no século XXICurso da Kennedy School nos Açores

69 | “Asas sobre a América”: Só a literatura vence o tempo

62 | CARTA BRANCA Um jantar no Havai de Mário Bettencourt Resendes

26 | Revista de Imprensa

29 | Mensagem de James Roosevelt

30 | De olhos postos no mundopor Sara Pina

34 | Actualidade do pensamento de Roosevelt Entrevista com

Alan Henrikson

40 | A América de voltaàs Nações UnidasEntrevista com

Stephen Schlesinger

“A única coisa de que devemos ter medo é o próprio medo”

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 20094

A Paralelo, revista da Fundação Luso-Americana (FLAD), visa con-

tribuir para o desenvolvimento das relações entre Portugal e os

Estados Unidos, nomeadamente, nos domínios económico, cien-

tífico e cultural.

A Paralelo adopta este título a fim de sublinhar que Portugal e os Estados

Unidos estão no mesmo paralelo geográfico, partilham valores, foram

e são, muitas vezes, aliados na defesa de interesses comuns.

A Paralelo define-se como publicação institucional o mais próxima

possível do jornalismo, no que se refere ao rigor, à exactidão e à cria-

tividade editorial.

A Paralelo rege-se, no exercício da sua actividade informativa, pelas

referências fundamentais da deontologia do jornalismo.

A Paralelo, no âmbito da sua linha editorial, assume o compro-misso

de assegurar a defesa dos valores da liberdade de expressão e do

pluralismo.

A Paralelo dedica especial atenção às questões relacionadas com a

comunidade portuguesa residente nos Estados Unidos e à defesa

dos seus legítimos interesses.

A Paralelo assume nos editoriais a sua linha de orientação, conside-

rando que as opiniões expressas nos artigos dos seus colaboradores

apenas vinculam os respectivos autores.

A Paralelo publicará, em simultâneo, duas edições, com conteúdo

idêntico, em português e inglês.

Estatuto Editorial

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 5

rui ChAnCereLLe De mAChete

Reconstruir a América

‘A actual situação oferece uma ocasião única para revigorar a comunidade cultural e económica entre um e outro lado do Atlântico. ’

A eleição do Presidente Barack Obama é uma grande oportunidade para a revisão das políticas interna e externa dos EUA. Muito significativamente, a conhecida revista The American Interest titulou o seu últi-mo número como “Rebuilding America”. As expectativas de mudança são enormes, porventura mesmo excessivamente altas.

O novo Presidente caracteriza-se por ser um homem de convicções fortes que pretende traduzir na prática a política do Executivo.

Espera-se que tenha a coragem necessária para tomar as deci-sões adequadas para a resolução dos problemas; que não fraqueje

e não ceda à popularidade fácil de seguir padrões políticos maioritários pelo simples facto de o serem.

Os compromissos que tenha de assumir deverão assim ser sobre questões concretas e não sobre princípios.

A primeira prioridade do novo Presidente, vencer a profunda crise financeira e eco-nómica, reveste simultaneamente carácter doméstico e dimensão mundial. Combater o desemprego e retomar o crescimento implicam relançar a procura e restituir aos bancos a capacidade de veicularem os necessários meios financeiros aos diversos actores do mercado. Reganhar a confiança dos agentes económicos exige o saneamen-to das instituições financeiras e este, pro-vavelmente, só poderá conseguir-se se o Estado se tornar, ainda que temporariamen-te, titular de grande parte do seu capital social, por muito que pese à ideologia dominante na América. O paralelismo com certas medidas socializantes de New Deal

reforça certa comunidade do destino entre o programa do actual Presidente e o New Deal de Roosevelt.

No sistema internacional, o novo Presidente defenderá seguramente, acima de tudo, os interesses do seu país. É o seu dever. Mas, nas grandes questões, as soluções a adoptar não serão tão conflituais com as posições da América como os neoconservadores acredi-tavam. As políticas energéticas convenientes, o controlo do aquecimento global, a pro-moção do desenvolvimento sustentável, um comércio internacional com trocas mais jus-tas, todos requerem solidariedades acima do egoísmo míope de curto prazo da anterior Administração.

Mas, mesmo no aspecto essencial da segu-rança, a luta contra o terrorismo fundamen-talista islâmico e a questão conexa da criação de um modus vivendi entre Israel e os palesti-nianos, a estabilização do Sudoeste Asiático, com soluções funcionais para o Iraque, o Afeganistão e o Paquistão, a saída para o impasse nuclear iraniano, são problemas que têm a ganhar com a predisposição para o diálogo que os EUA agora demonstram.

O Ocidente, como aliado partilhando valo-res e interesses comuns, proporciona um apoio estável, se se estabelecer um clima de confiança entre parceiros que mutua-mente se respeitem. Num mundo perigoso, os EUA e a União Europeia muito benefi-ciarão se desenvolverem os meios de coo-perarem nas tarefas e processos necessários para levar de vencida os desafios comuns.

Ao contrário do cepticismo dos que apre-goam o declínio da unidade do Ocidente, a actual situação oferece uma ocasião única para revigorar a comunidade cultural e eco-nómica entre um e outro lado do Atlântico. Assim sejamos capazes de recriar os instru-mentos capazes de a concretizar!

eDitoriAL

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 20096

A festa da libertação

O nosso país ainda continuava na mesma valeta em que se encon-trava no dia anterior, mas a atmosfera era estonteante. Sentíamo- -nos muito bem, não só porque tínhamos ultrapassado uma barreira racial tão velha como a própria república, mas também porque a alvorada nos trazia a percepção de que estávamos final-mente a emergir de uma relação abusiva com os líderes do nosso país do século XXI. As cenas festivas de libertação que Dick Cheney tinha, em tempos, imaginado para o Iraque, estavam finalmente a acontecer – em cidades por toda a América. [ Frank Rich ]

Esperança concretizada

Alguns príncipes nascem em palácios. Outros nascem em manjedouras. Outros, ainda, nascem na imagina-ção, a partir de restos de história e de esperança. Barack Obama nunca fala da forma como as pessoas o vêem. Pelo contrário, sempre que pode, afirma: “Não sou eu que estou a fazer História. São vocês.” [...] Ele gosta de dizer: “Nós somos aqueles de quem

temos estado à espera”, mas as pessoas estavam à sua espera, à espera de alguém que terminasse aquilo que foi começado por um Rei [“Rei”/”King”, alusão a Martin Luther King].” [ Nancy Gibbs ]

Obama e Carter

O candidato cujo percurso até à presidência mais se assemelhou ao de Obama foi Jimmy Carter. Também ele usou um apelo muito pessoal e inspirador para compensar um currículo pouco con-sistente. Após ter cortejado o público com uma retórica lison-jeira, prometendo “um governo tão bom como o próprio povo americano”, Carter falhou redondamente como presidente, em

revistA De imprensA

Nova era I

Estas eleições foram tão extraordinárias em tantos aspectos que

serão necessários muitos anos para que o seu verdadeiro signifi-

cado seja completamente explorado e muitos mais para que seja

entendido. No entanto, já se sente no ar o início de uma nova era.

Tal como em 1932 e 1980, a crise económica abriu o caminho

para a rejeição do tipo de governação que tem predominado e

para o forjar de uma nova abordagem. O público virou-se contra

o conservadorismo nacional e o neoconservadorismo internacio-

nal de uma forma enérgica e massiva. A crença de que os merca-

dos livres e os impostos mínimos sobre os mais ricos poderiam

resolver todos os problemas internos e que a arrogância unilate-

ral e as armas americanas poderiam resolver todos os problemas

externos estará morta durante uma geração ou mais. A estratégia

eleitoral de ressentimento cultural e falso populismo sofreu um

duro golpe. [ Hendrik Hertzberg ]

por Filipe vieira*

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 7

parte porque era uma espécie de projecto político solitário. [...] Os americanos sensatos esperam que o Presidente eleito Obama tenha um destino melhor. Deveriam também reflectir sobre as implicações do processo de selecção que, em breve, recomeçará novamente.” [ George F. Will ]

O voto dos yuppies

Tenho escrito acerca do que chamei Bushenfreude, um fenómeno de yuppies enfurecidos que beneficiaram muito com os cortes nos impos-tos implementados pelo Presidente Bush e que financiaram cam-panhas democratas populistas e encolerizadas. Tenho teorizado que as pessoas que trabalham no sector dos serviços financeiros e nou-tros a ele ligados, estão de tal maneira indignadas e alienadas pela incompetência, pelo pesado conservadorismo social e pelos repe-tidos insultos à inteligência da nação por parte do Partido Republicano da era Bush que estão a votar com o coração e a cabeça em vez de votar com a carteira. [ Daniel Gross ]

Nova era II

E eis aqui Barack Obama, filho de um queniano negro que veio para os EUA com uma bolsa de estudo e da sua mulher branca americana. Não há mais nenhuma nação no mundo em que um eleitorado, com uma maioria de 75 por cento, tenha eleito, como seu líder máximo, um homem que se identifica

como fazendo parte de uma das minorias historicamente opri-midas dessa mesma nação.O foco da política negra afasta-se agora de uma liderança baseada na expressão de sentimentos de injustiça e de uma política de identidade baseada na vitimização e rancor. No seu lugar, temos agora uma era em que se parte do princípio que pessoas fortes e talentosas de qualquer origem encontrarão o caminho para chegar ao seu justo lugar de poder na cena política.[ Juan Williams ]

Interesse mundial

Não há memória de outras eleições que tenham feito vir à tona um interesse tão grande de todo o mundo. E o mundo estava claramente a torcer pelo senador Barack Obama. Agora esperam-

-se acções eficazes e não arranjos provi-sórios. […] A única forma de governar nesta era desgover-nada de democra-cias disfuncionais é pensando o impos-sível e agindo de

forma imprevisível, deixando sempre para trás o adversário, ofe-gante, a tentar alcançar-nos. [ Arnaud de Borchgrave ]

Inclinação à esquerda

O desejo que o público manifesta de mais acção governamental para sarar a economia e garantir a cobertura dos seguros de saúde, bem como o seu novo cepticismo relativamente à desregulamen-tação do mercado, sugerem que somos um país moderado que agora se inclina ligeira e cautelosamente para a esquerda. Mas essa cautela significa que os progressistas deveriam evitar dar opiniões baseadas no pressuposto de que já foi consumada uma revolução ideológica. Não deveriam imitar o triunfalismo de Karl Rove e dos seus seguidores, que interpretaram a vitória de 50,8 por cento do Presidente Bush em 2004 como o prelúdio de uma maioria republicana duradoura. [ E. J. Dionne Jr ]* Jornalista em Washington dC

‘não há memória de outras eleições que tenham feito vir à tona um interesse tão grande de todo o mundo. ’

revistA De imprensA

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 20098

Barack Obama prometeu mudar a América e essa mudança aí está. O próprio facto de ter sido o primeiro afro-americano a ser eleito para a presidência da mais pode-rosa potência mundial constitui, por si só, uma revolução. Aí reside a maior e a mais surpreendente das mudanças saídas desta saga eleitoral, que se arrastou por mais de vinte e dois meses.

A eleição de John F. Kennedy, em 1960, ocorre como a mais provável das compa-rações com o feito eleitoral de Obama, ainda que a marginalização dos negros na sociedade americana apenas de forma miti-gada se possa equiparar às dificuldades inicialmente sentidas, em termos de acei-tação, pelas comunidades irlandesa, italia-na ou portuguesa à sua chegada ao Novo Continente. Ainda assim, John Kennedy foi o primeiro católico a habitar a Casa Branca e, até hoje, foi o último. John Kerry, tam-bém católico, concorreu há quatro anos atrás e, já então, o factor religião deixou de existir como argumento catalisador.

O historiador David Kennedy, da Universidade de Stanford, observa, a pro-pósito, que Barack Obama poderá ser também o primeiro e o último Presidente afro-americano dos Estados Unidos, suge-rindo: “Talvez possamos agora esperar uma época em que a raça seja, como a religião, um factor insignificante.” Clement Price, da Universidade de Rutgers, recor-da que Obama “apresentou ao país, de forma magistral”, a sua mãe branca e os seus avós do Kansas, “para o ajudar a con-quistar os corações e as mentes dos ame-ricanos brancos”.

A mudança da América para uma era puramente não racial é uma das poten-cialidades inerentes à vitória eleitoral de Obama. Poucas décadas depois de ter sido dado aos negros americanos o direito ao voto, o fenómeno da descompressão da

tensão racial começa a ser uma realidade social desejável e que está patente no elei-torado que votou Obama. Os resultados destas presidenciais deitam por terra mui-tos dos mitos raciais alimentados duran-te a campanha eleitoral, o primeiro dos quais era o de que o eleitorado masculi-no de raça branca seria o mais reticente a aceitar a entrada de um negro para a Casa Branca. Afinal, Obama obteve daque-le sector a mais elevada percentagem do que qualquer outro candidato democrata, desde a eleição do Presidente Jimmy Carter, ainda que John McCain tenha tido uma apreciável vantagem: 57 contra os 41 por cento de Obama. O eleitorado latino-americano, que Hillary Clinton reivindicava como feudo próprio, duran-te as primárias, votou em massa no can-didato democrata. O analista de sondagens

de Hillary, Sergio Bendixen, disse para quem o quis ouvir: “O votante hispâni-co – e eu quero dizer isto com muito cuidado – não tem demonstrado muita disposição ou afinidade em apoiar can-didatos negros.” Na realidade, Obama atingiu os 64 por cento do voto latino-americano, ultrapassando os 55 por cento obtidos por John Kerry em 2004. McCain, dada a sua impopular política relativa-mente à emigração, não foi além dos 33 por cento, contra os 43 obtidos por George W. Bush, há quatro anos, aquan-do da sua reeleição. Obama arrebatou também o voto dos católicos com 54 por cento (45 para McCain) e dos judeus com 71 por cento (21 para McCain) e 45 por cento dos votos de todas as con-fissões protestantes, contra 54 para o candidato republicano.

POR FiLipe vieirA*

A mudança da América para uma era puramente não racialé uma das potencialidades inerentes à vitória eleitoral de Obama.

o que vai mudar?

“barack obama poderá ser o primeiro e o último presidente afro-americano dos euA” (David Kennedy).

ANNE

RyAN/P

OOL/

LUSA

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 9

o Fim De umA presiDênCiA De penDor imperiALA vertente racial da vitória de Obama é apenas uma das mudanças saídas destas eleições. O país espera, certamente, mais. Objectivamente, a chegada de Barack Hussein Obama à Casa Branca põe termo a oito anos de uma Presidência republi-cana marcadamente ideológica e de pen-dor imperial, com poderes únicos na história da república americana.

A herança de George W. Bush, são duas guerras por terminar – no Iraque e no Afeganistão – e uma avassaladora crise financeira global, cujo fim se não vislum-bra para breve. A política de continuidade

que o candidato republicano John McCain esboçou sem grande convicção e com algumas apressadas mudanças de per-curso, acabou por colocar nas mãos de Obama o futuro do país.

O eleitorado espera, agora, do seu 44.º Presidente, mais do que a mudança pro-metida. Parece querer, afinal, uma nova América! E pode muito bem acontecer que Barack Hussein Obama seja o homem certo, no momento certo para responder a esse

desafio. Não será fácil transpor para a dimensão da Casa Branca o molde de gestão aplicado à sua campanha eleitoral. A sua campanha foi, comprovadamente, uma das mais criati-

vas e, ainda assim, das mais metódicas e sistemáticas de que há memória na história do país. Obama demonstrou ter um perfeito controlo das situações, nave-gando com extrema habilidade e ele-

gância, muitas das dificuldades que lhe foram sendo colocadas à frente. Desde as alusões de carácter racista avançadas pela campanha de Hillary Clinton, durante as primárias, passando pela erupção inusitada do reverendo Wright, até às acusações insidiosas de ligações ao terrorismo largadas pela governado-ra do Alasca em comícios pelas terras do interior, a tudo os porta-vozes do candidato democrata responderam com uma grande contenção.

“vAGA De FunDo” eLeCtróniCA A utilização dos meios electrónicos na cam-panha eleitoral pelas hostes de Barack Obama irá ser aplicada no centro do poder, em Washington. O estratega democrata Joe Trippi, em declarações ao Washington Post, comentava, a propósito: “Assim como John F. Kennedy usou de forma magistral a tele-visão como medium para levar a sua mensa-gem ao público”, Obama transformou a arte de comunicação em política ao ter,

segundo o estratega democrata Joe trippi, “obama transformou a arte de comunicação em política”.

‘não será fácil transpor para a dimensão da Casa branca o molde de gestão aplicado à sua campanha eleitoral. ’

JUDy

DEH

AAS/

EPA/L

USA

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 200910

pela primeira vez, integrado a internet numa campanha política.

E, agora, na Casa Branca, o novo Presi- dente eleito tem em marcha um projecto para expandir o sistema de comunicações. Os conselheiros políticos querem manter viva a “vaga de fundo” que foi a coluna dorsal do apoio, durante o processo elei-toral. O que lhe irá permitir contactar, directa e instantaneamente, através da inter-net, com uma rede de doadores e de mili-tantes que serviram como “soldados” durante a campanha eleitoral: que ajudaram a organizar comícios; que foram entregar folhetos de porta a porta; que registaram milhões de votantes; que, no dia das elei-ções, telefonaram aos retardatários e que os levaram até às assembleias de voto, se necessário. Ao que se julga saber, Barack Obama tem disponível uma base de dados

que contém qualquer coisa como dez milhões de endereços de correios electró-nicos e de telemóveis prontos a receber e a retransmitir sms à velocidade de um fogo posto numa floresta de cedros.

A poLítiCA morAL De obAmAÀ semelhança de Jimmy Carter, este Presidente promete uma política moral. Mas, ao contrário de Carter, Obama é um político pragmático. Já bateu com a porta na cara aos lóbis que queriam financiar a sua equipa de transição e promete mandar fechar a prisão militar de Guantánamo.

O fim da guerra no Iraque é outra pro-messa do novo Presidente e tudo parece indicar que o calendário da retirada das forças americanas daquela frente parece coincidir com a vontade política do Governo iraquiano e com a opinião das chefias do Pentágono. Já no que toca ao teatro de guerra no Afeganistão o cenário é diferente. E diferentes são também as opções de Barack Obama que propõe um reforço militar rápido, a par da retirada do Iraque, para dar caça aos taliban e

estabilizar o poder do Presidente Hamid Karzai.

Para proteger a sua retaguarda política em Washington e para evitar precalços e outros erros de percurso, o 44.º Presidente dos Estados Unidos nomeou Rahm Emanuel para seu chefe de gabinete. Emanuel é um homem do partido, bri-lhante, metódico e obstinado. Foi conse-lheiro político de Bill Clinton na Casa Branca. Por isso conhece os cantos à casa. Esteve em Wall Street, antes de ter con-corrido e de ter sido eleito para o Con-gresso pelo estado do Illinois. Aliás, foi ele o arquitecto da vitória eleitoral dos democratas em 2006, na sua qualidade de presidente de campanha. Paul Begala, outro ex-conselheiro de Clinton, definiu Emanuel como “qualquer coisa entre uma dor de dentes e um ataque de hemorrói-das” para sublinhar o estilo abrasivo e implacável do homem a quem cabem agora, na prática, na Casa Branca, as fun-ções equivalentes às de um primeiro- -ministro num governo europeu.

* Jornalista em Washington dC

obama com soldados em basra, no iraque. o fim da guerra é uma das promessas do novo presidente.

‘obama já bateu com a porta na cara dos lóbis que queriam financiá-lo.’

JANNIN

E B H

ART

MANN/E

PA/L

USA

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 11

POR mário soAres*

Testemunho

Desde que o Presidente Barack Obama, ainda sena-dor, acerca de dois anos, decidiu candidatar-se à Presidência da República – e li os seus primeiros discursos, declarações e a sua biografia –, que segui o seu percurso, com enorme atenção e simpatia, nos meses finais, com verdadeira paixão.

Porquê? Porque percebi a importância da sua can-didatura, não só para a América como para a Europa e mesmo para o resto do mundo.

Fui crítico, muito severo, durante os dois manda-tos, das políticas do Presidente Bush, tanto a nível externo como interno. Considerei a Guerra do Iraque um crime, alicerçada em mentiras e falsidades. Achei a invasão do Afeganistão um “precedente perigoso” que comprometeu para sempre o prestígio da NATO. Condenei a política hegemónica e unilateral dos Estados Unidos e a marginalização das Nações Unidas. A estratégia da luta contra o terrorismo, baseada apenas na força bruta, sem ouvir os seus aliados e sem verdadeira informação.

No plano interno censurei o descuido das polí-ticas da Administração Bush de saúde, educação e segurança social e a excessiva confiança na auto-regularização do mercado, na chamada “mão invi-sível”, que favoreceu os muito ricos, arrasou as classes médias e aumentou a pobreza e o desem-prego. Foram essas políticas que conduziram ao total descrédito da ideologia neoconservadora, que a Administração Bush, em vão, tentou impor ao mundo.

Barack Obama revelou-se uma personalidade polí-tica ímpar, teve a coragem de denunciar, desde o início, a desastrosa política americana no Iraque, e conseguiu mobilizar, em seu favor, a esmagadora maioria da juventude americana para as boas causas sociais e ambientais e, no plano externo, em favor da paz, do multiculturalismo, em defesa das mino-rias e da igualdade entre homens e mulheres.

Por isso o considero o homem certo para o momento certo. O que pode fazer quando chegar à Casa Branca? Em primeiro lugar, o facto de um afro--americano se sentar na Sala Oval da Casa Branca, representa, em si mesmo, uma verdadeira revolução cultural e das mentalidades. Depois, porque prome-teu a mudança e estou convencido que, apesar de todas as dificuldades – e da complexa crise que nos afec-ta a todos – vai cumprir. Como renovar o pioneiris-mo americano – na linha de Lincoln, Roosevelt e Kennedy – e defender a paz e o ambiente natural.

Em todos os domínios, vamos assistir a uma trans-formação radical, o que é excelente para a América, para a Europa (apesar da sua actual paralisia) e para o mundo. * Antigo Presidente da República Portuguesa

RAQ

UEL

WIS

E

“em todos os domínios vamos assistir a uma transformação radical”, escreve mário soares.

ERIC

DRAPE

R/E

PA/L

USA

‘[...] considero o homem certo para o momento certo.’

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 20091�

POR LíDiA JorGe*

O que esperar?

Constou-me que na casa de infância do Presidente Reagan existia um ladrilho solto debaixo do qual, em criança, ele escondia as moedas. O Presidente Barack Obama não terá tido um ladrilho como esconderijo, mas seja lá onde for que tenha acumulado as suas fortunas de rapaz, espero que

entre elas se encontre uma carta dos seus avós sobre a palavra compro-misso. Para nós, à distân-cia de um oceano e um continente, não precisa-mos de mais nada senão que cumpra a mudança que anunciou. E o que anunciou não foi pouco. Como candidato, pro-meteu gerir bem o seu país, sem esquecer que os outros países têm os mesmos direitos de sobreviver e de guarda-rem para si os bens que lhes pertencem. Prometeu negociar e concertar, em vez de impor e atacar. Prometeu respeitar os direitos

humanos, no interior do seu país, e fora dele. Prometeu respeitar a Terra, tomá-la na mão como o nosso único bem precioso. Prometeu que sendo os Estados Unidos o país mais poderoso, seria um

entre pares, com a consciência sempre presente de que no mundo actual a falência de um pode ser a falência de todos.

Pelo menos foi assim que entendi o seu pedido para que fossem votar em nome da mudança. O candidato Barack Obama disse que o voto de cada americano à primeira vista apenas mudaria o bairro, mas ao mudar o bairro mudaria a cidade. Mudando a cidade, mudaria o país, e mudando o país, mudaria o mundo. Nunca ouvi da boca de um político uma declaração tão à altura do momen-to que atravessamos. Até estou em crer que ele deve ter lido os versos de John Donne que o seu com-patriota Ernest Hemingway tomou para epígrafe em Por Quem os Sinos dobram. Também aí o poeta inglês falava de que a parte que cada um representa é a parte de um todo. Pois o candidato Obama fez dessa ideia a sua promessa voluntariosa – “Change! Yes, We can”. Por certo que o Presidente Obama não vai voltar atrás. Ele tem entre os seus tesouros, de certeza, a palavra compromisso. E é isso que nós, à distância, podemos esperar da sua figura e per-sonalidade.

Naturalmente que os cidadãos americanos estarão à espera de outras urgências, como seja a saída rápida da estagnação económica que só agora nos é dado conhecer em toda a sua extensão. Mas eu não sei se é possível separar uns planos dos outros. O externo e o interno, o económico e o axiológi-co. Talvez não. Creio mesmo que Barack Obama foi eleito da forma como aconteceu, e teria sido elei-to pelo mundo inteiro, porque de súbito apareceu no ecrã um rosto que transmitia humildade e nobreza, simplicidade e juventude de espírito, rea-lismo e crença. Ora para os europeus, a imagem do norte-americano que por duas vezes trouxe a paz à Europa, durante o século XX, foi substituída, nos últimos tempos, pela imagem do soldado que entra na cidade do outro, transformado em inimi-go e a devasta, captura o inimigo e lhe devassa a garganta com uma luz, diante do mundo inteiro. São marcas muito violentas. Acredito que o Presidente Obama não o deixará repetir. * escritora

ANTó

NIO

PED

RO S

ANTO

S

‘ Creio que barack obama [...] teria sido eleito pelo mundo inteiro, porque de súbito apareceu no ecrã um rosto que transmitia humildade e nobreza, simplicidade e juventude de espírito, realismo e crença. ’

Lídia Jorge: “por certo que o presidente obama não vai voltar atrás.”

STEF

AN Z

AKLI

N/E

PA/L

USA

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 13

‘ obama quer governar para além das tradicionais fronteiras partidárias. ’

POR João De vALLerA*

Desafios à nova Presidência

Nos últimos vinte e um meses tive o privilégio de observar de perto as eleições presidenciais norte- -americanas, que culminaram com a vitória do candidato Barack Obama. Assisti às duas convenções, com os seus rituais de consagração e os seus apelos à mobilização das bases, assim como observei a introdução de novas técnicas e de novos métodos de comunicação com os eleitores, em especial na campanha democrata.

Três pensamentos me vieram espontaneamente ao espírito, na noite de 4 de Novembro. O de que de algum modo assistia ao encerrar de um ciclo, iniciado quarenta anos antes com o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos. O de que tal evolução era demonstrativa da vitalidade e da capacidade de inclusão da sociedade americana, que sabe dar uma expressão positiva à diversida-de do tecido que a compõe, afirmando-se e reno-vando-se para além das dificuldades cíclicas e divisões estruturais que a atravessam. O de que, como porventura nenhum dos seus quarenta e três antecessores, o candidato eleito tinha já asse-gurado um feito de dimensão histórica antes mesmo de passar a residir na Casa Branca.

O novo Presidente tomou posse no dia 20 de Janeiro. Assume com ela problemas de grandes proporções e formidáveis desafios, tanto no domínio interno como externo. Seja ao nível da economia – cuja reanimação requer esforços imediatos e concertados de dimensão inédita, não descurando os condicionantes estruturais de mais longo prazo – seja nos planos da seguran-ça internacional e das novas ameaças transna-cionais, a sua intervenção será requerida, assim como não deixará de ser observada de perto e posta à prova, logo no início de um novo ciclo da vida política americana, a sua mensagem de mudança e a ambição transformacional que lhe está subjacente.

A direcção do seu mandato reflectir-se-á desde logo na escolha da futura Administração e no leque das prioridades políticas a desenvolver, não obstante as limitações orçamentais conhecidas, por causa – e apesar – da crise. A determinação, a inteligência política e o pragmatismo de que já deu amplas mos-tras revelar-se-ão qualidades preciosas na busca de um inevitável equilíbrio entre a sua agenda e a estra-tégia legislativa necessária para conseguir alcançar os objectivos declarados durante a campanha, assim como na materialização da sua intenção de governar de uma forma inclusiva e para além das tradicionais fronteiras partidárias. A reforçada maioria democra-ta no Senado e na Câmara dos Representantes – na qual registo, com grande satisfação, a reeleição de três congressistas de ascendência portuguesa – constitui uma vantagem à partida, mas não uma garantia de sobreposição de agendas, e dificilmente dispensará, no sistema americano, a construção de coligações pontuais de geometria variável.

A assunção da Presidência, nos Estados Unidos, traz consigo a extraordinária responsabilidade asso-ciada ao facto de os actos do seu titular se reper-cutirem não só sobre os cidadãos americanos mas também, voluntária ou involuntariamente, numa proporção sem paralelo, sobre o resto do mundo. Tal realidade oferece potencialidades únicas numa altura em que se desenham, na Europa, mais claras ambições de afirmação na cena internacional, e num momento em que, face aos grandes desafios globais, o reforço da parceria transatlântica cada vez mais surge como uma evidente e urgente necessidade.

Portugal tem um significativo papel a desempe-nhar neste contexto, seja no quadro das relações União Europeia-Estados Unidos, seja no seio da NATO, seja ainda no plano bilateral onde, ao rico acervo do nosso relacionamento histórico, à mais- -valia de uma relação de aliados consubstanciada no Acordo de Defesa e Cooperação e ao trunfo da comunidade portuguesa e luso-americana residen-te nos Estados Unidos, se adicionam novos e pro-missores desenvolvimentos em domínios como os da ciência e do investimento. * embaixador de Portugal nos estados Unidos

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 200914

POR ChArLes buChAnAn*

Prioridades energéticase ambientais

Barack Obama é agora o Presidente eleito e os ame-ricanos estão encantados com o facto de ele levar a sério os urgentes desafios ambientais que os Estados Unidos enfrentam, desde a biodiversidade à gestão dos oceanos e à preservação das florestas. Mas hoje em dia, na América, falar de “ambiente” significa atacar as prioridades energéticas e depressa: reduzir a dependência das importações de petróleo estrangeiro, baixar os níveis das emissões de gases com efeito de estufa, dar atenção às políticas em matéria de altera-

ções climáticas, incentivar as medidas nacionais de conservação de energia, as novas tecnologias limpas, o desenvolvimento das fontes renováveis de energia. No entanto, Obama tem de decidir que acções deve empreender em 2009 para inverter o processo de recessão económica, reduzir o défice orçamental ame-ricano, criar postos de trabalho para combater o desemprego e salvar famílias desesperadas (através da isenção de impostos, da implementação do seguro de saúde) e a indústria automóvel americana. Assim, apenas serão empreendidas acções relacionadas com as prioridades energéticas que contribuam para o “programa de salvação” nacional.

Por exemplo, uma anterior proposta que preconi-zava um limite para as emissões de gases com efeito de estufa, que se estendia a toda a economia, exigin-do que a indústria e os serviços públicos comprassem ao Governo créditos de emissões de dióxido de car-bono, está a ser sujeita a novo escrutínio. Um pro-grama deste tipo iria imediatamente fazer subir os custos da energia. Em vez disso, Obama lançará o seu plano “Economia Verde”, que abrangerá um período de dez anos e custará 150 mil milhões de dólares, e que se destina a: incentivar o investimento das empresas no fabrico de equipamento destinado à

produção de energias limpas; financiar sistemas de transportes baseados em energias limpas; acelerar a produção de veículos “limpos” de baixo consumo; e promover a próxima geração de biocombustíveis não produzidos à base de culturas alimentares.

Este esforço no sentido de uma “economia verde” também levará à reabilitação e isolamento dos edi-fícios e escritórios das grandes cidades a fim de tornar a energia mais eficiente. Isto irá resultar na reciclagem profissional e na criação de cerca de cinco milhões de novos empregos e, em simultâneo, na redução drástica do consumo de energia.

A conservação de energia é a maneira mais rápida de reduzir a procura de energia e as importações de petróleo. Barack Obama pretende uma redução de 15 por cento da procura de energia até 2020: os no-vos edifícios devem ser neutros em termos de emis-sões de dióxido de carbono e os edifícios existentes devem melhorar a sua eficiência energética em 25 por cento. Os edifícios governamentais deverão tornar-se “eficientes” em três anos, e as zonas urbanas de baixo rendimento deverão ser remodeladas de modo a tor-narem-se energeticamente eficientes. Isto irá gerar milhões de empregos.

As limitações orçamentais constituirão um proble-ma grave, mas não devemos esquecer que o Governo Federal americano não está só nesta cruzada nacio-nal da energia. Os vários estados também fornecem fundos e criam condições destinadas a ajudar as empresas privadas a agir. A Califórnia demonstrou que uma liderança forte ao longo de muitos anos conduziu a níveis de eficiência energética sem pre-cedentes, à redução da procura de energia, a trans-portes limpos e a um nível elevado de criação de emprego. Estes resultados são comparáveis aos da Europa, onde o sector das energias renováveis da Alemanha movimenta 240 mil milhões de dóla-res e emprega 250 mil pessoas; em Inglaterra, estão a ser construídas sete mil turbinas eólicas, com um custo de 100 mil milhões de dólares, e Portugal também se encontra numa posição de grande visi-bilidade, situando-se em segundo lugar na UE em termos de sistemas de energias renováveis. * Membro do Conselho executivo da FLAD

JOSÉ

SÉR

GIO

‘ obama lançará o seu plano “economia verde”, que abrangerá um período de dez anos e custará 150 mil milhões de dólares. ’

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 15

A mudançaque o mundo precisa

POR mAnueL JACinto nunes*

A vitória de Obama é uma vitória para os Estados Unidos, para a Europa e para o mundo. O antiame-ricanismo cultivado por muitos atingiu o seu auge com a Administração Bush dos últimos oito anos. A Administração americana criou ao mundo ociden-tal problemas tão graves que não sabemos ainda quan-do e como sairemos deles. Embora McCain se situe no seu partido na ala mais afastada dos neoconserva-dores, a sua política externa, iria, por certo ser em grande parte uma política de continuidade. McCain

falava do Iraque proclamando que os Estados Unidos iriam sair dele com uma vitória. Como se pode falar de uma vitó-ria após uma intervenção tão desastrosa que incentivou o terrorismo, pôs em maior perigo os já débeis equilíbrios no Médio Oriente e suscitou a questão da divisão entre Ocidente e Oriente?

À ideia de força, de demonstração de poderio dos Estados Unidos, opôs Obama a ideia de diálogo. Algo que tem faltado totalmente à política americana nestes anos. Não que Obama se tivesse apresen-tado como um pacifista, mas dando sempre preponderância primacial à nego-

ciação. Nas relações com a Europa e a América Latina, bem como no Médio Oriente, é fundamental este tipo de abordagem para que seja possível atenuar as tensões existentes e dar passos para um relacionamen-to mais estável que leve a paz a regiões onde subsis-tem focos de conflito.

De imediato é no plano interno que Obama vai ter de actuar face à situação prevalecente e vai certamen-te trazer alterações significativas. Não se trata de spre-ad the wealth, mas de inverter uma política que tem acentuado as desigualdades económicas. McCain falou de redução de impostos mas sem especificar como. Obama, não obstante as dificuldades orçamentais, terá de reduzir impostos mas não do mesmo modo. Foi à situação da classe média – núcleo estrutural de uma sociedade – a que ele sempre se referiu.

Outro ponto fulcral da política enunciada por Obama é a saúde. Cerca de 40 milhões de americanos não têm qualquer sistema de saúde. É óbvio que não é um problema que possa ser resolvido a curto prazo, mas algo vai por certo ser feito nesse sentido.

São múltiplos os problemas que Obama vai defron-tar (herda uma pesada herança): o défice nas contas públicas, uma crise financeira e económica grave, o desemprego, as famílias endividadas, e um enorme défice externo. Quanto a este último, espera-se que não ceda às pressões do lóbi proteccionista que é bem forte nos Estados Unidos.

A fasquia posta a Obama foi muito alta e afigura- -se-nos que ele não a poderá cumprir em pleno, mas não pode, por esse facto, gerar-se um sentimento de desilusão. Obama vai trazer mudança e mudança sig-nificativa. Pertence a uma geração que não é a do mundo que tem dirigido a América nos últimos anos. Kennedy e Clinton souberam introduzir um ar fresco em Washington, Obama talvez não possa ir tão longe como aqueles (apesar da sua grande vitória, a cor da pele ainda constitui uma limitação nos Estados Unidos) mas vai, certamente, trazer alterações de grande alcance para a política americana e para o relacionamento dos Estados Unidos com o mundo.

A situação mundial estava bem necessitada desta mudança. * economista e antigo ministro das Finanças

‘ À ideia de força, de demonstração de poderio dos estados unidos, opôs obama a ideia de diálogo. Algo que tem faltado totalmente à política americana. ’

“obama vai certamente trazer alterações de grande alcance para a política americana.”

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Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 200916

As lágrimas escorriam pela cara de Jesse Jackson enquanto ouvia o discurso de vitória de Obama na noite das eleições. Quarenta e cinco anos depois de Martin Luther King ter proclamado: “I have a dream that one day this nation will rise up and live out the true meaning of its creed: ‘We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal.’”

O sonho tornou-se realidade, não só para os negros americanos, mas também para os brancos, que se viram finalmente libertados das amarras do apartheid nos Estados Unidos, e para as outras mino-rias e exilados que se sentiam cidadãos de segunda classe neste país de oportunidades – “chicanos”, orientais e ocidentais como a diáspora portuguesa. O sonho voou pelo mundo, de Guantánamo ao Quénia, de Berlim a Okinawa, e tornou-se realida-de a 4 de Novembro de 2008.

Nas entrevistas que deu quando do lançamento do filme W., Oliver Stone disse que a influência de George W. Bush nos Estados Unidos e no mundo se fará sentir por muitos anos. Bush acredita pia-mente que a História lhe dará razão. O novo Presidente dos Estados Unidos terá certamente de se confrontar, desde o primeiro momento na Casa Branca, com o espólio que a nova Administração e o povo americano – e o mundo – herdam após oito anos de Administração Bush.

O novo Presidente herda três guerras distintas: a do Iraque, a do Afeganistão, e a guerra contra o que a Administração clama ser “o Terror”. A Guerra do Iraque é a segunda mais longa em que os Estados Unidos se envolveram desde sempre, depois da do Vietname, e a segunda mais cara depois da II Guerra Mundial – e terá custado para cima de um milhão de vidas.

O novo Presidente herda uma economia nacional e global em recessão, com uma banca parcialmen-te nacionalizada à la regime socialista. Escasseia o dinheiro ao supra-supercapitalismo da Idade Global Pós-Moderna. A economia global sofre com a alta do preço do petróleo e de alimentos básicos, enquanto se debate com a crise financeira mais grave da sua existência, em que até um país con-

siderado desenvolvido – a Islândia – se vê em risco de se afundar nas águas geladas do Árctico.

O novo Presidente herda uma situação energética em que os Estados Unidos, que têm cinco por cento da população mundial, gastam um quarto da ener-gia mundial, a um custo superior a 400 biliões de dólares por ano para o petróleo importado. Enquanto a Administração Bush se recusou a assi-nar o Protocolo de Quioto, o preço do barril de petróleo aumentou de 25 para 100 dólares entre o antes e o depois da Guerra do Iraque.

O novo Presidente herda uma infra-estrutura transcontinental em perigosa decadência, como demonstraram o colapso da ponte em Minnesota em 2007 ou as inundações de Nova Orleães. Parte do sucesso económico dos Estados Unidos deveu-se a uma infra-estrutura estabelecida por presidentes com visão. No entanto, a Socie- dade Americana de Engenheiros Civis estima que são necessários 1,6 triliões de dólares apenas para mantê-la em boas condições nos próximos cinco anos.

O novo Presidente herda um país dividido – entre ricos e pobres, brancos e outras raças, republicanos e democratas, Wall Street e Main Street – e por questões chamadas culturais: o casamento dos homossexuais, o aborto, a pena de morte e o uso de armas. A concentração da riqueza não só tem dividido os americanos entre os que têm e os que não têm, mas tem contribuído para o declínio eco-nómico do país.

Obama prometeu baixar os impostos para as clas-ses média e mais pobres, aumentar o acesso à saúde e a qualidade da educação, investir em energias alternativas e aumentar a ajuda externa. Para pagar a conta, o novo Presidente planeia acabar com a guerra, aumentar os impostos dos dois por cento de americanos mais ricos, evitar as fugas aos impos-tos das grandes corporações e fazer pagar a polui-ção a quem poluir. Não há soluções óptimas, mas o futuro do sonho global depende da velocidade e eficácia com que o novo Presidente venha a lidar com a pesada herança recebida no dia 20 de Janeiro de 2009. * Banco Mundial

POR JoAnA GoDinho*

A realidade do sonho

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 17

‘ este momento americano encerra um percurso histórico que foi iniciado em 1619, quando o navio holandês White Lion chegou à virgínia e trocou por outros bens os vinte africanos escravizados que tinham sido capturados durante uma batalha com um galeão espanhol a caminho do méxico. ’

Minutos após se ter concluído a contagem de votos na Califórnia no dia 4 de Novembro e a CNN ter anunciado que Barack Obama tinha ganho as elei-ções, um suspiro de alívio colectivo atravessou a América. Deu-se então início a uma festa de enor-mes proporções; centenas de milhares de pessoas transformaram a noite em dia, festejando até ao nascer do sol. Na manhã seguinte, as pessoas puse-ram-se novamente em fila, como o tinham feito no dia anterior, quando muitos tiveram que espe-rar durante horas para poder votar. Só que, desta vez, formavam filas em frente aos quiosques e às sedes dos jornais. “É que um sítio da internet não

cabe num álbum de família”, afirmou uma senho-ra idosa que se encontrava em frente ao edifício do Washington Post. E, de facto, para muitos dos que participaram, este dia tinha de ser documentado. Por todo o país, os jornais foram-se esgotando e tiveram de ser reimpressos até ao fim da manhã.

A energia vulcânica que foi libertada durante a noite das eleições não se pode explicar apenas pelo impacto político de Barack Obama. Ele simboliza muito mais do que aquilo que defende: uma “des-locação tectónica” na sociedade, que já se tinha tornado visível durante o longo processo da sua nomeação. O dia 4 de Novembro foi a última de três datas memoráveis em 2008. A segunda foi o dia 3 de Junho, quando Barack Obama declarou, perante 17 mil apoiantes entusiásticos num estádio de basebol no Minnesota, que tinha ganho a nomea-

ção para o Partido Democrata. A multidão ouviu o seu anúncio de pé, como se estar sentado fosse uma posição menos própria quando se está em presença de alguém que passou a fazer parte da História. Fazendo jus ao momento, o candidato terminou o seu discurso acerca da vitória impro-vável contra Hillary Clinton com as seguintes pala-vras: “América, este é o nosso momento.” E, indiscutivelmente, após o dia 3 de Junho, a histó-ria americana tem decorrido de forma acelerada.

Este momento americano encerra um percurso histórico que foi iniciado em 1619, quando o navio holandês White Lion chegou à Virgínia e trocou por outros bens os vinte africanos escravizados que tinham sido capturados durante uma batalha com um galeão espanhol a caminho do México. A escravatura era o pecado original do Novo Mundo, minando os seus propósitos de emancipação e as promessas de felicidade. Alexis de Tocqueville escre-veu, no seu lendário relatório, em 1853, que nem mesmo a abolição da escravatura poderia mudar os preconceitos raciais porque estes eram “imutáveis”. Desde o dia 3 de Junho, estas tradições – resumidas nas famosas teorias de W. E. B. DuBois que descrevem a barreira da cor como a mais perversa causa de separação na América – têm sido postas à prova. Num instante, todos se aperceberam que, no dia das eleições de 2008, pela primeira vez desde a Declaração da Independência, os americanos podiam fazer História, rompendo com o seu passado.

O primeiro dia memorável foi a 18 de Março, quando Barack Obama falou das relações inter-raciais em Filadélfia. Ele não só reconheceu o ressentimento mútuo que ainda existe entre ame-ricanos negros e brancos, como também insistiu que a sua própria história, com membros da família “de todas as raças e todas as cores, espa-lhados por três continentes”, só era possível nos Estados Unidos. E continuou, dizendo: “Nós podemos ter histórias diferentes, mas partilhamos das mesmas esperanças; […] podemos ter um aspecto diferente e ser oriundos de lugares dife-rentes, mas todos queremos ir na mesma direc-ção.” O seu compromisso universalista não

POR miChAeL Werz*

O momento histórico da América

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 200918

passou despercebido porque ia ao encon-tro de experiências contemporâneas, partilhadas por muitos. No espaço de dois meses o seu discurso foi descarregado do YouTube mais de 4,5 milhões de vezes e uma sondagem da Gallup revelou o sur-preendente resultado de que mais de 85 por cento dos americanos tinham ouvi-do falar do seu discurso.

Barack Obama tem uma ascendência ambígua, só podendo ser descrito como americano. O facto de um homem com a sua história pessoal ter sido eleito não só será registado nos livros de escola por todo o mundo durante o próximo século,

como também ressaltará como um feito de consequências irreversíveis, indepen-dentemente de quaisquer desilusões polí-ticas que possam vir a acontecer.

* Michael Werz é Transatlantic Fellow do German Marshall Fund of the United States e Investigador no Institute for the Study of International Migration da School of Foreign Service a Universidade de Georgetown

‘ num instante, todos se aperceberam que, no dia das eleições de 2008, pela primeira vez desde a Declaração da independência, os americanos podiam fazer história, rompendo com o seu passado. ’

“A energia vulcânica que foi libertada durante a noite das eleições não se pode explicar apenas pelo impacto político de barack obama.”

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POR JAmes r. DiCKenson*

As eleições e os media

No dia 4 de Novembro de 2008, os Estados Unidos concluíram uma das suas eleições presidenciais mais históricas de sempre. A nação escolheu o seu pri-meiro Presidente afro-americano, o senador Barack Obama, do Illinois, um acontecimento extraordi-nário dada a nossa história trágica de escravatura e racismo. E aquela data assinalou também o fim de dois grandes fracassos políticos nacionais – a fé numa economia de mercado cada vez mais desre-gulamentada e uma política externa militarista e unilateral falhada – sobretudo no Iraque – que estava a dividir progressivamente o país e que criou um clima político extremamente favorável para os democratas. Mais de 80 por cento do eleitorado consideravam que o país estava a seguir um rumo errado, uma opinião que ficou patente nos resul-tados eleitorais: Obama derrotou o seu adversário republicano, o senador John McCain do Arizona, por 52 por cento contra 46 por cento do voto popular e por mais de dois contra um no Colégio Eleitoral. Para muitos americanos, isso assinalou o fim da era Reagan republicana.

Tratou-se também de uma eleição histórica por-que a adversária do senador Obama na corrida à nomeação democrata era a senadora Hillary Clinton de Nova Iorque, que esteve muito perto de conse-guir a nomeação e, como tal, de se tornar a pri-meira mulher a ser candidata presidencial de um dos grandes partidos. Além disso, McCain escolheu para concorrer ao seu lado como candidata à Vice- -Presidência a governadora Sarah Palin do Alasca, a primeira mulher a candidatar-se a uma eleição nacional pelo Partido Republicano.

Obama ganhou em parte graças ao clima político favorável, mas também porque realizou uma das mais eficientes campanhas presidenciais jamais vistas no país. No dia a seguir às eleições, deitou mãos ao trabalho, começando a reunir a sua administração e preparando-se para enfrentar os graves desafios que o esperam. Entre eles incluem-se duas guerras em curso, no Iraque e no Afeganistão, e problemas que vão desde o Irão, a Coreia do Norte e a Rússia até à iminência de uma recessão. Além disso, Obama prometeu reformar o sistema de saúde, reduzir “obama levou a cabo uma das mais eficientes campanhas.”

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‘ nós, jornalistas, desempenhamos um papel fundamental nos processos democráticos do nosso país. [...] uma imprensa livre que presta informação fidedigna é o fluido vital de qualquer democracia. ’

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os impostos da classe média e definir uma política energética nacional susceptível de tornar o país independente em termos energéticos e de contribuir para a redução do aquecimento global.

Durante a campanha, os opositores de Obama criticaram a sua falta de experi-ência – apenas quatro anos no Senado e oito anos na legislatura estadual do Illinois – para ser presidente e coman-dante-chefe das Forças Armadas. No entanto, Obama conduziu uma campa-nha disciplinada baseada na esperança, no futuro e na unidade nacional. Mos-trou-se calmo e sereno perante aconte-cimentos inesperados tais como a crise económica que eclodiu em Setembro, o que reforçou a confiança dos eleitores. Foi considerado o candidato cool.

McCain foi visto como o candidato hot. Realçou a sua carreira como o piloto de

jactos da Marinha que foi um heróico prisioneiro de guerra no Vietname. Um veterano com vinte e seis anos de expe-riência no Congresso, McCain concorreu como um “não-alinhado” que se opu-sera aos seus correligionários do Partido Republicano em questões como a imi-gração e a reforma do financiamento das campanhas eleitorais frisando a sua expe-riência, especialmente nos domínios da segurança e dos negócios estrangeiros. Mas descobriu, tal como Clinton desco-brira nas eleições primárias do Partido Democrata, que o país estava ansioso por uma ruptura com o passado, em grande parte devido à frustração perante as polí-ticas fracassadas da Administração Bush. McCain foi prejudicado pela crise eco-nómica, uma área historicamente favo-rável aos democratas, que desviou a atenção da segurança nacional e dos

negócios estrangeiros. A resposta de McCain à crise económica foi impulsiva e confusa. Não propôs nenhum grande tema para a campanha e saltou de uma questão para outra, começando por ata-car Obama pela sua falta de experiência e, depois, pelo seu suposto extremo liberalismo, que McCain rotulou incor-rectamente de “socialismo”. Os demo-cratas ripostaram dizendo que McCain era um político imprevisível e impulsi-vo que poderia ser perigoso na Casa Branca e que, com os seus 72 anos, seria o homem com mais idade jamais eleito como Presidente.

O nosso voto presidencial pode ser difí-cil de prever porque é o mais pessoal e simbólico que expressamos. O cargo é muito complexo, porque o Presidente não só é o chefe do Executivo e o comandan-te-em-chefe das Forças Armadas, mas

“o jornalismo dos países ocidentais está a sofrer profundas modificações devido à tecnologia.”

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PA/L

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também o chefe simbólico da nação, que dá expressão aos ideais e aspirações do povo. O resultado destas eleições era duplamente difícil de prever devido à ori-gem racial de Obama, mas a sua eleição é um símbolo poderoso de quanto a América evoluiu em termos de relações raciais nos últimos cinquenta anos.

Nós, jornalistas, desempenhamos um papel fundamental nos processos demo-cráticos do nosso país. Em sociedades baseadas na informação, somos uma ins-tituição poderosa. Uma imprensa livre que presta informação fidedigna é o fluido vital de qualquer democracia; os estados tota-litários não conseguem sobreviver quando a informação é livre e fidedigna, e é por essa razão que se esforçam tanto por a suprimir. A China está lenta mas progres-sivamente a tornar-se mais livre, porque os seus governantes não conseguem sim-plesmente fechar a internet, os satélites, os telemóveis, os blogues, os sítios web e outros canais de informação.

Sublinho “fidedigna” porque é neces-sário que as pessoas confiem na infor-mação que lhes é prestada pelos jornalistas. É imprescindível evitarmos dar a menor ideia de que favorecemos um partido ou facção em detrimento de outro. A reputação de imparcialidade e isenção é o nosso capital de trabalho, e é preciosa; se a perdemos, nunca mais a conseguimos recuperar. Nos Estados Unidos, os meios de comunicação social são um elemento muito importante do processo de triagem de candidatos polí-ticos, pelo que as nossas decisões sobre as pessoas cujas actividades devemos cobrir e a atenção que devemos dedicar a cada candidato são rigorosamente con-troladas. Apesar das suspeitas de alguns membros dos partidos, procuramos não afectar o resultado das nossas eleições, e não o desejamos fazer. A nossa cobertu-ra é ditada pelas acções – os êxitos e os fracassos – dos candidatos. Também nos concentramos em candidatos novos e relativamente desconhecidos que prome-tem mudança e que é necessário expli-carmos aos eleitores.

O jornalismo nos países ocidentais está a sofrer profundas modificações devido à tecnologia. Na América, a importância crescente da internet, com os seus blo-gues e os seus sítios web, dos canais de notícias da televisão por cabo, dos talk--shows radiofónicos e dos telemóveis está a pôr em causa o papel dos jornais e das redes de televisão tradicionais. No entan-to, não vi indícios de que isso tenha influenciado as eleições. O número de

blogues tem aumentado exponencial-mente, mas os blogues contrabalançam--se uns aos outros: as histórias e boatos de um dos lados são instantaneamente contestados pelo outro lado. Foram os eventos e os actos e talentos dos candi-datos que determinaram o rumo da cobertura noticiosa.

O apoio dos jornais é considerado valio-so mas não tem tido grande influência nas eleições presidenciais americanas. Os jornais com 80 por cento da circulação apoiaram os adversários de Franklin

Roosevelt mas este, de qualquer maneira, venceu as eleições quatro vezes.

Esta proliferação de fontes de informação deu azo ao argumento de que os jorna-listas estão ultrapassados, de que já não somos necessários como “guardiões” da informação noticiosa. O que se passa é exactamente o contrário. A necessidade de profissionais como nós para triar e avaliar o volume crescente de informação em bruto é maior do que nunca. * Jornalista especializado nas campanhas presidenciais norte-americanas

“o nosso voto presidencial pode ser difícil de prever porque é o mais pessoal e simbólico.”

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‘ obama conduziu uma campanha disciplinada baseada na esperança, no futuro e na unidade nacional. mostrou-se calmo e sereno perante acontecimentos inesperados tais como a crise económica que eclodiu em setembro, o que reforçou a confiança dos eleitores. Foi considerado o candidato cool. ’

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mário mesquitA

bLoCo De notAs

Os noventa anos da passagem de Franklin D. Roosevelt nos Açores, no final da Guerra de 1914-1918, coincidiram, por acaso da história, com o reavivar do seu legado pre-sidencial. Ao intervir no I Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt (Julho de 2008), Pierre Hassner refere-se “ao calor com que foram ali comemorados os laços entre a Europa e a América”, mas fez notar que “o alvo deste entusiasmo foi a obra de Franklin Roosevelt e não a de George W. Bush”.

Por que motivo? Hassner sugere que talvez “uma nostalgia implícita em relação a Roosevelt e uma exortação a uma nova mensagem e actuação rooseveltianas para reparar os danos provocados (por George W. Bush) constituíssem o subtexto implí-cito”. A política de George W. Bush e os seus efeitos na ordem internacional teriam conferido especial significado à herança de FDR: “O estado actual do mundo – sus-tenta Hassner, na sua intervenção dos Açores – torna extraordinariamente rele-vante o legado de Roosevelt”. Em especial, as suas “três grandes realizações”: o New Deal, esboço de Estado-Providência nos Estados Unidos, a intervenção na II Guerra Mundial, contrariando o tropismo isolacio-nista, e os projectos para a reconstrução da ordem internacional materializados na Organização das Nações Unidas (ONU).

Tarda a emergir uma nova ordem inter-nacional após a queda do Muro de Berlim, o fim do regime soviético em 1991, o 11 de Setembro de 2001 e a invasão do Iraque. Entre o que resta do equilíbrio anterior ao final da Guerra Fria figura, em lugar de relevo, um projecto “rooseveltia-no”: as Nações Unidas. Apesar do seu desajustamento à realidade presente, a ONU constitui um dos raros pontos de

apoio para a reorganização do sistema internacional.

Voltaram a invocar-se métodos usados por FDR, após as presidenciais de 1932, com vista a combater o caos e o desespe-ro reinantes na sociedade americana após o crash bolsista de 1929: a segurança social, o subsídio de desemprego, os impostos progressivos, em suma, a intervenção do Estado na economia. Estas formas de ate-nuar a desigualdade nas economias de mercado, designadas por “liberais” nos Estados Unidos e por “social-democratas” na Europa, permitiam um maior equilí-brio social e, em simultâneo, esboçavam uma alternativa ao estatismo da URSS.

Com a emergência das teorias neocon-servadoras, ao tempo de Ronald Reagan, as políticas sociais transformaram-se em alvos preferenciais das elites políticas e económicas dominantes. Inaugurou-se um novo período marcado pela procura de “menos Estado” e pelo aumento do leque das desigualdades sociais.

Paul Krugman propõe uma periodização da história económica dos Estados Unidos no século XX baseada no critério da desi-gualdade social. O primeiro período identi-ficado por Krugman, inicia-se ainda no século XIX (1870) e prolonga-se até 1930

e ao New Deal. Caracteriza-se por um elevado grau de desigualdade, sem qual-quer espécie de protecção social aos trabalhadores e aos sectores mais desfavo-recidos da sociedade.

Os doze anos de presidência de FDR inauguram uma espécie de interregno, que se prolonga até à década de 80 (segundo período). Eisenhower, primeiro Presidente republicano após os democra-tas FDR e Truman aceitaram, em parte, a herança das políticas sociais de FDR. Entre o fim da Guerra de 1939-1945 e os anos 80, instaura-se, com base num consenso bipartidário, uma espécie de Estado- -providência imperfeito, sobretudo porque

houve uma reforma que nunca chegou a ter lugar: a protecção contra a doença alargada a todos os cidadãos, que perma-nece por realizar na América, apesar das tentativas falhadas de Truman, Nixon e Clinton, o que faz dos Estados Unidos o único país avançado que não possui um sistema nacional de saúde alargado a todos os cidadãos (Krugman).

Um certo consenso bipartidário, entre democratas e republicanos moderados, permite manter intocada parte significa-tiva da herança do New Deal, até à época de Ronald Reagan (terceiro período), em

O novo ciclo americano ou a analogia Roosevelt

‘ o optimismo de obama não foi mero resultado da estratégia de campanha. o próprio legado de George W. bush obrigava a colocar alto a fasquia da esperança. o ex-presidente texano deixou atrás de si ruínas sobre ruínas. ’

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que se reforçou a tendência para o aumento das desigualdades, em propor-ções semelhantes às dos anos 20. Até 1980, sublinha Krugman, os ricos não eram mais ricos do que na época de Eisenhower. A matriz ideológica dessa viragem começa com os movimentos de radicalização da direita americana nos anos 70. A América de Reagan e de Bush voltou a registar índices de desigualdade semelhantes aos do período anterior à Grande Depressão. Se identificarmos o milionário, na esteira de De Long e Krugman, como o indivíduo que ganha anualmente o equivalente à produção anual de 20 mil operários médios, na América de 1957 existiam 16 milioná-rios; na de 1968, 13; e na de 2007, um total de 160.

Compreende-se que – em plena crise das políticas neoconservadoras – alguns apoian-tes de Barack Obama o projectem como um novo Roosevelt, em vésperas de propor um novo New Deal. “Franklin Delano Obama?”. Com este título se interrogava Krugman, na sua coluna bi-semanal do New York Times. Controlar a recessão a curto prazo, mas lançando as bases de um novo acordo social: “O meu conselho à equipa de Obama – escreve Krugman – consiste em calcularem o auxílio de que a economia precisa e, a seguir, acrescentarem 50 por cento. É preferível, numa economia em depressão, errar por excesso do que por insuficiência de estímulo.”

A defesa do legado do New Deal por Paul Krugman é também o elogio da audá-cia política. Nem o mercado, nem as mudanças tecnológicas foram, em seu entender, os factores determinantes na transição dos anos 80 para um período de maior desigualdade na distribuição dos rendimentos. As transformações políticas é que desempenharam o papel motor: “As principais fontes do aumento da desigual-dade nos Estados Unidos são as institui-ções e as normas, e não a tecnologia ou a mundialização”, sustenta. Os exercícios de comparação com o Canadá, a Grã- -Bretanha, o Japão e a França mostram que o crescimento das desigualdades nes-ses países se situou num plano bem infe-rior ao dos Estados Unidos.

Em comunicação proferida, em 2005, no National Press Club, em Washington DC, na presença dos netos de FDR, Ann e James Roosevelt – o (então) senador Barack Obama afirmou em defesa do lega-do rooseveltiano em matéria de seguran-

ça social: “O génio de Roosevelt foi pôr em prática a ideia de que a América não tem de ser um lugar onde as nossas aspi-rações individuais estão em conflito com o bem comum; é um sítio onde uma coisa torna a outra possível […]. Salvaremos a Segurança Social da privatização […] e, ao fazê-lo, afirmaremos a nossa crença de que estamos todos ligados como um único povo – preparados para partilhar os riscos e as recompensas para benefício da cada um e para o bem de todos.”

O paradigma neoconservador foi domi-nante na política americana durante quase três décadas, apesar do parêntesis Clinton. Em 2008, a herança de Reagan esgotou as suas virtualidades. O colapso bolsista, a recessão económica e a crise política – con-forme sustentou Francis Fukuyama – devem-se a razões intrínsecas ao modelo neoconservador, desde a definição mini-malista do papel do Estado na economia à oposição sistemática a quaisquer reformas no domínio da segurança social e da

Fotomontagem das imagens de roosevelt e obama na capa da Time.

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saúde pública, sem esquecer a visão hege-mónica da política externa americana, hostil à maior parte das instituições inter-nacionais. No plano externo, escreve Fukuyama, “a grande tragédia de George W. Bush foi convencer-se que – após o 11 de Setembro – podia ser Churchill a opor--se a Hitler ou ser Reagan na altura da queda do Muro de Berlim, através do recurso ao poder militar americano no Médio Oriente”.

Este contexto ajuda a compreender o sen-tido de retomar a inspiração de Roosevelt, num mundo em que as funções do Estado são muito diversas dos anos 30. A capa da Time, depois de vencidas as eleições pelo candidato democrata, trazia um Barack Obama disfarçado de FDR, de chapéu alto e boquilha, ao volante de um descapotável dos anos 40. Ao longo da campanha, Obama cultivou dois registos: o Presidente consen-sual e suprapartidário (alguns preferiram escrever “pós-partidário”) e o Presidente progressivo, herdeiro do legado “liberal”

(no sentido de social--democrata). Estas duas atitudes nem sempre se ajustarão da melhor forma. Pressupõem uma actuação presidencial pragmática de forma a arbitrar as tensões e enca-minhá-las num sentido positivo.

Alguns acusam o novo Presidente de ter elevado demasiado as expectativas dos ame-ricanos e do mundo. Deste modo, a desilu-são seria certa. Contudo, o optimismo de Obama não foi mero resultado da estratégia de campanha. O próprio legado de George W. Bush obrigava a colocar alto a fasquia da esperança. O ex-Presidente texano deixou atrás de si ruínas sobre ruínas, desde o Iraque e a Faixa de Gaza às empresas des-truídas na voragem da crise económica e financeira. Sem a vaga de entusiasmo desen-cadeada na América e no mundo, Obama não disporia da confiança que lhe permiti-rá conciliar os excessos de prudência de uns

com a impaciência de outros. Esse crédito de confiança terá limites temporais. É razo-ável fazê-los coincidir com o final do ano I da era Obama.

Referências:

Francis Fukuyama, “A New Era”, American Interest, Janeiro-

-Fevereiro, 2009.

Jacklin Easton (org.), Inspire a Nation: Barack Obama’s Most

electrifying Speeches from day One of His Campaign Through His

Inauguration, Publishing 180, Nova Iorque, 2009 (National-

Press-Club-Obama-Speech).

Paul Krugman, The Conscience of a Liberal, Nova Iorque,

W.W.Norton, 2007.

Paul Krugman, “Franklin Delano Obama?”, New York Times,

10 de Novembro de 2008.

‘ obama cultivou dois registos: o presidente consensual e pós-partidário e o presidente progressivo, social-democrata. ’

Cartoon de obama com características de roosevelt proclamando a sua conhecida frase “A única coisa de que devemos ter medo é o próprio medo” adaptada, com ironia, ao contexto actual.

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Por ocasião dos noventa anos da escala do Presidente norte-americano Roosevelt nas ilhas açorianas do Faial e São Miguel, o Governo Regional dos Açores e a Fundação Luso-Americana organizaram o I Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt com o apoio da Presidential Library, sediada em Hyde Park, nos arredores de Nova Iorque. Durante

três dias, no Teatro Micaelense, em Ponta Delgada, discutiram-se as relações transa-tlânticas na opinião pública europeia e ame-ricana. O II Fórum está previsto para 2010 em Angra do Heroísmo.

Políticos, diplomatas, investigadores e professores portugueses e americanos par-tilharam com o público açoriano as pro-

blemáticas das relações entre os Estados Unidos e Portugal e o papel dos Açores; as questões político-diplomáticas actuais; as reformas em curso nas organizações internacionais e a actual ordem mundial; os desafios pós-globalização e muitos outros temas de que lhe damos conta nos artigos que se seguem.

A valorização declarada do potencial geoestratégico dos Açores para o esforço de guerra no quadro do controlo do Atlântico foi salientada por Carlos César que defendeu que “com o intensifi-car da opção africana por parte do Pentágono […] e o processo de especialização e relocalização do AFRICOM” as Lajes serão o

local mais vantajoso a todos os níveis, de diplomáticos a logís-ticos. “O Estado português deve ter uma palavra rápida, clara e favorável aos Açores neste assunto”.

O presidente do Governo Regional dos Açores fez estas decla-rações no âmbito do Fórum Roosevelt. Carlos César considerou o encontro “um marco muito positivo no aprofundamento do relacionamento da FLAD com a Região Autónoma dos Açores”, reconhecendo toda a actualidade a Roosevelt que, “por direito próprio, (tem) um lugar de destaque na galeria das grandes figuras políticas do século XX”.

Políticos, diplomatas, investigadores e professores portugueses e americanos partilharam com o público açoriano as problemáticas das relações

entre os estados Unidos e Portugal e o papel dos Açores.

Laços atlânticos

AFriCompara as Lajes

A exposição documental “roosevelt”, adquirida pela FLAD, foi inaugurada por ocasião do Fórum.mais tarde, seguiu para a horta e será apresentada em várias ilhas açorianas.

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revistA De imprensA

Azores connection

Roosevelt permaneceu apenas três dias em São Miguel mas essa visita marcou-o de tal forma que, quando já era Presidente (1933- -1945), encomendou a Charles E. Ruttan um quadro do navio USS dyer, tendo a bandeira portuguesa hasteada e o porto de Ponta Delgada como fundo. A pintura esteve sempre junto da sua secretária, na residência de Hyde Park, em Nova Iorque.Já no final da Segunda Guerra, quando propôs que se erguesse um edifício para a sede das Nações Unidas “do tipo do Empire State Building”, defendeu que nos EUA ficassem apenas “os arquivos e o respectivo pessoal”. As conferências, dizia, deveriam realizar-se a meio do Atlântico, nos Açores: “Já lá estive uma vez. Em frente da minha casa, cresciam, lado a lado, palmeiras e abetos. Têm um clima maravilhoso.”[ Patrícia Fonseca, 10 de Julho de 2008 ]

Concretizaro sonho de Roosevelt

Curiosamente, esta iniciativa (Fórum Roosevelt) – que a orga-nização quer realizar de dois em dois anos e de forma rotativa em Ponta Delgada, Angra do Heroísmo ou Horta – é um pouco o concretizar de um sonho de Franklin D. Roosevelt. [ Lumena Raposo, 16 de Julho de 2008 ]

O primeirodos grandes debates

Confiemos que, depois de outras iniciativas de carácter cultural e formativo ultimamente realizadas, o “I Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt” seja o primeiro dos grandes debates que ajudem a compreender e prospectivar melhor os Açores e o seu posi-

cionamento no mundo de hoje e do futuro, a partir de um passado que muito nos ensina.Passado, presente e futuro formam a trilogia geradora da iden-tidade singular que constitui o Povo Açoriano. Uma realidade indestrutível que nenhum amanho político poderá destruir.[ Gustavo Moura, 16 de Julho de 2008 ]

Um corpo de conhecimento

O fórum valeu por si [...] mas só por isso não serve os interes-ses da Região de forma significativa, pelo menos tendo presen-tes aqueles que nos parecem ser os interesses dos Açores enquanto região geo-estratégica por excelência. Este encontro, que se irá repetir de dois em dois anos – sempre em locais diferentes dos Açores, pelo que nos é dado entender –, deve, quanto a nós, constituir-se como um grande momento de expo-sição e debate de pensamento novo sobre a realidade e os inte-resses específicos dos Açores nas matérias em causa.[ Armando Mendes, 19 de Julho de 2008 ]

estudante universitária intervém no Fórum.

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Novas utilizaçõespara a Base das Lajes

Hoje, os aviões têm uma maior autonomia de voo e é cada vez menos imperativo que tenham de reabastecer nas Lajes.Claro que, logisticamente, a Base das Lajes continua a desempe-nhar um importante papel nas nossas operações militares no Médio Oriente e no Iraque, em particular.Contudo, temos visto reduções recentes no nosso contingente nas Lajes e isso implicará também, eventualmente, a redução de empregos que disponibilizamos aos portugueses nas Lajes.[ 20 de Julho de 2008, entrevista com o embaixador Thomas Stephenson (por Paulo Simões/Rui Jorge Cabral) ]

Centralidade dos Açoresnas relações transatlânticas

Existem no mundo inúmeras potências, mas nenhuma delas consegue actualmente a hegemonia de outrora. Franklin Delano Roosevelt era um visionário, um homem que esteve para além do seu tempo, tendo delineado o conceito que levou à formação das Nações Unidas, da qual pensou tornar--se Secretário-Geral. Nos seus planos incluía o sonho de trans-ferir a sede de Genebra – onde tinha funcionado a Sociedade das Nações – para Nova Iorque e para a cidade da Horta.[ Alexandre Pascoal, 22 de Julho de 2008 ]

Factura Obama

A figura do antigo Presidente americano não podia ter sido mais inspiradora, lembrando-nos a grande-za da América e a eterna dívida dos europeus para com ela. A iniciativa, que decorreu sob o tema geral das relações transatlânticas na opinião pública euro-peia e americana, não podia ter vindo mais a pro-pósito. Tal como muitos analistas europeus, muitos dos intervenientes (incluindo eu própria) chamaram a atenção para este excesso de entusiasmo, advertin-do para a factura que Obama pode apresentar à Europa a troco da sua vontade de imprimir à polí-tica externa norte-americana uma mudança que, em muitos aspectos, vai ao encontro daquilo que a Europa deseja.[ Teresa de Sousa, 23 de Julho de 2008 ]

“Utilizados”é o que temos sido...

Em extenso e cuidado discurso, o presidente do “Governo dos Açores” (como ultimamente se intitula, muito embora a Constituição revista continue a chamar- -lhe Governo Regional…) afirmou que “não gostamos de estar isolados nem de nos sentirmos utilizados”. Convirá, a propósito, precisar o que é isto de nos “sen-

Lisboa e Açores

Para os militares norte-americanos, as Lajes poderão ser uma base

extremamente importante para o apoio logístico e operacional às

operações do Africom, o novo comando militar que se tornará

operacional em Outubro. Se olharmos para o mapa, vemos que a

base nos Açores é ideal para o pré-posicionamento de equipamen-

to, trânsito ou estacionamento de forças de operações especiais e

reabastecimento americano em direcção a África. As Lajes também

são vistas pela Força Aérea dos EUA como ideais para o treino dos

novos caças F-22 Raptor.

Num discurso (no Fórum Roosevelt) em Ponta Delgada, Carlos

César, presidente do Governo Regional dos Açores, exigiu que Lisboa

conclua rapidamente as negociações que tem vindo a manter desde

há bastante tempo com os EUA sobre estes dois assuntos. Exigiu

também que a resposta nacional seja sim. Os Açores têm todo o

interesse político e orçamental em desempenhar o seu papel no

“Sim, nós podemos!” euro-atlântico de Barack Obama. Lisboa tem

dúvidas. Porquê?

[ Miguel Monjardino, 21 de Julho de 2008 ]

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tirmos utilizados”. Porque “utilizados” é o que, historicamente, sempre temos sido, como habitantes de um território estrategi-camente importante.[ Álvaro Monjardino, 26 de Julho de 2008 ]

Transformar acordoem tratado internacional

É tempo de transformar este acordo num Tratado Internacional, sujeito a aprovação pela Assembleia da República e pelo Congresso dos Estados Unidos.Admitimos que, no âmbito de novas e diferentes negociações de um Tratado Internacional sobre facilidades de utilização da Base das Lajes, pode encontrar-se a oportunidade para que a questão laboral, muitas vezes envolta em conflito, tenha um futuro entendimento claro e exequível, sem pôr em causa a dignidade e soberania de nenhum dos Estados.Para esta pretensão devemos contar com o prestígio da nossa diáspora e dos congressistas de ascendência açoriana.[ José Manuel Bolieiro, 31 de Julho de 2008 ]

Estudantes participamno sonho açoriano de Roosevelt

No essencial, a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) realizou o sonho do político americano: especialistas de várias áreas e diferentes nacionalidades, e alguns finalistas de universidades portuguesas, reuniram-se […] para discutir as relações transatlânticas.O local de encontro foi Ponta Delgada, em São Miguel, essa terra onde o presidente americano só esteve uma vez. Foi amor à primeira vista. O evento tem o nome do sonhador. É o I Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt, onde a Universidade de Coimbra marcou presença com docentes, investigadores e estudantes. Mário Mesquita, coordenador da Comissão Organizadora do Fórum e Membro do Conselho Executivo da FLAD, conta que a ideia do Fórum nasceu “da vontade de criar, nos Açores, um espaço de reflexão sobre política internacional e estratégia”. Porquê nestas ilhas? “Fala-se muito dos Açores como um lugar estratégico em casos de guerra, mas a ideia que emana da visão de Roosevelt é que este lugar também pode servir à construção da paz e é a paz, e não a guerra, que queremos discutir”.

Nenhum dos alunos presentes hesita em afirmar que Roosevelt é um homem que vale a pena homenagear. É o presidente do Governo Regional dos Açores, Carlos César, que numa frase sin-tetiza o motivo: “Franklin Roosevelt empenhou-se em garantir que o papel da América a nível da política internacional fosse recordado pela disseminação da paz, pela força da razão e não pela força das armas, e este é um exemplo que o mundo con-temporâneo precisa urgentemente de relembrar”. Manuel Porto, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, mostra-se “a favor do Estado, mas de um bom Estado”.[ Martha Mendes, revista RL, n.º 22 ]

O sonho da reorganizaçãode uma ordem mundial pacífica

O encontro multidisciplinar que a Fundação Luso-Americana organizou em Ponta Delgada […] teve como efeméride de refe-rência a passagem de Franklin Roosevelt pelos Açores durante a Primeira Guerra Mundial.Uma estada pelo arquipélago que lhe ficou como recordação encan-tatória e que, no entardecer da vida lhe terá feito sentir o desejo, não realizado, de ali regressar para esperar o fim dos dias.Mas, para além da recordação da histórica e acidental passagem pelo arquipélago, a referência que enquadrou as intervenções foi o sonho da reorganização de uma ordem mundial pacífica que animou a sua visão de futuro, para além da vitória militar na guerra de 1939--1945, contra os demónios interiores europeus.[ Adriano Moreira, 19 de Agosto de 2008 ]

mário soares e bernardino Gomes na visita à Casa e ao Jardim José do Canto.

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Chamo-me James Roosevelt Junior e é um prazer e um privilégio para mim saudar, em nome da família Roosevelt, os participantes neste primeiro Fórum Franklin D. Roosevelt sobre Relações Transatlânticas. Como sabem, o meu avô, o Presidente Franklin D. Roosevelt, visitou Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, de 16 a 18 de Julho de 1918, quando era subsecretário da Marinha dos Estados Unidos da América. Chegou a bordo de um contratorpedeiro da marinha ame-ricana, o USS dyer, que efectuava a sua viagem inaugural. No seu diário e nas suas cartas à minha avó Eleanor Roosevelt e à sua mãe, Sarah Delano Roosevelt, escreveu muitas observações maravilho-sas sobre a beleza da ilha que estava a visitar e sobre a utilidade das conversações que manteve com autoridades governamentais durante a sua visita. Espero que este Fórum assinale o relança-mento da era de relações transatlânticas que foram tão importantes no tempo do meu avô. Para ele, as relações transatlânticas estavam no cerne da política externa dos Estados Unidos. É certo que o meu avô tinha uma visão mundial, mas conside-rava que os interesses comuns das nações banhadas pelo oceano Atlântico eram tão importantes que tinham de estar no cerne da política americana. Nos últimos anos, afastámo-nos desse projecto e espero que este Fórum dê um novo impulso a esse importante objectivo, colocando-o de novo no centro das relações externas dos Estados Unidos. O tema desta conferência, “As Relações Transatlânticas e a Opinião Pública Europeia e

Americana”, é muito importante no mundo de hoje. Penso que o cepticismo bem como a falta de confiança e respeito mútuo que têm caracterizado as relações transatlânticas nos últimos anos preju-dicam todas as pessoas do mundo, mas especial-mente as populações de ambos os lados do Atlântico. Julgo, portanto, que a concentração reno-vada de atenção que este Fórum irá trazer segue inteiramente a tradição do serviço prestado pelo meu avô à presidência de Woodrow Wilson, duran-te e após a I Guerra Mundial, e como Presidente dos Estados Unidos durante quatro mandatos, nas décadas de 1930 e 1940. Estamos a viver um tempo diferente, um tempo difícil, e todos o sabemos. Mas é um tempo em que se têm registado também grandes progressos e que nos pode trazer um gran-de futuro de relações calorosas se nos concentrar-mos novamente nos nossos interesses comuns. Por conseguinte, em nome da família Roosevelt, dese-jo agradecer aos organizadores deste Fórum por terem reunido importantes decisores políticos e porta-vozes de ambos os lados do Atlântico com o objectivo de nos levar a empenharmo-nos nova-mente nos nossos verdadeiros interesses como nações e, também, como cidadãos do mundo. Desejo-vos as maiores felicidades nas vossas sessões de trabalho e nas vossas deliberações, e aguardo com expectativa a oportunidade de tomar conhe-cimento dos efeitos duradouros que este Fórum produzirá na política mundial, e, principalmente, na política externa das nações de ambos os lados do Atlântico. Muito obrigado.

Mensagem ao FórumPOR JAmes rooseveLt

O neto de Roosevelt não pôde estar presente mas participou com uma mensagem de abertura (por vídeo), agora transcrita, que valoriza o Fórum, dedicado ao seu avô, e o impulso que este dará ao fortalecimento dos laços dos dois lados do Atlântico.

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Não admira que uma das suas primeiras recordações fosse a do poder do mar. Em 1885, na sua primeira travessia do Atlântico, o pequeno Franklin, com ape-nas três anos, viajava de Inglaterra para os Estados Unidos quando o seu barco foi atingido por fortes ondas que inva-diram a cabina onde a família Roosevelt estava instalada e levaram o seu brinque-do predilecto.

Cynthia Koch, directora da Biblioteca Franklin D. Roosevelt, conta que os Roosevelt passavam anualmente vários meses na Europa. A 30 de Janeiro de 1882, quando Franklin Delano Roosevelt nasceu, em Nova Iorque, a família tinha regressa-do de uma longa viagem. Nove meses antes do nascimento estavam na Europa, como indica o diário da sua mãe Sara, uma mulher muito viajada que deslum-

brava o seu filho único com contos de aventuras de viagens por mar.

Depois de alguns anos a viver na Alemanha, Franklin Delano Roosevelt ingressou no colégio de Groton, perto de Boston, cujo lema – apoiar os mais desfa-vorecidos – resultava da convicção de que os americanos privilegiados devem ajudar a resolver os “males nacionais e interna-cionais”. Em Harvard cursou Direito, mas

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POR sArA pinA*

Na Sala Oval, Franklin delano Roosevelt fixa um ponto no enorme globo terrestre. Talvez o Mediterrâneo. O mar que sempre foi a sua paixão

e as viagens que lhe proporcionou.

De olhos postos no mundo

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o que realmente o fascinava era ser editor do jornal estudantil Harvard Crimson.

Franklin Delano Roosevelt pertencia a uma família rica e com muitas ligações políticas. Theodore Roosevelt, o Presidente norte-americano de 1901 a 1909, era seu primo e tio da sua mulher – Eleanor. Embora a carreira profissional tenha começado pela advocacia, FDR cedo ini-ciou o serviço público. Em 1913, foi com-pensado pelo seu apoio à eleição para a Presidência de Woodrow Wilson com o cargo de subsecretário de Estado da Marinha e durante a I Guerra Mundial era o “número dois” na linha de comando.

Foi com a participação da América na I Guerra Mundial que Roosevelt viajou até aos Açores para depois seguir para França e outras regiões da Europa. A visita a São Miguel foi muito marcante para FDR que “encomendou” ao pintor Charles Ruttan um quadro a óleo do destroyer USS dyer – o vaso de guerra que o transportou à Europa, ancorado no porto de Ponta Delgada. Talvez não fosse a sua pintura favorita, mas esteve sempre colocada por cima da sua secretária, no escritório da residência de Hyde Park.

“Ponta Delgada está à vista e alguns dos nossos barcos encontram-se no porto […] Quando chegámos ao porto ouvimos dizer que, no momento exacto em que nos encontrávamos parados, um submarino foi visto em perseguição de um barco português, ao largo do quebra-mar. É claro que teríamos sido um alvo fácil, mas, se

o submarino nos viu, decidiu evitar os destroyers, como qualquer submarino pru-dente faz”, escrevia Roosevelt no seu diá-rio a 16 de Julho de 1918.

Roosevelt foi recebido pelo comandante da base de Ponta Delgada, almirante Dunn. Numa carta para a mulher Eleanor, revelou--se muito satisfeito com a organização mili-tar e a recepção dos portugueses. Mas o que o deslumbrou foi a paisagem: “subitamen-te chegámos à orla do que foi, em tempos, uma enorme cratera, tendo no fundo um cenário maravilhoso – várias aldeias, vales e jardins, lagos azul-escuro e nascentes de onde se desprendem nuvens de vapor”.

Para Cynthia Koch, “FDR viu no solo aço-riano um lugar neutro onde os líderes se pudessem encontrar e debater políticas”. De tal maneira que em 1945, numa con-ferência de imprensa, enquanto Presidente, diria: “Tenciono conseguir um edifício semelhante ao Empire State Building [para as Nações Unidas] apenas para os

o barco onde viajava roosevelt no porto de ponta Delgada, num óleo de Charles ruttan, exposto no gabinete de trabalho do presidente.

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em 1915, passando revista a cadetes enquanto subsecretário de estado da marinha.

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‘quando chegámos ao porto ouvimos dizer que, no momento exacto em que nos encontrávamos parados, um submarino foi visto em perseguição de um barco português, ao largo do quebra-mar. ’

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arquivos e respectivo pessoal, e, em segui-da, fazer com que as conferências se reali-zem em parte do tempo, numa das ilhas dos Açores. Já lá estive uma vez. Em fren-te da minha casa cresciam, lado a lado, palmeiras e abetos. Têm um clima mara-vilhoso”.

Para FDR o arquipélago açoriano signifi-cava esse ponto, quase neutro, entre a Europa e a América, onde os decisores políticos se podiam encontrar e debater as ideias que ditavam os acontecimentos mundiais.

“Em 1932, depois de uma dura luta, Roosevelt tornou-se o candidato à presi-dência nomeado pelo Partido Democrata. FDR fascinou o público ao voar até Chicago para aceitar a nomeação, onde prometeu um New Deal para o povo ame-ricano”, explica Cynthia Koch, e continua: “FDR palmilhou a nação de lés a lés, per-correndo uma distância recorde de apro-

ximadamente 20 mil quilómetros, por todo um país devastado por uma crise económica e humana que durava há três anos e se tornava cada vez mais grave”.

O resultado dessa campanha foi a vitó-ria democrata no ano seguinte. A 4 de Março de 1933, Roosevelt tomou posse como o 32.º Presidente dos Estados Unidos, numa altura em que a nação estava à beira do colapso.

“Algumas vozes, levantadas pelo deses-pero e pelo medo, chegaram mesmo a pedir que o novo presidente suspendesse o governo constitucional e assumisse poderes quase ditatoriais”, conta a direc-tora Koch. Mas Roosevelt manteve-se dia-logante. Aos compatriotas, respondeu: “A única coisa que devemos recear é o próprio medo.”

Na verdade, segundo as palavras de Cynthia Koch, “em termos humanos, a

maior mudança foi talvez a nova sensação de um objectivo comum que FDR pro-moveu, falando com clareza e sinceridade à imprensa e ao povo americano”.

Poucos dias depois de ter tomado posse, iniciou uma série de programas de rádio chamados “Conversas à Lareira” e que foram os primeiros discursos presidenciais dirigidos exclusivamente a uma audiência de rádio. “O estilo era informal e colo-quial, dando a impressão de que o Presidente estava realmente a falar com as pessoas na sala”. Durante os doze anos de Roosevelt na Presidência, viriam a realizar- -se mais de 30 “Fireside chats”. A seguir a cada programa, a Casa Branca era inun-dada por telegramas e cartas. Cynthia Koch sustenta que “pela primeira vez, os ame-ricanos encetaram um diálogo nacional com o seu Presidente sobre o futuro e o destino da nação”.

Os primeiros meses como Presidente foram marcados por uma actividade tão intensa por parte de Roosevelt que fica-ram conhecidos como os “Primeiros Cem Dias”. Foi nesta altura que foi lançado o New Deal – 15 diplomas legislativos que visavam garantir comida, abrigo e traba-lho para os necessitados, estruturar a reforma da banca, ajudar os agricultores empobrecidos e terminar com a proibi-ção de cerveja e álcool, o que levantou a moral nacional.

Na opinião da bibliotecária, “Franklin Roosevelt tinha um instinto de poder e a vontade necessária para o exercer. A II Guerra Mundial – com as suas operações militares à escala mundial, complexas coli-gações internacionais e problemas econó-micos e sociais – era um grande palco em que o Presidente assumiu um papel fulcral. Roosevelt foi, em todos os sentidos, o comandante-chefe da nação. Tomou decisões militares, políticas e reuniu um grupo dos melhores estrategas que lhe prestavam contas directamente”.

Roosevelt detinha a principal posição na coligação de guerra das 26 nações aliadas, que ele denominou “Nações Unidas”. “À medida que a guerra avançava, FDR foi assumindo cada vez mais as funções de mediador e decisor principal do grupo”, diz Koch, acrescentando: “Ao longo da guerra, o Presidente Roosevelt frisou repe-tidas vezes a importância de reforçar a coligação. A diplomacia foi o que carac-terizou a sua acção de liderança durante a II Guerra”.

Na manhã de 12 de Abril de 1945, a II Guerra Mundial entrou no seu 2049.º dia. Tinham morrido já quase 50 milhões

no avião a caminho de Chicago para a nomeação à candidatura a presidente pelo partido Democrata.

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de pessoas, e muitos mais milhões esta-vam feridos ou tinham perdido as suas casas. Na Europa, Adolf Hitler vivia num bunker subterrâneo enquanto os soldados soviéticos se preparavam para invadir a capital alemã e o primeiro campo de concentração era libertado pelas tropas russas. O Presidente norte-americano acordou exausto na sua casa de férias, na Geórgia. Poucas horas depois daquilo que parecia apenas uma “dor de cabeça”, Franklin D. Roosevelt morria, de uma hemorragia cerebral.

Franklin D. Roosevelt viveu tempo sufi-ciente para saber que a vitória estava garantida. Menos de um mês depois da sua morte, a Alemanha rendeu-se aos Aliados. Os últimos dias da sua vida foram dedicados ao mundo do pós-guer-ra, preparando as bases legislativas e logísticas da Organização das Nações Unidas (ONU).

FDR morreu dias antes da data marcada para o discurso que iria proferir na sessão de abertura da conferência de fundação da ONU. Na véspera do dia em que mor-reu, trabalhou num discurso sobre o mundo do pós-guerra: “A simples con-

quista dos nossos inimigos não é suficien-te. Os americanos devem cultivar a ciência das relações humanas – a capacidade de todos os povos, de todos os tipos, viverem

juntos e trabalharem juntos no mesmo mundo, em paz”.

* com susAnA pAuLA

Cynthia Koch, directora da biblioteca presidential Franklin D. roosevelt, foi a primeira oradora do Fórum roosevelt e iniciou a sua apresentação afirmando que “roosevelt teria ficado muito feliz com estas conferências”. A biblioteca foi parceira da organização deste encontro.

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roosevelt um dia antes de morrer a trabalhar na intervenção para a formação das nações unidas.

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Roosevelt era um homem do mundo, viajava muito. Na sua opinião, por que motivo os Açores lhe causaram tão boa impressão?Os Açores representavam para Roosevelt um ponto fulcral, uma espécie de eixo mental e visual, à volta do qual começou a desenvolver mais claramente a sua noção do limite de hemisfério ocidental e de uma Comunidade Atlântica. O final da guerra constituía o palco de uma nova ordem mundial, na qual imaginava que os Açores poderiam, eventualmente, vir a tornar-se o principal quartel-general, uma vez que a maioria dos estados soberanos do mundo se encontrava na Europa e no hemisfério ocidental, incluin-do todas as repúblicas ame-ricanas. Poderia haver reuniões nos Açores e/ou no Pacífico. Há ainda a referir aquilo a que o seu Vice- -Presidente, Henry Wallace, chamava a sua espectacular e especial memória. Segundo ele, Roosevelt conseguia lem-brar-se não só do aspecto das coisas, como também se recordava de informação específica acerca de lugares, como distâncias, e até das marés e dos ventos de algu-mas zonas de costa. Reparava em todos os detalhes de uma cena ou paisagem. Os Açores impressionaram-no profun-damente.

Actualmente, os aviões americanos já não têm de fazer escala no meio do Atlântico para pode-rem chegar a outros lugares do mundo. A base aérea da ilha Terceira ainda continua a ser impor-tante para os objectivos militares dos EUA?É um facto que, com os aviões de longo alcance, se tornou muito fácil sobrevoar o Atlântico e ultrapassá-lo, sem qualquer esca-la. Durante a Guerra do Kosovo, os bom-bardeiros americanos Stealth levantavam voo

da base da Força Aérea de Whiteman, no Missouri, voando sobre Belgrado e voltando, sem parar. No entanto, tinham de ser abas-tecidos sete vezes por aviões em diversos pontos da viagem. Isto ilustra bem a neces-sidade de posições intermédias na cadeia logística, associadas a aeronaves de diferen-tes níveis tecnológicos e para diferentes fins. Além disso, estas posições intermédias têm de ser abastecidas e apoiadas. É necessário

que tenham equipamentos de comunicação que sejam abso-lutamente fiáveis e seguros. Por conseguinte, na minha opinião, provavelmente, seria melhor pensar nos Açores como um importante centro intermédio, do que como um principal ponto estratégico. Por outro lado, também é um facto que a geoestratégia é muito importante no contex-to mais lato do problema que enfrentamos. Se houver um problema humanitário que necessite de operações de assistência em qualquer parte de África, por exemplo, pode acontecer que a velocidade não seja o mais relevante, mas sim a capacidade de carga. Numa situação do género, poderiam usar-se aeronaves mais lentas. Este seria o segundo exemplo de uma situação em que os Açores seriam importantes. O tercei-ro seria no caso de estarmos

POR AnA brAsiL E António viCente

Alan Henrikson, director de estudos diplomáticos da The Fletcher School of Law and diplomacy, da Tufts University, traçou o perfil de Roosevelt como “figura histórica”.

em entrevista explica a importância do arquipélago e a actualidade do pensamento de Roosevelt, mesmo se comparado com o do novo Presidente dos estados Unidos, Barack Obama.

Actualidade do pensamento de roosevelt

“obama terá, da mesma forma que roosevelt, um conhecimento directo de outras partes do mundo”, diz Alan henrikson.

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perante um problema sensível do ponto de vista político, que necessitasse de acção ime-diata; se fosse necessário chegar a algum lugar rapidamente, sem atrair muita atenção. Uma outra situação, muito semelhante a esta, poderia ser a necessidade de haver reu-niões rápidas entre dirigentes para consulta aos níveis mais altos, como a que aconteceu em 2003 com Bush, Blair, Aznar e Barroso.

O senhor é um dos principais especialistas em Franklin Delano Roosevelt. Ainda fica surpreen-dido perante algumas situações em que FDR é citado ou referido?As suas ideias, que muitas pessoas naque-la altura julgavam não passarem de pala-vras – como as “Quatro Liberdades” –, eram de tal maneira grandes que foi possível adoptá-las em contextos comple-tamente diferentes. Para mim, um desen-volvimento surpreendente foi a forma como o ex-secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, se referiu às “Quatro Liberdades”, de Roosevelt, quando apre-sentou o seu Relatório do Milénio. Citou especialmente a libertação das necessida-des materiais e a libertação do medo – dando-lhes talvez a melhor definição existente de “segurança humana”, um novo termo que, entretanto, se institucio-nalizou em todo o mundo.

É da opinião que, com a evolução da ordem mundial, será dada maior atenção aos pequenos estados? Sim. Em especial nas questões climáticas, no problema geopolítico relativo às zonas de conflito e na liderança moral no que

toca a reagir às situações humanitárias. Isso acontecerá devido ao contexto diplomático. Do sistema das Nações Unidas fazem parte 192 países. Eram apenas pouco mais de 50 quando a ONU foi criada. Consequentemente, a ONU está a tornar-se uma instituição composta por pequenos países. Graças a este princípio de igualdade soberana e, uma vez que na Assembleia Geral todos os votos são iguais, o Conselho de Segurança é pres-sionado a alargar-se.

Roosevelt era uma figura muito inspiradora. Pensa que o mundo anseia por este tipo de líder polí-tico, que muitos parecem ver em Obama?Sim. Muitas pessoas acreditam – e eu par-tilho dessa esperança – que Obama terá, da mesma forma que Roosevelt, um conhe-cimento directo de outras partes do mundo. Obama tem experiência; e não me refiro a experiência em política externa, mas sim a “experiência externa”. O seu pai era que-niano, visitou a Índia e diversas regiões africanas. Chegou mesmo a viver na Indonésia. Na qualidade de membro do Foreign Relations Committee (comissão de fiscalização das relações externas do Senado americano), também viajou muito. Independentemente do que possam ser os objectivos das suas políticas, a compreensão alargada que tem de diversos contextos

geográficos e sociais dar-lhe-á um deter-minado tipo de visão. Um exemplo disso mesmo é a sua proposta para um fundo global para a educação no valor de 15 mil milhões de dólares. Obviamente, não seriam apenas os EUA a assegurar o res-pectivo financiamento. Ainda não foi dada grande atenção a esta proposta. Entre outras coisas, Obama afirmou que “O facto de haver crianças, por exemplo, no Médio Oriente, que não sabem ler, pode, a longo

prazo, constituir um perigo potencial para os EUA, bem como para a própria região”. Relativamente às suas propostas para a educação nos EUA tem dado ênfase às ida-des preescolares. Talvez seja o resultado do seu trabalho com as comunidades em Chicago – onde se apercebeu de como são decisivos esses anos para as famílias afro--americanas – e provavelmente também da experiência acumulada nos quatro anos vividos na Indonésia durante a sua juven-tude, ou mesmo de tudo o que viu no Quénia. O facto de Obama defender – tal como FDR provavelmente o teria feito – não apenas a liberdade de expressão, a liberdade religiosa e a libertação do medo, como também a liberdade de aprender em qualquer lugar do mundo, mostra que tem um grande potencial.

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‘As suas ideias, [...] como as “quatro Liberdades”, eram de tal maneira grandes que foi possível adoptá-las em contextos completamente diferentes. ’

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A admiração dos micaelenses pelos Estados Unidos foi gerada, nas palavras de Carlos Enes, pelo sentimento de “abandono” por parte do Governo central e pelos apoios prestados pelas forças americanas. Começavam a manifestar-se tendências sepa-ratistas em São Miguel e na colónia emigra-da na Nova Inglaterra. Alguns açorianos queriam distanciar-se do Governo do con-tinente e, porventura, ligar-se aos Estados Unidos. Foi nesse clima que Franklin D. Roosevelt desembarcou no arquipélago.

Os discursos de Franklin D. Roosevelt em Ponta Delgada não ultrapassaram os limites das palavras de protocolo. Roosevelt valorizou, no entanto, a posição estraté-gica dos Açores, a ponto de considerar o apoio concedido pela base naval de Ponta Delgada às forças aliadas mais importante do que a própria participação portuguesa no teatro de guerra europeu: “Portugal entrou na aliança europeia, mas os Açores fazem mais do que isso, pelas condições especiais da sua posição estratégica”.

A atitude de não ingerência dos Estados Unidos nos assuntos internos portugueses e de repúdio de envolvimento em ensaios separatistas reflectia a orientação geral da política externa definida pelo Presidente Wilson, que se caracterizava pela ideia de uma arbitragem americana a nível inter-nacional – uma espécie de leadership moral a exercer pelos Estados Unidos, com vista à defesa da paz e a espalhar pelo mundo os benefícios da democracia.

Com a II Guerra Mundial, como explicou o professor Luís Andrade, os estrategas dos Estados Unidos multiplicavam os sinais de preocupação com o arquipélago portu-guês, a fim de demover a diplomacia sala-zarista da sua posição de neutralidade e obter a anuência do Governo português com vista à instalação de uma base militar nas ilhas atlânticas.

Em discurso proferido, Roosevelt amea-çava, de forma implícita, com a possibi-

lidade de ocupação dos Açores e de Cabo Verde: “Nós e as Américas – quando e onde quer que os nossos interesses forem atacados e a nossa segurança ameaçada – decidiremos onde deveremos colocar as nossas Forças Armadas e onde estabelece-remos a nossa posição militar estratégica, sem termos a mais ligeira hesitação para, servindo-nos das Forças Armadas, repelir qualquer ataque”.

Em resposta, Salazar enviou contingentes militares para as ilhas. O Presidente Carmona efectuou uma viagem de reafirmação de soberania, sob o slogan “Aqui é Portugal”. Os Aliados e as potências do Eixo interpre-taram estas medidas como “símbolo da vontade de Portugal em não deixar ocupar as suas possessões atlânticas por qualquer potência e sob qualquer pretexto”.

Após o fim da II Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, os Estados Unidos

vão permanecendo nos Açores com inú-meras concessões ao Estado português. Como afirmou António José Telo, “Portugal foi o único país não democrático convi-dado para membro fundador da NATO; o único pequeno poder que, em 1961-63, conseguiu mudar aspectos importantes da política americana em África”.

O historiador e director do Instituto de Defesa Nacional concluiu: “Em múltiplas crises e conjunturas nos últimos dois séculos, Portugal tem desempenhado funções e cumprido missões que estão aparentemente acima dos seus recursos e força relativa. Essa capacidade tem sido essencial para a criação do Portugal con-temporâneo e deve-se a um conjunto multifacetado de factores. Os Açores e a sua posição estratégica são um dos prin-cipais e, em muitas das crises e situações concretas, são o principal”.

POR mArtA Amorim E susAnA pAuLA

os Açores: entre os estados unidos e portugal

“As bases e as relações bilaterais com os estados unidos: um século de entendimentos” foi a conferência apresentada ao Fórum por António José telo.

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Na opinião do embaixador de Portugal em Washington, João Vallera, a relação transatlântica só “ganhará força” se fizer coincidir a sua agenda com a agenda mun-dial. Por isso se têm desenvolvido esforços na busca de “plataformas comuns”, no âmbito de uma agenda que, segundo Vallera, se foca em questões específicas, como o comércio a vários níveis ou os entraves à circulação de pessoas e bens, à defesa europeia e as ligações à NATO. Mas também em grandes questões globais, como o Iraque, o terrorismo, a luta con-tra a pobreza ou a emergência de novas potências mundiais, como a China.

O embaixador assumiu esperar da capi-tal norte-americana “uma atitude mais atenta e mais adepta a escutar as reacções do exterior”. Afinal, segundo notou, assis-te-se a “um movimento de considerável recentragem da política americana”, favo-rável a uma “significativa reaproximação com a Europa”.

No entanto, realçou o embaixador, “a capacidade de alterar componentes básicos da política externa americana é muito limitada, visto que boa parte das opções de fundo da actual Administração vão tra-zer consequências para a próxima”.

Ao apresentar João Vallera, o director da SIC Notícias, António José Teixeira, citou Robert Kagan quando este refere que actualmente os Estados Unidos estão em Marte e a Europa em Vénus. Ou seja, enquanto o objectivo dos europeus se centra no “equilíbrio de interesses” e na “resolução pacífica dos conflitos”, os norte-americanos “não acreditam que estejamos assim tão perto do sonho” da “paz perpé-tua” e da estabilidade mundial.

... tAmbém pArA o AmbienteO embaixador dos Estados Unidos em Portugal, Thomas Stephenson, focou na sua intervenção o tema e optou por falar

da política energética que se tornou “o assunto político mais importante que põe em resto o bem-estar futuro”. Segundo o embaixador: “Os Estados Unidos e a Europa precisam de agir em três áreas: reduzir a dependência dos combustíveis fósseis; aumentar a eficácia energética e conservação; e desenvolver fontes de energia renováveis e alterna-tivas”. Lembrando a estreita cooperação entre Portugal e os Estados Unidos, Thomas Stephenson exortou cidadãos e instituições a prosseguirem na defesa do ambiente. “Todos temos de criativamen-te trabalhar para garantir um mundo seguro e functional para os nossos filhos”. “Mesmo que não existisse ame-aça climática, tínhamos toda a urgência em pôr fim à dependência energética relativamente aos combustíveis fósseis.

Mas esta ameaça existe, e a resposta tem de ser imediata”, afirmou Viriato Soromenho-Marques, que atribui à União Europeia o papel de recolocar os Estados Unidos no caminho do comba-te à crise ambiental e climática.

O assessor do presidente da Comissão Europeia para a área do ambiente lembrou que este não é um problema novo: “Esta crise de alterações climáticas, esta crise ambiental, já exige medidas há décadas. A diferença é que agora são muito mais urgentes”, disse.

Soromenho-Marques garantiu que a res-posta europeia a este problema está já em marcha: “Esta é uma época de mudança e o ambiente é o nosso calcanhar de Aquiles. A dívida climática terá de ser paga cêntimo por cêntimo, e só unidos vamos conseguir fazê-lo.”

POR CLAúDiA GAmeiro,JoAnA FernAnDes E mArCo Leitão siLvA

plataformascomuns...

o embaixador dos estados unidos em portugal falou da política energética.

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“A realidade contemporânea atravessa uma crise global que tem consequências sociais como o aumento da imigração e dos refu-giados”, disse Pierre Hasner, director do Centro de Estudos de Relações Internacionais de Paris, e acrescentou: “Num mundo cada vez menos centrado na Europa e nos EUA é necessário acabar com posturas de domí-nio e permanente doutrinação em relação aos outros países. Precisamos hoje de polí-ticas flexíveis que possam dar resposta aos problemas que atravessamos.”

Perante os desafios globais, Pierre Hasner recordou a fórmula da democracia e da

economia de mercado como sistemas polí-tico e económico naturais da humanidade, que, “mesmo sendo soluções imperfeitas é bom lembrar que todas as suas alterna-tivas falharam”.

Para Adriano Moreira, presidente da Academia das Ciências de Lisboa e pro-fessor emérito da Universidade Técnica de Lisboa, a resposta aos desafios globais passa pela aliança das civilizações que “exige reorganização da governança mun-dial e não a multiplicação de centros de poder em desafio armado”.

Na sua intervenção sobre a temática

“A Reforma da NATO e a Relação Transatlântica”, sustentou que é “um pro-jecto que fácil e repetidamente demonstra um desajustamento entre o modelo obser-vante de que se parte e o modelo obser-vado que configura a realidade actual”.

O professor de Relações Internacionais considera que o que se verifica é que “o unilateralismo da Administração republicana de Washington instalou uma divisão de pareceres e atitudes entre os membros do Conselho de Segurança, que também o são da NATO, e que igual-mente pertencem à União Europeia”.

relações transatlânticas

que futuro?POR sArA pinA*

mário soares (esq.) e Adriano moreira (dir.) com miguel monjardino durante a visita à Casa e ao Jardim José do Canto, propriedade de Augusto Athayde,parte do programa social do Fórum. roosevelt percorreu o parque em 1918.

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Adriano Moreira vai mais longe e afirma que “talvez não seja difícil reconhecer uma mudança na avaliação das ideias paradigmáticas de Ocidente, Atlântico, identidade cultural ou aliança global das democracias”.

Quanto ao futuro da NATO, Adriano Moreira, apoiando-se no balanço que Alain Joxe fez do estado do mundo em 2008, prevê que “a NATO arrisca deixar de fun-cionar consistentemente como aliança, para ser antes um lugar de confronto entre a grande estratégia americana e a grande diplomacia europeia”. Quanto ao futuro do Ocidente, o professor também não hesita: “Não será possível que a circunstância que rodeia os ociden-tais se altere subs-tancialmente sem que o sistema de governança, segu-rança e defesa tenha de reorgani-zar a atitude, a definição e a res-posta a dar à situação actual do mundo.”

“A versão europeia dominante aponta para uma definição e consolidação de fronteiras amigas”, garante, ainda, Adriano Moreira, que defende que “o globalismo exige reinvenção da governança, fronteiras amigas, e consciência de que a casa comum, a Terra, é o alvo das reais amea-ças que a todos rodeiam e que exigem uma aliança das civilizações; as forças militares não são dispensáveis, mas devem ser forças tranquilas e não instrumentos de unilateralismo”.

A concluir, Adriano Moreira põe a tóni-ca no poder político. “É a decisão política que vai determinar o acentuar da deriva ou o regresso ao pensamento de Wilson e Roosevelt, aos grandes princípios pro-clamados quando o mundo celebrou aque-la alegria coberta de lágrimas que foi a paz de 1945 e a criação da ONU.”

Na sua intervenção, Mário Soares refor-çou a ideia de que os Estados Unidos se terão enganado no inimigo ao atacarem o Afeganistão envolvendo a NATO, uma “ocupação sem saída” e atacando depois o Iraque (sem o aval da ONU) e procu-rando combater os terroristas sem nenhum respeito pelos direitos humanos, casos de Guantánamo e Abu Ghraib.

“O prestígio da América no mundo foi posto em causa de forma quase irreme-diável”, considera Mário Soares, pois o

“unilateralismo da política americana que pretendia ser o polícia e o juiz do mundo, marginalizando a ONU, classi-ficando alguns países, de acordo com critérios morais e religiosos, como per-tencendo ao ‘eixo do mal’ verificou-se não ter qualquer consistência”.

“É indispensável por isso mudar de paradigma, a globalização desregulada, fruto de um capitalismo selvagem, dito de casino, só conduz à concentração da riqueza em cada vez menos mãos e a mais pobreza nos países desenvolvidos e no mundo em geral. A globalização

tem de ser consensualmente regulariza-da para se poder criar uma nova ordem internacional que assegure a paz e o desenvolvimento sustentável entre os povos e as nações.”

Para Mário Soares, “um afro-ameri-cano no gabinete oval da Casa Branca representa por si só uma revolução cul-tural nos EUA e no mundo”. Soares comparou a vitória de Obama com a vitória de Roosevelt nos anos de 1930. Foi um ponto de viragem que, agora, passados quase oitenta anos, se repete. O fundador do Partido Socialista disse também que “curiosamente a América parece estar a sair de um ciclo trágico com o final do último mandato do Presidente Bush. Com as eleições presi-denciais, a consciência política, o sen-tido de responsabilidade, o pioneirismo e o idealismo americanos parecem ter despertado como por milagre”.

“A situação na Europa muda se soprar um novo vento político na América”, considera Soares. O que significa que os laços entre a Europa e a América se tornarão mais estreitos e fecundos.

Mais inten-sas serão também as r e l a ç õ e s

Portugal-Estados Unidos. José Medeiros Ferreira, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, referiu que “apesar de Portugal ter querido sempre manter relações bilaterais com os Estados Unidos, estes sempre pre-feriram os contactos multilaterais através da OCDE, da NATO […] Mas os Açores sempre desempenharam um papel fundamental como uma âncora nas relações entre os dois países”.

Medeiros Ferreira perspectivou que, no futuro, os Açores “tanto poderão ser um teatro de articulação euro-atlântico como um teatro de repartição de missões cien-tíficas, tecnológicas, de segurança e defesa. Entre a repartição de missões e repartição de ilhas por zonas de influ-ência”. Sempre num quadro em que “oceanos e espaços comunicam mais entre si nesta fase de globalização”, o arquipélago “deve continuar a ser um factor de segurança e de articulação do espaço atlântico, ajudando a garantir a liberdade de circulação aeronaval entre continentes e entidades políticas dos dois lados do oceano”.

* com FAbiAnA CoeLho, João CAritA E mArthA menDes

‘num mundo cada vez menos centrado na europa e nos euA é necessário acabar com posturas de domínio e permanente doutrinação em relação aos outros países. precisamos hoje de políticas flexíveis que possam dar resposta aos problemas que atravessamos. ’

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“Hoje ninguém pensa que os americanos podem tudo sozinhos”, disse Judite de Sousa (RTP) ao apresentar Schlesinger que, à margem deste encontro, deu uma entre-vista exclusiva à Paralelo.

Qual terá sido, na sua opinião, a razão principal para a criação das Nações Unidas (ONU) e como terá Roosevelt conseguido mudar as atitudes iso-lacionistas dos EUA?A questão central era a II Guerra Mundial. Como, certamente, se recordará, na I Guerra Mundial morreram 30 milhões de pessoas e na II Guerra Mundial morreram 60 milhões. Assim, os delegados de São Francisco tinham a consciência de que se devia fazer tudo para evitar uma III Guerra Mundial. Foi por este motivo que a ideia das Nações Unidas de Roosevelt tocou no nervo da população americana e mundial.

Tem-se falado muito acerca de uma possível reforma da ONU. Pensa que o Conselho de Segurança poderá vir a concordar que há uma necessidade de mudança?Em 2005 os Estados-membros das Nações Unidas reuniram-se e concordaram que eram necessárias algumas reformas. De facto, talvez se contem mesmo entre as reformas mais profundas de toda a história da ONU: a criação de algumas agências para ajudar a resolver o problema de Estados falidos, de um Fundo para a Democracia que financia países interessados em estabelecer um sistema democrático, e da Comissão de Consolidação da Paz que também deverá fornecer ajuda económica. Há ainda a famosa cláusula, o chamado princípio da “responsabilidade de prote-ger”, que permite ao Conselho de Segurança

A América de voltaàs nações unidas

POR AnA brAsiL E rui vALLerA

Stephen Schlesinger, investigador da Century Foundation e antigo director do World Policy Institute na New School, comentador da Time e da CNN, interveio no Fórum

para falar dos desafios que a ONU enfrenta.

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o comentador da Time e da Cnn afirmou à Paralelo que: “o desastre do iraque acabou por fortalecer a onu.”

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intervir num país que esteja a cometer genocídio contra o seu próprio povo. Isto é particularmente importante porque, segundo a Carta das Nações Unidas, não é permitido à ONU interferir nos assuntos internos de qualquer país, coisa que, no entanto, esta cláusula passou a admitir. Também houve reformas que possibilitaram uma melhor definição dos princípios éti-cos, para que não possa voltar a acontecer um escândalo semelhante ao do programa “Petróleo por Alimentos”. Houve ainda alguns esforços concertados para lidar com o terrorismo. O problema que se põe é que a ONU não consegue estabelecer uma defi-nição de terrorismo que seja aceite por todos os países. Por isso, a sua acção con-tra o terrorismo tem sido limitada. O que a ONU terá de fazer futuramente é ter um

papel muito mais activo no controlo das armas de des-truição maciça, químicas, biológicas e nucleares. Mas, de momento, os recursos de que dispõe neste âmbito são limitados.

Certas correntes de opinião defen-dem que as Nações Unidas pas-sem a ter um papel muito mais activo em situações como a do Darfur. À luz destes novos poderes, acha que é natural que tal venha a acontecer?O problema é que, no Conselho de Segurança, há cinco nações que têm direi-to de veto e que podem impedir qualquer intervenção. Assim, no caso do Darfur, a China continua a vetar qualquer acção directa por parte do Conselho de Segurança,

uma vez que vai buscar o seu petróleo ao Sudão e não está interessada em perder o acesso aos combustíveis. E, se não for a China, é a Rússia que não concorda com a intromissão da ONU nos assuntos inter-nos de outro país.

Quando se fala da necessidade de reforma, geral-mente referem-se as alterações no Conselho

‘o que a onu terá de fazer futuramente é ter um papel muito mais activo no controlo das armas de destruição maciça, químicas, biológicas e nucleares. ’

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“uma das possibilidades de reforma do Conselho de segurança seria através do aumentodos membros não-permanentes”, afirma schlesinger.

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de Segurança. Pensa que isto poderá vir a acontecer?Não penso que isso possa vir a acontecer; pelo menos, não para já. Em 2005, houve um grande esforço no sentido de reformar o Conselho de Segurança. Mas, o proble-ma é, antes de mais, o facto de os mem-bros permanentes poderem vetar qualquer reforma que não lhes agrade. Em segundo lugar, os países que preenchem os requi-sitos necessários para virem a fazer parte do Conselho de Segurança como membros permanentes – como é o caso da Alemanha, do Japão, da Índia, do Brasil e da África do Sul – têm dificuldade em convencer as suas próprias regiões de que deveriam tornar-se membros do Conselho.

A realidade actual é muito diferente da de 1945. Não obstante, os membros permanentes da ONU continuam a ser os mesmos. Pensa que as decisões do Conselho de Segurança ainda têm legitimida-de no mundo? Em relação a essa questão, vou argumentar de uma forma que pode soar um pouco a provocação. Há um velho ditado americano que diz: “Se não está estragado, não é pre-ciso arranjá-lo.” Com isto quero dizer que também se pode argumentar que o Conselho de Segurança está a funcionar bastante bem desta forma, mesmo não sendo representa-tivo. Uma das formas de mudar as coisas seria através do aumento dos membros não- -permanentes. Actualmente há 15 países no

Conselho de Segurança. Se, por exemplo, se aumentassem para 21, teríamos mais seis países com mandatos de dois anos, o que pelo menos alargaria um pouco a represen-tação de outras regiões do mundo. Na minha opinião, essa é uma solução possível e é bastante provável que venha a acontecer nos próximos dez anos.

O problema do veto é suficiente para explicar a incompatibilidade que se tem observado entre os EUA e a ONU, particularmente nas últimas duas ou três décadas? Se olharmos para o passado, para o que aconteceu em 1945, em São Francisco, veremos que os Estados Unidos deixaram bastante claro que, se não lhes fosse dado direito de veto, abandonariam a conferên-cia. Isto significa, de certa forma, que o direito de veto mantém os EUA na ONU. No entanto, é um facto que os EUA con-tornaram o direito de veto, desafiando frontalmente o Conselho de Segurança e agindo sozinhos aquando da invasão do Iraque. Também é verdade que, durante a crise do Kosovo em 1998, a Rússia vetou qualquer acção por parte da ONU, e os Estados Unidos provocaram uma interven-ção por parte da NATO, contornando, também aqui, a decisão das Nações Unidas. Portanto, há várias formas de contornar a questão do veto, mas são consideradas controversas porque vão contra a Carta das Nações Unidas.

A ONU tem capacidade para contrabalançar as acções unilaterais dos EUA?Creio que sim. Aliás, no fim foi o que acabou por acontecer no caso do Iraque. Após Bush ter dado ordens para a invasão, todos se voltaram contra ele, excepto a Grã-Bretanha. Consequentemente, a reac-ção de Bush foi voltar ao Conselho de Segurança para pedir a autorização para a ocupação do Iraque por parte dos EUA, autorização essa que o Conselho de Segurança acabou por lhe conceder.

Para o cidadão comum, a ONU perdeu relevância após a invasão americana do Iraque? Na altura em que tudo isto aconteceu, havia bastante receio que a ONU pudesse vir a ter o mesmo destino da Sociedade das Nações, ou seja, que viesse a desapa-recer. No entanto, ironicamente, penso que o desastre do Iraque acabou por vir a fortalecer a ONU, porque, desde então, Bush foi forçado a retroceder e tem-se mantido com as Nações Unidas.

Na sua opinião, haverá grandes divergências entre a ONU e o novo Presidente dos Estados Unidos?Obama será um forte apoiante da ONU. Um dos seus primeiros actos políticos será o de explicar às Nações Unidas que a América está de volta como membro pleno.

segundo schlesinger, “obama será um forte apoiante da onu”. Fotografia tirada em 2007, do então candidato a candidatocom ban Ki-moon, secretário-geral das nações unidas.

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Donzelina Barroso sugere que se faça uso das remessas dos emigrantes portugueses nos EUA e que se atraiam investidores para a filantropia: “É preciso mostrar que há onde investir. E que vale a pena fazê-lo na educação.”

Para Elmano Costa, professor da California State University, a união e inte-gração passa por aproximar os portugue-ses emigrados nos Estados Unidos da política norte-americana. “A comunidade portuguesa nos Estados Unidos vive numa situação económica desfavorável, tem baixa escolaridade e há muitos que ainda não têm nacionalidade americana. Têm pouco poder político...”, mas esta tendên-cia está a alterar-se.

João Luís Medeiros referiu-se à comu-nidade portuguesa emigrante nos Estados Unidos como “caixeiros-viajantes da sau-dade”. Na perspectiva do antigo deputado à Assembleia Regional dos Açores e Assembleia da República, o percurso de vida das gerações que, durante todo o século XX, trocaram a Europa pela América, deve ser recordado. E a língua portuguesa, diz o orador, é um forte traço dessa memória. “É muito importante que se continue a falar e a ensinar português na América do Norte», disse.

imAGens mútuAsJohn Glenn, director de Política Externa do German Marshal Fund apresentou o “Transatlantic Trends” – um projecto promovi-do pelo German Marshall Fund of the United States e pela Compagnia di San Paolo, com o apoio FLAD, da Fundación BBVA e da Tipping Point Foundation, que procura avaliar as ati-tudes americanas e europeias sobre a rela-ção transatlântica e os desafios globais.

Para John Glenn, este inquérito anual permite concluir que “uma atitude anti- -Bush, na Europa, não se traduziu em antia-

mericanismo”. Em relação a Portugal, apesar da presença americana na Base das Lajes, há moderação no desejo de coope-ração com os EUA. As ambições portugue-sas passam, por exemplo, pelo desejo do país assumir um papel mais interventivo na cena internacional (80 por cento); bem como nas organizações internacionais em que participa, como a NATO (81 por cento defendem uma acção mais visível).

Antiga directora-geral da Comissão Europeia e Visiting Scholar de Harvard, Renée Haferkamp discordou das conclu-sões do inquérito: “A Europa é, neste momento, claramente ‘antiamericana’”, defendeu.

Segundo Teresa de Sousa, do jornal Público, a crescente distanciação entre a Europa e os EUA justifica-se porque “os

momentos edificantes da relação transa-tlântica, como a II Grande Guerra, o New Deal, ou a queda do muro de Berlim são momentos de cooperação histórica que se tornam cada vez mais distantes no tempo”. A jornalista acredita que “os euro-peus vivem há cinquenta anos num clima de prosperidade e paz que os faz desva-lorizar a ideia de que os americanos foram os seus grandes protectores”.

Duarte Freitas, deputado ao Parlamento Europeu, argumentou na mesma linha de Teresa de Sousa, mas disse que “Bush foi uma boa desculpa para razões muito mais profundas que justificam o antiamerica-nismo actual”. As gerações mais novas, sublinhou, não têm na memória os momentos centrais da relação entre as duas potências.

Donzelina barroso defendeu a captação de investimentos na educação.

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“Investir na educação é uma forma de unir laços”, donzelina Barroso, consultora da JB Fernandes Memorial Trust na Fundação Rockefeller, defende o investimento na educação para unir os portugueses dos dois lados do Atlântico.

participação luso-americana

POR ALexAnDre soAres E JoAnA FernAnDes

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 200944

O debate sobre a função e o lugar do Governo na vida americana e na economia, que teve início na década de 1930, prossegue nos nossos dias e também na mesa-redonda que juntou Teodora Cardoso, presidente do Conselho Directivo da FLAD e administradora do Banco de Portugal; Álvaro Dâmaso, presidente da Agência de Promoção do Investimento nos Açores; Eduardo Paz Ferreira, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; e Manuel Porto, professor da Faculdade de Direito de Universidade de Coimbra.

Álvaro Dâmaso caracterizou o New Deal como um fármaco, serviu para melhorar a vida dos americanos e recuperar a confiança, “um novo Estado, regulador, onde existe a mão visível da regulação”. Roosevelt conseguiu ultrapassar a enorme crise em que se encontravam os Estados Unidos, desafios que agora também Obama encontra, comen-tou Paz Ferreira.

Teodora Cardoso comparou os diferentes modelos socioeconómicos. Apontou o dedo ao modelo mediterrânico, aplicado em Portugal, por-que “devido ao aumento das despesas de protecção social, os serviços públicos gerais são descuidados para diminuir essas despesas […] Portugal precisa de repensar o seu modelo […] para gerar produtivi-dade e emprego”.

new Deal: a política social sem medo

POR susAnA pAuLA

A expressão “New deal” tornou-se um rótulo dos tipos de mudanças que FdR traria à economia

americana mergulhada na depressão.

“Defesa e Segurança nas Relações Transatlânticas” foi o tema da mesa-redon-da presidida por Manuela Franco, diplo-mata e antiga secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, com a participação de José Cutileiro, embaixador e antigo secretário-geral da UEO, Ricardo Rodrigues, deputado à Assembleia da República, Paulo Casaca, deputado ao Parlamento Europeu, Rui Paulo Figueiredo, adjunto do gabinete do primeiro-ministro e presidente do Instituto Transatlântico Democrático, e Miguel

Monjardino, professor da Universidade Católica Portuguesa.

José Cutileiro centrou a sua intervenção nas relações entre a Europa e os EUA, fri-sando que a maioria dos países da União Europeia está na NATO e que as relações económicas entre a Europa e os EUA são as mais fortes entre quaisquer dois grupos do mundo. Criticou ainda os baixos orça-mentos de defesa dos Estados europeus. Ricardo Rodrigues destacou nesta sua pri-meira intervenção a importância estraté-gica do arquipélago e da sua Zona

Económica Exclusiva: “Os açorianos são filhos da geografia.” Salientou, ainda, a importância do acordo entre Portugal e os EUA que fixa a Base das Lajes.

O alerta para más interpretações do fede-ralismo europeu foi dado por Paulo Casaca – o federalismo de Schuman surge por influência americana e não pretende a criação de um Estado unido com o objec-tivo de concorrer com os EUA.

Rui Paulo Figueiredo salientou alguns aspectos que têm prejudicado a imagem americana aos olhos dos europeus, como o unilateralismo e o descuidar dos valores ocidentais, cujo exemplo mais gritante é Guantánamo.

Miguel Monjardino abalou a discussão dizendo que a Europa precisa de mais meios para a defesa. A Europa tem esta-do dependente dos EUA e “Yes, we can” é um discurso que engloba também os europeus.

mais meiospara a defesa europeia

POR mArGAriDA pimentA

Cartoon do New York Herald (4 de março de 1933).

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Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 45

Como moderadora da mesa, a cônsul-geral de Portugal em Boston, Manuela Bairos, reco-nheceu que Portugal é hoje “um trunfo para a Europa, no que diz respeito às relações transatlânticas”, sobretudo por causa dos “laços hoje existentes entre Portugal e os Estados Unidos”. Laços, referiu a cônsul, que nos últimos tempos têm permitido o desen-volvimento de projectos de parceria estraté-gica em diversas áreas (como a ciência e a tecnologia) entre os dois países. Como exem-plo, Manuela Bairos apontou o projecto de construção de um centro de observação das alterações climáticas na ilha Graciosa, resul-tante de um protocolo assinado com a Universidade de Massachusetts.

Ian Lesser, do German Marshall Fund, preferiu referir-se sobretudo à União Europeia e à forma como, do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos encaram o

posicionamento dos 27 Estados-membros: “Estamos hoje a assistir a um renascimen-to do diálogo em questões como a energia ou a segurança”, disse.

O deputado do PSD à Assembleia Legislativa dos Açores, José Manuel Bolieiro, destacou a importância dos Açores, enca-rados por Washington como um parceiro estratégico do ponto de vista militar – razão que explica as novas parcerias militares. Deixou um desafio ao Governo português: “Porque não redigir um novo Tratado de Cooperação Militar, que seja aprovado tanto pelo Congresso dos Estados Unidos, como pela Assembleia da República?”.

André Bradford destacou a importância actual dos Açores enquanto vantagem nego-cial do ponto de vista diplomático: “Hoje, o arquipélago assume-se até como media-dor entre os dois lados do Atlântico.”

André bradford defendeu a posição do arquipélago como mediador entre os dois lados do Atlântico.

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O papel desempenhado por Portugal no diálogo transatlântico foi o objectivo traçado por uma das mesas-redondas

do I Fórum Açoriano Franklin Roosevelt.

pontes sobre o oceano

POR mArCo Leitão siLvA

Com a primeira edição do Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt sobre Relações Transatlânticas foi lançado o livro Franklin Roosevelt e os Açores nas duas Guerras Mundiais, uma iniciativa conjunta do Governo Regional dos Açores e da

FLAD. Rui de Vallera, da Fundação, apresen-tou o livro que homenageia o importante papel do Presidente Roosevelt na política internacional do século passado, bem como a atenção que prestou as questões geopolí-ticas suscitadas pela posição geográfica do arquipélago dos Açores.

Coordenado pelo professor Luís Nuno Rodrigues, este trabalho editado pela FLAD, com o apoio do IPRI, reflecte a his-tória da relação pessoal que se estabeleceu entre Franklin Roosevelt e o arquipélago dos Açores.

Novas interpretações sobre a evolução das relações luso-americanas durante o século XX, assim como novas perspectivas sobre a história açoriana são apresentadas nesta edição bilingue (em português e inglês), composta por 10 capítulos escri-tos por 10 autores, quatro americanos e seis portugueses.

À biografia de Franklin Roosevelt, por Cynthia Koch, directora da Biblioteca Presidencial e do Museu Franklin D. Roosevelt, em Nova Iorque, seguem-se três capítulos por Carlos Enes, José Medeiros Ferreira, e Álvaro Monjardino, que abor-dam o tema da I Guerra Mundial, apro-fundando realidades distintas da história açoriana durante esse período e obviamen-te da passagem do Presidente norte-ame-ricano pela Horta e Ponta Delgada.

Os cinco capítulos seguintes, da autoria de Adam Seipp, Luís Andrade, Luís Nuno Rodrigues, Warren Kimball e Philip Mundy, tratam o período da II Guerra Mundial.

Para finalizar, António José Telo dá-nos um panorama geral sobre a existência e a razão de ser de bases estrangeiras em Portugal durante as duas guerras mundiais do século XX e o período da Guerra Fria.

roosevelt e os Açores em livro

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 200946

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Apresentação do livro Carlucci vs. Kissinger: Os EUA e a Revolução Portuguesa

um olhar sobre a revolução de Abril a partir de Washington

Com o desafio em mente, e sem a pretensão de sistematizar uma vez mais o processo de transição iniciado pelo 25 de Abril de 1974,

Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá partiram para o terreno e investigaram.

POR mArCo Leitão siLvA

À distância de mais de trinta anos, é hoje conhecido o profundo interesse que a alvo-rada democrática portuguesa teve em Washington. Entre dúvidas e receios, os Estados Unidos acompanharam de perto os primeiros passos da “ebulição democrá-tica” portuguesa. Para a História, ficou o famoso conflito entre o antigo embaixador dos Estados Unidos em Portugal, Frank Carlucci, e o secretário de Estado norte- -americano, Henry Kissinger, com olhares díspares sobre o futuro (ainda) incerto do sistema político português.

Conhecer as preocupações e diferendos suscitados na Casa Branca pela afirmação das forças revolucionárias de esquerda (durante o célebre Verão Quente de 1975),

abre por isso mesmo caminho a uma nova perspectiva, vinda de fora, acerca da alvo-rada democrática em Portugal. Com o desa-fio em mente, e sem a pretensão de sistematizar uma vez mais o processo de transição iniciado pelo 25 de Abril de 1974, Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá partiram para o terreno e investiga-ram. Com base em material de arquivo nacional e norte-americano, os dois auto-res reconstituíram os traços essenciais do diferendo entre o embaixador Frank Carlucci e o secretário de Estado Henry Kissinger: Carlucci, mais optimista em rela-ção ao futuro da democracia portuguesa, e Kissinger, céptico face a um processo conduzido pela esquerda revolucionária,

que poderia colocar Portugal sob influên-cia soviética, num mundo então bipolar, marcado pela Guerra Fria.

Assim nasce a obra Carlucci vs. Kissinger: Os eUA e a Revolução Portuguesa, editada pela Dom Quixote. Reconhecendo o valor da obra, a FLAD propôs-se promovê-la numa sessão de apresentação pública.

Rui Machete, presidente da FLAD, marcou presença na sessão e deixou elogios àquilo que considerou ser um “excelente trabalho de investigação”, dada a luz que lança sobre aspectos até agora desconhecidos, tomando como exemplo os juízos de valor tecidos pela Administração norte-americana acerca da condução do processo revolucionário. Sobre o diferendo entre Carlucci e Kissinger, Rui Machete não tem dúvidas: é o embai-xador quem “acaba por ganhar a aposta” sobre o futuro da democracia portuguesa. Afinal, “Mário Soares não foi o Kerenski da revolução, como Kissinger profetizava”. Um comentário que fez sorrir o antigo Presidente, também presente na sessão de apresentação da obra.

Mas onde uns viram conflito, outros inferiram meras divergências. Jaime Gama, presidente da Assembleia da República, acredita que não terá havido propriamente um conflito entre Carlucci e Kissinger, mas apenas uma divergência de posições. Convidado especial para a apresentação da obra, Jaime Gama con-fessou-se espantado com o tipo de mate-riais a que os dois investigadores tiveram acesso. Com a ajuda do arquivo norte-americano, Tiago Moreira de Sá e Bernardino Gomes consultaram registos de conversas telefónicas, transcrições de conversas de gabinete e outros documen-tos que fazem parte do segredo de Estado Carlos Gaspar (ipri), rui machete (FLAD) e o ministro dos negócios estrangeiros Luís Amado.

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– elementos documentais que traduzem o íntimo funcionamento do sistema polí-tico norte-americano. “Os únicos segre-dos acabam por estar na cabeça daqueles que dirigem”, ironizou Jaime Gama.

Ao expor os meandros do acompanha-mento norte-americano do processo revo-lucionário, com base em documentos até hoje desconhecidos, Tiago Moreira de Sá diz ter compreendido agora a “complexi-dade da tarefa dos protagonistas” da tran-sição democrática. E já de olhos postos em 2009, o investigador do Instituto

Português de Relações Internacionais (IPRI) deixou um apelo: “Os 35 anos da revolução [de 25 de Abril de 1974] vão ser uma boa oportunidade para tornar a História da democracia portuguesa um pouco mais conhecida.” Ao colega inves-tigador, Bernardino Gomes deixou tam-bém elogios sentidos.

Sobre as divergências entre Carlucci e Kissinger que serviram de mote ao livro, Bernardino Gomes deixou uma citação do embaixador, proferida no Congresso durante o período de transição democrá-tica – um exemplo do optimismo que Carlucci quis transmitir à Administração norte-americana, face ao futuro político português: “Tem sido uma experiência inspiradora ver um país a emergir de 50 anos de ditadura, estar ao pé de uma nova fase de totalitarismo [período do PREC] e recuperar por vontade do povo […] É um caso único na História do mundo.” Acompanhando de perto a definição do sistema político, Washington acabaria por influenciar também o rumo de Portugal. Afinal, diz Carlos Gaspar, director do IPRI, “se a política norte-americana [em relação a Portugal] tivesse sido diferente, o des-fecho democrático da revolução poderia não ter existido”.

Para a apresentação do livro foi convi-dado o ex-embaixador dos Estados Unidos em Portugal, Frank Carlucci, que não pôde contudo estar presente, tendo ainda assim enviado aos autores uma mensagem, cujo conteúdo Rui Machete revelou: “O livro é um relato apaixonante e factual. Foi muito interessante para mim ler telegra-mas que fiz… E ainda mais interessante ler as observações depreciativas que o Henry [Kissinger] fez sobre mim.” Um conflito que ficou para a História de Portugal e dos Estados Unidos. Um olhar sobre a alvorada da democracia portugue-sa, a partir do outro lado do Atlântico, agora registado em livro por Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá.

‘ tem sido uma experiência inspiradora ver um país a emergir de 50 anos de ditadura, estar ao pé de uma nova fase de totalitarismo e recuperar por vontade do povo […] é um caso único na história do mundo. ’

paralelo [p] o que foi que mais o surpre-endeu na investigação que fez para esta obra?tiago moreira de sá [tms] A ligação inten-sa e constante dos Estados Unidos aos militares moderados, e em particular a Melo Antunes e ao seu grupo, foi uma dessas revelações: os Estados Unidos che-garam até a prometer apoio militar aos militares moderados, caso tal fosse neces-sário, por altura do �5 de Novembro! Para além disso, surpreendeu-me o facto de a perspectiva de Kissinger ter sido muito mais do que uma simples teoria: foi de facto uma política que, em determinado momento, idealizou para Portugal. Um outro aspecto tem que ver com o papel- -chave desempenhado por Donald Rumsfeld (na altura chief of staff do Presidente Ford), que permitiu o acesso e o apoio directos da Casa Branca a Carlucci.[p] Do “mano a mano” entre Carlucci e Kissinger, quem saiu vencedor?[tms] Tendo em conta o resultado final para a democracia em Portugal, diria que Carlucci foi vencedor, no sentido em que a estratégia por ele defendida para o nosso país acabou por se concretizar, ou seja, a vitória da via democrática em Portugal.

Entrevista a Tiago Moreira de Sá

os autores do livro, bernardino Gomes (à esq.) e tiago moreira de sá entre o casal soares.

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A “caixa de ferramentas” do diplomata

A Comunidade das democracias lançou nos estados Unidos um manual destinado a diplomatas com o objectivo de os ajudar na promoção da democracia,

enquanto no desempenho das suas funções junto de nações cujas forças vivas aspirem a viver num regime pluripartidário.

POR FiLipe vieirA*

A Comunidade das Democracias, uma organização internacional que congrega 125 países de vários continentes, lançou nos Estados Unidos um manual destinado a diplomatas com o objectivo de os ajudar na promoção da democracia, enquanto no desempenho das suas funções junto de nações cujas forças vivas aspirem a viver num regime pluripartidário. O evento teve lugar na Embaixada de Portugal, país que preside actualmente à Comunidade

e que será igualmente o Estado anfitrião de uma cimeira ministerial marcada para o Verão de 2009, em Lisboa.

Com um prefácio de Vaclav Havel, o arquitecto da “Revolução de Veludo” na República Checa, o manual é considerado a “caixa de ferramentas” dos diplomatas e baseia-se em múltiplas experiências vivi-das em experiências bem-sucedidas de transições para a democracia na Ucrânia, no Chile, na África do Sul, na Serra Leoa

e na Tanzânia.Como sublinhou João de

Vallera, o embaixador de Portugal, durante a sessão de lançamento, “o manual reconhece que a democracia não pode ser exportada ou importada, mas que tem que ser desenvolvida pelos cidadãos dos países em causa”. Vallera sublinhou, a propósito, que “tanto a sociedade civil como os governos podem beneficiar da utilização do manual, obtendo um melhor conhe-cimento do que podem esperar dos diplomatas, que na diplomacia pública dos dias de hoje representam também eles as suas pró-prias sociedades civis”. Este conceito foi reafirmado durante a intervenção de Paula Dobriansky, a subse-cretária de Estado america-na para a Democracia e Questões Globais, uma das mais influentes personalida-

des do gabinete de Condollezza Rice. A premissa perfilhada pela Comunidade das Democracias e expressa por Bronislaw Mistzal, director do Secretariado Permanente da organização, é a de que “nos nossos dias, a diplomacia em demo-cracia deve reflectir os valores fundamen-tais” e a de que os diplomatas “são emissários não apenas dos chefes de Estado, mas também dos povos das suas democracias”.

O objectivo último deste Manual do diplomata para o Apoio ao desenvolvimento da democracia é o de treinar o corpo diplomá-tico dos países membros. A ideia inicial foi lançada pelo embaixador americano Mark Palmer, com base na sua experiência na Hungria durante a transição daquele país do comunismo para a democracia. O projecto acabou por ser concretizado por uma equipa liderada pelo diplomata canadiano Jeremy Kinsman em parceria com a Escola Woodrow Wilson de Serviços Públicos e Internacionais, da Universidade de Princeton. Kinsman pretende a cola-boração futura do Colégio da Europa, em Bruges, tendo em vista a realização de dois workshops regionais.

* Jornalista em Washington dC

‘os diplomatas “são emissários não apenas dos chefes de estado, mas também dos povos das suas democracias”. ’

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No dia 27 de Setembro de 1957, a ilha açoriana do Faial acordava em sobressalto. era a erupção de um vulcão, no mar, perto dos Capelinhos. durante um ano, erupções vulcânicas e tremores de terra ameaçaram a região. As cinzas cobriram plantações e os

terramotos destruíram aldeias, deixando mais de um milhar de pessoas sem tecto.Ninguém morreu, o que muitos consideraram um milagre.

e uma nova vida nasceria...

POR CLArA pinto CALDeirA

A tragédia dos Capelinhos, relembrada em várias cerimónias e comemorações o ano passado, foi um marco na história dos Açores. É este acontecimento que abre as portas para uma nova vaga de emigração para os Estados Unidos, numa escala sem precedentes.

Há cinquenta anos, o impacto de um acontecimento geológico que arrasou casas e destruiu os meios de subsistência agrícolas, foi devastador. Uma pequena

ilha portuguesa, rural e pobre, tornou-se alvo de muitas atenções. Mota Amaral, presidente do Governo Regional dos Açores entre 1976 e 1995, embora muito novo na época, lembra que “durante semanas e meses, os Açores foram notícia, com direito a reportagens na imprensa internacional. Muitos cientistas do ramo visitaram o vulcão, que se tornou uma espécie de laboratório natural”. Gerou-se

também uma enorme onda de solidarie-dade em todos os açorianos e nas comu-nidades emigrantes. São precisamente as comunidades residentes nos Estados Unidos que levam a cabo um movimen-to de sensibilização que chegará ao Senado, envolvendo o futuro Presidente John F. Kennedy, num tempo em que um acordo formal sobre a permanência ame-ricana nas Lajes estava a ser negociado.

os Capelinhose a emigração açoriana

Aprovado o Azorean refugee Act, muitos tentaram embarcar no primeiro avião para os estados unidos(foto de Alfredina silva, no livro Capelinhos: A Volcano of Synergies).

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históriA De umA LeiAs condições de vida difíceis tornaram as gentes açorianas emigrantes desde o século XIX. Os Estados Unidos eram um dos destinos preferenciais, tal como o Canadá e o Brasil. Mas se a seguir à ratificação da Constituição americana a abertura à emi-gração era considerável, num país ainda em construção, o século XX inaugura as restrições mais severas à chegada de estran-geiros, sobretudo depois da I Guerra Mundial. Nativos estabelecidos receavam a chegada de ideais diferentes, como o comunismo e o socialismo, e os sindicatos da indústria viam na mão-de-obra barata uma ameaça às suas reivindicações laborais. Deste contexto resulta, nos anos de 1920, a aprovação do sistema de cotas, que limi-ta a imigração a 150 mil europeus por ano. A cota era estabelecida por naciona-lidade: cada país tinha direito à entrada de dois por cento do número total de cida-dãos seus já residentes nos Estados Unidos. Quando o vulcão dos Capelinhos assola o Faial, apenas 400 portugueses tinham aces-so garantido ao sonho americano.

Mais próxima do pesadelo, a época é particularmente dura nos Açores. Mota Amaral afirma: “As décadas de 50 e 60 foram de grandes dificuldades económi-

cas nos Açores, com falta de emprego e salários muito baixos.” Em pleno Estado Novo, as ilhas continuam a carecer de desenvolvimento e o iso-lamento é muito sentido. Entre os anos de 1920 e 1950, a população do arquipélago aumentou em cerca de 100 mil, fixando--se nas 328 mil pessoas, o que agravava as condições de sobrevivência.

Os acontecimentos nos Capelinhos extremam uma situação já muito complica-da. A resposta da comuni-dade açoriana nos Estados Unidos é imediata. Atentos à evolução do ano negro, através da imprensa luso-ame-ricana e por correspondência com familia-res, iniciam um processo de sensibilização política, reunidos em torno de Joseph Perry Jr., representante do Estado eleito por Rhode Island, do Partido Democrata, americano descendente de faialenses. Congressistas e senadores de estados com população portuguesa foram inundados por cartas e telegramas, e nem o Presidente Eisenhower pôde ficar indiferente. É então que John Pastore, amigo pessoal de Joseph

Perry Jr., leva ao Senado uma proposta que autorizava vistos à população afectada pela tragédia dos Capelinhos.

Neste processo, emerge um apoiante determinante: John F. Kennedy, senador de Massachusetts, futuro Presidente dos Estados Unidos. Conhecido pelas suas posi-ções anticotas, viria mesmo a publicar nesse ano um pequeno ensaio sob o título A Nation of Immigrants, em que defendia a abolição daquele sistema, argumentando que “não respondia às necessidades nacio-nais nem garantia os objectivos interna-cionais numa era de interdependência entre nações”. No Senado, defende a tra-dição hospitaleira do país, e acrescenta:

o vulcão em actividade há cinquenta anos (foto de manuel Cristiano da silva, no livro Capelinhos: A Volcano of Synergies).

‘nativos estabelecidos receavam a chegada de ideais diferentes, como o comunismo e o socialismo, e os sindicatos da indústria viam na mão-de-obra barata uma ameaça às suas reivindicações laborais. ’

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 51

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“Este é um caso trágico que merece aten-ção em todos os sentidos, particularmen-te porque as pessoas dos Açores provaram já ser excelentes cidadãos.” O senador Hagen, também apoiante da medida, fala assim dos açorianos: “Quase sem excep-ção, são pessoas de grande carácter e capacidade de realização. Subscrevem os princípios do nosso governo e institui-ções económicas. São diligentes. Gostam de aprender.” Vários senadores, entre os quais Kennedy, sublinham ainda a exis-tência de boas relações entre Portugal e os Estados Unidos.

As relações entre os dois países são mar-cadas, desde sempre, pelas questões atlân-ticas. Durante a I Guerra Mundial, os americanos estabeleceram uma base naval em Ponta Delgada, apenas para fins mili-tares. A partir da II Guerra Mundial insta-lam-se nas Lajes de forma informal. O primeiro acordo começa a desenhar-se ainda bilateralmente, antes do tratado da Aliança do Norte, em 1949. Depois, em 1951, e já nas duas plataformas negociais, os americanos estabelecem um acordo provisório com Portugal, que se vai esten-dendo ao longo de seis anos. Em 1957, quando a Natureza mostra a sua fúria, os políticos ainda tentavam entender-se, em condições difíceis de harmonizar. Medeiros Ferreira, açoriano, professor universitário na área da História das Relações Inter- nacionais e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, situa o processo legislativo americano sobre a imigração neste âmbi-to: “A erupção dos Capelinhos vai dar a oportunidade, que considero sincera, mas que se pode englobar nesse contexto, de os EUA mostrarem que estão atentos e

solidários com a dimensão civil e huma-na das relações luso-americanas.”

The Azorean Refugee Act, aprovado a 2 de Setembro de 1958, concedeu vistos a 1500 famílias. Dois anos depois, uma actua -lização da medida concedeu mais 500 vistos. “Se tivéssemos ficado, a pobreza perseguia-nos para o resto da vida. Foi uma coisa má que se tornou boa.” As palavras são de Leonilda Andrade, da Praia do Norte, uma das seis mil pessoas que se estima terem saído do Faial entre 1958 e 1960. E não só faialenses emigraram. Todas as ilhas beneficiaram da abertura à imigração, com o apoio do governador da Horta Freitas Pimentel, mas com alguma resis-tência de Salazar, que tentou, com pouco sucesso, cooptar pessoas para as colónias.

A lei de 1958 é considerada o primeiro passo rumo à grande reforma de 1965, que aboliu as cotas de emigração, já sob a égide do Presidente John F. Kennedy, com reflexos profundos nos Açores.

A emiGrAção AçoriAnA: um retrAto em evoLuçãoDesde os Capelinhos, até à década de 1980, a emigração açoriana para os Estados Unidos não parou de crescer. Nesta época, a população no arquipélago diminuiu um terço. Só no final da década de 1970 se verifica um abrandamento da chegada de açorianos aos Estados Unidos.

Mota Amaral aponta alguns factores explicativos: “A arrancada do desenvolvi-mento nos Açores, com a implantação do regime autonómico democrático, modi-ficou as expectativas.” A importância dos fundos europeus para o desenvolvimento

da região e a evolução da própria socie-dade americana também contribuíram para o país deixar de ser visto como a terra da abundância.

Embora a emigração tenha abrandado, a população portuguesa nos Estados Unidos não parou de crescer, engrossada pelas segunda e terceira gerações. Neste momen-to, cerca de um milhão de pessoas de ori-gem portuguesa vive nos Estados Unidos, e cerca de metade provém dos Açores.

Os níveis de educação dos portugueses emigrados têm vindo a melhorar, embo-ra seja no ensino universitário que o cami-nho ainda está por percorrer. Medeiros Ferreira salienta o seguinte: “Há duas ou três universidades na Costa Leste que têm departamentos de estudos portugueses e que têm bastante visibilidade desse ponto de vista. Começa a haver uma maior inte-gração universitária.”

A nível económico, as pessoas de ori-gem portuguesa têm rendimentos fami-liares 10 por cento superiores aos da população em geral e a percentagem de pobreza é menor.

Para a elaboração deste artigo foi consul-tado o livro Capelinhos: A Volcano of Synergies, Azorean emigration to America (2008), Tony Goulart (coord.), São José, Califórnia: Portuguese Heritage Publications of Califórnia.

Kennedy recebendo uma placa de agradecimento como símbolo de gratidão dos faialenses(foto de António rosa Furtado, no livro Capelinhos: A Volcano of Synergies).

Carmen monteiroA erupção dos Capelinhos acabou com a vida tal como a conhecíamos no Capelo. Fomos enviados para a Horta, para viver em asilos, depois para uma aldeia vizinha […] A minha mãe, Olívia, escreveu para a prima na América, que tinha visto uma vez há vinte anos atrás, para lhe pedir patro-cínio à nossa emigração. Nunca tínhamos saído da pequena ilha do Faial, e muito menos viajado num avião, mas aí estáva-mos nós a partir de avião para uma nova vida nos Estados Unidos.

miguel Canto e CastroEu vivia em Los Banos há quatro anos quando a primeira vaga de imigrantes dos Açores chegou a Merced County. Estávamos em 1959. A cidade de Los Banos recebeu cerca de 1� famílias de sinistrados, da ilha do Faial. Começaram a trabalhar em leita-rias e como ajudantes das vacarias logo que chegaram.

TESTEMUNHOS

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 20095�

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“Tenho prazer de viver, e vivo bem de muitas maneiras.”

POR sóniA GrAçA*

Luís dos santos Ferro ou a engenharia das artes

O encontro foi no Grémio Literário, ine-vitavelmente. Ali, está em casa, o halo de Eça permeando as salas que sabe de cor. “Era aqui que eles, Os Vencidos da Vida, vinham muito.” Na biblioteca, prontamen-te reservada após o jantar, o serão não teve pressa. Amável, urbano, sem pedantismos – assim se nos apresenta Luís dos Santos Ferro, engenheiro de formação que um

decisivo pendor artístico consagrou, meta-de da carreira, à cultura. O ex-director da FLAD aceitou falar de si à Paralelo. Que falem dele. “Uma extravagância! Caí das nuvens…”

Nascido a 12 de Julho de 1939 em Lisboa, Luís Ferro é bafejado pelo amor exclusivo dos pais, com quem divide morada largos anos na Rua do Andaluz.

O primeiro ciclo de sete anos no Liceu Camões revela um aluno próspero, com jeito para as línguas, em especial o francês, que apura na Alliance Française. Em casa, o pai, professor de Letras, corrige a arit-mética e sugere leituras; a mãe, devotada ao lar, aplana a disciplina com uns lances sobre o piano. Curioso por natureza, Luís Ferro correspondia e, aos 16 anos, vence

em 1972, no aeroporto de Lisboa, com o pianista Arthur rubinstein, a marquesa de Cadaval e nella rubinstein.

EDUARDO G

AGEI

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Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 53

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um concurso da Alliance com um ensaio precoce sobre L’existentialisme est un Humanisme, de Sartre, que o leva a Paris.

Mas o verdadeiro apelo era o da ciência, o da experimentação. “Nunca quis ser filósofo ou professor de literatura”, sin-tetiza. Dispensado do exame de admissão, escolhe em 1956 o Instituto Superior Técnico para cursar Engenharia Químico--Industrial, num tempo em que os caloi-ros eram recebidos com um concerto da Orquestra Sinfónica Nacional. Entre a teo-ria e o laboratório, Luís Ferro volteia toda a matemática que sabia. Em Química Analítica, arrebata 18 valores, convencen-do Fraústo da Silva, à data professor assis-tente, que lhe captou outros interesses: “Era inteligente e trabalhador, mas estava apaixonado pela arte e pela música. Em parte talvez por minha culpa, que também sou devoto de ópera.”

Embalado pela Emissora Nacional, vai ao São Carlos noites sucessivas, já então seduzido por Mozart e Wagner: primeiro com bilhetes de claque, mais tarde con-vidado assíduo para o camarote de críti-ca do musicólogo João de Freitas Branco. João Furtado Coelho, colega de curso e professor jubilado de Matemática, era cúmplice na afinidade: “Gostávamos de música clássica, de ir a exposições e temos em comum um certo sentido de humor.” A camaradagem flui na Juventude Musical Portuguesa, espécie de conser-vatório laico que trazia ao Tivoli notáveis artistas internacionais a baixos cachets. Eleito secretário-geral entre 1963 e 1975, Luís Ferro alarga repertórios e cresce como auditor, sob a pedagogia amiga de Freitas Branco, que também colaborava na revista Arte Musical.

Em 1960 e no ano seguinte, estagia em dois laboratórios nos arredores de Paris, e trava conhecimento com Louis de Broglie, Nobel de Física; pretexto suficien-te também para investigar Eça de Queirós, eterno ideal literário, e recuperar locais biográficos. Philippe Mayer, proprietário da primeira casa do escritor em Neuilly--sur-Seine, deixa-se cativar pelo jovenzi-nho e, décadas mais tarde, dá-lhe permissão para ali colocar uma placa comemorativa do 150.º ani-versário do nascimento de Eça – descerrada por Jorge Sampaio e patrocinada pelo Grémio. Em 1996, era Sarkozy maire de Neuilly. “Fez os contactos e prepa-rou tudo com minúcia”, atesta José Manuel dos Santos, à data assessor de Sampaio para os assuntos

culturais. “Tem uma memória histórica, um sentido da tradição e gosta dos peque-nos e grandes rituais.”

Isso era evidente já em 1961, quando se soube que a última morada, onde Eça faleceu, estava ameaçada. De volta a Portugal, todo espírito de missão, escre-ve um artigo alarmado no diário de Lisboa e remete-o à filha do escr itor, D. Maria Eça de Queiroz, que vivia em Tormes. Rápida sintonia entre duas gera-ções, desfiam memórias à lareira e trocam correspondência até 1970, ano em que faleceu a guardiã do espólio. “Nunca esti-ve tão perto do Eça como nessa altura. Conheci manuscritos que ninguém mais conheceu pela simples razão de que ela confiou em mim.” Mais tarde escreveria um longo artigo evocativo para o dicionário compilado por Alfredo Campos Matos, outro queirosiano de quem, nos idos de 1960, se fez amigo e interlocutor privi-legiado: “O coleccionismo e a bibliofilia são duas facetas dessa paixão. Uso muitas vezes o arquivo dele para trabalhos que vou publicando.” Sintra era o cenário de muitos serões de tertúlia e música, ambos vizinhos em casas alugadas (todas as férias e fins-de-semana) pela marquesa de Cadaval – na sua residência, entre jan-tares e concertos, perambulavam artistas de todo o mundo e inclusive o último rei de Itália, Humberto II. Graças a ela, Luís Ferro depura o humanismo e a melomania: “Era o testemunho vivo de uma história, tinha antepassados gran-diosos. Através dela conheci figuras como Rubinstein, Rostropovitch, Barenboim ou Jacqueline du Pré.”

o treino DA enGenhAriAEm 1963, deixa o Instituto Superior Técnico com uma média de 15 valores. A disciplina serviu-lhe de base para a boa performance, primeiro no Laboratório de Física e Energia Nuclear; depois na Sociedade Nacional de Sabões, onde se mantém até 1980 à frente dos Estudos e Projectos, lado a lado com o proletariado. O director técnico, Luís Núncio, tinha nele um colaborador de ouro: “Era muito per-feccionista. Até as saídas preparava com grande precisão, os hotéis sempre bem escolhidos.” O fascínio das viagens e um pensamento ecuménico cedo se revelaram. “Tem uma paixão particular por Veneza e orientou-me na primeira visita, há mui-tos anos. Também foi através dele que conheci René Huyghe, no Grémio, e

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quando expus pintura nos Estados Unidos, em 1983, não deixou de me dar contac-tos interessantes”, testemunha o pintor e amigo de infância Eduardo Nery.

Instalado o PREC (Processo Revolucionário em Curso), com os patrões desorientados, os salários estagnam. Ferro não se acos-tuma e sai, com brio: “Cheguei a partici-par numa greve, coisa impensável para os engenheiros! No fim, tive direito a um louvor da comissão de trabalhadores.” Os cinco anos seguintes, passados na empresa Lorilleux Lefranc, seriam os der-radeiros como engenheiro.

A mudança nunca lhe foi penosa, sobretudo porque a intuía e preparava. Em 1985, torna-se evidente que a sua é uma rara história feliz em que uma escolha não elimina definitivamente outra. Tinha acabado de ouvir falar da FLAD quando, nesse Outono, Teresa Gouveia, recém-eleita secretária de Estado da Cultura de Cavaco Silva, o convida para seu chefe de gabinete: “Escolhi-o pelas qualidades de carácter

Com saul bellow, nobel da Literatura, e bernardino Gomes no auditório da FLAD.

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santos Ferro (o primeiro à esquerda) com um grupo de músicos de várias nacionalidades no Congresso da Juventude musical, em Florença, 1971. o segundo a contar da direita é o maestro álvaro Cassuto.

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e pela inteligência. É uma pessoa culta, bem relacionada no meio e é meu amigo.” Durante um ano, garante todos os despachos e lança speeches precursores sobre mecenato, que seria lei em Agosto de 1986. “Ajudou-me a preparar e a lançar todo esse sistema”, destaca Teresa Gouveia. A indiferença política é nele, mais do que nunca, sinónimo de eficá-cia e subtileza. “Numa relação que tanto podia dar ensejo à concórdia como à discórdia, os nossos tempos na Secretaria de Estado serviram para cimentar um reencontro permanente e fraternal que se prolongou até hoje”, certifica Manuel Villaverde Cabral, então director da Biblioteca Nacional, salientando: “Profissional rigoroso e penetrante, o Engenheiro continua a ser, para mim, de conselho sempre útil e fiável.” “Está lá, chefe Luís?” – dirige-se-lhe o amigo e historiador José-Augusto França, à data comissário da Exposição de Arte Portuguesa do Século XIX (Paris), que aproveita a ocasião para exercitar a cum-plicidade: “Tem um humor queirosiano muito interessante, uma ironia latente e um pessimismo activo.” Demais ami-gos ouvidos pela Paralelo são unânimes neste capítulo.

o FLoresCer nA FLADChamado a concurso na FLAD, Bernardino Gomes, administrador até 2003, cede ao currículo e às referências: “Uma pessoa inteligente e articulada. Muitos me diziam que era formidável, organizado e interes-sado em questões culturais.” Luís Ferro esteve com ele na definição de políticas para a cultura, um dos sectores menos financiados. No seu gabinete, com vista para o Tejo, incontáveis foram os projectos que estudou e as bolsas de estudo que ajudou a confiar ora a americanos que vinham, ora a portugueses que iam. A Gulbenkian partilhou, por exemplo, o apoio a estudos portugueses em univer-sidades americanas: “Telefonava-me quan-do chegava um pedido que dissesse respeito a ambas as fundações. Falávamos de forma franca e chegámos sempre a acordo”, diz João Pedro Garcia, director do Serviço Internacional da Gulbenkian, fixando um pormenor curioso: “Após vinte e cinco anos de contactos, sugeriu que nos tratássemos por tu. Fiquei muito orgulhoso.” Teresa Alves, académica da Faculdade de Letras, viu apoiadas pela FLAD três sabáticas num programa de in-tercâmbio de docentes com a Georgetown University: “Somos hoje a única facul-dade que oferece uma licenciatura em

estudos norte-americanos. Não fosse o Engenheiro e isto não existia.”

Além da Colecção de Arte, eminentes foram os projectos das fundações de Serralves e Vieira da Silva – artista de quem Luís Ferro é amigo desde os está-gios em Paris. “Era o elo de ligação, foi a Paris sondar-lhe a adesão e falou com historiadores para o catalogue raisonné”, des-taca Marina Ruivo, directora da Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva. Numa das viagens, Bernardino Gomes recorda-se de um desvelo invulgar: “A Vieira pediu que levássemos urze de Sintra. Não sei como é que o engenheiro conseguiu, mas fomos com urze no avião.” Em duas déca-das, muitas personalidades foram rece-bidas na Fundação, entre elas, George Steiner, em 2002, encontro convertido em amizade.

Bernardino Gomes não hesita na retros-pectiva: “É muito interessante nele a trans-formação de uma visão clássica em algo mais avant-garde. Não se pode pensar hoje na FLAD sem pensar no trabalho dele e na capacidade intelectual indiscutível. Era paciente, sabia dizer não com elegância.” Teresa Gouveia corrobora: “Tem a coragem moral e a generosidade de dizer sempre a verdade, por mais difícil que seja, e isso é uma qualidade raríssima.”

O hoje consultor da FLAD retempera-se na música (tem um camarote no São Carlos que partilha com Teresa Gouveia e outros amigos) e na bibliofilia – quer “reler”. Aqui e ali, bustos omnipresen-

tes de Eça, fotografias dedicadas de Soares e de Sampaio (cujas comissões de honra apoiou, embora sempre apar-tidário), medalhas sucessivas. E, inespe-rada, uma parede coberta de nus femininos desvendando um refinado hedonismo. “Tenho prazer de viver, e vivo bem de muitas maneiras.” * Jornalista do semanário Sol

Sócio desde 1971, Luís Ferro integra o Conselho Literário há treze anos e frequentemente substitui José-Augusto França na presidência, quando este se ausenta a Paris. Além de conferências, encontros com escritores e apresentações de filmes, o núcleo trata de organizar a cerimónia anual de aniversário do Eça. Expressivo tem sido também o papel do engenheiro na internacionalização do Clube. “Graças a ele, temos hoje cerca de 135 clubes estrangeiros com quem nos correspondemos. É um sócio cheio de iniciativa”, diz o actual presidente Macedo e Cunha.

Internacionalização do Grémio Literário

Com José-Augusto França no museu Angers, em França (outubro de 2000).

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obama ou mcCain

quem elegeram os media para a presidência?

Há muito que se questiona a influência dos media em períodos eleitorais. Até que ponto são os jornalistas e os comentadores responsáveis

pela eleição dos governantes.

POR susAnA sALGADo*

Será que as diferenças no tratamento jor-nalístico das várias candidaturas influen-ciam as vitórias e as derrotas dos candidatos? Estudos sobre a cobertura jor-nalística das campanhas como o do Pew Research Center dão pistas que ajudam a compreender o tema.

Após a derrota nas eleições presidenciais contra Ronald Reagan, em 1984, Walter Mondale convocou uma conferência de imprensa para anunciar o seu afastamen-to da política e aconselhar o seu partido a não voltar a nomear um candidato sem perfil mediático. Mondale interpretou os resultados eleitorais através das opiniões dos comentadores e dos jornalistas que apontavam a sua “imagem pouco apelati-va” como a principal causa da derrota.

Para tentar explicar situações como esta e compreender a influência dos media na escolha dos candidatos, vários estudiosos têm-se dedicado ao estudo do papel que os media desempenham nas eleições. Actualmente, os media são a principal fonte de informação política para a grande maioria dos cidadãos e não só divulgam a informação sobre a campanha e os can-didatos, como também a seleccionam, tratam, reorganizam e comentam.

Apesar de ainda persistir alguma falta de consenso em relação ao grau de influência dos media, uma vez que – entre outras razões – é bastante difícil estabelecer uma relação directa entre a exposição aos media e a alte-ração do comportamento eleitoral, pois este pode ser influenciado por inúmeros outros factores, é relativamente consensual entre vários autores que os media influenciam, pelo menos, a percepção dos contextos em que as decisões são tomadas.

Noelle-Neumann, por exemplo, no seu livro A espiral do Silêncio (1980) chamou a atenção para a influência do clima da opinião sobre as decisões das pessoas e defendeu a importância desta pressão da opinião dominante, dada a natureza social das pessoas e o seu receio de isolamento. Ora, são os media que, para além de infor-marem sobre os candidatos e as suas

propostas, dão informação sobre as posi-ções existentes, através da divulgação de sondagens e da interpretação que os jor-nalistas e os comentadores fazem dos vários eventos da campanha e do desem-penho dos candidatos.

os CAnDiDAtosCom o objectivo de caracterizar a forma como os media trataram as candidaturas presidenciais de 2008, o estudo realizado pelo Pew Research Center através do Project for Excellence in Journalism ana-lisou a cobertura jornalística da campanha

durante seis semanas, o período entre as convenções e o último debate presidencial (de 8 de Setembro a 16 de Outubro), num total de 2412 peças jornalísticas prove-nientes de 48 órgãos de informação.

Os dados analisados apontam para a exis-tência de dois fenómenos na cobertura mediática. O primeiro relaciona-se com táctica e estratégia e explica que o candi-

dato que foi visto como o vencedor teve uma cobertu-ra noticiosa mais favorável. O segundo aponta para o efeito de reforço e de eco dos media, e está intimamen-te relacionado com o peso que as sondagens têm nas campanhas. A divulgação de estudos de opinião quase diariamente conduz a que o impacto de praticamente todos os acontecimentos seja medido e depois anali-sado pelos media. Cada acon-tecimento ou declaração da

campanha eleitoral tem, neste sentido, três ecos: primeiro, realiza-se a cobertura noti-ciosa que dá a conhecer o que aconteceu; depois, o efeito é medido através dos estu-dos de opinião; e, por fim, as reacções às sondagens são conhecidas, examinadas e comentadas. Todo este processo acaba por ampliar a relevância de alguns factos e declarações e essa selecção é, em grande medida, realizada pelos jornalistas. Este tipo de efeito está geralmente presente no trabalho dos media, mas ganha uma espe-cial importância em contextos eleitorais, devido à divulgação quase permanente de sondagens.

‘os media têm tendência para enquadrar a cobertura das eleições como narrativas de competição e baseiam-se nos resultados das sondagens para apresentar os candidatos e tratar as suas imagens e mensagens. ’

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Não é por acaso que quando são analisa-dos os temas das peças jornalísticas verifica- -se que a maioria foca o carácter, o passado e o desempenho dos candidatos nos eventos da campanha e nas sondagens.

No entanto, nesta campanha, a crise financeira e o estado da economia impediram que a cobertura jornalística se centrasse quase exclusivamente nos aspectos estratégicos da campanha e na competição entre os candidatos. Estes últimos assuntos estiveram presentes na maioria das peças jornalísticas, mas contrariamente a eleições anteriores essa presença foi menor e isso deveu-se à atenção atribuída ao tema “econo-mia”. De qualquer forma, os valores do estudo apontam para cerca de 53 por cento da cobertura jornalística centrada em Politics, isto é, as estratégias, as tác-ticas e o desempenho dos candidatos nas sondagens de opinião, e apenas 20 por cento sobre Policy, o que significa

o noticiar dos temas mais importantes para o país no momento da eleição e as propostas dos candidatos para os ultrapassar. É interessante referir neste contexto que autores como Iyengar e Kinder (News that Matters: Television and American Opinion) defendem que os assuntos enfatizados nos media durante a campanha eleitoral, são os mesmos que as pessoas usam para avaliar os diferentes candidatos e as suas propos-tas eleitorais.

houve FAvoreCimento?Em Setembro, devido à situação preocupan-te de dois dos maiores bancos de investi-mento, o Lehman Brothers e o Merrill Lynch, e da seguradora AIG, a cobertura jornalística sobre a crise financeira e a eco-nomia subiu de quatro para 40 por cento e o estudo do Pew Research Center demons-trou ainda que simultaneamente a cobertu-

ra positiva da candidatura de Barack Obama também aumentou, o que significa que a crise acabou por favorecer a candidatura democrata. Por um lado, Obama representa a oposição às políticas seguidas pelo actual Presidente, mas, por outro, os esforços de John McCain para se associar à resolução da crise, chegando a anunciar a suspensão da campanha e a tentar cancelar o primeiro debate presidencial, acabaram por ser pre-judiciais à sua imagem.

McCain teve nesta altura mais cobertura mediática que Obama, mas essa maior visibilidade foi essencialmente negativa. De facto, mais notícias não significaram boas notícias para o candidato republica-no. E quando o tema das notícias foi a economia, McCain teve uma cobertura mais negativa (55 por cento) que positi-va (15 por cento), enquanto a tendência foi oposta para o seu adversário – Obama teve uma cobertura mais positiva (36 por cento) que negativa (23 por cento).

os assuntos enfatizados nos media são os mesmos que as pessoas usam para avaliar os candidatos.

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Estes valores chamam também a atenção para a importância dos enquadramentos que os jornalistas escolhem quando dão notícias acerca dos candidatos. Os enqua-dramentos jornalísticos encorajam deter-minadas percepções e interpretações e são uma forma, entre outras, de olhar para a realidade e de arrumar a cobertura noti-ciosa, organizando, assim, o mundo tanto para os jornalistas que escrevem as notí-cias, como para os leitores dessas notícias. Desta forma, num contexto de crise eco-nómica e financeira, de instabilidade e de desconfiança dos cidadãos, enquadrar o discurso político e as propostas de um candidato presidencial de forma positiva e fazer o contrário com o outro candida-to, pode induzir nos eleitores a ideia de que o primeiro está mais preparado para lidar com os problemas do país e é a melhor opção eleitoral.

Não obstante as várias diferenças nos sistemas político e mediático dos dois países, é interessante apontar aqui uma semelhança com as eleições presidenciais de 2006 em Portugal. Durante a campanha

eleitoral, a crise económica foi um tema com forte presença nos media e isso pode ter influenciado os eleitores, acabando por beneficiar o candidato com mais prepa-ração nessa área específica e o que mais mencionou o tema na sua campanha. Não obstante o Presidente da República não ter, em Portugal, poderes executivos ou legislativos, os media transmitiram frequen-temente a ideia de que um político com formação em Economia poderia vigiar melhor as acções do Governo e cumprir melhor a sua função de fiscalização.

Não só a economia, mas também a ava-liação jornalística da estratégia das duas candidaturas foi mais favorável a Obama. Entre outros factores, contribuíram para isso, por exemplo, os seus bons resultados nas sondagens e o facto de os seus apoian-tes revelarem mais entusiasmo. Igualmente a cobertura mediática dos três debates presidenciais não se revelou favorável a McCain, pois mesmo quando o seu desem-penho foi considerado bom, ele nunca foi visto como o vencedor dos debates. Por exemplo, na semana do último debate

(de 12 a 16 de Outubro), as peças jorna-lísticas divulgadas sobre Obama foram 50 por cento positivas, 31 por cento neutras e 19 por cento negativas, enquanto no caso de McCain os valores foram de ape-nas sete por cento positivas, 24 por cento neutras e 69 por cento negativas.

Os dados divulgados são tanto mais inte-ressantes quando se verifica que a cober-tura favorável tem reflexos nas sondagens de opinião, pois quanto mais positiva a cobertura jornalística, mais intenções de voto o candidato recolhe, uma tendência registada nas duas candidaturas em períodos diferentes. Estes dados, que rela-cionam cobertura favorável com bons resultados nas sondagens e que esclarecem sobre o tipo de tratamento jornalístico da mensagem dos políticos, são certamente importantes para quem se interessa pela questão da influência dos media nas elei-ções e, num plano mais geral, se questio-na sobre se os media apenas reflectem ou antecipam a opinião pública.*Investigadora de media e política e docente na Universidade Nova de Lisboa

enquadrar o discurso político de um candidato de uma forma positiva pode induzir nos eleitores a ideia de que é a melhor opção eleitoral.

RON S

ACHS/

LUSA

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A FLAd e o Governo Regional dos Açores, em colaboração com a Harvard Kennedy School, trouxeram a Portugal um curso de liderança considerado um dos melhores

do mundo. Professores da instituição norte-americana e executivos portugueses discutiram na ilha Terceira os desafios que se colocam a quem exerce a liderança no século XXI.

A repetir este ano.

Liderança no século xxi

POR ArmAnDo sALvADo

Ao longo de uma semana, cerca de cinquen-ta executivos, quadros de empresas privadas, da administração pública e de organizações não governamentais, vindos de vários pon-tos do País, foram confrontados com desa-fios que avaliaram a sua capacidade de liderança. Uma iniciativa da FLAD, que con-vidou três professores da Harvard Kennedy School, uma das mais prestigiadas institui-ções mundiais na área da formação avança-da de executivos – Maxime Fern, Hugh O’Doherty e Martin Linsk –, para tomar as rédeas nesta acção inovadora.

Segundo Paulo Zagalo e Melo, director para a área da Educação, Ciência e Tecnologia da FLAD, este curso de “Liderança no Século XXI” é uma acção pioneira em Portugal. “Muitas vezes cri-ticamos as nossas organizações, não pela falta de recursos, mas pela falta de lide-rança. Obviamente, é possível melhorar, há técnicas para tal e especialistas que estudam precisamente essas técnicas, e,

portanto, esta é a razão para a FLAD ter investido neste curso”, explicou.

De acordo com os formadores, Portugal tem uma cultura onde a subserviência ainda ocupa um lugar importante. A este respeito, Martin Linsk anotou mesmo que “existe uma profunda diferença para com a auto-ridade na cultura portuguesa, e nós acredi-tamos que se pode exercer a liderança em qualquer posição que se ocupe numa orga-nização; não é um exclusivo do topo”.

Os três professores da Harvard Kennedy School procuraram mostrar que ninguém nasce líder. Aprendem-se, sim, comporta-mentos de liderança. “Nós tentamos dar- -lhes ferramentas e ideias sobre como fazer progressos face aos desafios de liderança. Também usamos o grupo como um estu-do de caso, porque acreditamos que a oportunidade de exercer liderança surge todos os dias, em família, à mesa do jantar, na nossa vida profissional”, salientou Martin Linsk.

A professora Maxime Fern diz mesmo que há que separar a ideia de autoridade da de liderança, porque uma não pressupõe a outra: “O principal objectivo deste curso é ajudar as pessoas a separarem a confusão existente entre o que é a liderança e a auto-ridade, e como essa distinção entre as duas ideias leva as pessoas a fazerem aquilo a que chamamos ‘trabalho adaptativo’.”

Hugh O’Doherty, também ele professor em Harvard, assegura: “Para exercer a liderança não é preciso ter uma personalidade carac-terística, com carisma. A liderança é uma actividade que as pessoas podem escolher exercer com ou sem autoritarismo. Ser líder é ter capacidade para mobilizar um grupo.”

Reflexão, empenho e atenção pelo grupo que se lidera, três conceitos fun-damentais que saíram deste curso. Os pro-fessores da Harvard Kennedy School deixaram uma mensagem clara: todos podem ser líderes, mesmo que não se esteja no topo da hierarquia.

Alunos, professores e organizadores do Curso de Liderança na terceira, Açores.

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daniel Okrent, o primeiro provedor do leitor do The New York Times, esteve em Portugal para apresentar o seu mais recente livro – O Provedor.

Falou, também, sobre a campanha e as eleições presidenciais norte-americanas.

POR rui CAtALão

“obama é um homemextraordinário”

Daniel Okrent fez a sua declaração de inte-resses depois de apresentado por José Carlos Abrantes e confessou-se apoiante do novo Presidente norte-americano. Estas foram as primeiras eleições, desde que começou a carreira de jornalista, em que pôde tomar partido por algum dos candidatos. Por isso, o agora escritor e consultor não teve pro-blemas em assumir que chegou a contri-buir financeiramente para a campanha do senador democrata.

Para o ex-editor da Time, houve três tópi-cos que se destacaram na eleição de Barack Obama: “O primeiro, a vitória de um homem negro numa nação com a história dos Estados Unidos da América; em segun-do lugar, o entusiasmo por um homem eloquente, com um discurso diferente daquilo a que estamos habituados; e por último, o nível de esperança das popula-ções, pois vimos muita gente habitualmen-te distante da política a envolver-se directamente na campanha.” Por outro lado, Daniel Okrent acredita que “Obama tam-

bém ganhou com a presença dos jornalis-tas porque tinha uma história melhor do que McCain: ia ser o primeiro presidente negro, enquanto o candidato republicano não tinha nada de diferente, de novo”.

Estas eleições presidenciais permitiram também confirmar uma tendência já conhecida, como explicou o autor de O Provedor. “Os leitores/telespectadores pro-curam acima de tudo órgãos de informação que reforcem as suas convicções. Se vemos algo que está de acordo com aquilo em que acreditamos, o jornalista é imparcial. Se vemos alguma coisa que choque com as nossas crenças, dizemos que é parcial.”

Da mesma forma, o ex-provedor do Times reconheceu uma aproximação e um maior interesse em notícias sobre política, “apesar de as pessoas estarem mais interessadas em artigos sobre sondagens e a horse race do que propriamente nos artigos sobre os candi-datos e as suas ideias e propostas”.

Na conferência promovida pela FLAD, Joaquim Vieira e Patrícia Fonseca marca-

ram presença quase como se fossem entre-vistadores. Os dois jornalistas interpelaram Daniel Okrent por diversas vezes, regis-tando igualmente alguns comentários. Para o actual provedor do Público, “as eleições norte-americanas foram sinónimo de ale-gria genuína, num ambiente de festa idên-tico ao 25 de Abril em Portugal”. Já a jornalista da Visão destacou a singularida-de do discurso de Barack Obama, “numa forma de fazer política que não jogava com as regras normais”.

Apesar de acreditarem nas capacidades do novo Presidente norte-americano, Daniel Okrent e os seus interlocutores mostraram-se de acordo quanto à posição dos media face a Obama: “A partir da tomada de posse, a imprensa vai ser muito mais crítica, vai haver uma mudan-ça como da noite para o dia”, garantiu Daniel Okrent.

RUI OCH

ôA

paula vicente da FLAD entre os dois antigos provedores,José Carlos Abrantes (Dn), à esquerda, e Daniel okrent (nYt).

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desafiar o senso comum sobre as origens e o percurso da democracia americana e lembrar as funções democráticas do jornalismo foram ideias centrais da conferência

de Schudson sobre “A Cidadania e os Media”.

michael schudson

era uma vez uma democracia

POR CArLA mArtins*

Os fundadores da nação ameri-cana teriam estranhado estes tempos de voto universal e secreto em que os eleitores têm ao seu dispor complexos e volumosos guias informativos e em que são seriamente encara-dos como “cidadãos informa-dos”. Há dois séculos e meio, enfatiza o professor da Universidade de San Diego (Califórnia) e de Columbia (Nova Iorque), não se esperava que avaliassem por si pró-prios questões públicas. Os Founding Fathers não simpati-zavam com a publicidade de procedimentos governamentais, negligenciavam a educação pública e desencorajavam a par-ticipação pública informal nos assuntos legislativos.

Cem anos depois da fundação dos EUA, o voto continuava a ser uma questão de “bebidas, dólares e drama”, raramente algo de mais elevado. Um exem-plo: em Nova Jérsia, por volta de 1880, pelo menos um terço do eleitorado contava receber um punhado de dólares no dia das eleições. O voto não expres-sava uma forte convicção nas melhores políticas públicas mas uma lealdade similar à dos adep-tos das equipas de futebol.

Na actualidade tais evocações desafiam ideias feitas sobre as origens e o percurso da demo-cracia americana. Foram os reformadores do final do sécu-lo XX, não os pais fundadores, que deram um passo decisivo para conformar os ame-ricanos ao “ideal do cidadão informado”. E as “novidades” sucederam-se. Os parti-

dos esforçam-se por oferecer um progra-ma que promete boas políticas mais do que bons empregos. O sistema abriu-se a uma “revolução de direitos”.

poLítiCA sem FALsos morALismosAo traçar esta, em última aná-lise, “antropologia da democra-cia”, Schudson não ilude com pureza um campo animado, ao invés, por interesses. “Votar é uma prática tão cultural quan-to moral”, mas não se confun-da “votar, estar informado ou aderir a organizações cívicas com virtude pessoal ou espíri-to público”. Homens e mulhe-res também se mobilizam porque preferem o gossip polí-tico ao das celebridades ou do desporto. E procuram romance nas actividades políticas.

Neste devir democrático, quais os papéis que cumprem os media noticiosos? São sete, segundo a sistematização de Schudson. A começar por infor-mar o público e investigar os poderes. Mas também a de criar empatia social. Hoje a demo-cracia sofre com a apatia.

O investigador recordou a conversa de um editor com uma afro-americana, em 1980, quando Carter e Reagen dis-putavam a Presidência. A senhora não iria votar. “Estou muito ocupada e muito can-sada, dá demasiado trabalho”. O editor não considerava que os jornalistas pudessem fazer alguma coisa para que ela mudasse de ideias. Excepto contar a sua história e levar a sociedade, pelo menos aqueles

que votam e aqueles que têm o poder de tomar decisões, a vê-la e a compreendê-la com compaixão.* Professora da ULHT

shudson: “As pessoas procuram romance nas actividades políticas”.

‘na América do século xix, o voto não expressava uma forte convicção nas melhores políticas públicas mas uma lealdade similar à dos adeptos das equipas de futebol. Cem anos depois da fundação dos euA, o voto continuava a ser uma questão de “bebidas, dólares e drama”, raramente algo de mais elevado. ’

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CArtA brAnCA

‘ A surpresa veio na altura dos brindes. Ao jornalista foi pedido um discurso, breve que fosse, em português. não entenderiam, é certo, o significado das palavras, mas a sonoridade da língua traria de volta a nostalgia de anos passados. ’

RUI CO

UTI

NHO

mário bettenCourtresenDes*

Um jantar no Havai

Não foi fácil convencer o adido de Imprensa da Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa – vivíamos a segunda metade dos anos de 1980 – a incluir as ilhas do Havai no roteiro de uma viagem profissional.

O jornalista convidado, signatário desta crónica, argumentou com a presença de descendentes de emigrantes açorianos de outras décadas – mas, valha a verdade, o apelo do mito turístico daquelas ilhas do Pacífico era uma outra motivação inconfessá-vel. Para um ilhéu, seria, entre outras coisas, uma oportunidade única para um mergulho na famosa praia de Waikiki, nos arre-dores de Honolulu...

Depois de uma negociação pormenorizada entre diplomata e jornalista, lá seguiu para Washington uma proposta de itinerário que acabou por incluir duas das ilhas descobertas pelo capitão Cook. Com alguma surpresa para ambos, a proposta de percur-so veio devolvida com aprovação integral.

As cinco semanas então passadas nos Estados Unidos foram uma experiência de vida fascinante para um jovem jornalista que tinha, na altura, um conhecimento limitado de outras paragens.

O contacto com o melting pot, em inúmeras cambiantes, deixou marcas que perduraram. E, curiosamente, acabou por ser no Havai que aconteceu o episódio que inspira esta crónica e que ficou na memória com um registo singular de emoção.

À chegada a Maui, o guia destacado para acompanhar o jor-nalista avisou que o programa incluía um jantar com algumas dezenas de descendentes de emigrantes. Ao tomar conhecimen-to da visita de um português, para mais açoriano, a comu- nidade local luso-descendente tinha feito questão em celebrar uma presença que era, nesses tempos, conforme se percebeu, uma raridade.

No dia marcado, num restaurante de montanha, em cenário paradisíaco – a ilha é, toda ela, um prodígio de beleza natu-ral – meia centena de convivas receberam, com particular afabilidade, o jornalista e o seu guia. Eram, na sua esmaga-dora maioria, pessoas já na terceira idade, nascidos localmen-te, filhos ou netos de emigrantes. E que falavam, apenas, a língua inglesa.

A surpresa veio na altura dos brindes. Ao jornalista foi pedido um discurso, breve que fosse, em português. Não entenderiam, é certo, o significado das palavras, mas a sonoridade da língua traria de volta a nostalgia de anos passados.

O jornalista levantou-se e, perante uma plateia atenta, cumpriu a missão. No final, recebeu uma das mais entusiásticas – e cer-tamente a mais comovente – salva de palmas da sua vida.

* Jornalista, provedor dos leitores do Diário de Notícias

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 63

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No Committee of Concerned Journalists, no National Press Building, em Washington DC, dez jornalistas portugueses frequen-taram duas intensas semanas do curso de

aperfeiçoamento para profissionais mid-career. O curso incluiu conferências e visi-tas de trabalho, por exemplo, às redacções (online e edição impressa) do Washington Post.

Os mais actuais problemas com que se depara o jornalismo foram discutidos pelos professores do Committee e outros convidados para conversar com a turma lusa de jornalistas.

Este curso nos EUA resulta de bolsas de curta duração da FLAD, ao abrigo dos pro-gramas “Alfredo Mesquita” (jornalistas dos Açores) e “José Rodrigues Miguéis” (jornalistas do continente) para favorecer o intercâmbio entre os dois países na área jornalística. Os bolseiros começaram por viajar até aos Açores, onde contactaram com representantes das instituições locais e visitaram órgãos de comunicação social e pontos turísticos.

Já nos EUA, os jornalistas fizeram o International Visitor Leadership Program, de formação sobre as especificidades do sistema norte-americano, organizado pelo Departamento de Estado e pela embaixa-da norte-americana em Lisboa.

As duas bolseiras açorianas do programa “Alfredo Mesquita” beneficiaram, ainda, de uma semana na região de Boston onde contactaram com várias instituições liga-das à comunidade emigrada na região.

Patrícia Fonseca (Visão), Ana Catarina Santos e Cristina Lai Men (TSF), Filipe Santos Costa (expresso), Maria João Guimarães e Catarina Gomes (Público), Catarina Neves (SIC) e Ana Luísa Rodrigues (RTP) foram os jornalistas do continente seleccionados, e Vanda Mendonça (diário Insular) e Filipa Simas (RTP Açores) as jornalistas açorianas que participaram no programa.

Cada bolseiro elaborou um pequeno depoimento que reproduzimos nas pági-nas seguintes, depoimentos que testemu-nham alguns dos acontecimentos por eles vividos.

Este ano, em Junho, outros 10 jornalistas portugueses serão formados pelo Committee of Concern Journalists em Washington.

D.R

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dez jornalistas portugueses estiveram nos eUA com bolsas de curta duração, ao abrigo dos programas “Alfredo Mesquita” e “José Rodrigues Miguéis”, criados pela FLAd,

para favorecer o intercâmbio entre os dois países na área jornalística.

o jornalismo americano visto do lado de dentro

Grupo de jornalistas à chegada ao Washington post para reunião de trabalho.

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Para um jornalista de política, estar nos EUA em ano de eleições presidenciais é uma sorte. Estar em Washington na semana em que terminaram as primárias do Partido Democrata mais disputadas de sempre, é a sorte grande. Poder assistir ao comício em que Hillary Clinton abandonou a corrida e deu o seu apoio a Barack Obama é um jackpot. Foi a esse jackpot que os bolseiros da FLAD puderam assistir in loco: o comício de 7 de Junho foi o momento em que a pri-meira mulher que esteve à beira de ser candidata à Presidência dos EUA deu o seu apoio ao primeiro afro-americano candi-dato à Presidência por um dos principais partidos. Quatro dias antes, alguns de nós já tinham “participado” numa das muitas centenas de festas organizadas por todo o país pelos apoiantes de Obama para assistir,

em directo, aos resultados das derradeiras primárias dos democratas. Em ambos os casos – no ambiente familiar do café Busboys & Poets e no cenário imponente do National Building Museum; na festa do vencedor e na retirada do vencido –, teste-munhámos o melhor da democracia nos EUA: mais do que discursos inspirados e inspiradores (que os houve!), o entusiasmo de uma sociedade civil que, contrariando a tendência dos últimos anos e a previsão dos académicos, se mobiliza e arregaça as mangas para defender aquilo em que acre-dita. * expresso

Mesmo habituados a conhecer personali-dades ou lugares míticos, o entusiasmo era indisfarçável na visita ao Washington Post.

Ao caminhar pelos dois pisos da redac-ção, o sentimento misturou a contenção – afinal, “do lado de lá” estavam colegas de profissão – e a curiosidade de espreitar cada cantinho.

Numa ala, open spaces a perder de vista com centenas de secretárias, noutra, gabinetes para os seniores. Em cada estaminé, os metros quadrados conquistados por mura-lhas de dossiês e papéis ao monte – doen-ça endémica de qualquer redacção.

Tínhamos encontro marcado com Debora Howell, ombusdman do Washington Post. Mas mais do que a entrevista, “entrar no cená-rio” foi o que me fez verdadeiramente vibrar.

Surpreendentemente, a redacção do Washingtonpost.com, edição online do jornal, fica do outro lado do rio Potomac, no estado da Virgínia.

Noventa pessoas alimentam uma plata-forma que origina 250 milhões de page viewers por mês, segundo Jonathan Krim, editor da página web. As mudanças no jor-nalismo, da cultura free que impera na web, do melhor perfil para o jornalista do futu-ro foram temas de conversa.

Antes da saída, a surpresa. As vidraças da redacção permitiam uma vista cine-matográfica sobre o temporal que em minutos varreu a zona. Chuva grossa batida a vento, trovões e clarões a encar-regarem-se dos jogos de som e luz. E luz também se fez sobre um dos mais intri-gantes mitos norte-americanos: a obses-são com o boletim meteorológico, os tão famosos weather reports que têm até direito a canais de TV. Percebi que não é uma paranóia!

O temporal fez cancelar o jantar dessa noite. Opção mais radical do que a intem-périe… Duas horas depois, o sol voltava a brilhar e as pessoas enchiam as ruas, memória lavada do temporal.

Um dia pode ter várias caras. É como se a variedade da meteorologia se afinasse pelo diapasão do próprio país. E uma das impressões mais fortes que se pode trazer dos Estados Unidos é justamente a diver-sidade do caldo norte-americano, qual manta de retalhos. * RTP

POR AnA LuísA roDriGues*

Washington Post e weather reports

POR FiLipe sAntos CostA*

Da democraciana América

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A festa de Obama, a retirada de Hillary e o entusiasmo da sociedade civil nestas eleições presidenciais.

saída de hillary – jackpot para os bolseiros da FLAD.

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Uma viagem ao passado e ao futuro, ao mesmo tempo, parece algo pouco real assim contado, mas a busca de contactos e ligações com a emigração açoriana na zona da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos da América, foi sinceramente uma descoberta.

Traduz-se num sentimento misto de orgulho por quem vingou e de admiração por aqueles que se arriscaram, em tempos difíceis, por terras imensas sem qualquer apoio ou até comunicação.

Viajo, confortável, num jipe conduzido por motorista, mas ao que parece está mais perdido do que eu. Vive há mais de vinte anos nesta região e pouco ou nada conhece.

Ao longo da viagem apercebo-me que esta é a realidade de uma boa parte dos emigrantes do arquipélago.

Vivem a cerca de três horas de Boston e nunca visitaram a cidade.

Penso em como o isolamento das ilhas se prolonga do outro lado do Atlântico.

Num programa organizado minuciosa-mente pelo professor Onésimo de Almeida conhecemos o outro lado. São luso-des-cendentes que hoje se destacam na comu-nidade onde vivem e até a nível nacional e internacional.

Para contar o caminho para os sucessos lusos nem é preciso ir muito longe. Micaelense de origem, Onésimo Teotónio de Almeida é hoje professor catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, em Providence. Tem tido um papel relevante na divulgação do português em terras americanas.

No seu dia-a-dia multiplica-se entre aulas, conferências, reuniões e esquiços para a sua próxima publicação. Uma azá-fama própria de quem gosta do que faz.

Confesso que através da caneta de Onésimo dou por mim a viajar neste sonho açoriano.

E porque o espaço é curto para uma imen-sidão de sentimentos, deixo escrever quem tão bem soube expressá-los em palavras: “How far that little candle throws his beams! So shines a good deed in a weary world.” (William Shakespeare). * RTP (Açores)

POR FiLipA simAs*

o sonho da emigração

POR CristinA LAi men*

baltimore: prioridade às notícias locais

A preto e branco, os retratos estão alinhados numa das paredes da enorme recepção. São pelo menos 15 os repórteres do The Baltimore Sun, vencedores do Prémio Pulitzer, que formam esta galeria de notáveis. Somos recebidos pela editora do The Sun online, Mary Hartney, e pelo editor adjunto Harry Merritt, que não escondem as dificuldades do histórico jornal do estado de Maryland. A pouco mais de 50 quilómetrosde Washington DC, a redacção do The Baltimore Sun não escapou aos cortes orçamentais nos últimos anos, mas tenta adaptar-se ao novo desafio que representa a internet. Com uma média de idade que ronda os 50 anos, os jornalistas passaram a andar com câmaras de vídeo – 25 por cento dos profissionais já têm o equipamento no saco de reportagem. São em menor número, trabalham mais e, no final do mês, ganham o mesmo. Assim obrigam os tempos de crise que se vivem no The Baltimore Sun, que afec-tam também a cobertura dos acontecimentos internacionais.

Cada vez mais, a prioridade vai para as notícias locais. É esse o mote do vizinho The Baltimore Times, um jornal destinado à comunidade negra que representa quase 40 por cento da população do estado de Maryland. Quando a América pode vir a ter, pela primeira vez, um Presidente negro, a fotografia a preto e branco de Barack Obama ocupa toda a primeira página de uma das últimas edições. A redacção jovem e reduzi-da do The Baltimore Times destaca as boas notícias que envolvem a comunidade negra – “daisies and roses”, nas palavras do editor Ron Williams, que adianta: “Quando a América se constipa, nós apanhamos uma pneumonia.” * TSF

POR CAtArinA neves*

A excelência no jornalismo

Imagine que está a conduzir um carro e ao mesmo tempo tem de lhe mudar o óleo. É impossível, mas é também o exem-plo perfeito para ajudar a compreender o momento que a comunicação social norte-americana atravessa.

De acordo com Mark Jurkowitz, director do Project for Excellence in Journalism, há dois conceitos que marcam o antes e o agora: economia e novas tecnologias. Como se fosse obrigatório definir um a. I. (antes da Internet) e um d. I. (depois da Internet). A. I., os chamados velhos media norte-ame-ricanos tinham grandes redacções, um público fiel e um dia inteiro para preparar a notícia. D. I., as televisões norte-america-nas perderam um milhão de espectadores por ano, a publicidade desceu 10 por cento, só em 2007, e há jornais, como o Boston Globe, que rescindem contratos com todos os correspondentes.

É num período, para muitos assustador, de mudança como o actual que nasce o Pew Research Center’s Project for Excellence in Journalism. Trata-se de uma organização independente que se dedica à investigação do comportamento dos meios de comuni-cação social nos Estados Unidos. Tem como objectivo fornecer, a quem produz as notí-cias e a quem as consome, uma análise estatística que permita uma melhor com-preensão do que é veiculado pelos media. O Project for Excellence defende que a quantificação da realidade é um instrumen-to mais útil do que a crítica da mesma.

A página www.journalism.org, que fun-ciona como um arquivo, permite-nos saber que, nas 70 mil notícias recolhidas ao longo do último ano, dois temas marcaram a agen-da dos media: o Iraque e a campanha presi-dencial. Descobrimos também que, ao contrário do que o público parece pensar, a cobertura da campanha de Hillary Clinton e de Barack Obama foi equilibrada. E que Obama foi alvo de um tratamento mais nega-tivo do que aquele que foi dado a Clinton.

Nestes dias agitados e incertos, é grati-ficante saber que jornalistas e investigado-res reúnem, analisam e guardam as estórias de todos os dias. A bem da memória futu-ra. Na esperança de que os motores dos jornais, das rádios e das televisões conti-nuem a ressoar e que o carro, já com o óleo mudado, não pare. * SIC

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Estarão os jornais condenados a desaparecer? Se sobreviverem, como serão daqui a dez anos? Serão os jornalistas de imprensa treinados para fazerem vídeos, tirar fotos e recolher sons? Estivemos quinze dias à volta de uma mesa, numa sala fechada, em Washington, a reflectir sobre estas e outras questões e a pôr em causa o jornalismo que praticamos, numa redacção do outro lado do Atlântico. Os mediadores deste debate foram formadores do Committee of Concerned Journalists, instituição que reuniu

um conjunto de jornalistas, editores, proprietários e académicos para pensarem o presente e o futuro da profissão. Nestas manhãs e tardes de reflexão foi reconfortante verificar que muitos dos problemas sentidos nos Estados Unidos e em Portugal são idên-ticos: fuga de leitores para o jornal online sem que as receitas publicitárias tenham acompanhado essa transferência, cortes de pessoal, desinvestimento em histórias de investigação que con-somem mais tempo. Porém, as soluções, embora ainda não tenham sido encontradas, estão a ser procuradas naquele país há mais tempo. Uma coisa é certa, o sistema mediático (sobretudo no caso da imprensa) está em convulsão e vive um momento de busca desenfreada de um novo paradigma que o salve da ameaça de um fim iminente. O problema, dizia um dos formadores, “é que temos de mudar o óleo do carro ao mesmo tempo que o continuamos a conduzir”. * Público

É difícil escolher o que impressiona mais no Newseum. Há destroços de repórteres de guerra, um computador, um caderno,

um carro baleado, pedaços de histórias que acabaram bem ou muito mal (está lá o passaporte de Daniel Pearl, morto

pelos taliban). Há fotos que se tornaram imagens icónicas com uma explicação. Destas, a mais impressionante será a fotografia do abutre que, ao longe, espreita uma criança africana, num esta-do de subnutrição extremo, enrolada, sozinha no chão de poeira, prestes a morrer. Foi tirada no Sudão, na fome de 1993. A foto, descobre-se no museu das notícias, tem uma outra história trági-ca para além da que vemos na imagem. O fotógrafo, Kevin Carter, não tocou na criança – as autoridades do Sudão tinham dito expressamente que não deveria haver qualquer contacto por causa do perigo de contágio. O fotógrafo ganhou um prémio Pullitzer com esta foto – tendo recebido de imediato milhares de cartas indignadas questionando-o porque não tinha ajudado a criança. Carter aca-bou por se suicidar em 1994, pouco depois de receber o prémio. Esta foto, esta história, é apenas um pequeno frag-mento de todo o espólio existente no Newseum, e este não se esgota no gran-de espaço da Pennsylvania Avenue, em Washington: pode visitar-se o site na net e ver, por exemplo, primeiras páginas de jornais de todo o mundo – e, entre estes, o Público, o Jornal de Notícias, o diário de Coimbra e o diário As Beiras. * Público

POR mAriA João GuimArães*

As notíciasque ficaram no museu

PATR

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FONSE

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manchetes de jornais de todo o mundo, expostos no newseum, que noticiaram o 11 de setembro.

POR CAtArinA Gomes*

uma pausa preocupada

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 67

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Peguei no mapa a preto e branco com as duas mãos e o papel colou-se aos dedos, húmidos. Tremia ligeiramente. Os olhos ávidos varreram o esboço do hemiciclo, enquanto percorria com os dedos os dese-nhos das secretárias que tinham os sobre-nomes inscritos. De frente para a mesa do Vice-Presidente dos EUA, contei, da esquerda para a direita, “Uma, duas… Aqui está: Obama na primeira fila, segun-da mesa da esquerda”. Duas filas atrás, outro nome que busquei desde o início: Clinton, na última fila. “Hillary, na última fila?!” Sorri.

Já só faltava um. Respirei fundo e foquei- -me de novo no mapa. “Ala republicana no lado direito, McConnel não, Dole tam-bém não, finalmente detectei-o. “Cá está – McCain na terceira fila, sexta cadeira. Fantástico!” Tinha identificado os lugares onde estariam sentados os senadores que queria ver ao vivo.

Entrei na sala do Senado entusiasmada. Sem telemóvel, sem máquina fotográfica ou bloco de notas. Nada. E em silêncio absoluto. A sessão decorria com apenas dois solitários senadores. Um, de pé, fala-va enquanto apontava para um cartaz; o outro, sentado no lado oposto, tomava notas. Todas as outras secretárias estavam

vazias. Nem sinal de Obama, Hillary ou McCain…

No Senado norte-americano, os senadores assistem às sessões nos seus gabinetes através de circuito interno de vídeo. Na belíssima sala do Senado estão apenas os membros da mesa e a peculiar figura, por já tão inusual, da dactilógrafa. Circula elegantemente pela sala com os óculos na ponta do nariz, uma franja de cabelo negro e, sempre de pé, dedi-lha velozmente na máquina de escrever que carrega ao peito.

Habituada, como estou, ao clamor do Parlamento português, o contraste foi abis-mal. Entreabri a boca, quase soltei uma

exclamação. Não tive sequer tempo para tal. Atrás de mim sussurraram: “Shiuhhh, M’am. This is the US Senate!” * TSFPOR AnA CAtArinA sAntos*

shiuhhh!!!You’re visiting

the united states senate!

Em Rhode Island, o mais pequeno estado norte-americano, com apenas um milhão e 50 mil habitantes, os portugueses e luso- -descendentes representam 10 por cento da população. No Congresso Estadual esse número sobe para 12 por cento – dos 75 membros da Câmara dos Representantes nove têm origem portuguesa, enquanto no Senado quatro dos 38 eleitos são de

ascendência lusa. Eleito pela primeira vez em 1998, com apenas 20 anos, Daniel da Ponte foi o segundo mais jovem senador a assumir o cargo. Filho de pais açorianos, oriundos da ilha de São Miguel, fez do aumento do ordenado mínimo estadual uma das suas bandeiras. Em relação à comunidade portuguesa de Rhode Island, considera que “está muito mais integrada na socie-dade americana do que em Massachusetts”. A educação e a par-ticipação política são, no entanto, os principais desafios. Em sua opinião, “as ligações entre os Açores e Portugal e os Estados Unidos são cada vez mais estreitas”. “Entre as novas gerações, é cada vez mais ‘fashionable’ conhecer as raízes”, diz. * diário Insular

POR vAnDA menDonçA*

Açorianos na política

‘entrei na sala do senado entusiasmada. [...] nada. nem sinal de obama, hillary ou mcCain…’

Ana Catarina santos (tsF) nos corredores de Capitol hill.

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Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 200968

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Foi cruzando as crateras adormecidas dos vulcões açorianos que o grupo ver-dadeiramente se conheceu. Já sabíamos os nomes uns dos outros, já tínhamos trocado algumas palavras de circunstân-cia, mas foi ali, na ilha de São Miguel, sob um céu imenso e o mar a perder de vista, esforçando-nos por alcançar o cume de uma serra, que criámos os pri-meiros laços. Respeitou-se o ritmo de

quem tinha os músculos mais adorme-cidos, estendeu-se a mão a quem temia as alturas, dividiram-se bolachas e água com os desprevenidos... Dez quilómetros à conversa, com pausas para fotografias e gargalhadas inesperadas, que termina-ram nesta foto de grupo, no cume com vista para o nordeste da ilha, com as lagoas rasa e comprida a nossos pés. Ali, a meio caminho entre o continente

europeu e o americano, descobrimos as coordenadas da vida de cada um e dese-nhámos o primeiro esboço do mapa da nossa amizade. Seremos sempre “o grupo de Washington”, onde aprende-mos e crescemos tanto. Mas teremos sempre de agradecer aos Açores estes instantes de claridade, que nos abriram o coração para o que estava para vir. * Visão

os jornalistas que participaram no programa (com excepção de Filipa simas) e os dois membros da FLAD em são miguel.

POR pAtríCiA FonseCA

Já sabíamos os nomes uns dos outros, já tínhamos trocado algumas palavras de circunstância, mas foi ali, na ilha de São Miguel, sob um céu imenso

e o mar a perder de vista, esforçando-nos por alcançar o cume de uma serra, que criámos os primeiros laços.

Azores connectionD.R

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“Asas sobre a América”, ciclo de conferências sobre o encontro de escritores portugueses com autores norte-americanos pretendeu “captar um público jovem”, “apelar à leitura

e ao diálogo”, afirmou Mário Mesquita*, administrador responsável pela área da Cultura. Breve síntese sobre a misteriosa arte de escrever.

POR susAnA neves

só a literatura vence o tempo

Apresentado por Filipa Melo, o ciclo reu-niu no auditório da FLAD estudantes e professores universitários, escritores, edi-tores, tradutores e visitantes de diversas áreas do conhecimento.

Segundo William Faulkner (1897-1962), o escritor fará tudo para escrever mesmo “roubar a própria mãe”. Para concluir um livro estará disposto a perder a “honra, o orgulho, a decência, a segurança e a felicidade”. Afectada, ao longo de toda a vida, por várias doenças graves, Carson McCullers (1917-1967) chegará “a atar uma caneta ao pulso para poder escrever”, sem parar. Afinal, o que poderá destruir um artista? “Nada”, dizia Faulkner. Nada, a não ser “a morte”.

Os oito escritores norte-americanos até agora apresentados no ciclo “Asas sobre a América”, para lá das particularidades biográficas e das diferenças de estilo lite-rário, partilham o princípio de que escre-ver não é viver menos, pelo contrário, sem a experiência da literatura, o mundo é insuficiente, e mesmo incompreensível.

Indispensável ao acto criador, a solidão, levada a um ponto extremo, não é para eles um empobrecimento mas uma forma de estar perto da Natureza e da sua huma-nidade interior, incluindo nela o pavor, o caos e a desumanidade implícitas.

Como lembrou Gonçalo M. Tavares, o escritor é aquele que “repara”, e no caso de Philip Roth (n. 1933), “mestre da lentidão” – autor, entre outras obras, de Pastoral Americana, 1997 –, o que se detém a obser-var um personagem, considerando o míni-mo pormenor como um indício revelador.

“Escritor omnívoro”, “enraizando a lite-ratura no quotidiano de cada personagem”, também Saul Bellow (1915-2005) parte de um “detalhe” para reflectir sobre “a condi-ção humana”. “A essa atenção ao detalhe eu chamaria força erótica”, explicou Rui Zink, tradutor de Ravelstein 2000, último romance do Nobel da Literatura 1976.

Viver de forma “pacata” como Flannery O’Connor (1925-1964) não a impediu de “desenvolver uma vida interior sulfú-rica”, resumiu Pedro Mexia. Enquanto a progressiva reclusão de Emily Dickinson (1830-1886) no seu quarto em Amherst foi, segundo Ana Luísa Amaral, uma maneira “simbólica”, “dramatizada” e “ambígua” de comunicar com o mundo e afirmar a sua personalidade literária.

Pela leitura de excertos de várias obras – entre elas, O Coração É Um Caçador Solitário, 1940, de Carson McCullers, feita por Inês Pedrosa, ou através da expressiva inter-pretação de Saudação a Walt Whitman, de Álvaro de Campos, apresentada pelo actor João Grosso – foi possível verificar que, na sua essência, a escrita é um organismo musical, um detonador de imagens, transversal ao espaço, vencedor desse

sem a experiência da literatura o mundo é insuficiente e mesmo incompreensível.

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 200970

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“Infinito Idiota”, que a cáustica McCullers, entendia ser o “Tempo”.

As palavras têm o poder de “fazer parar a linguagem”, lembrou Manuel António Pina a propósito do “imagismo” em Ezra Pound (1885-1972), ou seja, projectam uma “aparição” mental em quem as lê. Ao mesmo tempo “memória” e “matéria viva”, as palavras não pertencem ao autor, imbuídas que estão de vida própria, desa-fiam-no, evocando um tecido complexo de “afluências”.

Walt Whitman (1819-1892) não foi a única influência na invenção de Álvaro de Campos, defendeu o investigador e tradu-tor norte-americano Richard Zenith. Para Fernando Pessoa, o autor de Folhas de erva, 1855, não foi um “pai” mas um “profeta irmão” que o ajudou a libertar-se do des-potismo da unicidade para passar a um nível superior de conhecimento em que se redescobre numa nova unidade: a de ser múltiplo.

Ler um escritor é, portanto, ser conta-minado e iniciado pela sua rede de influ-ências ou “afluências” artísticas e literárias,

perder-se nele e percebê-lo para lá de qualquer apriorismo.

“O facto de viver no Sul não o torna mais compreensível”, justificava Flannery O’Connor, feroz opositora da “literatura documental”. Yoknapatawpha, território ima-ginado por Faulkner, poderá nunca ser encontrado apesar de ser situado no Mississipi.

Alguns dos debates mais participados de “Asas sobre a América” centraram-se no clássico binómio livre arbítrio vs pre-destinação. Na opinião de Lídia Jorge, o autor de O Som e a Fúria, 1931, William Faulkner, considerando “a fragilidade do Homem” tendeu a colocá-lo “face a uma Totalidade com a qual é preciso nego-

ciar”. Para definir a noção de liberdade em O’Connor, a americanista Teresa Alves leu na introdução de Sangue Sábio, 1962: “O livre arbítrio não significa uma única vontade mas muitas vontades a agirem conflituosamente numa pessoa.” Por isso, a “integridade de alguém reside no que esse alguém não é capaz de fazer”. Em suma: “A liberdade é um mistério.”

As abusivas “regularizações” da obra de Emily Dickinson, desde a publicação dos primeiros poemas no jornal Springfield daily Republican, ainda durante a vida da escrito-ra, até às sucessivas edições póstumas, reveladas por Ana Luísa Amaral, são um exemplo de como a integridade de uma obra pode ser ameaçada por preconceitos

Apresentação de Lídia Jorge na mesa com Filipa melo, coordenadora do ciclo “Asas sobre a América”. Ao fundo, a imagem de William Faulkner.

‘Ler um escritor é ser contaminado e iniciado pela sua rede de influências ou “afluências” artísticas e literárias, perder-se nele e percebê-lo para lá de qualquer apriorismo. ’

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Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 71

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de ordem machista, linguística e episte-mológica. Ser “o único canguru entre a beleza” custou a Dickinson a reclusão e a censura, mas graças à persistência, em escrever e fazer-se publicar também atra-vés de cartas, a força do seu talento aca-baria por reemergir intacta na edição fac-similada da sua obra, em 1991.

“Escrever, tal como o entendo, é uma forma de ser”, afirma Manuel António Pina, para quem a poesia, à semelhança do autor de Os Cantos, 1925-1969, e Jorge Luis Borges, tem a ver com “a música”, “a ento-ação”, “uma certa respiração da frase”.

O mistério da literatura é como o mis-tério do mundo, escapa às fórmulas, ante-cipa e projecta novos leitores.

um hino À poesiAApesar de a leitura das obras de Whitman anteceder a criação heteronímica de Fernando Pessoa, e de o “acariciador de vida” ter provocado uma perturbação “absoluta” ao autor de Mensagem, 1934, influenciando-o a nível literário e estético mas também numa ordem mais “secreta”, ou seja, libertando-o “sensorial e sexual-mente”, Richard Zenith defendeu que os heterónimos pessoanos resultam de uma amálgama de influências, das quais se destaca a influência literária arcana de Shakespeare.

Saudação a Walt Whitman, assinado por Álvaro de Campos, em 1915, resposta ao poema canto Salut au Monde!, 1856, de Whitman, seria uma espécie de “poema de solida-riedade” de Pessoa a um escritor “profeta irmão”, um “hino à poesia”, “uma paró-dia”, “um pastiche”, “um estupro”, feito pelo “hiper consciente” Fernando Pessoa. Interessado no estilo de escrita do autor norte-americano, apreciando, sobretudo, a sua atitude “inclusiva” face a todas as manifestações do real, Pessoa não reconhe-cia na consciência uma fonte exponencial de felicidade. E em vez de “acariciador de vida” como Whitman, cultivava a “arte do fingimento”. Existia “gloriosamente pela imaginação”.

DA impossibiLiDADe em DeFinir A AmériCANo debate subordinado ao tema “Ensino da Literatura Norte-Americana em Portugal”, os americanistas Carlos Azevedo (Universidade do Porto), Teresa Alves (Universidade de Lisboa) e Mário Avelar (Universidade Aberta) defenderam que a América não é tanto uma “fabri-cadora de mitos”, opinião expressa pelo ensaísta Eduardo Lourenço, na primeira

sessão deste ciclo de conferências [ver Paralelo n.º 2] mas, sobretudo, um espelho onde se têm projectado algumas das expec-tativas europeias. No ano em que se cele-bra o cinquentenário do ensino da literatura norte-americana em Portugal, os aspirantes a americanistas poderão contar com múltiplas “leituras das nar-rativas fundadoras da identidade ameri-cana”, “o questionamento dos clássicos” e o estudo de alguns dos “temas prefe-renciais”: a “questão da identidade”, “o

herói rebelde”, a “discrepância entre a promessa e a realidade”, “o desejo de evasão”, “a fuga” e a “viagem”. O “mul-ticulturalismo” e a “interinfluência das artes” nos Estados Unidos são ainda con-templados nos programas universitários portugueses porque sem esta abordagem transversal não é possível compreender “a ideia da América”, na opinião de Teresa Alves, um “mundo que não acaba” e por isso é indefinível. *Público, 21 de Fevereiro de 2008

“escrever, tal como o entendo, é uma forma de ser”, manuel António pina e Filipa melo.RU

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Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 20097�

Livros

estante FLAD

Portugal contemporâneo

POR mAriA ináCiA rezoLA

Em 2003, António Costa Pinto leva a cabo uma iniciativa relativamente inédita no panorama nacional: reúne contributos de académicos de diferentes áreas de espe-cialização (história, economia, política, cultura, artes, etc.) e publica, em Nova Iorque, Contemporary Portugal. Politics, Society and Culture1. Esta ambiciosa e bem conse-guida obra propunha-se fornecer a espe-cialistas, estudantes e ao público em geral uma visão do Portugal contemporâneo, abordando, para o efeito, aspectos tão diversos como a política, questões colo-niais, relações internacionais, economia, movimentos migratórios, mudança social, literatura, arte, etc. Nesse mesmo ano, Manuel Baiôa, Paulo Jorge Fernandes e Ribeiro de Meneses publicam um exce-lente balanço, também em língua inglesa, sobre a história política do século XX por-tuguês2. Ainda que com âmbitos diferen-tes, estes dois trabalhos acabaram por se tornar indispensáveis a todos os investi-gadores estrangeiros que desejam iniciar um estudo sobre o Portugal contemporâ-neo ou acompanhar os mais recentes desenvolvimentos académicos operados neste domínio.

Apesar destes progressos, o público não especialista continuava a não dispor de uma obra de síntese que lhe permitisse ter uma visão rápida mas rigorosa da história recen-te de Portugal. É essa, em nosso entender, a grande lacuna que Twentieth Century Portugal, A Historical Overview vem colmatar. Mas não é esse apenas o seu mérito.

O seu autor, José Miguel Sardica, há muito que nos habituou a trabalhos de inegável e reconhecida qualidade3. Não é por acaso que no início do estudo tem preocupação de esclarecer o seu âmbito, objectivos e limitações. O seu propósito – familiarizar um público “generalista” estrangeiro com a história contemporânea portuguesa – e as naturais “contingências” de espaço de uma obra deste tipo, leva-ram-no a optar por se situar no plano da história institucional e política, recolhen-do e sintetizando as investigações que neste âmbito se têm produzido.

Tendo como ponto de partida os três gran-des ciclos do século XX português – República (1910-1926), Ditadura (1926- -1974) Democracia (1974-década de 1980) – Sardica estrutura o seu trabalho em 20 capítulos de maneira a clarificar com maior precisão as suas evoluções e momentos de viragem. A opção pela síntese – não se espere encontrar novos factos ou pesquisa original, alerta o autor – não o impede de assumir uma posição quanto a alguns dos aspectos mais polémicos da história recente de Portugal.

Veja-se, a este respeito, o seu posiciona-mento sobre a democraticidade do regime republicano português, a família política em que situa a ditadura salazarista ou o papel que atribui a alguns dos protago-nistas da Revolução portuguesa. Posições polémicas, reveladoras do domínio do tema e capacidade reflexiva do autor, que apenas contribuem para tornar mais ali-ciante a leitura da obra.

A sinopse é complementada com quatro importantes anexos – acrónimos, crono-logia, biografias e bibliografia – em que, mais uma vez, o autor deixa patente a sua mestria. Apesar de a sua área de especia-lidade ser o século XIX em boa hora acei-tou este difícil desafio.

Uma observação apenas, relativamente secundária, sobre as opções gráficas e a conhecida resistência dos editores às notas de rodapé. Mais uma vez, como acontece em muitas outras obras, a estratégia de “encaixar” as notas entre o final do corpo do texto e os anexos não foi, em nosso entender, a melhor.

Balanço final: um livro há muito espe-rado que cumpre bem os seus propósitos de divulgação da história contemporânea a um público estrangeiro generalista.

1 Pinto, António Costa (ed.), Contemporary Portugal. Politics, Society

and Culture. Nova Iorque: Columbia University Press, 2003.2 Baiôa, Fernandes, e Meneses, Ribeiro de, “The political

history of twentieth-century Portugal”, in e-JPH, vol. 1,

n.º 2, Inverno de 2003, pp. 2-18.3 Doutor em História, docente da Faculdade de Ciências

Humanas da Universidade Católica Portuguesa e membro

do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura dessa

mesma universidade, é autor de diversos artigos em

revistas especializadas de história e diversos livros sobre

história política, institucional e cultural de Portugal. Os

seus estudos sobre o franquismo, a regeneração, ou as

biografias de José Maria Eugénio de Almeida e o duque

de Ávila e Bolama são obras incontornáveis da historio-

grafia contemporânea portuguesa.

Twentieth Century Portugal: A Historical Overview

José miguel sardicaUniversidade Católica Editora, �008

‘ posições polémicas, reveladoras do domínio do tema e capacidade reflexiva do autor, que apenas contribuem para tornar mais aliciante a leitura da obra.

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Livros

Sobre o vulcãoPOR FrAnCisCo beLArD

Jornalista freelance

Esta obra colectiva de 826 páginas pesa cerca de três quilos, mas o seu peso cien-tífico e historiográfico é muito superior às quantidades enunciadas. A sua apresentação pública a 27 de Setembro de 2007 na Sociedade Amor da Pátria, na cidade da Horta, comemorou a erupção dos Capelinhos cinquenta anos antes, aconte-cimento natural e histórico que como tal foi sentido na altura, emocionando os Açores e o País, e tendo consequências próprias de um abalo que não era apenas sísmico. O alarme causado pelo despertar do vulcão (só adormeceria por volta de 24 de Outubro de 1958) ultrapassou as dimensões do mero susto, embora grande; muitas pessoas emigrariam, nomeadamen-te para os Estados Unidos (ver o recente volume coordenado por Tony Goulart, Capelinhos: A Volcano of Synergies – Azorean emigration to America, 2008, San José: Portuguese Heritage Publications of California, 452 pp.). Casas ficaram sob lava e cinzas (massa que no litoral viria a conformar uma península, aumentando a área da ilha), jornais, rádios, fotografias, filmes, artigos e livros repercutiram as alterações geomor-fológicas no local e o que daí resultou para a paisagem e para o tecido social. Depois houve obras de construção e reconstrução, e estudos científicos da tectónica e do vul-canismo das ilhas, dando utilidade ao fenó-meno; sem isso ficaria confinado a pesados custos, ainda que sem perda de vidas. Victor

Hugo Forjaz, então adolescente, mudou de projecto profissional e veio a ser o nome porventura mais conhecido dos geólogos e vulcanólogos que aprofundaram e divul-garam a lição dos Capelinhos, coisa que continua a fazer, como comprova o volume identificado, ao qual pude aceder num dos momentos comemorativos (ver expresso/”Actual”, 13 de Outubro de 2007). Prefaciado pelo presidente do Governo Regional dos Açores, Carlos M. Martins do Vale César, o livro recolhe contributos importantes, como (sigo o índice e perdo-em-me omissões) os de Júlio Quintino (que assinou o relatório do Serviço Meteorológico Nacional sobre a erupção submarina ao largo da ponta oeste do Faial e a cerca de um quilómetro da costa, junto aos ilhéus dos Capelinhos, e mais tarde o levantamento geomagnético da ilha para o aludido SMN), Frederico Machado (engenheiro e director de Obras Públicas a quem se devem, em 1958-1959, notícias científicas preliminares), Orlando Ribeiro e Raquel Soeiro de Brito, John Scofield, Haroun Tazieff, A. de Castello Branco, F. Moitinho de Almeida, Georges Zbyszewski, Octávio da Veiga Ferreira, C. F. Torre de Assunção, José Custódio de Morais, José Correia da Cunha, J. A. Sacadura Garcia, Viriato Campos, Adrian F. Richards et alia, A. de Mendonça Dias, W. H. Parsons, J. W. Mulford, Victor Hugo Forjaz, Aaron C. Waters et alia, Guy Camus, Alwyn Scarth e Jean-Claude Tanguy, Ricardo Madruga da Costa, Zilda de Melo França, e ainda Filipe M. Porteiro, Frederico Cardigos, Helder Fraga e equipa do projec-to OGAMP, etc. O volume inclui fotografias a preto e branco (coe-vas) e a cores (mais recentes), mapas, esboços geológicos e outros registos documentais, a que acrescem testemunhos de ou sobre uma dúzia de observadores e investigadores do fenómeno, relatórios, recortes de imprensa...

Não ignoro que esta recensão, breve para a dimensão do objecto e sobretudo para o seu alcance histórico e científico, pade-ce de aridez. Que esta não vos iluda; o livro contém informação rica e diversifi-cada, apta a seduzir os leigos que quase todos somos, ficando a ser obra de refe-rência e consulta sobre contextos geofísi-cos, geográficos e sociológicos que a natureza e a história apontam como pro-blemas permanentes dos Açores, ou seja, também nossos como povo, e um legado para a comunidade científica internacio-nal. “Capelinhos foi um mundo de apren-dizagens”, escreve V. H. Forjaz na página 821 do livro que com boas razões ele acha curto, em epílogo que une retrospectiva e prospectiva, no ponto da situação de um caso não encerrado.

Vulcão dos Capelinhos – Memórias 1957-�007

victor hugo Forjaz (editor-coordenador)OVGA – Observatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores, Ponta Delgada, �007

‘ [...] o livro contém informação rica e diversificada, apta a seduzir os leigos que quase todos somos.

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Livros

desenhos portugueses

POR CArLos mourA

docente de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Observava Bernard Berenson, na introdu-ção desse autêntico monumento de con-noisseurship que é o seu livro sobre os desenhos dos pintores florentinos, que o conhecimento sobre a autoria de um qual-quer desenho nunca pode ser estritamen-te científico. Porque não mensurável, nem reversível ou demonstrável, tal conheci-mento é, no máximo, apenas plausível.

Donde a extrema latitude do debate crí-tico neste domínio, necessariamente atri-buicionista dado o carácter fragmentário e aleatório das peças em estudo. Visando a elaboração do corpus dos diferentes artis-tas do passado, o esclarecimento dos nexos entre a sua obra gráfica e a pintura, a escultura ou outras realizações estéticas, a reconstituição de colecções e o seu sig-nificado cultural, ele supõe um elevado grau de especialização em constante des-coberta e revisão. Os núcleos dos museus, bibliotecas, fundações e colecções (públi-cas e privadas), além das obras avulsas constantemente lançadas no mercado, integram assim todo um campo de inves-tigação pertencente à história da arte.

Ocupando nele um lugar cimeiro, a revista Master drawings é seguramente a mais importante publicação internacional sobre a matéria. Herdeira da Old Master drawings anterior à II Guerra Mundial, congrega no seu corpo redactorial e de

colaboradores os mais reputa-dos especialistas mundiais. Os artigos e as recensões críticas nela publicados são, por isso, trabalho de ponta e uma refe-rência não apenas para o aca-démico, mas também para o público culto amante da arte.

Dedicado a Espanha e Portugal, o número de Outono de 2007 conferiu, pela primeira vez, algum destaque ao estudo dos desenhos de artistas portugueses ou de estrangeiros conservados em colecções nacionais. Com particular realce para o contri-buto de Nicholas Turner, e as novas revelações sobre Vieira Lusitano trazidas em excelente e bem documentado artigo.

Autor de variados livros, nomeadamente sobre o dese-nho italiano, conservador no Departamento de Desenhos e Gravuras do British Museum e curador dos desenhos do Paul Getty Museum de Los Angeles, Turner ocupara-se já, em 2000, do catálogo da exposição dos desenhos dos Mestres europeus em Colecções Portuguesas (Cambridge e Lisboa) e colaborara no da exposição de Vieira Lusitano (Museu de Arte Antiga). Daí o interesse pela obra gráfica do pintor por-tuguês, cuja prática italiana, próxima da técnica do desenho à pena e aguada de Francesco Trevisani e das composições a giz de Benedetto Luti, originou uma vasta produção, longe de estar completamente identificada. Dois estudos para um Martírio de São Lourenço, em Acireale (Catânia) e Liverpool, são assim propostos para o primeiro período romano de Vieira, enquanto uma Coroação de d. João V (antes atribuída a Joseph Werner, o Jovem) e uma alegoria (considerada de um anónimo florentino), ambas parisienses, ingressam igualmente no catálogo do artista, a par de outras folhas mais tardias. Contam-se, entre estas, uma notável Minerva (colecção particular) e um Orfeu, de Würzburg, dado até agora ao círculo de Carlo Maratta, com o qual alguns dos seus desenhos devem andar confundidos. Como as sete folhas

da Albertina de Viena, em que se inclui uma versão da Alegoria da Pintura, indepen-dentemente de outras relacionadas sobre-tudo com gravuras.

Num artigo mais breve, Eduardo Batarda Fernandes divulga ainda a existência da colecção da Faculdade de Belas-Artes do Porto, e das novas aquisições de desenhos italianos, espanhóis e holandeses que o apoio mecenático para ela permitiu enca-minhar. Havendo a registar, por último, uma notícia crítica sobre os desenhos de Fernando Calhau, presentes na retrospec-tiva intitulada “Convocação I e II”, reali-zada em 2006-2007 no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Da autoria de Philippe-Alain Michaud, discorre sobre o universo poé-tico deste artista contemporâneo, falecido recentemente, e as suas composições sobre papel de registos cromáticos totalizantes (também na colecção da FLAD).

E por aqui se fica a parte relativa à arte portuguesa, um tanto desequilibrada em relação à espanhola, sempre mais visível pelo respectivo acervo e produção bibliográfica.

Drawings in Spain and Portugal

Revista Master Drawings, vol. 45, nº 3, Outono de �007Master Drawings Association, Nova Iorque

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Livros

Vozes do marPOR nuno CostA sAntos

O cliché que associa os Açores à poesia não é, sabemo-lo, descabido. A verdade é que, desde há muito, tem nascido no arquipélago vasta produção poética, de diferentes tonalidades e voca-ções, muita dela marcada pela sem-pre invocada melancolia brumosa das ilhas. Outra ideia recorrente (de quem conhece os dois lugares, claro) que não é de todo delirante é aquela que faz uma ponte entre os Açores e a Irlanda – em termos paisagísticos e de universo. Voices from the Islands, uma antologia de poesia açoriana organizada por um irlandês, faz pois confluir dois lugares-comuns que fazem sentido. A edição é da Gávea-Brown, edito-ra que tem publicado várias anto-logias poéticas, de Eugénio de Andrade a Jorge de Sena, passando pelos açorianos Emanuel Félix e José Martins Garcia.

Na introdução, John Kinsella faz um retrato equilibrado e interes-sante das características essenciais da poesia – e da literatura – aço-riana. Kinsella encontra alguma unidade nos temas – o mar, a emi-gração e (sobretudo) o isolamento insular, criador de um território literário autónomo e de uma lin-guagem própria. Nomes como os de Pedro da Silveira, Onésimo Teotónio de Almeida, Eduardo

Bettencourt Pinto e Diniz Borges são referidos jus-tamente como responsá-veis pelo aprofundamento da ideia de “poesia aço-riana”, quer através da recolha de textos quer através do pensamento e da reflexão.

Há uma referência importante ao poeta Roberto de Mesquita, florentino que, tendo vivido no século XIX na ilha das Flores, escreveu uma poesia influenciada pela densidade e pela pose de Baudelaire e Verlaine. Mas também se recordam Côrtes-Rodrigues, o homem do Orpheu nos Açores, a geração do seminário de Angra do Heroísmo, publicações como Gávea e Atlântida e o desenho que os emi-grantes deram ao lirismo das ilhas. São trazidas ao texto as ideias de “açoriani-

dade” e a polémica (estafadíssima, diga--se) em volta da questão da “literatura açoriana”, bem resolvida num parágrafo aqui transcrito da autoria de Onésimo. Mas também se fala de “portugalidade”. Um sentimento que se resume numa boa frase de um dos poetas aqui presentes, o emigrante Heitor Aghá-Silva: “Só sei cho-rar em português” (curiosamente a pala-vra “saudade” não é sempre traduzida da mesma maneira – umas vezes aparece como “yearning”, outras como “nostal-

gia”). Fica a faltar na introdução uma breve nota sobre os “novos” – alguns deles aqui representados, como Mário Cabral e Rui Machado, e apesar de tudo reveladores de uma especificidade literária própria, a ne-cessitar de enquadramento.

O melhor do livro está claramen-te no prazer com que se lê a versão em inglês de alguns poemas maio-res da poesia açoriana – por exem-plo, “As raparigas lá de casa”, de Emanuel Félix, resulta muitíssimo bem na versão “The girls at home”. Outro exemplo: “Eu não sou quem fiquei; o meu delito”, de José Martins Garcia, continua a ser per-feito como “I am not the one who stayed; my crime”. Fica claro neste livro que os poetas açorianos são, nos seus melhores representantes, excelentes e maiores. O pior está nalgumas escolhas de autores e poe-mas menos consistentes e mais questionáveis – que têm o natural efeito de desequilibrar o retrato. Voices from the Islands, por ter os poe-mas no original e em inglês, pode também funcionar como uma boa antologia para quem, no continen-te, nada conhece da poesia açoriana além dos nomes clássicos.

Voices from the Islands: An Anthology of Azorean Poetry

John M. Kinsella (Selection and translation) �007, Gávea-Brown Publications

‘ são trazidas ao texto as ideias de “açorianidade” e a polémica (estafadíssima, diga-se) em volta da questão da “literatura açoriana”, bem resolvida num parágrafo aqui transcrito da autoria de onésimo Almeida.

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Livros

Retratos da AméricaPOR CLArA pinto CALDeirA

Em 1958, a Guerra Fria dominava o mundo, Eisenhower era o Presidente dos Estados Unidos, a corrida espacial estava lançada, ainda existia segregação racial naquele país, e os grandes movimentos sociais estavam por vir.

Nesse ano, Robert Frank publicava a obra, agora reeditada, The Americans – um retrato da América profunda, que resultou de uma viagem de vários meses por todos os cantos do país que o fotógrafo suíço escolheu para viver, no início da década. Como afirma Jack Kerouac, que prefaciou a obra, ao abrir estas páginas feitas a preto e bran-co, e outros contrastes, “não se sabe se uma jukebox é mais triste do que um caixão”. Robert Frank retrata um país de cowboys, de bandeiras patri-óticas, de carros modernos, do advento da televisão, mas também de fissuras entre raças, assimetrias sociais e feridas de pobreza. Embora algumas imagens nos confrontem com símbolos onde a alma existe sem a presença humana, a maioria das fotografias seleccionadas por Robert Frank têm gente dentro. Ou melhor, ame-ricanos. Alguns anos antes de conseguir a

bolsa do Guggenheim que lhe permitiu realizar este livro, Robert Frank declarou à revista Life o que queria transmitir ao públi-co com as suas imagens. Desejava que, ao olhar uma fotografia sua, as pessoas se sen-tissem como quando querem ler um bom verso duas vezes. Kerouac dá-lhe razão,

ao classificar este livro como um poema, acrescentando que muitos livros de poesia podem ser escritos sobre ele. Trata-se de um olhar humano e delicado sobre a diversida-de americana do final dos anos de 1950, uma viagem por dentro da alma de um país em mutação.

Robert Frank dedicou-se também ao cine-ma, abandonando temporariamente a foto-grafia. Acompanhou a geração beatnik, documentando a sua realidade e protago-nistas. As suas afinidades com Kerouac, nome fundamental deste movimento, esten-deram-se à tela, num filme narrado pelo escritor (Pull Miss daisy). Entre várias obras consideradas marcos do cinema avant-gard, destaca-se o polémico documentário sobre uma digressão dos Rolling Stones, que teve algumas restrições de exibição, suscitadas pela própria banda. A ligação à sétima arte parece natural ao folhear The Americans, em que a linguagem cinematográfica e documental está já presente. Sempre atento aos aspectos mais controversos da realidade, e sem observar restrições, a vida de Robert Frank divide-se, desde então, entre estas duas formas artísticas. Em 1996 foi distinguido com o prémio do Hasselblad Center, na Suíça, seu país natal.

Reeditada pela Steidl, em 2008, com pre-fácio original de Jack Kerouac, The Americans mantém-se uma obra intemporal. Porque, para compreender o presente, é importante contemplar o passado, décadas depois do final dos anos de 1950, o legado fotográfi-co do american trotter continua a ser poético.

The Americansrobert FrankSteidl, �008. Fotografias de Robert Frank e prefácio de Jack Kerouac (1ª edição, 1958)

‘ embora algumas imagens nos confrontem com símbolos onde a alma existe sem a presença humana, a maioria das fotografias seleccionadas por robert Frank têm gente dentro. ou melhor, americanos.

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António sena

CoLeCção FLAD

FOTO

GRAFI

A

Sem título, 1979, grafite, aguarela e aguada sobre papel, 50 × 70 cm, Inv. 511

Ainda hoje não é difícil que os desenhos de António Sena levantem dúvidas em muitos de nós relativamente ao seu esta-tuto. À primeira vista poderiam passar por meras folhas de rascunho, lugares onde alguém se demorou a organizar notas avulsas, como se num aturado processo de negociação do pen-samento. Estão lá os números e as cifras, os seus indiscerníveis segredos, a medir esforços na rápida caligrafia. Estão lá as hesi-

tações e os recuos, na sua energia insurgente, concretizada naquele paradoxo tão comum de querer apagar riscando por cima. Estão lá manchas, nódoas, borrões e toda a espécie de sinais e indícios que normalmente não nos ocorreria mencio-nar no inventário das coisas prováveis numa obra de arte. Também por isso, é absolutamente legítimo que tenhamos dúvidas quanto ao estatuto destes desenhos – que os encaremos

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 200978

CoLeCção FLAD

como provocações e que lhes respondamos na exacta propor-ção do confronto que estimulam. É legítimo, e é sobretudo desejável, ou não fossem estas provocações parte integrante das obras que aqui se apresentam, e cuja singularidade deve tanto ao universo dos interesses particulares de António Sena, quan-to ao contexto artístico que as viu nascer.

Iniciada em meados da década de 1960, a obra de António Sena cedo se sintonizou com as propostas da arte internacional da época. As influências que a pop art, o informalismo, a arte conceptual ou mesmo a arte minimal tiveram nos primeiros anos de produção deste artista, materializaram-se em pinturas e desenhos que, lenta mas objectivamente, testaram uma sín-tese possível para esta diversidade de propostas e enquadra-mentos formais. A incorporação de iconografias e processos do quotidiano, conjugada com a procura sistemática da requalifi-cação do gesto, da instrumentalização do signo, e da poética da repetição, reuniram-se no estabelecimento de um programa estético que extraiu desta súmula a sua identidade própria.

Os desenhos que aqui encontramos são um testemunho direc-to desta identidade e deste esforço de síntese. Na sua impressio-

nante contenção de meios, não só podemos identificar os resíduos de toda esta conjuntura, mas também o carácter idios-sincrático da obra de Sena, e uma vitalidade pouco frequente em obras do chamado modernismo tardio. Realizadas em 1979, estas peças poderiam certamente servir para ilustrar as oscilações ocorridas no advento do pós-modernismo. Contudo, a sua ener-gia é claramente moderna, feita de extremadas contradições que procuram coabitar no espaço da obra. Porque, se olharmos bem, estes desenhos inscrevem-se em folhas que parecem meras pági-nas, compõem-se de linhas que por vezes são traços, usam uma cor que nunca domina, promovem um rigor que nunca ordena, prometem uma mensagem que não comunica, e estão termina-dos na forma de um projecto. No fundo, estes desenhos são arte sem o parecer. E se é por isso que são provocações, é também por isso que são relevantes: pelo quanto resistem ao paradigma, pelo quanto desafiam as nossas expectativas e põem a nu as bases do nosso juízo estético e o índice de liberdade que lhe conce-demos.

bruno mArChAnD

António Sena nasceu em Lisboa em 1941. Tendo iniciado o seu percurso académico no Instituto Superior Técnico e na Faculdade de Ciências de Lisboa, Sena abandona a formação na área científica para se inscrever na Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses. Em 1965 parte para Londres como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, cidade onde frequenta a St. Martin’s School of Arts, e onde reside até 1975. Regressado a Lisboa, Sena conjuga a prática artística com a

actividade docente, tendo sido professor de Pintura no Ar.Co. entre 1978 e 199�.De entre as exposições que realizou desde 1964, destacam-se

a sua participação na LIS’79 – que lhe valeu o 1º prémio deste certame – bem como as individuais “Obras sobre Papel” e “Pintura”, ambas no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa, 1990 e �00�, respectivamente), e a antológica “Pintura/Desenho 1964-�003” no Museu de Arte Contemporânea de Serralves (Porto, �003).

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CoLeCção FLAD

FOTO

GRAFI

A

Sem título, 1979, grafite, aguarela e aguada sobre papel, 50 × 70 cm, Inv. 511

Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 200980

editada pelo

INSTITUTO PORTUGUÊS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

da Universidade Nova de Lisboa

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RELAÇÕESINTERNACIONAIS

Revista tRimestRal de

Política externa eAssuntos Internacionais

21

21MAR : 2009 : TRIMESTRAL12,50

60 anos da NATOManuel Fernandes Pereira

António José TeloPedro Manuel Santos

Pedro Aires OliveiraSandra Dias FernandesBernardo Pires de Lima

O princípio de ObamaJosé Gomes André

António Costa SilvaManuela Franco