3º ciclo histÓria - repositorio-aberto.up.pt · sei que posso contar sempre com a tua porta...

662
3º CICLO HISTÓRIA H A p c a 1 Á D 2

Upload: lamnhan

Post on 16-Nov-2018

237 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 3 CICLO HISTRIA

    H

    Apca1

    D2

  • lvaro Curia

    Herdeiros do Muro? Anlise comparada da reao pblica de cinco partidos comunistas

    sul-europeus aos acontecimentos histricos de 1989/1991.

    Tese realizada no mbito do Doutoramento em Histria orientada pelo Professor

    Doutor Manuel Loff

    e coorientada pelo Professor Doutor Joan Botella Corral

    Faculdade de Letras da Universidade do Porto

    maro de 2018

  • Herdeiros do Muro?

    Anlise comparada da reao pblica de cinco partidos

    comunistas sul-europeus aos acontecimentos histricos de

    1989/1991.

    lvaro Cria

    Membros do Jri

    Presidente:

    Doutor Gaspar Manuel Martins Pereira

    Vogais:

    Doutor Pere Yss Solanes

    Doutor Andr Renato Leonardo Neves dos Santos Freire

    Doutora Luciana de Castro Soutelo

    Doutor Jos Virgilio Borges Pereira Doutor Manuel Vicente de Sousa Lima Loff

  • Dedicatria

    No esperava que desde o incio deste ciclo de estudos at ao presente tanto se alterasse na minha

    vida a nvel pessoal. De todas, a alterao mais marcante foi o desaparecimento de uma das

    figuras centrais da minha vida. Esperava ainda poder vir a ler umas pginas deste trabalho

    minha av Magdalena, discutir com ela algumas destas ideias, em momentos onde me contaria as

    suas aventuras clandestinas na RDA do incio dos anos 50, as distribuies socapa de alguns

    exemplares do Avante!, as viagens fronteira espanhola com o objetivo de proporcionar

    disfaradamente fugas mais ou menos perigosas, entre outros episdios no menos inspiradores.

    Da partiramos rapidamente para as histrias da jovem mdica brasileira cujo primeiro trabalho

    foi numa fazenda do interior de So Paulo, onde cosia testas com fios inventados, tratava febres

    com o que tinha mo e fazia partos em tendas chuva tropical, tal era o improviso necessrio.

    Esta dedicatria o meu testemunho de que sem ela nada disto teria sido possvel, j que me

    ensinou o valor imensurvel do conhecimento, aprendido em longas conversas, onde tanto

    poderiam aparecer os testemunhos das tosses de Vivian Leigh num hospital em Londres, como as

    tcnicas infalveis para quebrar um coco ou as descries sobre o racionamento de comida na

    Londres do ps-guerra. A falta que sinto da sua presena todos os dias pesa. Mas pesa com a

    leveza de quem se sente extremamente grato por ter tido o privilgio de conviver 35 anos com

    algum como a minha marcante e inspiradora av Magdalena. E, por isso, mesmo no estando c

    para o ver, este trabalho todo para ela, porque dela resulta.

  • 6

    Esta investigao contou com o apoio da Fundao para a Cincia e Tecnologia, atravs da

    atribuio de uma Bolsa de Doutoramento com a durao de quatro anos e do financiamento do

    perodo de investigao na Universidade Autnoma de Barcelona.

    O desenvolvimento desta tese de doutoramento contou com o apoio do Instituto de Histria

    Contempornea da Universidade Nova de Lisboa, atravs da minha integrao como investigador

    nos quadros do instituto.

  • 8

    Sumrio

    Agradecimentos ......................................................................................................................... 10 Resumo ....................................................................................................................................... 12 Abstract ...................................................................................................................................... 13 Introduo .................................................................................................................................. 14 Captulo 1- Contextualizao histrica e poltica: os partidos e os acontecimentos em estudo . 32

    1.1. - As interpretaes sobre o ciclo de acontecimentos histricos de 1989/1991 na Europa centro-oriental ..................................................................................................................... 32 1.1.1. Os tericos do anticomunismo versus a viso serena e rigorosa dos factos ..... 33 1.1.2. A abertura dos arquivos e a historiografia do comunismo ................................... 37 1,1.3. Vises sobre a perestroika de Gorbatchov ........................................................... 39 1.1.4. Trs retrocessos que conduzem a uma revoluo sem revolucionrios ............ 47 1.1.5. Interpretaes sobre a queda dos governos na Europa de Leste .......................... 50 1.1.6. A (frgil) teoria da terceira vaga de democratizao ........................................ 59 1.1.7. A questo da autoridade e da geopoltica no desmantelamento do sistema .......... 61 1.1.8. Os anos de 1989 a 1991: interpretaes sobre o comunismo no Ocidente europeu ............................................................................................................................ 67 1.2. - Os partidos comunistas em estudo nas dcadas de 70 e 80 ....................................... 98 1.2.1. O Partido Comunista Portugus ............................................................................ 98 1.2.2. Partido Comunista Francs ................................................................................. 116 1.2.3. Partido Comunista de Espanha ........................................................................... 134 1.2.4. O Partido Socialista Unificado da Catalunha ..................................................... 159 1.2.5. O Partido Comunista Italiano .............................................................................. 172

    Captulo 2- Enquadramento Metodolgico .............................................................................. 193 2.1- Teorias de anlise e notas metodolgicas .................................................................. 193 2.1.1 Proposta metodolgica de aplicao das teorias de base ao estudo emprico .......... 194 2.2 - A informao pblica veiculada pelos partidos polticos: imprensa partidria e imprensa comunista ........................................................................................................... 206 2.2.1 O papel e o lugar da imprensa comunista ............................................................. 207 2.2.2 Percurso histrico e posicionamento das publicaes em anlise ........................ 222

    Captulo 3 - Estudo de Caso ..................................................................................................... 234 3.1. Definio de objetivos e hipteses de trabalho ....................................................... 234 3.2. Corpus de anlise: constituio e seleo ................................................................ 236 3.3. Operacionalizao de conceitos .............................................................................. 245 3.3.1. Grelha de identificao prvia do acervo e seriao de texto ............................. 245 3.3.2. Quadro de anlise de enquadramentos ................................................................ 247 3.4. - A reao pblica dos partidos comunistas sul europeus aos acontecimentos de 1989/1991 na Europa centro-oriental ................................................................................ 248

    3.4.1. Anlise de contedo dos textos da imprensa partidria dos partidos estudados sobre as mudanas na Europa centro-oriental .............................................................. 248

  • 9

    3.4.1.1. Mudanas na Polnia: da esperana na Mesa Redonda de fevereiro de 1989 comparao entre Walesa e Mussolini em abril de 1990 ........................................... 251 3.4.1.2. Transformaes na Hungria: do pacote democrtico de janeiro de 1989 vitria do centro-direita em abril de 1990 .............................................................. 331 3.4.1.3. Revoluo na Checoslovquia: o pacifismo de novembro e dezembro de 1989, a memria de 1968 e o anticomunismo institudo em 1990 ...................................... 387 3.4.1.4. RDA: os dias da queda do Muro em novembro de 1989 e a anexao da RDA em outubro de 1990.....................................................................................421 3.4.1.5. Transio de regime na Bulgria: a mudana inspirada do PCB em janeiro de 1990 e a vitria dos ex-comunistas nas eleies livres de junho de 1990.............479 3.4.1.6. Revoluo na Romnia: os ltimos dias de Ceausescu, em dezembro de 1989 e as primeiras eleies livres em maio de 1990.........................................................502 3.4.1.7 A tentativa de golpe de Estado em agosto de 1991: o anncio do desmantelamento da URSS........................................................................................536

    3.4.2. Uma famlia comunista ocidental? Diferentes posicionamentos pblicos para os mesmos fenmenos histricos ................................................................................. 578 3.4.3. Consideraes finais: confirmao das hipteses de trabalho ............................ 630

    Concluso ................................................................................................................................ 639 Referncias Bibliogrficas ...................................................................................................... 653

  • 10

    Declarao de honra

    Declaro que a presente tese de minha autoria e no foi utilizado previamente noutro

    curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituio. As referncias a outros autores

    (afirmaes, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuio, e

    encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referncias bibliogrficas, de acordo

    com as normas de referenciao. Tenho conscincia de que a prtica de plgio e auto-

    plgio constitui um ilcito acadmico.

    Porto, 11 de dezembro de 2017

    lvaro Antnio Curia Fonseca Cardoso Lima

  • 11

    Agradecimentos

    Trabalhando juntos h mais de oito anos, desde o incio do meu Mestrado, o meu

    agradecimento principal vai para o incansvel acompanhamento do meu orientador, o Prof.

    Manuel Loff. Que nunca deixou, ao longo destes anos, de atender um telefonema, responder

    a um correio eletrnico, aceder a um pedido de reunio, de escrita de parecer, de ajuda nas

    mais diversas situaes acadmicas. Cuja capacidade de trabalho e conhecimento eu admiro

    de forma incondicional e que exerceu sempre de forma irrepreensvel o trabalho de orientador,

    guiando-me atravs de possveis opes metodolgicas, proporcionando-me a autonomia

    ideal para desenvolver o meu trabalho e incluindo-me sempre em atividades acadmicas de

    grande valor. Espero contar com esta mesma colaborao na possibilidade de um ps-

    doutoramento!

    Al professor Joan Botella, el meu co-supervisor, qui em va rebre a la UAB i es va

    mostrar sempre disponible per a qualsevol aclariment, i va posar a la meva disposici totes les

    espectaculars installacions de la UAB, sempre receptiu a les meves peticions. Espero tornar

    aviat a Barcelona!

    Fundao para a Cincia e Tecnologia, nomeadamente aos seus colaboradores, que

    me surpreenderam pela pontualidade na resposta a pedidos, e-mails e solicitaes. E, claro,

    por todo o investimento feito nos meus estudos, que espero em breve poder retribuir.

    Universidade do Porto, Faculdade de Letras e ao Instituto de Histria

    Contempornea da Universidade Nova de Lisboa, por me proporcionarem as condies para

    o desenvolvimento do meu trabalho.

    Universidade Autnoma de Barcelona, onde desenvolvi o perodo de mobilidade com

    o objetivo de cumprir o perodo referente ao Doutoramento Europeu e onde sempre me senti

    muito bem-vindo.

    minha me, pois j lho disse uma vez e repito: no existe nunca solido quando existe

    me. Sei que posso contar sempre com a tua porta aberta para mim e com as tuas palavras,

    vindas de quem quer nica e exclusivamente o melhor para mim. Desculpa a falta de ateno

  • 12

    nas alturas mais atribuladas deste trabalho mas infelizmente no te posso tranquilizar:

    espero que mais trabalho venha, a partir deste, e que estejas sempre ao meu lado.

    minha irm Mariana, minha cmplice, parceira de jogo, confidente, com quem me

    zango e fao as pazes sem me aperceber que me zanguei e fiz as pazes e ao meu cunhado

    Nuno. A nossa conexo, Milhim, vai sempre existir. A tua fora de vontade para ultrapassar

    obstculos , tambm, uma fonte de inspirao para mim.

    Raquel, a quem no preciso de escrever grande coisa porque ela sabe quase sempre

    em que estou a pensar. A certeza e a qualidade da tua amizade deixam-me a pensar que sou

    um rapaz cheio de sorte. E o facto saberes apenas vagamente sobre o que trata a minha tese

    a prova mais evidente dessa amizade: quando estamos juntos, definitivamente trabalho no

    entra.

    Ao Diogo, que me acompanhou na ltima fase deste trabalho e a quem muito tenho de

    agradecer pela amizade, cumplicidade e disponibilidade. uma trilogia nica, que espero estar

    altura de a saber valorizar e acarinhar!

    Margarida, o maior amor da minha vida. Que me ensina, todos os dias, mais do que

    qualquer livro que possa ter na estante. Que alinha em qualquer programa e para quem eu

    serei sempre o melhor ser do mundo. No entanto, tu que o s e nem sabes disso.

    Ao Ruben, porque as histrias no se apagam com o tempo. Continuam sempre num

    espao qualquer onde s ficaro memrias boas e tranquilas.

    Aos meus primos Paula, Antnio Augusto, Jaqueline e s minhas priminhas Sofia,

    Stephanie e Vitria, aquele abrao transatlntico e quem me dera estar mais tempo do vosso

    lado!

    Aos meus amigos, tendo eles a perfeita conscincia de saberem que eu sei que eles

    sabem quem so.

    Por ltimo, mas em primeiro, ao meu av Antnio, de quem a fora, resistncia e

    determinao eu gostaria de ter herdado um tero. Este trabalho tambm, sem qualquer

    dvida, para ele.

  • 13

    Resumo

    Palavras-chave: socialismo real; revolues de 1989; comunismo ocidental; imprensa partidria; comparativismo histrico; Histria do Tempo Presente; historiografia do

    comunismo

    A presente investigao tem como objetivo realizar um estudo comparativo da reao

    pblica de cinco partidos comunistas sul-europeus (PCP, PCE, PSUC, PCF e PCI) ao ciclo de

    acontecimentos histricos de 1989/1991 que compreendem, entre outros, a deposio dos

    governos das repblicas populares da Europa centro-oriental, e episdios relacionados com

    essas alteraes, como a legalizao do sindicato Solidariedade, na Polnia (fevereiro de

    1989), a reabilitao das personalidades envolvidas na revoluo hngara de 1956, na Hungria

    (particularmente, com a homenagem a Imre Nagy, em abril de 1989), a Revoluo de Veludo,

    na Checoslovquia (novembro e dezembro de 1989) a queda do Muro de Berlim, na RDA

    (novembro de 1989), a deposio, julgamento e execuo de Nicolae Ceausescu na Romnia

    (dezembro de 1989), a vitria dos ex-comunistas nas primeiras eleies livres na Bulgria

    (junho de 1990), a reunificao alem (formalizada em outubro de 1990) e o golpe de Estado

    na URSS (agosto de 1991). O estudo realizado atravs de anlise de material proveniente da

    imprensa partidria dos anos em questo. Foi elaborada uma investigao multidisciplinar,

    recorrendo a ferramentas da Histria do Tempo Presente, da historiografia do comunismo e

    das Cincias da Comunicao, para chegar a resultados que permitissem uma anlise

    comparativa sustentada em hipteses de trabalho devidamente fundamentadas. Os partidos

    polticos em questo, alguns deles j em plena fase de modificao durante o ciclo em estudo,

    so levados a reagir a esses acontecimentos: a comunicao dessas reaes pblicas e

    interpretaes que comparamos, contrapondo-as com as opes estratgicas seguidas pelos

    prprios partidos ao longo destes trs anos.

  • 14

    Abstract

    The present research aims at carrying out a comparative study of five Southern European

    communist parties (PCP, PCE, PSUC, PCF and PCI) public reaction to the cycle of the

    historical events of 1989/1991 which include, inter alia, the deposition of the governments

    from Central and Eastern Europe, and all the episodes related to these changes, such as the

    legalization of the Solidarity union in Poland (February 1989), the rehabilitation of the

    personalities involved in the 1956 Hungarian revolution in Hungary (particularly in April

    1989, with the tribute to Imre Nagy), the Velvet Revolution in Czechoslovakia (November

    and December 1989) the fall of the Berlin Wall in the GDR (November 1989), the deposition,

    trial and execution of Nicolae Ceausescu in Romania (December 1989), the victory of the ex-

    communists in the first free elections in Bulgaria (June 1990), the German reunification

    (formalized in October 1990) and the coup d'tat in the USSR (August 1991). The study was

    carried out through the analysis of party press material from the years in question. A

    multidisciplinary research was developed, using tools from the History of Present Time, the

    Historiography of Communism and Communication Sciences, to arrive at results that allowed

    a comparative analysis based on duly substantiated working hypotheses. The political parties

    in question, some of them already in the midst of a change during this course of events, are

    led to react to them: it is the communication of these reactions and interpretations that we

    compare, relating them with the strategic options followed by the parties themselves over

    these three years.

    Keywords: real socialism; Revolutions of 1989; Western communism; Party press; Historical comparative research; History of the present time; Historiography of communism

  • 15

    Introduo

    It is a melancholic illusion of those who write books and articles that the printed

    word survives. Alas, it rarely does. The vast majority of printed works enter a state of

    suspended animation within a few weeks or years of publication, from which they are

    occasionally awakened, for equally short periods, by research students.

    Eric Hobsbawm1

    No dia em que caiu o Muro de Berlim eu tinha feito onze anos havia menos de um ms.

    Tnhamos, em casa, uma televiso. Onde conseguamos, com algum esforo e muita chuva,

    apanhar o sinal aberto e assumidamente clandestino que a antena parablica do quartel de

    Bombeiros Sapadores da Constituio, no Porto, proporcionava aos habitantes das

    redondezas. E que nos trazia, j em 1989, uma srie de canais estrangeiros, que interrompiam

    o monoplio dos dois canais nacionais. Entre eles, a Sky News, a RTL, ento um autntico

    mito urbano, um ou outro canal informativo, onde provavelmente j estaria a CNN, ainda no

    internacionalmente conhecida pela sua cobertura em direto da Guerra do Golfo de 1990/1991

    e, claro, a MTV. A um pr-adolescente urbano, fascinado pela pop norte-americana e vido de

    novidades sobre Madonna, Prince, New Kids on the Block ou Guns NRoses, a MTV e os seus

    charts interminveis de hits eram a fonte principal de informao. Tudo o resto, como a queda

    do Muro de Berlim ou a perestroika de Gorbatchov, eram, naturalmente, realidades acessrias,

    penduradas aqui e ali durante a conversa dos adultos.

    No sero em que Gnther Schabowski se ter precipitado ao, atabalhoadamente,

    interpretar as informaes de um dado comunicado de imprensa da direo do SED2 sobre a

    abertura das fronteiras na RDA como tendo efeito imediato, estvamos, l em casa, no

    universo MTV, em pleno incio de dois dias ininterruptos com emisso dedicada a Madonna.

    1 E. J. Hobsbawm, How to Change the World: Marx and Marxism 1840-2011(Londres: Little Brown and Company, 2011). 2 Partido Socialista Unificado da Alemanha, Sozialistische Einheitspartei Deutschlands, em alemo.

  • 16

    Seria quarta-feira noite, a antena parablica dos bombeiros exibia em sinal aberto e foi

    necessria uma grande negociao, da minha parte, para que em vez de assistir ao noticirio

    da CNN, de onde emergiam imagens daquilo que eram, altura, para mim, apenas pessoas a

    trepar um Muro (algo que fazia todos os fins-de-semana com os meus amigos), a famlia se

    reunisse antes perante o videoclip de Express Yourself. No obstante a sua exclamao:

    Daqui a uns anos vais perceber a importncia do que est a acontecer!, a cedncia do meu

    pai foi relativamente fcil de conquistar e eu pude seguir Madonna e a MTV com a mesma

    ateno de quem assiste a acontecimentos histricos de uma importncia singular.

    No estaria sozinho, calculo, na minha clara prioridade dada a Madonna em relao a

    Krenz ou Gorbatchov. Estou convencido que todos ns, que em 2017 temos mais de trinta e

    cinco e menos de quarenta anos, posta a opo entre assistir derrocada do Muro de Berlim

    ou aos MTV Video Music Awards em diferido, em novembro de 1989, no teramos hesitado

    um segundo. A nossa memria sobre os acontecimentos histricos de 1989/1991, entre os

    quais se insere a abertura definitiva das fronteiras da RDA, , semelhana de outros grandes

    momentos da Histria, como a Guerra do Golfo de 1990/1991, uma memria construda a

    partir de testemunhos, de interpretaes, de lies sobre esses mesmos acontecimentos. Ainda

    que j tivssemos nascido data em que se desenrolaram perante ns alguns dos

    acontecimentos histricos mais importantes da poca contempornea, era naturalmente, pela

    nossa idade, pouca ou nenhuma a importncia que lhes atribuamos.

    Nesse sentido, o trabalho que levei a cabo nesta tese tem claramente uma motivao de

    natureza pessoal, que a de compreender como se desenrolaram e que efeitos provocaram

    esses acontecimentos, que eu no acompanhei em direto, e observ-los hoje atravs dos olhos

    daqueles que lhes prestaram maior ateno. Em vrios encontros cientficos onde tive j a

    oportunidade de debater algumas das concluses do meu estudo, so vrios os testemunhos

    que encontro, indicando-me, na grande maioria das vezes, sentidos completamente opostos

    entre si sobre como determinado facto se passou, como determinada personalidade reagiu mas

    sobretudo como dado partido se debruou sobre dada questo. Os testemunhos, as

    interpelaes e as interpretaes so por vezes to dspares que chego a pensar se, altura,

    no teriam tambm eles a televiso sintonizada na MTV

  • 17

    Naturalmente, a inteno de quem me interpela, com a sua prpria interpretao de

    determinado acontecimento ou de uma dada reao, ser a melhor: procurar orientar-me

    atravs das suas prprias memrias e representaes que, ao contrrio das minhas, seriam

    muito mais vvidas e estariam muito mais focadas, merc da idade, nos acontecimentos que

    se desenrolaram ao longo daqueles trs anos. No obstante, ao ouvi-los, ao ler as diversas

    interpretaes sobre os acontecimentos que depuseram definitivamente o socialismo real na

    Europa centro-oriental, ao consultar textos da imprensa generalista, arquivos, ao procurar

    informao na Internet, a confuso em torno de um facto vinha sempre, por um lado,

    carregado de uma extensa carga de atribuies prprias de quem vivenciou, de forma passiva

    ou mais interventiva, um determinado momento da Histria do Tempo Presente e, por outro,

    impregnadas de uma valorao poltica fortssima.

    A minha motivao de natureza pessoal justifica-se sobretudo pelo meu amplo interesse

    pelos Estudos do Comunismo, j objeto de tema central da minha dissertao de Mestrado,

    particularmente no que diz respeito aos estudos relacionados com os partidos comunistas do

    Sul da Europa. Mas minha motivao pessoal juntou-se, ento, um forte objetivo de carter

    cientfico, motivado pela necessidade de encontrar, entre tantas observaes e leituras,

    interpretaes concretas para aquele ciclo de acontecimentos. A descrio histrica dos

    acontecimentos de 1989/1991 est amplamente tratada por historiadores como Hobsbawm3,

    Gotovitch4, Lewin5, Brown6 ou Soulet7, referncias essenciais no estudo da Histria

    Contempornea e s quais recorro em vrios momentos do meu estudo, valorizadas por mim,

    neste trabalho, pela amplitude de reflexo que um trabalho realizado com uma determinada

    distncia temporal em relao aos acontecimentos permite ao historiador.

    Interessou-me, ento, e dado o j mais que exaustivo estudo histrico dos

    acontecimentos em si, estudar este ciclo de acontecimentos atravs dos olhos de alguns dos

    agentes polticos que no s os vivenciaram mais atentamente, como tambm foram obrigados

    a tornar pblicas as suas interpretaes e posicionamentos. Verifiquei, pela anlise da

    3 E. J. Hobsbawm, A Era Dos Extremos. Histria breve do Sc. XX (Lisboa: Presena, 1996). 4 Jos Gotovitch, Pascal Delwit, e Jean-Michel De Waele, L'Europe des Communistes, Questions Au XXe Sicle (Bruxelles: ditions Complexe, 1992). 5 Moshe Lewin, O Sculo Sovitico, trad. Miguel Serras Pereira (Porto: Campo da Comunicao, 2004). 6 Archie Brown, Ascenso e queda do Comunismo(Alfragide: Edies Dom Quixote, 2010). 7 Jean-Franois Soulet, Histria da Europa de Leste: da Segunda Guerra Mundial dos Nossos Dias(Lisboa: Teorema, 2006).

  • 18

    literatura sobre o tema, um relativo vazio sobre a forma como os partidos comunistas

    ocidentais, particularmente os do Sul da Europa, interpretaram e sobretudo comunicaram a

    sua leitura dos acontecimentos. A bibliografia publicada sobre esta temtica centra-se na

    anlise de casos especficos de forma isolada, recorre sobretudo a fontes secundrias e muito

    escassa no que se refere explorao de estudos comparativos e interdisciplinares.

    No foi, de todo, e do ponto de vista cientfico, uma organizao da viso oficial de

    determinados partidos polticos perante acontecimentos histricos que me propus estudar mas

    antes, partindo da descrio do acontecimento histrico em si, verificar qual foi a interpretao

    dada por cinco partidos comunistas sul-europeus, que tipo de estratgias utilizaram na sua

    comunicao ao pblico, atravs do seu principal rgo de imprensa, e como esse ciclo

    histrico influiu, ou no, nas tomadas de posio dentro desses mesmos partidos ao longo

    desses anos.

    O mbito desta dissertao passou, ento, por realizar um estudo comparativo,

    transnacional e interdisciplinar sobre a reao de partidos polticos a acontecimentos

    histricos que supem uma alterao e que provocaram, nas estruturas desses partidos, a

    necessidade de uma tomada de posio. Assim, analisei a reao pblica de cinco partidos

    comunistas do sudoeste europeu face a alguns dos acontecimentos ocorridos na Europa centro-

    oriental, entre 1989 e 1991, que levaram ao fim do socialismo real. Os partidos em questo

    so o Partido Comunista Portugus (PCP), o Partido Comunista de Espanha (PCE), o Partido

    Socialista Unificado da Catalunha (PSUC), o Partido Comunista Italiano (PCI) e o Partido

    Comunista Francs (PCF). Esta escolha foi motivada por fatores externos s estruturas

    polticas, relacionados com a proximidade cultural das sociedades onde se inserem, mas

    tambm fatores internos, relacionados com a sua origem, o seu percurso e as diferentes vias

    seguidas aps o colapso do socialismo real.

    O meu estudo poder-se-ia ter centrado nos partidos comunistas do socialismo real,

    nos partidos comunistas escandinavos ou, at, naturalmente, em partidos doutras famlias

    partidrias que no a comunista. A escolha destes cinco partidos sul-europeus foi motivada

    sobretudo pelo facto de, altura dos acontecimentos de 1989/1991, serem, na sua maioria,

    partidos comunistas com franca robustez eleitoral, com influncia junto de organizaes de

    massas como os sindicatos e, sobretudo, por alguns deles estarem j em processo de mutao

  • 19

    evidente antes e durante o ciclo de acontecimentos que aqui se estudar. Num estudo futuro,

    no entanto, e como j me tem sido sugerido, a porta fica entreaberta anlise da reao pblica

    de outros grupos partidrios, com a possibilidade de estender o estudo comparativo. A anlise

    referente aos partidos relacionados, a riqueza das fontes primrias e a ausncia quase absoluta

    de estudos comparativos sobre os mesmos, constituram, desde incio, um motivo aliciante

    para a investigao acadmica.

    Importou-me analisar a informao tornada pblica pelos partidos. Em particular, a

    imprensa partidria enquanto veculo direto de comunicao entre o partido e o pblico,

    percebendo como foi transmitida a reao dos partidos aos acontecimentos na Europa centro-

    oriental e como estes foram interpretados. Atravs da anlise de contedo, verifiquei de que

    forma a informao pblica partidria desses anos, e relativamente a esses acontecimentos,

    foi enquadrada em determinados ngulos, no sentido de motivar determinadas interpretaes.

    Trata-se, ento, de um estudo promovendo a interligao entre a Cincia Poltica e a Histria

    Poltica - dando preeminncia anlise de acontecimentos histricos e sua interpretao - e

    as Cincias da Comunicao (nomeadamente a comunicao poltica) - atravs da anlise de

    imprensa partidria e da utilizao de tcnicas de estudo do discurso. Como referi, no se

    tratou de reescrever a histria daquele ciclo de acontecimentos baseando-me nas

    interpretaes oficiais de cinco partidos polticos, nem foi objetivo alcanar uma verdade

    histrica sobre os acontecimentos em si, j amplamente estudados do ponto de vista

    acadmico, mas antes v-los atravs da lente de cinco agentes polticos, perceber que tipo de

    estratgias de comunicao estes levaram a cabo e, sobretudo, compar-las entre si.

    A questo central prende-se, ento, com a comparao das interpretaes veiculadas

    pelos cinco partidos atravs do seu principal meio de comunicao pblica, reagindo a

    acontecimentos histricos ocorridos entre 1989 e 1991, e de que forma estas se conjugam

    com as opes polticas tomadas no decorrer destes anos de forma a perceber se estes partidos

    so, realmente herdeiros do Muro.

    O ttulo da tese aponta para a formulao desta questo e para o objetivo central de

    realizar uma anlise comparada da reao pblica das cinco partidos face ao ciclo de

    acontecimentos histricos de 1989/1991 que compreendem, entre outros, a vitria do

    Solidariedade na Polnia (junho de 1989) e a eleio do primeiro chefe de governo no-

  • 20

    comunista da Polnia desde 1945 (agosto de 1989); o aumento do fluxo de emigrantes da

    RDA (a partir de agosto de 1989); os episdios conducentes queda do Muro de Berlim

    (outubro e novembro de 1989), a Revoluo de Veludo na Checoslovquia (novembro de

    1989); os episdios referentes deposio do governo romeno (dezembro de 1989); as

    eleies na Polnia, Checoslovquia, Bulgria, Hungria e RDA (maio e junho de 1990); os

    episdios conducentes reunificao alem (ao longo do ano de 1990); as eleies

    presidenciais polacas (novembro de 1990) e a tentativa de golpe de Estado na URSS (agosto

    de 1991).

    A interrogao herdeiros do Muro, que antecede o ttulo da tese, est, naturalmente,

    sujeita interpretao do leitor. Mas foi meu objetivo principal, nas concluses deste trabalho,

    dar-lhe uma resposta. A ideia de uma herana geralmente supe procedncia, continuidade,

    legitimidade, transferncia mas pode tambm supor rutura, conflito, intervalo e mudana. A

    imagem do Muro , claro, a do Muro de Berlim, smbolo essencial de todo este processo de

    transformao. Ao perguntarmo-nos que tipo de herdeiros do Muro estes cinco partidos

    comunistas so, se que o so, estamos a assumir que, pelo facto de estes serem partidos

    comunistas, tiveram qualquer tipo de relao poltica com o socialismo real. Descobrir a(s)

    resposta(s) a esta questo, esclarecendo o posicionamento destes partidos em relao a tudo o

    que de simblico representa a queda do Muro de Berlim, faz parte do trabalho interpretativo

    desta tese.

    Do objetivo principal da investigao, e para que fosse possvel atingi-lo, decorreram

    outros objetivos. Em primeiro lugar, foi necessrio estudar a literatura existente, atravs de

    uma exaustiva avaliao do estado da arte, em que foi feita uma reviso bibliogrfica a

    diversos nveis:

    a) Interpretaes oriundas das vrias cincias sociais (de natureza histrica,

    sociolgica, antropolgica, politolgica, entre outras) sobre os acontecimentos dos anos de

    1989/ 1991 na Europa central e de Leste. Mais do que uma descrio dos factos, confrontmos

    as vrias interpretaes acadmicas relativas a estes acontecimentos, fornecendo um mapa

    terico interpretativo;

    b) A gnese, as caractersticas e o papel da imprensa partidria comunista,

    traando um perfil do papel desta imprensa no apenas no seio dos partidos e junto dos

  • 21

    militantes mas tambm na sociedade em geral. Dentro da imprensa comunista, prestmos

    especial ateno caraterizao dos rgos de informao que servem de base ao estudo;

    c) A contextualizao dos partidos em estudo nas diferentes sociedades, as

    adaptaes e interpretaes ao longo dos anos 70 e 80.

    d) A reao dos partidos polticos em estudo aos acontecimentos de 1989/ 1991,

    procurando perceber, atravs da literatura publicada sobre o caso, quais foram as principais

    interpretaes.

    Em segundo lugar, o objeto central deste estudo centrou-se na anlise das estratgias de

    comunicao pblica dos partidos polticos aos acontecimentos de 1989/1991, atravs do

    estudo de textos da imprensa partidria e de documentos polticos, propondo um estudo

    comparativo entre os diferentes partidos atravs de um mtodo que compreendeu vrios

    instrumentos metodolgicos:

    a) Uma grelha de anlise reunindo os mais de 4000 documentos recolhidos, onde

    foram estudados os textos publicados pelos partidos no mbito da sua reao s matrias em

    estudo. A grelha de anlise foi elaborada de forma a poder ser trabalhada do ponto de vista

    estatstico e a poder servir de ferramenta de trabalho a outros estudos do gnero.

    b) A anlise de contedo, tendo como alvo de estudo as particularidades que

    permitiram estabelecer parmetros e criar relaes intra e extratextuais nos elementos

    analisados. As primeiras grandes concluses quanto reao pblica dos partidos aos

    acontecimentos histricos em estudo surgiram nesta fase da investigao.

    c) A criao de um quadro histrico comparativo, utilizando a informao

    reunida, entre as diversas interpretaes e posicionamentos adotados pelos vrios partidos,

    estudados atravs da anlise de contedo dos textos da imprensa partidria.

    Todos estes objetivos concorreram, enfim, para traar um quadro preciso sobre a reao

    pblica daqueles partidos ao derrube do socialismo real, relativamente forma como

    adaptaram as suas estratgias de comunicao, e observar o discurso poltico, que, nesta altura,

    comunicou opes polticas distintas.

    O estudo das reaes pblicas destes partidos aos acontecimentos histricos de

    1989/1991 torna-se pertinente por diversas razes. Em primeiro lugar, importante perceber

    se o posicionamento adotado foi comum no seio do comunismo ocidental ou se, por outro

  • 22

    lado, houve estratgias diversas e reaes pblicas distintas, conforme os partidos e as

    sociedades em que se inserem e conforme as opes polticas que seguiram no decurso dos

    acontecimentos. Embora abraando a ideologia comunista, estes partidos tinham diferentes

    posicionamentos dentro da esquerda e face a vrias questes de fundo referentes ideologia

    que abraam - no foi de estranhar, portanto, que em referncia aos acontecimentos em

    questo, os partidos optassem por estratgias de posicionamento pblico tambm elas

    distintas.

    Em segundo lugar, os partidos comunistas do ocidente europeu tiveram, pela sua

    dimenso e influncia, um papel decisivo durante a Guerra Fria e, mesmo no decorrer dos

    acontecimentos de 1989/1991, no foram assistentes passivos do resvalar do socialismo

    real. Em Frana, Espanha (com uma nota especial para a Catalunha), Itlia, e Portugal,

    particularmente, os partidos comunistas tiveram uma importncia assinalvel, ao longo da

    segunda metade do sc. XX que, exceo da Finlndia e da Grcia, no encontra par nos

    outros pases da Europa capitalista. O milho de militantes do PCF e outro do PCI, nos anos

    80,os 200 mil do PCP, os 40 mil do PSUC e os 250 mil do PCE fazem destes partidos, nas

    sociedades em que se inserem, partidos de massas de facto. E no obstante a reduo

    significativa de militantes ao longo dos anos 80, todos os partidos em estudo eram, ainda, em

    1989, grandes atratores de militncia efetiva, o que os tornava, como referimos, atores com

    um papel determinante junto de sindicatos, organizaes de trabalhadores e do prprio

    governo e parlamento.

    Em terceiro lugar, e decorrente do ponto anterior, trata-se de partidos com uma

    influncia concreta no curso da histria daquelas sociedades. Em Espanha e em Portugal, o

    PCE, o PSUC e o PCP foram fundamentais no derrube das ditaduras que a vigoraram at aos

    anos 70, da mesma forma que o PCI e o PCF tiveram uma importncia decisiva no perodo da

    Libertao da Europa, nos anos 40. Por outro lado, a vivncia de um perodo de

    clandestinidade, maior no caso portugus, espanhol e catalo e menor no caso francs e

    italiano, dotaram estes partidos de uma histria rica e de particularidades fascinantes para um

    estudo deste gnero. interessante, tambm, estudar estes partidos e estes dirigentes num

    momento de grande perturbao e perceber de que forma as suas reaes perante os factos vo

    sendo transmitidas ao pblico.

  • 23

    Esta investigao poderia incluir o caso grego. De um ponto de vista da anlise prtica,

    no entanto, e j que nos propusemos estudar exaustivamente documentao escrita, a lngua

    grega colocava um impedimento bvio, que no acontece com as outras cinco lnguas, cuja

    compreenso escrita dominamos. Contudo, ao propor uma grelha de anlise transversal, esta

    poder vir a ser utilizada em estudos posteriores que incluam o caso grego, assim como outros

    casos europeus ocidentais, como, por exemplo, o finlands, ou, ainda, casos referentes a outras

    famlias polticas.

    Quanto ao caso catalo, o nico partido no estatal analisado, decidimos estud-lo por

    duas razes: em primeiro lugar, a importncia do partido no mbito do contexto espanhol, em

    termos de militncia e influncia, j que, altura da legalizao, em 1977, o PSUC tinha cerca

    de 40 mil militantes, sendo um dos partidos comunistas mais robustos da Europa ocidental e,

    em 1980, a terceira fora, em termos de votos, na Catalunha. Em segundo lugar, a

    particularidade de ter seguido uma via distinta em relao ao PCE, aproximando-se mais

    soluo italiana do que espanhola, o que constitui um caso singular dentro dos partidos

    comunistas de mbito regional, muito embora a Catalunha no seja uma regio mas antes uma

    comunidade autnoma. Ainda no que se refere Catalunha, optmos por excluir o PCC desta

    anlise, muito embora este tenha vindo a participar, posteriormente, em 2003, no governo

    autonmico, escolhendo antes o representante mais robusto, em termos de militncia, e com

    um percurso histrico de maior relevo.

    Analismos estes partidos tambm por critrios diferenciadores. Particularmente, a

    incluso de quatro destes partidos na vertente do eurocomunismo (o francs, italiano, o catalo

    e o espanhol), por oposio ao caso portugus, englobado, por autores como Rizzo8, num

    grupo apelidado de eurocomunistas anmalos, do qual tambm fariam parte os jugoslavos

    e o comunismo asitico, em particular o indiano.

    Optmos, ainda, por estudar apenas, dentro de cada sociedade, o partido comunista de

    maior relevo, utilizando, para isso, critrios relativos relevncia eleitoral, militncia,

    antiguidade e presena no governo. Deixmos de lado, portanto, outros partidos comunistas,

    de menor expresso, decorrentes, por exemplo, das cises motivadas pela ciso sino-sovitica

    ou por outras cises internas nos partidos principais. Seria o caso, em Portugal, do PCTP-

    8 Aldo Rizzo, La Frontiera Dell'eurocomunismo(Roma-Bari: Laterza, 1977).

  • 24

    MRPP (1976) ou, em Espanha, de partidos comunistas que surgem no seguimento de cises

    internas do PCE, como o caso do PCPE (1984), do PTE-ORT (1979) ou, na Catalunha, do

    PCC (1982), embora este ltimo seja um caso distinto, uma vez que passa a fazer parte da IU

    j em 1989.

    Do ponto de vista da motivao inerente escolha de uma determinada metodologia,

    acreditamos que, embora se tenha perdido na atualidade a noo de uma famlia comunista, e

    mesmo, na altura dos acontecimentos em estudo, essa terminologia j fosse discutvel para

    estudar os partidos comunistas ocidentais, possvel trabalhar o percurso destes partidos

    atravs de uma grelha comum de anlise. Particularmente se esse estudo versar sobre

    momentos especficos e sobre interpretaes que todos tiveram que fazer, como foi o caso da

    reao pblica aos acontecimentos de 1989/ 1991.

    A prpria discusso em torno destes temas levou-nos a compreender melhor a atualidade

    da esquerda europeia, e a dispor de elementos precisos para refletir sobre questes que lhe so

    inerentes, quer no debate histrico, quer no debate poltico, como o seu grau de

    democraticidade, o seu posicionamento nas respetivas sociedades e no contexto europeu.

    Os Estudos do Comunismo, de uma forma geral, pecam pela demasiada parcialidade.

    Poucos so os investigadores que realizam estudos transversais, comparativos e os que vo

    alm da descrio factual dos dados e dos acontecimentos. A perspetiva comparada, nestes

    casos, tem vindo a ser dificultada pela variedade de sociedades onde se inserem os partidos,

    que multiplicam os fatores a ter em conta, e, tambm, pela dificuldade efetiva em analisar

    fontes primrias em vrios idiomas, publicados quase na totalidade apenas nas lnguas dos

    pases ou regies onde se inserem.

    Tendo havido motivao suficiente para ultrapassar essas dificuldades, propusemos um

    estudo comparativo, utilizando para isso ferramentas especficas de vrias disciplinas e uma

    anlise centrada num momento especfico mas adaptvel tambm a outros contextos e

    podendo servir de suporte a outros estudos do gnero.

    Foi, no entanto, essencial recorrer literatura especfica sobre o assunto, fosse referente

    aos acontecimentos histricos de 1989/1991, fosse a referente aos partidos comunistas. No

    perodo em anlise, a ideologia comunista desaparece do espao europeu enquanto ideologia

  • 25

    oficial de Estado num qualquer pas europeu (Brown9; Brown10; Bosco11; Fontana12;

    Fukuyama13; Giovannini14; Gotovitch et al.15; Pons16; Curtois17; Cortesi18; Gaspar19; Guerra20;

    Hollander21, Narkiewicz22), com o desmoronamento do socialismo real na Europa centro-

    oriental e, sobretudo, com a enumerao dos seus problemas, como o estrangulamento

    econmico, a corrupo, o abuso de poder, o enriquecimento ilcito das cpulas partidrias, a

    represso policial ou a censura, considerados contrrios imagem que as estruturas

    governativas daquelas sociedades pretendiam fazer transparecer para o Ocidente.

    Os partidos comunistas do Ocidente europeu, impulsionados pela opinio pblica e pelo

    facto de manterem relaes com os partidos comunistas dos pases do socialismo real veem-

    se na necessidade de reagir ao destapar das fragilidades dos governos do Leste europeu ao

    resto do mundo (Bell23; Bosco2425; Bull26; Calise27; Diamandouros e Gunther28). Estudmos e

    comparmos neste trabalho as interpretaes feitas pelos partidos sobre esses acontecimentos,

    na altura.

    No entanto, para os partidos comunistas do Ocidente, os acontecimentos de 1989/ 1991

    no representaram a primeira vez que estes tiveram que reagir a momentos que determinaram

    convulses internas: a desestalinizao dos anos 50, a ciso sino-sovitica, no incio dos anos

    9 Brown, Asceno e Queda do Comunismo. 10 M.E. Brown, The Historiography of Communism (Temple University Press, 2009). 11 Anna Bosco, Comunisti : Trasformazioni di Partito in Italia, Spagna e Portogallo, Ricerca (Bologna: Il mulino, 2000). 12 Josep Fontana, La Historia despues del fin de la Historia: Reflexiones acerca de la situacion actual de la ciencia historica (Barcelona: Crtica, 1992). 13 Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man (Nova Iorque: Free Press, 1992). 14 Fabio Giovannini, Se tornasse il Comunismo. Tramonto e Rinascita di Una visione del mondo (Milo: Il Minotauro, 1996). 15 Gotovitch, Delwit, e De Waele, L'europe Des Communistes. 16 Silvio Pons, Berlinguer e la fine del Comunismo (Turim: Giulio Einaudi, 2006). 17 Stphane Courtois et al., Le livre noir du Communisme. Crimes, Terreur, Rpression., ed. Stphane Courtois (Paris: ditions Robert Laffont, S.A., 1997). 18 L. Cortesi, Storia del Comunismo: da utopia al Termidoro Sovietico (Manifestolibri, 2010). 19 Carlos Gaspar and Vasco Rato, Rumo Memria: Crnicas Da Crise Comunista (Lisboa: Quetzal, 1992). 20 Adriano Guerra, Il Crollo dell'impero Sovietico, Politica E Societ (Roma: Editori riuniti, 1996). 21 Paul Hollander, O Fim do Compromisso. Intelectuais, Revolucionrios d Moralidade Poltica (Colares: Pedra da Lua, 2008). 22 Olga A. Narkiewicz, The End of the Bolshevik Dream: Western European Communist Parties in the Late Twentieth Century (Londres/ Nova Iorque: Routledge, 1990). 23 D.S. (ed.) Bell, Western European Communists and the Collapse of Communism, ed. D.S. Bell (Londres: Berg Publishers, 1993). 24 Bosco, Comunisti : Trasformazioni di partito in Italia, Spagna e Portogallo. 25 Anna Bosco e Leonardo Morlino, Party Change in Southern Europe (Londres: Routledge, 2007). 26 Martin J. Bull e Paul Heywood, West European Communist Parties after the Revolutions of 1989 (Nova Iorque: St. Martin's Press, 1994). 27 M. Calise, Come cambiano i partiti (Il mulino, 1992). 28 Nikiforos P. Diamandouros e Richard Gunther, Parties, Politics, and Democracy in the New Southern Europe, The New Southern Europe (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2001).

  • 26

    60, o golpe de Praga, em 1968, a invaso do Afeganisto, em 1979, a represso do sindicato

    polaco Solidariedade, no incio dos anos 80, ou mesmo a opo de Gorbatchov pela

    Perestroika, desde 1985, tinham, na sua maioria, j colocado aos partidos em estudo a

    necessidade de reagir. O facto fez-nos tambm querer investigar, portanto, a existncia de um

    padro na comunicao, que no deixa de ser uma comunicao de crise, utilizada por estes

    partidos, ou a possibilidade de uma reviso sobre posicionamentos pblicos tomados em

    algum daqueles momentos.

    Por outro lado, a desconfiana dos outros partidos face aos partidos comunistas,

    receosos dos seus objetivos revolucionrios, do desprezo pelo capitalismo ou da subservincia

    a Moscovo, colocou-os quase sempre numa posio marginal ao exerccio do poder

    executivo29, o que faz com que o papel destes partidos seja tipicamente de oposio, apesar

    de dirigirem um grande nmero de governos locais e regionais. A presena destes partidos na

    governao, como foi o caso, por exemplo, do PCF, entre 1944 e 1947, entre 1981 e 1984 e

    entre 1997 e 2002, sempre no mbito de coligaes esquerda e nunca de forma isolada.

    Finalmente, desde o final dos anos 70, a reflexo interna dos partidos comunistas do

    Ocidente europeu vinha reconhecendo que para o facto de que as mudanas ocorridas na

    organizao da sociedade, com o aprofundamento da utilizao da tecnologia na indstria, os

    padres culturais influenciados pelos EUA e o predomnio do modelo de vida capitalista,

    estavam a provocar a eroso da influncia dos partidos junto da massa trabalhadora

    (Berlinguer et al.30; Cunhal31; Marchais32; Frutos33; Mayayo34). E torna-se claro que os

    partidos comunistas ocidentais viviam, nos anos 80, em crise: ao nvel eleitoral, ao nvel da

    militncia e na sua influncia junto das instituies. Tambm neste cenrio, que , ainda,

    alheio aos acontecimentos na Europa centro-oriental dos finais dos anos 80, os partidos

    procuram estratgias de adaptao- a incluso do PCE na Esquerda Unida, em 1986, disso

    um exemplo.

    29 K. Hudson, European Communism since 1989 (London: Macmillan, 2000)., p.87-88 30 Enrico Berlinguer, Paolo Bufalini, e Ottano Cecchi, O Compromisso Histrico (Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1975). 31 lvaro Cunhal, Desenvolver Portugal - Ano 2000 (Lisboa: Editorial Avante!, 1987). 32 G. Marchais, O Socialismo para a Frana: 22 Congresso Do Pcf - 1976, trad. Ana Rabaa, Argumentos (Seara Nova, 1976). 33 Francisco Frutos, "El debate real del PCE," El Pas, 13/11 1991. 34 Andreu Mayayo, Nuestra Utopa : PSUC, Cincuenta Aos de Historia de Catalua (Barcelona: Planeta, 1986).

  • 27

    No entanto, , de facto, nos anos 80, que a j de si fragilizada famlia dos partidos

    comunistas ocidentais se vai fragmentar de vez (Bosco35; Pons36; Bell37; Bull38). Os partidos

    comunistas do Ocidente seguem estratgias de adaptao dspares, desde a opo por reformas

    drsticas, que compreenderam o abandono da ideologia comunista, como foi o caso do PCI e

    do PSUC, integrao em coligaes parlamentares, que visaram o aumento da influncia

    junto da mquina governativa e a reforma dos estatutos do partido, como o caso do PCF, ou,

    por outro lado, manuteno de um posicionamento ideolgico marxista-leninista, como no

    caso do PCP.

    Ao longo do sc. XX, os investigadores tm vindo a abordar os partidos comunistas do

    Ocidente europeu sobretudo atravs de trs perspetivas (Keith39): em primeiro lugar, nos anos

    60 e 70, relativamente s vias seguidas pelos partidos, nomeadamente o eurocomunismo, que

    entendido pelos investigadores como uma forma de alguns partidos ocidentais se

    distinguirem da linha sovitica. Neste mbito, estudos como os de Devlin40; Mortimer et al.41;

    Timmermann42; Urban43; Di Palma44; McInnes45; e Greene46, constituem bons exemplos,

    abordando, ainda assim, os partidos comunistas do Ocidente, a sua adaptao, influncia e

    evoluo, sob uma perspetiva isolada e no comparativa.

    Em segundo lugar, sobretudo nos anos 80, os autores passam a analisar as razes do

    declnio destes partidos: seja o facto de se tornarem menos atraentes em sociedades cada vez

    mais seduzidas pelo capitalismo, seja pelo decrscimo de trabalhadores sindicalizados, ou

    35 Bosco and Morlino, Party Change in Southern Europe. 36 Pons, Berlinguer e la fine del Comunismo. 37 Bell, Western European Communists and the Collapse of Communism. 38 Bull and Heywood, West European Communist Parties after the Revolutions of 1989. 39 Daniel Keith, "Party Organisation and Party Adaptation: Western European Communist and Successor Parties" (University of Sussex, 2010). 40 K. Devlin, "The New Crisis in European Communism," Problems of Communism 17, no. 6 (1968).; "The Challenge of Eurocommunism," Problems of Communism 26 (1977).; "Eurocommunism: Between East and West," International Security 3, no. 3 (1979). 41 E. Mortimer, Filo della Torre, P. and Story, J., "Whatever Happened to Eurocommunism," International Affairs 55, no. 4 (1979). 42 H. Timmermann, "The Eurocommunists and the West," Problems of Communism 28 (1979). 43 G. R. Urban, Eurocommunism: Its Roots and Future in Italy and Elsewhere (London: Temple Smith, 1978). 44 G. Di Palma, "Eurocommunism?," Comparative Politics 9, no. 3 (1977). 45 N. McInnes, The Communist Parties of Western Europe (London: Oxford University Press, 1975). 46 T.H. Greene, "Non-Ruling Communist Parties and Political Adaptation," Studies in Comparative Communism 1, no. 4 (1973).

  • 28

    fatores internos, como a estrutura centralizada. Autores como Waller47; Waller e Fennema48;

    e Lazar49, descrevem a progressiva eroso da influncia destes partidos, assim como

    perspetiva deles face perestroika.

    Em terceiro lugar, no incio dos anos 90, os investigadores (como Bell50; Bull51;

    Wilson52; Calise53; Narkiewicz54; Cunha55; Giudici56; Pilieri57; Galli58) estudam as reaes

    destes partidos face ao fim do socialismo real na Europa, a sua adaptao e transformao,

    entre estratgias de total mudana de perfil ou de manuteno de estrutura.

    Nestes ltimos estudos citados, naqueles que mais se relacionam com o mbito desta

    investigao, a abordagem realizada marcadamente descritiva e factual, deixando pouco

    espao para a anlise comparativa e interpretativa. Neste sentido, Daniel Keith59 realiza o

    primeiro grande trabalho de fundo sobre a organizao dos partidos comunistas ocidentais

    europeus na sua adaptao aos acontecimentos de 1989/1991, numa perspetiva comparada e

    propondo uma grelha de anlise especfica para a codificao desse estudo. Keith analisa cinco

    partidos: dois holandeses, um sueco, um irlands e o portugus. Tratam-se, exceo do PCP,

    de partidos polticos com pouca influncia em termos eleitorais nos sistemas polticos em que

    se inserem, mesmo no perodo pr-1989. Na presente investigao, deslocmos o foco para o

    Sul da Europa, estudando os partidos que so os principais representantes do comunismo no

    Ocidente: no apenas pela longevidade, maior no caso do PCP, PCE e PCF mas tambm pela

    capacidade eleitoral, tornando-se, como o caso do PCF e do PCI durante dcadas, os

    principais representantes da esquerda nos respetivos pases.

    Por outro lado, exceo de alguns estudos j citados, em que os autores versam

    exclusivamente sobre um caso especfico ou, ento, abordam a reao dos partidos comunistas

    47 M. Waller, "The Radical Sources of the Crisis in West European Communist Parties," Political Studies 37 (1989). 48 M. and Fennema Waller, M. (eds.), Communist Parties in Western Europe: Decline or Adaptation? (Oxford: Basil Blackwell, 1988). 49 M. Lazar, "Communism in Western Europe in the 1980s," Journal of Communist Studies 4, no. 3 (1988). 50 Bell, Western European Communists and the Collapse of Communism. 51 Bull and Heywood, West European Communist Parties after the Revolutions of 1989. 52 F.L. Wilson, The Failure of West European Communism: Implications for the Future (Paragon House, 1993). 53 Calise, Come Cambiano I Partiti. 54 Narkiewicz, The End of the Bolshevik Dream: Western European Communist Parties in the Late Twentieth Century. 55 Carlos Cunha, "The Portugese Communist Party and Perestroika: Resistance and Reforms," Current Politics and Economics of Europe 1.2 (1991). 56 Marco Giudici, Dopo il Pci : Cronaca di una svolta annunciata (Roma: Cinque lune, 1990). 57 Antonio Pilieri, La Grande Mutazione : Il Pci (Florena: Vallecchi, 1991). 58 Giorgio Galli, Storia del Pci : Livorno 1921, Rimini 1991 (Milo: Kaos, 1993). 59 Keith, "Party Organisation and Party Adaptation: Western European Communist and Successor Parties."

  • 29

    no mbito das transformaes eleitorais europeias de um ponto de vista geral, todas as

    investigaes realizadas sobre a questo que abordamos so feitas no mbito da anlise da

    factologia imediata. Mais de vinte e seis anos passados sobre o fim do ciclo de acontecimentos

    que estudamos foi possvel um distanciamento focal com o qual a investigao sobre o tema

    s teve a ganhar.

    No que se refere abordagem metodolgica, os estudos realizados sobre esta questo,

    quer se trate daqueles realizados nos anos 90, quer dos mais recentes, tratam o tema de uma

    perspetiva monodisciplinar: seja atravs da descrio histrica dos dados e das reaes, seja

    atravs da proposta de uma interpretao politolgica para as estratgias de adaptao dos

    partidos.

    Pretendemos, pelo contrrio, abordar a questo de um ponto de vista transdisciplinar,

    utilizando vrias ferramentas das cincias sociais, como seja a metodologia de anlise

    comparativa para o estudo das concluses (Ragin e Zaret60; Morlino e Sartori61), a teoria do

    framing na anlise da informao (Entman62) e a abordagem dos acontecimentos daqueles

    anos segundo a perspetiva da Histria do Tempo Presente (Chaveau e Ttart63; Bdarida64;

    Delacroix et al.65).

    Atravs da anlise dos textos dos autores citados, entre outros, propusemos um mtodo

    de anlise baseado no carter indito da consulta dos arquivos dos PCs, tendo em conta a

    forma de acessibilidade s fontes histricas, a metodologia e a produo de elementos

    prprios. Estivemos sempre conscientes da dificuldade de tratar um tema de natureza to

    marcada e do exerccio de distanciamento que foi necessrio ter em conta acreditamos, no

    entanto, que fomos capazes de o fazer e produzir assim um estudo onde objetividade histrica

    e a anlise das interpretaes no saram prejudicadas, ainda que conscientes de que, no s

    enquanto investigador mas tambm enquanto cidado, estamos sujeitos a posicionamentos

    polticos e ideolgicos. Embora no exista uma imposio formal a este respeito, procurmos

    60 C. and Zaret Ragin, D., "Theory and Method in Comparative Research," Social Forces 61, no. 3 (1983). 61 L. Sartori e Morlino, G., La comparacin en las ciencias sociales (Madrid: Alianza Editorial, 1994). e Projections of Power: Framing News, Public Opinion, and U.S. Foreign Policy (Chicago: University of Chicago Press, 2004). 62 Robert M. Entman, "Framing: Toward Clarification of a Fractured Paradigm," Journal of Communication 43, no. 4 (1993). 63 A. Ttart e Chaveau, Philippe, Questes para a Histria do Presente (So Paulo: EDUSC, 1999). 64 Franois Bdarida, Histoire, Critique et Responsabilit, Textes runis par Gabrielle Muc et Michel Trebitsch, Histoire Du Temps Prsent (Bruxelas: Editions Complexe, 2003). 65 C.; Dosse Delacroix, F.;Garcia, P.; Trebitsch, M. (eds.), Les Chemins dhistoire (Bruxelas: Editions Complexe, 2002).

  • 30

    desenvolver toda a investigao de uma forma imparcial e objetiva, particularmente no que se

    refere anlise de contedo dos textos selecionados. A sensibilidade de um tema poltico

    como o que trato poder ter comprometido, em alguns momentos deste estudo, de carcter

    mais interpretativo, a objetividade e a imparcialidade. Estou certo, no entanto, que em nenhum

    momento isso implicou a perda de cientificidade ou de validade de uma investigao deste

    gnero. Procurei, de forma consciente, revestir este estudo com caractersticas metodolgicas

    com um carcter indito, com a utilizao de ferramentas de vrias cincias sociais e a

    preocupao com o estudo comparativo que, como referi, vem colmatar um vazio muito

    expressivo na produo acadmica.

    O mtodo comparativo foi utilizado para realizar uma anlise das concluses alcanadas

    atravs do estudo das reaes dos partidos, contrapondo-as de forma a chegar a resultados

    concretos sobre o assunto em estudo. Consideramos que a comparao o mtodo que mais

    se adequa anlise das concluses, na medida em que atravs de um raciocnio estruturado

    que se pode alcanar regularidades ou, pelo contrrio, perceber quebras e transformaes,

    construir modelos, tipologias, identificando continuidades e descontinuidades, semelhanas

    e diferenas, e explicitando as determinaes mais gerais que regem os fenmenos sociais.66

    Quanto anlise de textos partidrios, particularmente ao nvel da imprensa partidria, a

    proposta de Entman teve de ser adaptada, servindo de inspirao metodolgica mas no

    proporcionando um quadro restrito de anlise, j que, partida, as publicaes de um partido

    poltico pressupem um determinado enquadramento, relacionado com a sua natureza

    ideolgica.

    Em relao s fontes em que basemos o estudo, estas dividem-se entre as fontes

    secundrias, resultantes de literatura publicada e que foi, pelo menos ao nvel dos seus autores

    principais, sendo apresentada ao longo desta introduo, e, para a anlise de contedo e o

    estudo comparativo, que constituem o essencial deste trabalho, as fontes primrias

    provenientes da imprensa escrita e de documentos oficiais dos vrios partidos.

    Entre os peridicos consultados, constam os jornais partidrios Avante!, Mundo Obrero,

    Treball, LHumanit, LUnit. Deles foram retirados todos os textos e documentos polticos

    66 Srgio; Schmitt Schneider, Cludia Job, "O Uso Do Mtodo Comparativo Nas Cincias Sociais," Cadernos de Sociologia 9(1998)., p.146

  • 31

    que abordaram, em 1989, 1990 e 1991, o ciclo de acontecimentos que estudmos, resultando

    um acervo de cerca de 4150 textos, organizados atravs de critrios de relevncia que

    explicaremos no corpo da tese.

    A escolha pela imprensa escrita, onde esto, tambm, publicados documentos polticos,

    teve a ver com o facto de esta representar, no perodo que aqui estudamos, a mais importante

    forma de comunicao direta dos partidos, sem passar pelo filtro da imprensa generalista ou

    da anlise acadmica. Ao lidar com a fonte primria, construmos um arquivo prprio de

    informao, trabalhando-o em termos de representatividade e relevncia, compreendendo

    tambm a dinmica da publicao dos textos.

    No final desta introduo, volto ao seu incio, justificando a presena da citao de

    Hobsbawm e concordando com um dos historiadores cujo trabalho de investigao mais

    admiro e que h anos me vem servindo de inspirao para determinadas interpretaes

    relacionadas com os factos que estudo. Acredito, porm, que o principal objetivo da palavra

    impressa no o de sobreviver atravs de uma quase omnipresena nem que o facto de livros,

    artigos e outro material escrito ficar amide num state of suspended animation seja

    obrigatoriamente depreciador do documento impresso. Tal como Hobsbawm, estou convicto,

    e este trabalho contribuiu para tal, que a palavra escrita sobrevive precisamente atravs do seu

    estudo, proporcionando a possibilidade da realizao de interpretaes, da estruturao de

    mapas comparativos, numa espcie de reutilizao que lhe imprime novas marcas e lhe d, de

    cada vez que lida e utilizada, um novo significado e uma nova expresso.

    Perguntaram-me vrias vezes, ao longo destes anos de preparao da tese de

    doutoramento, e sobretudo nos centros arquivsticos que visitei (a maioria deles relacionados

    com bibliotecas e repositrios de partidos polticos), por que razo queria regressar s pginas

    de um jornal impresso h 28 anos ou reler uma resoluo de um congresso ocorrido h 27, por

    exemplo. Observaram-me com curiosidade folhear, fotografar, reler, imprimir, copiar pginas

    de jornais e publicaes cuja sobrevivncia, como refere Hobsbawm, estava h muito

    dedicada clausura das prateleiras de uma estante. Foi precisamente no trabalho de recolha e

    organizao desse material, na sua catalogao e, posteriormente, na explorao das linhas

    dos textos selecionados, que encontrei o fascnio de acreditar que a partir de uma srie de

    fontes escritas deixadas ao esquecimento nos imensos corredores dos centros de arquivo

  • 32

    encontrei os outros textos que estavam dentro desses mesmos mas que no eram visveis a

    olho nu. O cruzamento de interpretaes, o trabalho comparativo, a associao de

    enquadramentos e molduras especficas quelas palavras conduziram-me a, partindo delas,

    encontrar uma determinada tridimensionalidade onde todos estes fatores se conjugaram para

    dar origem a um novo texto. Texto esse que poder ainda servir de base a futuros estudos de

    temtica relacionada, por abrir portas, quer do ponto de vista metodolgico, quer temtico, a

    um assunto de relevo indiscutvel na sociedade atual e cujas consequncias tm, ainda hoje,

    uma influncia to direta na organizao da vida poltica, econmica e social a nvel mundial.

    Talvez, na atualidade, j no mudasse o canal da televiso para a MTV, como fiz em

    1989, se por acaso algum acontecimento de relevo idntico ao da queda do Muro de Berlim

    ocorresse no mundo. No que, de alguma forma, tenha perdido o interesse pela msica

    produzida pelos grandes estdios mas porque, atravs dos anos de estudo e, particularmente,

    aps a elaborao desta tese, tomei conscincia de como os acontecimentos se relacionam

    entre si e de como um facto que teve lugar no incio da minha vida pode, ainda hoje, influenci-

    la de forma marcante. E da a necessidade de lhe prestar ateno, interpretar, esclarecer e

    posicionar a informao, tarefa que claramente no se esgota com a presente investigao, que

    tem como objetivo essencial entreabrir a porta a posteriores estudos comparativos que

    conjuguem diversas disciplinas no mbito desta mesma temtica.

  • 33

    Captulo 1 Contextualizao histrica e poltica: os partidos e os acontecimentos em estudo

    1.1 As interpretaes sobre o ciclo de acontecimentos histricos de 1989/1991 na Europa centro-oriental

    Mais do que uma elencagem e descrio de acontecimentos, pretendemos, nesta fase,

    demonstrar o posicionamento de uma srie de investigadores face ao que aconteceu na Europa

    centro-oriental entre 1989 e 1991. A deposio dos governos do socialismo real na Polnia,

    Hungria, RDA, Checoslovquia, Romnia e Bulgria, a poltica de Gorbatchov para a URSS

    e o desmantelamento do sistema sovitico geraram uma srie de interpretaes, no apenas

    sobre os acontecimentos em si mas tambm sobre tudo o que foi o comunismo enquanto

    regime historicamente verificado e o socialismo real.

    Torna-se essencial, por isso mesmo, ancorar esta reflexo num sentido mais lato,

    procurando uma anlise de algumas das principais interpretaes acerca comunismo em si. A

    reflexo ser efetuada em torno de dois tipos de interpretaes: as mais polticas, com

    argumentos claramente anticomunistas, prximas aos acontecimentos, que encaram o

    comunismo como um fenmeno puramente poltico e totalitrio; e, por outro lado, um

    conjunto de autores que interpretam o comunismo no plural, atravs de uma anlise lata sobre

    o que foi o comunismo na Europa centro-oriental, em todas as suas vertentes.

    Partimos de uma questo orientadora: afinal, na atualidade, quais so as interpretaes

    que prevalecem sobre o perodo em questo? E de que forma se conjugam? Podemos desde j

    responder a esta questo, sendo que atualmente prevalece, maioritariamente, um

    posicionamento responsvel em torno do comunismo. As interpretaes mais radicais no

    encontraro, hoje, o mesmo eco no mundo acadmico, subscrevendo-se sobretudo ao debate

    politico. Uma das frases que retemos, e que replicamos no corpo do texto, de que, hoje em

    dia, num debate acadmico sobre a questo, j no haver unanimidade quanto necessidade

    de fazer comparecer o comunismo ao tribunal da Histria.

  • 34

    Nesta fase, recorremos a uma panplia de autores como Michel Dreyfus, Marc Ferro,

    Franois Fejt, Moshe Lewin ou Carlos Taibo, complementando com interpretaes de outros

    autores, como historiador Eric Hobsbawm, Adriano Guerra ou Archie Brown.

    Acrescentmos um autor portugus, Diogo Freitas do Amaral, que lanou um livro sobre

    os dias de Gorbatchov frente da URSS. A razo de incluirmos esta obra prende-se, em

    primeiro lugar, com o facto de ser uma obra recente a debater precisamente esta questo. Em

    segundo lugar, porque se trata de um poltico e investigador que, embora associado, ao longo

    da maior parte do seu percurso pblico, claramente avesso a qualquer identificao com as

    propostas dos governos do socialismo real, tem uma interpretao ponderada sobre os

    acontecimentos de 1989/1991 e uma atitude crtica, como veremos, sobre a figura de

    Gorbatchov.

    1.1.1. - Os tericos do anticomunismo versus uma viso serena e rigorosa67 dos factos

    Talvez nenhuma outra ideologia tenha sido alvo de crticas to acirradas, do ponto de

    vista do debate acadmico, mas sobretudo do debate poltico, como o comunismo, ao longo

    do sculo XX.

    Stphane Courtois, em 1997, em Le Livre Noir du Communisme68, e juntamente com os

    outros autores do livro, prefaciado em Portugal por Jos Pacheco Pereira, chega mesmo a

    classific-lo como o mal do sculo, objeto de todas as crticas, ator de todos os crimes, detentor

    de uma natureza que, por essncia, procurou ao longo de grande parte do sc. XX instalar

    regimes criminosos em todos os continentes, baseados na coero, no terror e na represso:

    Communist regimes did not just commit criminal acts (all states do so on occasion); they

    were criminal enterprises in their very essence: on principle, so to speak, they all ruled

    lawlessly, by violence, and without regard for human life.69

    Este ngulo de anlise tem sido alvo de crticas relativas, principalmente ao

    enquadramento da investigao levada a cabo pelos seus defensores. Deixaremos de parte a

    discusso sobre a contagem de possveis vtimas de regimes comunistas ou a fidelidade das

    67 Expresso retirada do subttulo do livro: Michel Dreyfus et al., O Sculo dos comunismos. Depois da ideologia e da propaganda, uma viso serena e rigorosa. (Lisboa: Notcias Editorial, 2004) 68 Courtois et al., Le Livre Noir Du Communisme. Crimes, Terreur, Rpression. 69Martin Malia, in The Black Book of Communism. Crimes, Terror, Repression., ed. Mark Kramer (cons.), trans. Jonathan Murphy and Mark Kramer(Cambridge/ London: Harvard University Press, 1999). XVII

  • 35

    citaes, motivos que levam vrios historiadores a criticar a seriedade da obra. Interessa-nos,

    no mbito desta reflexo, a crtica de que o livro procura uma generalizao do comunismo

    relacionada com o terror poltico, transpondo-a, de um ponto de vista estritamente terico,

    para todas as sociedades onde, numa dada altura, o comunismo foi a ideologia no poder ou os

    dirigentes se autointitularam comunistas. Courtois, e os outros autores, parecem no ter em

    conta a heterogeneidade das sociedades onde existiram governos comunistas, se esses o eram,

    de facto, realmente comunistas, assim como as particularidades inerentes aos vrios partidos

    comunistas, se eles o eram, de facto, partidos comunistas, assim como no feita uma reflexo

    sobre os princpios orientadores da ideologia em si e as divergncias existentes em relao

    forma como foi interpretada e posta em prtica ao longo do sc. XX.

    O exacerbado anticomunismo de fim de sculo, protagonizado por Courtois mas

    altamente defendido tambm por Nicholas Werth, coautor do livro citado, Franois Furet ou

    Ernst Nolte70, procura culpabilizar o comunismo por todas as desgraas do sculo XX:

    segundo os autores, o fascismo e o nazismo teriam mesmo surgido na Europa como resposta

    ao crescimento do comunismo, sobretudo na Alemanha, dos anos 20 e 30: A inveno de

    uma natureza do comunismo, por essncia universal e criminosa, tornou-se no nico modelo

    explicativo dos dramas do sculo, sobretudo porque o fascismo e o nazismo, afinal de contas,

    no seriam seno respostas derivadas.71

    Michel Dreyfus, e os outros autores de Le Sicle des Communismes falam-nos do quanto

    uma viso afunilada do comunismo impossibilita a anlise da diversidade desta ideologia j

    que prope uma interpretao meramente causal, o que interdita o debate e surge com

    contornos altamente dogmticos. Dreyfus aponta, tambm, para o perigo da desculpabilizao

    do nazismo e do fascismo, que teriam surgido na Europa, segundo Courtois e os restantes

    apoiantes daquela viso do comunismo, como uma reao possibilidade de contgio da

    Revoluo Russa de 1917.

    Iramos mais longe. Ao justificar o nazismo e o fascismo como uma tentativa de travar

    algo, caraterizado como pernicioso, Courtois e os outros investigadores desta linha de

    70Por exemplo: Franois Furet, Le Pass D'une Illusion, Essai Sur L'ide Communiste Au X Xe Sicle(Paris: ditions Robert Laffont/ Calmann-Lvy, 1995); Franois Furet and Ernst Nolte, Fascisme Et Communisme(Paris: ditions Plon, 1998). 71 Michel Dreyfus et al., O Sculo Dos Comunismos. Depois Da Ideologia E Da Propaganda, Uma Viso Serena E Rigorosa., ed. Michel Dreyfus, et al., trans. Ins Hugon(Lisboa: Notcias Editorial, 2004). 554.

  • 36

    pensamento esto implicitamente a retratar aquelas ideologias como, diramos, tendo

    intenes moderadoras face a um hipottico e temido comunismo galopante. Tal como refere

    o prprio Martin Malia, na introduo a O Livro Negro sobre o comunismo, e que deu origem

    a uma das principais crticas ao livro, tem a ver com o facto de, colocando o comunismo e as

    ideologias de extrema-direita no mesmo patamar poltico, as ltimas acabam por ser

    legitimadas: Le Mondes editorialists deemed The Black Book inopportune because equating

    Communism and Nazism removed the last barriers to legitimating the extreme right that is,

    Le Pen. O autor defende-se da crtica com uma frase de Albert Camus, dizendo que a verdade

    a verdade e que neg-la ridiculariza tanto a humanidade como a moral.72

    Em determinado momento, na obra organizada por Courtois, o comunismo tido,

    inclusiv, como mais dissimulado do que o nazismo: The Nazis, after all, never pretended to

    be virtuous. The Communists, by contrast, trumpeting their humanism, hoodwinked millions

    around the globe for decades, and so got away with murder on the ultimate scale. () The

    Nazis, moreover, killed off their victims without ideological ceremony; the Communists, by

    contrast, usually compelled their prey to confess their guilt in signed depositions thereby

    acknowledging the Party lines political correctness73

    A prpria ideia de sustentar este tipo de argumentao parece-nos perversa: ainda que

    tendo em conta unicamente os regimes ditos comunistas mais repressivos, a perseguio nunca

    se baseou, como no nazismo, em critrios puramente raciais ou intrnsecos natureza

    biolgica dos indivduos. A distino entre a perseguio por motivos sociais, culturais ou

    polticos, oposta a outra baseada em motivos genticos, no suaviza a primeira pela natureza

    brutal da segunda: torna-as, contudo, incomparveis. No s pelo genocdio baseado em

    caractersticas naturais do ser humano excluir, partida, a possibilidade de exceo ou defesa,

    mas porque parte de um quadro de raciocnio diametralmente oposto, em que a lgica da

    superioridade gentica impossibilita qualquer hiptese de converso ou de arrependimento

    para os perseguidos, ainda que nada haja de legtimo para o indivduo de arrepender.

    Porm, mais do que as diferenas bvias na prtica das duas ideologias, existe uma

    diferena basilar entre o fascismo e o comunismo: ao contrrio do primeiro, o comunismo

    72Martin Malia in Courtois et al., The Black Book of Communism. Crimes, Terror, Repression. XVII. 73 Ibid. XV.

  • 37

    chama ao exerccio do poder poltico, ou, pelo menos, participao no poder poltico, as

    classes dominadas, segundo a sua prpria retrica, em detrimento das classes estabelecidas

    no poder. A partir daqui, toda a teorizao da ideologia obrigatoriamente oposta.

    Dreyfus, Pudal, Groppo e os outros autores d O Sculo dos comunismos afirmam

    mesmo que a utopia de um poder poltico efetivamente exercido pelas classes populares,

    grupos mais numerosos da sociedade, pelos grupos menos dotados de recursos materiais e

    culturais74, o que diferencia o comunismo do fascismo. A perverso desta lgica, atravs

    dos vrios regimes de partido nico e do exerccio do poder atravs da propaganda e do terror,

    constituem divergncias ideologia inicial. O mesmo no se pode dizer dos regimes fascistas.

    Estudar uma comparao entre comunismo e fascismo legtima, segundo os autores, se os

    investigadores tiverem presente a ideia de que estudar o comunismo na sua forma mais

    agressiva, geralmente conotada com o estalinismo, representa estudar a regra partindo de uma

    das suas mais perversas excees. Novamente os autores aconselham, aos estudiosos do

    comunismo, definir como horizonte de pensamento a diversidade dos comunistas e dos

    comunismos, a pluralidade das supostas motivaes e das esperanas fundadoras, no

    perdendo de vista as barreiras que progressivamente se levantaram.75

    Moshe Lewin afirma mesmo, a respeito do anticomunismo, que este nada tem de

    investigao histrica, sendo antes uma ideologia que pretende fazer-se passar por

    investigao: No s no se adapta aos contornos que desenham a realidade do animal

    poltico a estudar como, mais ainda, brandindo o estandarte da democracia, dedicou-se

    paradoxalmente a invocar o regime autoritrio (ditatorial) da URSS em benefcio de causas

    conservadoras, ou piores ainda.76 Neste sentido, Lewin refere precisamente as manobras de

    embelezamento da direita alem, tendentes a inocentar a figura de Hitler, em detrimento de

    Estaline: Trata-se de um comportamento que no serviu para melhorar a sua imagem e que

    decerto no contribuiu tambm para um entendimento adequado da experincia sovitica e de

    muitos outros importantes fenmenos que se relacionaram com ela.77

    74 Dreyfus et al., O Sculo Dos Comunismos. Depois Da Ideologia E Da Propaganda, Uma Viso Serena E Rigorosa. 16. 75 Ibid. 17. 76 Lewin, O Sculo Sovitico. 415. 77 Ibid.

  • 38

    Totalmente alheada a uma anlise sria da Histria do sc. XX, e em particular da

    histria das ideologias polticas, a verso do comunismo como uma ideologia focalizada

    unicamente para um fim perverso constitui em si uma ameaa prpria reflexo histrica, por

    tolher o debate, por deixar de lado a complexidade social associada ao comunismo, por no

    ter em considerao a variedade (no tempo e no espao) das manifestaes da ideologia e,

    acima disso tudo, por procurar justificar o flagelo causado pelo nazismo e pelo fascismo na

    Europa do sc. XX como meras tentativas de controlar um fenmeno poltico e social,

    abstraindo-se de outros aspetos determinantes do contexto em que estas ideologias polticas

    se desenvolvem. Outros acontecimentos, como os decorrentes da I Guerra Mundial, em muito

    maior grau de determinao do que a crescente influncia bolchevique na Europa dos anos 20

    e 30, alimentam as bases de apoio ao florescimento do nazismo e do fascismo.

    No acreditamos, porm, que os estudos do comunismo passem, hoje, por uma viso

    dualista, que faa obrigatoriamente comparecer o comunismo no tribunal da Histria.78 At

    porque, como sustenta Moshe Lewin, o totalitarismo ter servido, ao longo do sc. XX, para

    toldar vrias pginas sombrias da histria do Ocidente () e para desviar as atenes das

    contradies e pontos fracos dos regimes democrticos ocidentais.79 Segundo o autor,

    interpretaes que faam com que se deixe definitivamente de encobrir determinados

    fracassos do Ocidente atravs da diabolizao do regime sovitico contribuem para a

    dignificao da investigao histrica.

    1.1.2. - A abertura dos arquivos e a historiografia do comunismo

    A este propsito, fixemo-nos nas interpretaes dadas, em termos do relevo para a

    investigao, abertura dos arquivos soviticos no incio dos anos 90. Num contexto

    totalmente distinto, os investigadores deparam-se, a partir de 1989, com a progressiva abertura

    de arquivos antes indisponveis pesquisa acadmica. Este facto d origem a duas vises

    diferentes sobre a pertinncia dos trabalhos efetuados antes. Idealmente, a abertura de

    arquivos deveria promover o debate e servir para, num novo contexto poltico, sem o

    78 Dreyfus et al., O Sculo Dos Comunismos. Depois Da Ideologia E Da Propaganda, Uma Viso Serena E Rigorosa. 556. 79 Lewin, O Sculo Sovitico. 416.

  • 39

    secretismo caraterstico do perodo da Guerra Fria, atenuar as diferenas entre os

    investigadores. Estes seriam idealmente retirados de um campo de anlise poltica para

    potenciar o estudo documental e de outras dimenses daquelas sociedades.

    Contudo, o debate suscitado pela abertura dos arquivos80 deu origem a interpretaes

    opostas, entre os defensores de que os trabalhos anteriores se tornavam obsoletos e, pelo

    contrrio, os que observavam as investigaes anteriores como elaboradas de diferentes

    extratos: tais investigaes no se tornavam necessariamente obsoletas mas passveis de

    reviso. Para estes, os mesmos que se opem viso totalitria do comunismo, a abertura dos

    arquivos significaria sobretudo um alargamento do campo de investigao, ao invs de outros

    investigadores, ligados corrente anticomunista, que afirmam que, aps a abertura dos

    arquivos, o trabalho acadmico prvio deveria ser considerado obsoleto, por no dispor de

    todos os factos altura da sua execuo.

    Novamente, as interpretaes em torno da abertura dos arquivos dos partidos

    comunistas do Leste europeu surgem carregadas de interesses ideolgicos e polticos,

    sobretudo do lado dos que acreditam que o novo fluxo de informao vem invalidar os estudos

    anteriores. A este respeito, contrapondo esta viso supressora da investigao no perodo

    anterior aos anos 90, Serge Wolikow refere: A explorao dos arquivos abriu novos campos

    de investigao, sobretudo para o perodo posterior a 1945, e permitiu tambm aperfeioar as

    interpretaes j existentes. Da mesma forma que chegado o momento de pr prova velhas

    interpretaes, desenvolvem-se novos tipos de estudos relativos aos processos de deciso, s

    biografias dos militantes e dos dirigentes ou aos sistemas de representao associados s

    prticas polticas.81

    A abertura dos arquivos da URSS no foi total e notou uma tendncia decrescente a

    partir de 1995, coincidente com o perodo em que Ieltsin tenta agradar ao eleitorado

    comunista82. No entanto, ao contrrio dos anos da Guerra Fria, a tendncia geral continua a

    ser a da abertura dos arquivos a investigadores estrangeiros.

    80 Referimo-nos, aqui, abertura dos arquivos em si, ao facto de existir mais informao disponvel, e no ao contedo a que os investigadores podero eventualmente ter tido acesso. 81Serge Wolikow in Dreyfus et al., O Sculo Dos Comunismos. Depois Da Ideologia E Da Propaganda, Uma Viso Serena E Rigorosa. 101. 82 Nota-se, em 1995/ 1996, a crescente influncia do Partido Comunista, na Rssia, que acaba por ser o partido mais votado para a Duma nas eleies de 1995, ainda que sem conseguir a maioria dos assentos.

  • 40

    Sobretudo, a abertura dos arquivos deveria ter significado o incremento do debate

    quanto metodologia do estudo da Histria do Tempo Presente e da historiografia do

    comunismo. certo que a abundncia de informao colocou problemas aos investigadores,

    mais habituados escassez de dados no que se refere aos estudos do comunismo.

    Entendemos que as novas questes colocadas no seguimento da abertura dos arquivos

    colocam definitivamente os estudos do comunismo na historiografia do presente, ao dotar

    aquela disciplina de todas as caractersticas deste tipo de estudo: um maior rigor na escolha

    das fontes, uma ateno especial a processos de deciso metodolgica, o aparecimento de

    novas abordagens fundamentadas, a verificao de trabalhos anteriores, a interpelao de

    atores histricos ainda vivos e a ateno a outras perspetivas que se devem distanciar da

    anlise impregnada de teor poltico. A anlise passou a obedecer a um determinado mtodo

    comprovvel, que permite efetivamente avanar no conhecimento de determinados processos

    histricos. Processos histricos que no devero passar por uma leitura poltica mas tambm

    pela articulao entre vrias disciplinas, como a a sociologia, a antropologia, as cincias da

    comunicao ou a psicologia poltica, de forma a dotar os novos estudos do comunismo e das

    sociedades comunistas de um rigor que o contexto maniquesta caracterstico do perodo da

    Guerra Fria no permitiu.

    A abordagem descritiva alia-se abordagem comparada para, como no caso da obra de

    Gotovitch, Delwit e Waele, LEurope des Communistes83, estudar a histria do comunismo

    tendo em conta a sua diversidade, no apenas ideolgica, como social ou geogrfica. A

    interpretao abrangente daquela obra contrasta com a verso totalitria do comunismo dada

    no j citado Livre Noir du Communisme que, ao invs de tirar proveito da maior quantidade e

    qualidade de informao sobre o comunismo, simplifica o fenmeno e impede a

    compreenso do seu impacto e da sua dimenso.84

    1.1.3. Vises sobre a Perestroika de Gorbatchov

    Os acontecimentos histricos que estudamos, pela capacidade de alterarem uma

    determinada ordem, trazem novos temas histria do sculo XX, no apenas no que respeita

    83 Gotovitch, Delwit, and De Waele, L'europe Des Communistes. 84 Serge Wolikow in Dreyfus et al., O Sculo Dos Comunismos. Depois Da Ideologia E Da Propaganda, Uma Viso Serena E Rigorosa. 109.

  • 41

    reflexo sobre o comunismo em si mas tambm ao estudo dos sistemas de governo. E

    importante questo da coerncia entre a designao de determinada ideologia dominante e a

    sua execuo prtica. Provavelmente, o nico ponto que une os tericos do anticomunismo

    aos investigadores mais interessados num estudo abrangente das vrias camadas (social,

    demogrfica, cultural, poltica) das sociedades comunistas do sculo XX o facto de ambos

    concordarem que aquilo em que o comunismo se tornou pouco tem a ver com as

    proclamaes emancipadoras e o socialismo histrico do sculo XX.85

    Porm, a perspetiva de ambos sobre o facto diverge: enquanto os investigadores que

    consideram o comunismo como uma doutrina poltica totalitarista falam da natureza totalitria

    intrnseca da ideologia e do projeto poltico, os novos estudos sobre o comunismo interpretam-

    no como uma evoluo histrica de determinados sistemas polticos.

    No nos cabe refletir sobre as diferenas entre os vrios lderes soviticos, ou os

    perodos de maior afastamento ou distanciamento em relao URSS dos outros pases do

    socialismo real mas antes analisar o prprio fenmeno de nacionalizao do comunismo.

    A esta noo, compreendida pela adaptao da ideologia comunista s especificidades

    dos regimes, acrescentaramos outra, a de periodizao da ideologia comunista, ao longo de

    todo o sculo, onde, logicamente, a adaptao a diferentes contextos favoreceu mudanas na

    definio da prpria ideologia.

    Michel Dreyfus aponta a nacionalizao do comunismo como estando na base da sua

    queda, sobretudo na Europa Centro-oriental. Ao emanciparem-se, atravs das reformas

    possveis graas perestroika de Gorbatchov, as repblicas do Leste europeu procuraram uma

    transformao econmica e social que esteve na base do desmoronamento do prprio sistema:

    O mercado capitalista mundial vingou sobre o sistema comunista, no sem dificuldade mas

    sem guerra. Este ltimo destruiu-se pelo seu interior ao no preparar, por si mesmo e de forma

    sinuosa, a sua prpria transformao. Neste sentido, o autor aponta o facto de, uma vez

    vencido, o comunismo ter sido privado de tudo, inclusiv da sua pretenso a