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11 TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO DE FAMÍLIA * BELMIRO PEDRO MARX WELTER ** Resumo: O ser humano vive, ao mesmo tempo, em três mundos: o mundo genético, em que há a continuação da linhagem, do ciclo de vida, da transmissão às gerações da compleição física, dos gestos, da voz, da escrita, da origem da humanidade; o mundo afetivo, porque forjado pela dinâmica dos fatores pessoal, familiar e social, cuja linguagem não é algo dado, codificado, pré-ordenado, e sim um existencial, um construído; o mundo ontológico, porquanto se comporta e se relaciona em seu próprio mundo, é a realidade de cada um, o mundo pessoal, íntimo, o terreno de surpresas, da forma, do jeito, da circunstância de cada ser humano ser em seu mundo humano. Palavras-Chave: genética, afetividade, ontologia, família, Constituição, condição humana tridimensional. Sumário: l – Considerações iniciais; 2 – O afeto e o desafeto em família; 3 – Os três mundos do ser humano; 4 – Considerações finais; 5 – Referências. 1 CONSIDERAÇÕES I NICIAIS A sociedade patriarcal fez com que a família fosse ajustada, desde que há mundo humano, unicamente por parte do mundo genético, uma linguagem normatizada, objetificada, desumanizada. Porém, o ser humano está unido pela totalidade dos laços genéticos, afetivos e ontológicos, cuja tridimensionalidade forma um único mundo * WELTER, Belmiro Pedro Marx Welter. Teoria Tridimensional do Direito de Família. Tese de doutorado, defendida em junho de 2007, na UNISINOS, no prelo. ** Promotor de Justiça. Mestre e Doutor em Direito de Família.

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TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO DE FAMÍLIA *

BELMIRO PEDRO MARX WELTER**

Resumo: O ser humano vive, ao mesmo tempo, em três mundos: o mundo genético, em que há a continuação da linhagem, do ciclo de vida, da transmissão às gerações da compleição física, dos gestos, da voz, da escrita, da origem da humanidade; o mundo afetivo, porque forjado pela dinâmica dos fatores pessoal, familiar e social, cuja linguagem não é algo dado, codificado, pré-ordenado, e sim um existencial, um construído; o mundo ontológico, porquanto se comporta e se relaciona em seu próprio mundo, é a realidade de cada um, o mundo pessoal, íntimo, o terreno de surpresas, da forma, do jeito, da circunstância de cada ser humano ser em seu mundo humano.

Palavras-Chave: genética, afetividade, ontologia, família, Constituição, condição humana tridimensional.

Sumário: l – Considerações iniciais; 2 – O afeto e o desafeto em família; 3 – Os três mundos do ser humano; 4 – Considerações finais; 5 – Referências.

1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A sociedade patriarcal fez com que a família fosse ajustada, desde que há mundo humano, unicamente por parte do mundo genético, uma linguagem normatizada, objetificada, desumanizada.

Porém, o ser humano está unido pela totalidade dos laços genéticos, afetivos e ontológicos, cuja tridimensionalidade forma um único mundo

* WELTER, Belmiro Pedro Marx Welter. Teoria Tridimensional do Direito de Família. Tese de doutorado,

defendida em junho de 2007, na UNISINOS, no prelo. ** Promotor de Justiça. Mestre e Doutor em Direito de Família.

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humano. O (re)canto familiar é uma forma de proporcionar ao ser humano carinho e solidariedade que se dispersaram da vida em sociedade, superando a condição humana marcada pela realidade da competição e da desigualdade1, tendo em vista que ele está profundamente ligado às questões mais íntimas e fundamentais, como o amor, a afeição2.

Não apenas no Direito, mas em praticamente todas as áreas do relacionamento humano há uma crescente compreensão acerca do acolhimento do afeto como linguagem integrante da condição humana tridimensional.

Na área Educacional3, a afetividade possui ingerência constante no funcionamento da inteligência do ser humano, estimulando-o ou perturbando-o, acelerando-o ou retardando-o4.

Com efeito, para VYGOTSKY, a linguagem afetiva atua na construção das relações do ser humano a partir de uma perspectiva pessoal, social e cultural.

Para HENRI WALLON, a evolução da linguagem da afetividade “depende das construções realizadas no plano da inteligência, assim como a evolução da inteligência depende das construções afetivas”.

Historia JEAN PIAGET que “a afetividade seria como a gasolina, que ativa o motor de um carro”. Em outro momento, o autor5 certifica que “a afetividade é a energética da ação e, de modo mais enfático, que a afetividade e a inteligência são, assim, indissociáveis, e constituem os dois aspectos complementares de toda conduta humana”.

1 BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Casamento Desfeito, Transitoriedade e Recomposição Familiar.

In: SOUZA, Ivone M. C. Coelho de (org.). Casamento, uma escuta além do Judiciário. Florianópolis: VoxLegem, 2006, p.302.

2 MAY, Rollo. A descoberta do ser. 4.ed. Tradução de Cláudio G. Somogyi. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p.10.

3 SOUZA, Maria Thereza Costa Coelho de. O desenvolvimento afetivo segundo Piaget. In: ARANTES, Valéria Amorim (Org.). Afetividade na Escola. São Paulo: Summus Editorial, 2003, p.57. “Inteligência e afetividade são diferentes em natureza, mas indissociáveis na conduta concreta da criança, o que significa que não há conduta unicamente afetiva, bem como não existe conduta unicamente cognitiva”.

4 ARANTES, Valéria Amorim. Afetividade e Cognição: rompendo a dicotomia na educação. Disponível em: <http://www.hottopos.com/videtur23/valeria.htm>. Acesso em 26 out. 2004.

5 COSTA, Maria Luiza Andreozzi da. Piaget e a intervenção psicopedagógica. São Paulo: Olho d’Água, 1997, p.12 e 15.

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A afetividade também é defendida nos campos neurológico, psicológico6, psicanalítico7, pedagógico8, demonstrando que, em pleno Século XXI, não é possível continuar compreendendo o ser humano pela teoria cartesiana9, porque a condição humana é um modo de ser-no-mundo-genético, de ser-no-mundo-(des)afetivo e de ser-no-mundo-ontológico. É por isso que se diz que o afeto é arte10, canto11, poesia, sabedoria, linguagem12, educação, conhecimento, inteligência13, saúde14, felicidade, liberdade, enfim, o afeto é enchente de vida e portal da existência, forjado na seiva que alimenta a cadência do sentido da vida, que se engendra e se identifica na tridimensionalidade humana.

Os três mundos do ser humano, Umwelt (genético), Mitwelt (afetivo) e Eigenwelt (ontológico), lembra MAY15, estão sempre inter-relacionados, condicionando-se uns aos outros, e, emboras diferentes, são modos simultâneos de ser-no-mundo-tridimensional.

O mundo genético (Umwelt), segundo o autor, é o mundo dos objetos à nossa volta, o mundo natural, abrangendo as necessidades biológicas, impulsos, instintos, das leis e ciclos naturais, do dormir e o acordar, do nascer e o morrer, do desejo e do alívio, o mundo imposto, no qual cada ser humano foi lançado por meio do nascimento e deve, de alguma forma, ajustar-se.

6 ARANTES, Valéria Amorim. Afetividade e Cognição: rompendo a dicotomia na educação. Disponível

em: <http://www.hottopos.com/videtur23/valeria.htm>. Acesso em 26 out. 2004. 7 FERREIRA, Patrícia Vasconcellos Pires. Afetividade e cognição. Disponível em:

<http://www.psicopedagogia.com.br/artigos/artigo.asp?entrID=404>. Acesso em 29 out. 2004. 8 MONTEIRO, Denise Schulthais dos Anjos; PEREIRA, Luciana Fernandes; SARMENTO, Marilza

Rodrigues; MERCIER, Tânia Maura de Aquino. Resiliência e pedagogia na presença: intervenção sociopedagógica no contexto escolar. Disponível em: <http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/fundam01.htm>. Acesso em 29 out. 2004.

9 FERREIRA, Patrícia Vasconcellos Pires. Afetividade e cognição. Disponível em: <http://www.psicopedagogia.com.br/artigos/artigo.asp?entrID=404>. Acesso em: 29 out. 2004.

10 FROMM, Erich. A arte de amar. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 11 CHASIN, Ibaney. O canto dos afetos. São Paulo: Perspectiva, 2004. 12 MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. 6.ed. Tradução de Edgard de Assis Carvalho. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p.09 e 53. 13 ARANTES, Valéria Amorim. Afetividade e Cognição: rompendo a dicotomia na educação. Disponível

em: <http://www.hottopos.com/videtur23/valeria.htm>. Acesso em 26 out. 2004. COSTA, Maria Luiza Andreozzi da. Piaget e a intervenção psicopedagógica. São Paulo: Olho d’Água, 1997.

14 BALLONE, G. J. Afetividade. Disponível em: <http://www.psiqweb.med.br/cursos/afet.html>. Acesso em 26 out. 2004.

15 MAY, Rollo. A Descoberta do Ser: estudos sobre a psicologia existencial. Tradução de Cláudio G. Somogyi. 4.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 139-141.

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O mundo afetivo (Mitwelt) é o mundo dos inter-relacionamentos entre os seres humanos, significando que o ser humano não deve insistir que outra pessoa se ajuste a ele, nem ele se ajustar a outrem, pois, nesse caso, não estarão sendo tomados como pessoa, mas como instrumento, como coisa.

O mundo ontológico (Eigenwelt) pressupõe percepção de si mesmo, autorrelacionamento, estando presente unicamente nos seres humanos. Não se trata, no entanto, de uma experiência meramente subjetiva, interior, e sim o contrário, visto que é a base na qual vemos o mundo real em sua perspectiva verdadeira, a base sobre a qual nos relacionamos.

Nessa merecida homenagem a um dos maiores juristas gaúchos, Professor ROLF HANSSEN MADALENO, colho o ensejo para apresentar à comunidade jurídica e filosófica a minha recente Teoria Tridimensional do Direito de Família, cujo livro em breve será publicado, em que sustento que o ser humano não é apenas um ser genético, nem genético e afetivo, mas genético, (des)afetivo e ontológico.

2 – O AFETO E O DESAFETO EM FAMÍLIA

Para compreender essa visão familiar genética, (des)afetiva e ontológica, é preciso aceitar a universalidade da compreensão da hermenêutica filosófica, porque ela afasta “a hipocrisia, a falsidade institucionalizada, o fingimento, o obscurecer dos fatos sociais, fazendo emergir as verdadeiras valorações que orientam as convivências grupais”16.

Com efeito, GADAMER, ao buscar compreender os poemas de PAUL CELAN17, lembrou que o ser humano vive sob o teto da linguagem, e cada um “gostaria de demolir o teto que nos garante uma proteção comum, pois ele nos impede a vista e a passagem”. Essa montanha de palavras que encobre a linguagem humana pode ser compreendida como o teto de preconceitos que paira sobre todos os humanos, à medida que o preconceito exclusivo do afeto mostra o que é familiar, impedindo todo e qualquer olhar em direção ao não familiar, que é o desafeto. Com isso, há necessidade de o intérprete estranhar o que lhe era mais familiar (o afeto) e, ao mesmo

16 PEREIRA, Sérgio Gischkow. Estudos de direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004,

p.35. 17 GADAMER, Hans-Georg. Quem sou eu, quem és tu?: comentário sobre o ciclo de poemas. Hausto-

Cristal de Paul Celan. Tradução e apresentação de Raquel Abi-Sâmara. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2005, p.58.

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tempo, o convoca a tornar conhecido o que lhe surge como estranho (o desafeto).

A linguagem familiar, no sentido de não vislumbrar a ausência de afeto, pode ser o teto que impede o ser humano de suspender os seus preconceitos, mas, por meio da linguagem não familiar (do desafeto), esses preconceitos poderão ser descobertos, suscitados, suspensos. O ser humano deve derrubar esse teto preconceituoso que o encobre (de que na família há apenas afeto), para que possa obter uma paisagem e uma passagem à compreensão do ser humano como humano, que, às vezes, está afetivo, mas, outras vezes, desafetivo.

Isso, porém, não significa, como pretende a jurisprudência, que “afeto tecnicamente tanto pode ser o amor como o ódio. O ódio também é afeto. O odiar alguém também é uma forma de ter afeto por essa pessoa”18. Por isso, é preciso compreender que o afeto não é desafeto e que amar não é, ao mesmo tempo, odiar alguém, isso porque o ser humano somente é humano quando está afetivo, à medida que, quando se encontra em estado desafetivo, regride à sua condição de mero ser vivo. Quer dizer, o ser humano é humano unicamente enquanto for um ser-no-mundo-afetivo, porque, quando ele está desafetivo, quando ele odeia o outro humano, retroage em sua condição humana para um mero ser vivo, vivendo no mundo genético, mas não nos mundos afetivo e ontológico.

Deve ser desmistificada a ideia de que na família é conjugado somente o verbo amar, porque ela encobre o mundo do desafeto, da desunião, da guerra familiar, da desumanidade, do preconceito, da ofensa física e verbal, da ausência de solidariedade. No ser humano reside uma linguagem não familiar (do desafeto), pelo que o texto do direito de família não significa normatização genética, mas, sim, existência genética, afetiva e ontológica. Quando o intérprete compreender que na família está automaticamente inserida a linguagem desafetiva, a partir daí estará em condições de compreender a linguagem familiar, do amor, do afeto, da harmonia, do diálogo, da hermenêutica, da igualdade, da paz entre os seus membros.

A família se vela e se desvela no preconceito, e a função principal do hermeneuta é a descoberta, a suspensão, a suscitação e o desmoronamento

18 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ac. nº 70013567888, 4º grupo cível. Relator: José S.

Trindade, em 13 de janeiro de 2006. Disponível em: <http//www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 15 jan. 2008.

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de seus juízos prévios, de sua linguagem habitual do preconceito do afeto. Para tanto, o intérprete precisa fazer um esforço igual ao da defesa dos ideários de sua vida, procurando, incansavelmente, “lutar contra a função desgastada e ordinária da linguagem, que acoberta e nivela tudo”19.

Quando o ser humano está se relacionando com o mundo afetivo, acontece alguma coisa dentro dele “infinitamente mais complexa, sutil, rica e poderosa do que já tínhamos percebido”20, porquanto é o afeto que auxilia o ser humano em seu relacionamento pessoal, familiar e social, mas é preciso aceitar a ideia de que, de um modo geral, esse mundo sempre foi muito castigado, malcompreendido e mal-orientado21, visto que o humano não é um ser unicamente afetivo, sendo também desafetivo (ausência de afeto). Essa compreensão do afeto e do desafeto já havido sido assinalada, há 2.500 anos, pelo pré-socrático Empédocles22, ao afirmar que “tudo se unifica, graças ao Amor”, mas “o Ódio (desafeto), como o Amor (afeto), sempre existirá, porque o tempo nunca será privado deste par”.

Portanto, o ser humano, por vezes, está afetivo (um modo de ser-no-mundo-afetivo), mas, em outros momentos, está desafetivo (um jeito de ser-no-mundo-desafetivo), motivo pelo qual há necessidade da produção do direito, da realidade da vida, buscando o sentido do texto do direito de família, da aplicação concreta da coisa mesma (do exame das circunstâncias concretas da questão jurídica). Isso porque o estado de humor (de afeto e de desafeto), segundo HEIDEGGER23, não é em si mesmo algo psíquico, um estado interior, mas, sim, um existencial, eventos, episódios, que se mostram por si mesmos, obtendo a cada leitura uma nova compreensão do texto do direito de família, o que impede a reprodução do direito.

Quer dizer que a família pode ser afetiva e, outras vezes, desafetiva, contendo afeto, desamor, violência doméstica e familiar, uma vez que, ao mesmo tempo, cega e ilumina os humanos, fazendo parte da existência24, da

19 GADAMER, Hans-Georg. Quem sou eu, quem és tu?: comentário sobre o ciclo de poemas. Hausto-

Cristal de Paul Celan. Tradução e apresentação de Raquel Abi-Sâmara. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2005, p.59.

20 MAY, Rollo. A descoberta do ser. 4.ed. Tradução de Cláudio G. Somogyi. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p.25.

21 BAQUERO, Victoriano. Afetividade Integrada Libertadora. 3.ed. Rio de Janeiro: Loyola, 1992, p.5. 22 BRUN, Jean. Os Pré-Socráticos. Tradução de Armindo Rodrigues. Lisboa: Edições 70, p.77-79. 23 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 14.ed. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis:

Vozes, 2005, Parte I, p. 61 e 189. 24 MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. 6.ed. Tradução de Edgard de Assis Carvalho. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p.53, 65.

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linguagem e da condição humana, do modo de ser-no-mundo-afetivo-e-desafetivo. O afeto não é apenas um direito fundamental individual e social de afeiçoar-se ao outro ser humano (artigo 5º, § 2º, da Constituição do País)25, como um direito à sua integridade humana tridimensional.

Concordo, assim, que reside no País um falso preconceito quanto às famílias, ao se pensar que sempre estão com jeito de ser-no-mundo-afetivo, devendo-se “acabar com a imagem idealizada da família feliz, que o Estado protege e ninguém pode interferir. É preciso chamar a atenção da sociedade de que a família não é exclusivamente um lugar de afeto!”26.

A linguagem em família não quer dizer apenas falar, palavrear, porque ela compreende a palavra, texto, gesto, olhar, silêncio, (in)compreensão, genética, (des)afeto, (des)amor, ontologia, solidariedade, companheirismo, (in)tolerância, (in)diferença, ódio, raiva, vingança, enfim, toda forma de comunicação humana27, envolvendo os mais variados modos de ser afetivo (modo de constituir) e desafetivo (modo de desconstituir a família).

Nessa senda, GADAMER28 aduz que o Outro, que, em direito de família, é o cônjuge, o convivente, os pais, os avós, os filhos, os irmãos, os parentes, “rompe com a centralidade de meu eu, à medida que dá a entender algo”. É dizer, o cerne da compreensão em família é deixar que o Outro fale, aceitando seus argumentos, compreendendo o que ele diz e, principalmente, admitir que ele pode estar certo, porque “a possibilidade de o Outro ter direito é a alma da hermenêutica”29.

A afetividade não é somente o direito de amar, de ser feliz, mas também o dever de compreender e estar com o Outro, porquanto “existir não é apenas estar-no-mundo, é também, inevitavelmente, estar-com-alguém”30, estar-em-família, rompendo com a individualidade e com os conceitos prévios (pré-conceitos, pré-juízos). A diversidade humana é, simultaneamente, genética, afetiva e ontológica, e somente mediante o 25 BARROS, Sérgio Resende. A Constituição e o afeto. Boletim IBDFAM, nov.-dez. 2005. 26 DIAS, Maria Berenice. Incesto: um pacto de silêncio. Boletim IBDFAM, nov.-dez. 2005. 27 ROHDEN, Luiz. Hermenêutica e linguagem. In: Hermenêutica filosófica: Nas trilhas de Hans-Georg

Gadamer. Coleção Filosofia 117. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p.156 e 162. 28 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. 2.ed. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis:

Vozes, 2004, p.17. 29 LIXA, Ivone Fernandes Morcilo. Hermenêutica e Direito: uma possibilidade crítica. Curitiba: Juruá,

2003, p.189-190. 30 HOTTOIS, Gilberto. História da filosofia. Tradução de Maria Fernanda Oliveira. Lisboa/Portugal:

Instituto Piaget, 2002, p.327.

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diálogo permanente será possível arrancar das profundezas da condição humana a individualidade e os preconceitos sobre o texto do direito de família.

Para isso ocorrer, não basta o entendimento, na medida em que “quando dizemos que nos entendemos sobre alguma coisa, isso não significa, em absoluto, que um tenha uma opinião idêntica ao outro”31. Para isso, é preciso a compreensão, que é acordo, aceitação da alteridade, da diferença, mediante o envolver-se dos membros da família por meio da pergunta e da resposta, do entrar na conversação, permitindo ser interpelado e interpelar, abrindo espaço à diversidade, que é tridimensional e diferente em cada ser humano. Deve-se esquecer a tradição histórica de posse e de domínio na linguagem familiar, deixando que nela habite a liberdade, o vaivém do diálogo, a aceitação e a possibilidade de que algo seja dito, sem que isso signifique ofensa, e sim um direito/desejo do ser humano de ouvir e ser ouvido.

Em termos gadamerianos32, é intolerante quem quer comprovar que sua palavra é a única verdade, porquanto a experiência ensina que “nada mais impede um verdadeiro entendimento entre um eu e um tu do que a pretensão de uma das partes de compreender o Outro em seu ser e em sua opinião”. Contudo, adverte o autor, ser compreensivo, de antemão, mesmo diante das réplicas do Outro, nada mais é do que tirar o corpo fora do postulado feito pelo Outro, sendo um modo de não se deixar dizer nada.

A linguagem de desafeto precisa ser compreendida como o padecimento no mundo afetivo, mas não da morte dos mundos genético, afetivo e ontológico, e sim da descoberta do diálogo permanente, do entrar em conversação, do dizer e deixar-se dizer, aceitando a diferença, uma vez que é na família que devem ser compreendidos os três mundos do pai, da mãe, do filho, do irmão, do membro familiar. Há, pois, necessidade de ser adotada uma linguagem que possa “deixar e fazer ver aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo”33, ou seja, deixar e fazer ver a família tal como ela se mostra a partir de si mesma.

31 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. 2.ed. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis:

Vozes, 2004, p. 25. 32 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. 2.ed. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis:

Vozes, 2004, p.47 e 58. 33 TOLFO, Rogério. Linguagem e mundo: a fenomenologia do sinal em ser e tempo de Martin

Heidegger. In: HELFER, Inácio (org.). Pensadores alemães dos Séculos XIX e XX. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p.139, lembrando HEIDEGGER.

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3 – OS TRÊS MUNDOS DO SER HUMANO

A compreensão do humano não é efetivada somente pelo comportamento com o mundo das coisas (mundo genético), como até agora tem sido sustentado na cultura jurídica do mundo ocidental, mas também pelo modo de ser-em-família e em sociedade (mundo-(des)-afetivo) e pelo próprio modo de relacionar-se consigo mesmo (mundo ontológico). Quer dizer que a compreensão em família é linguagem, diálogo, conversação infinita e modos de ser-no-mundo-genético, de ser-no-mundo-(des)afetivo e de ser-no-mundo-ontológico. O ser humano não existe só, porquanto, nas palavras heideggerianas34, “ele existe para si (Eigenwelt): consciência de si; ele existe para os outros (Mitwelt): consciência das consciências dos outros; ele existe para as entidades que rodeiam os indivíduos (Umwelt). Existência se dá no interjogo dessas existências. Mas o Ser deve cuidar-se para não ser tragado pelo mundo-dos-outros e isentar-se da responsabilidade individual de escolher seu existir”.

A hermenêutica filosófica acolhe os modos de ser-no-mundo-genético, de ser-no-mundo-(des)afetivo e de ser-no-mundo-ontológico35, porque a linguagem é a casa do ser36, que somente pode ser compreendido pela linguagem37, pelas seguintes razões:

01) o ser humano é biológico, fazendo com que haja a continuação da linhagem, do ciclo de vida, transmitindo às gerações, por exemplo, a compleição física, os gestos, a voz, a escrita, a origem da humanidade, a imagem corporal, parecendo-se, muitas vezes, com seus pais, tendo a possibilidade de herdar as qualidades dos pais38. É o mundo da autorreprodução dos seres vivos, inclusive do ser humano, das necessidades, correspondendo ao modo de ser-no-mundo-genético, um complexo programa genético que influencia o ser humano em sua

34 HEIDEGGER, Martin. Matrizes pós-românticas. Fenomenologia e existencialismo. Disponível em:

<http://www.ufrgs.br/museupsi/aula29.PPT#36>. Acesso em 24 out. 2005. 35 BUZZI, Arcângelo R. Introdução ao pensar. 31.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2004, p.17-24. “Ontologia é a

questão do ser! Sua tarefa consiste no esclarecimento do ser. A existência humana, em todos os aspectos, humildes e elevados, certos ou errados, está na questão do ser. O ser é simplesmente porque é, porque aparece e se presentifica. Ele aí está, na totalidade dos entes e na série de objetos que compõem o mundo. O ser é pensar, sentir, é compreensão”.

36 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Vozes, 2005, v.I. 37 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. 6.ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Rio de Janeiro:

Vozes, 2004, vI; v.II, 2.ed. Tradução de Enio Paulo Giachini. 38 ASIMOV, Isaac. O Código Genético. São Paulo: Cultrix, 1962, p.16.

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atividade, movimento ou comportamento39, pelo qual o ser humano permanece ligado a todos os demais seres vivos, tendo o direito de conhecer a sua origem, sua identidade, sua família de sangue40;

02) o ser humano é afetivo e desafetivo, porque forjado pela dinâmica dos fatores pessoal, familiar, social e universal41, cuja linguagem não é algo dado, codificado, enclausurado, pré-ordenado, logicizado, de modo fixo, cópia de uma realidade social que é preestabelecida, e sim um existencial, um modo de ser-no-mundo-(des)afetivo, um construído, um (des)coberto, uma imagem, um especulativo de um sentido na singularidade do ser dentro da universalidade e faticidade das relações sociais, do mundo em família, porque o ser humano “não é coisa ou substância, mas uma actividade vivida de permanente autocriação e incessante renovação”42.

O estado de humor, diz HEIDEGGER43, em si mesmo, não é algo psíquico, um estado interior, mas, sim, um existencial, o que, em direito de família, quer dizer que o afeto e o desafeto (que são os estados de humor) são existenciais, momentos, eventos, instantes, fatos, acontecimentos, que se mostram por si mesmos.

A compreensão afetiva faz parte da condição humana, conforme informam HEIDEGGER e seus seguidores, nos seguintes termos:

a) o ser humano, na qualidade de ser-no-mundo, é compreensão e afetividade44;

b) a afetividade atinge o ser humano em sua manifestação de linguagem45;

39 VARELLA, Dráuzio. A imposição sexual. Caderno Colunistas do jornal O Sul, 04 mar. 2007, em que

afirma que ERNST MAYR, um dos grandes biólogos do século passado, disse o seguinte: “Não existe atividade, movimento ou comportamento que não seja influenciado por um programa genético”. Por isso, enfatiza Dráuzio, “considerar a orientação sexual mera questão de escolha do indivíduo é desconhecer a condição humana”.

40 MADALENO, Rolf. Novas Perspectivas no Direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p.40.

41 DOURADO, Ione Collado Pacheco; PRANDINI, Regina Célia Almeida Rego. Henri Wallon: psicologia e educação. Disponível em: <http://www.anped.org.br/24/T2071149960279.doc>. Acesso em: 26 out. 2004.

42 BLANC, Mafalda de Faria. Introdução à Ontologia. Coleção Pensamento e Filosofia. Lisboa: Instituto Piaget, 1990, p.110.

43 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 14.ed. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2005, Parte I, p. 61-189.

44 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova visão crítica do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.200.

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c) a compreensão afetiva “é necessária porque, quando falamos, comunicamos marcos afectivos particulares, seleccionamos e omitimos, falamos do que poderia ser”46;

d) a expressão afeto é devastadora, fazendo “parte de meu relacionamento ek-stático, de meu ser-no-mundo”47;

e) todos “os existenciais, não apenas a compreensão, por exemplo, também a afectividade, tiram o seu sentido do futuro originário”48;

f) a experiência afetiva, “em que se lhe mostra o ser, ou melhor, em que nos sentimos no meio dele, é uma experiência indistinta de existência, e o seu nada é, paralelamente, um nada da existência finita”49;

g) de acordo com VATTIMO50, seguindo as pegadas de HEIDEGGER, a afetividade é “o modo originário de se encontrar e de se sentir no mundo é uma espécie de primeira ‘pressão’ global do mundo que, de alguma maneira, funda a própria compreensão”. Numa só palavra, o intérprete somente compreenderá o texto do direito de família tridimensional se ele se encontrar numa situação afetiva, querendo dizer que “o próprio encontro com as coisas no plano da sensibilidade só é possível com base no facto de que o Deisen está sempre originariamente numa situação afetiva; por conseguinte, toda relação específica com as coisas individuais (mesmo a compreensão e sua articulação interpretativa) é possível em virtude da abertura ao mundo garantida pela tonalidade afectiva. ‘A tonalidade afectiva abriu desde já sempre o DEISEN ao mundo na sua totalidade, tornando assim possível um dirigir-se para’”.

Momento seguinte, VATTIMO afirma que o ser humano pode confiar “a descoberta originária do mundo à simples tonalidade afectiva”, significando que o “ser-no-mundo nunca é um sujeito puro porque nunca é um espectador desinteressado das coisas e dos significados”. Em outras palavras, o ser humano não poderá ter uma pré-compreensão do mundo se ele estiver numa situação desafetiva;

45 COBRA, Rubem Q. Martin Heidegger. Disponível em: <http://www.cobra.pages.nom.br/fc-

heidegger.html>. Acesso em 20 dez. 2001. 46 ROCHA, Acílio da Silva Estanqueiro. O Ideal da Europa. Revista Portuguesa de Filosofia, v.56, fase 3-

4, p. 327, jul.-dez. 2000. 47 HEIDEGGER, Martin. Seminários de Zollikon. Tradução de Gabriela Arnhold e Maria de Fátima de

Almeida Prado. Petrópolis: Vozes, 2001, p.187. 48 HAAR, Michel. Heidegger e a essência do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1990, p.65. 49 FRAGA, Gustavo de. Sobre Heidegger. Coimbra: Almedina, 1965, p.35. 50 VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger. 10.ed. Lisboa/Portugal: Instituto Piaget, 1999, p.38-40.

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03) o ser humano é ontológico, porque se comporta e se relaciona no mundo, sem divisões, sem origens, sem teoria exclusiva (genética, ou afetiva ou ontológica, porquanto é um ser único, total, tridimensional). O humano é um ser com condição comum a todos os humanos, um acontecer, que convive e compartilha nos mundos da ancestralidade sanguínea, do relacionamento social/familiar e consigo mesmo.

Essas diferenças que são encontradas nos mundos genético, (des)afetivo e ontológico são denominadas na hermenêutica filosófica e na fenomenologia hermenêutica de diferença ontológica, a qual, segundo ERNILDO STEIN51, nasce da tentativa de resolver o problema epistemológico, porquanto “o ente é objeto do conhecimento científico e o ser, objeto da filosofia. A filosofia fundamenta a ciência. O conhecimento do ser é a condição de possibilidade do reconhecimento do real. Somente à medida que conheço o ser, conheço algo do real”. Além disso, segundo o autor, “o sentido do ser seria a própria clareira, o mundo, o desvelamento. A fenomenologia se resumiria no papel de vigiar a diferença ontológica e, nela, o acontecer de velamento e desvelamento, que seriam as duas faces do ser”. Conforme GADAMER52, a diferença ontológica “não é algo que se faça, mas algo que se apresenta aí, que se abre como um abismo. Algo se afasta. Um despontar tem lugar”, não sendo essa diferença “algo feito por alguém, mas que somos colocados nessa diferenciação, nessa diferença”.

A hermenêutica filosófica e fenomenológica serve para desvelar o velamento da família, do texto, do ser humano, visto que, nas palavras de HEIDEGGER, a vida é nevoenta, querendo dizer que somente é possível nos movimentar “senão por um curto espaço de tempo em uma névoa que se ilumina, uma névoa que nos envolve novamente quando buscamos a palavra correta”53. Por isso, a importância no direito de família de desvelar, de descobrir, de abrir uma clareira hermenêutica para que surja do ente humano o ser genético, o ser (des)afetivo e o ser ontológico, o que somente será possível mediante a compreensão do texto familiar pela fenomenologia, pelo acontecer da tridimensionalidade do ser humano, pelo surgimento das coisas mesmas, buscando a verdade nos dados originários

51 STEIN, Ernildo. Uma breve introdução à filosofia. Ijuí: Editora Unijuí, 2002, p.81, 94-96. 52 GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva. Heidegger em retrospectiva. Rio de Janeiro:

Vozes, 2007, p.92-93. 53 GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva. Heidegger em retrospectiva. Rio de Janeiro:

Vozes, 2007, p.107.

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de todos os episódios da experiência, da realidade da vida pessoal, familiar e social.

É preciso, assim, iniciar uma destruição do atual pensamento do direito de família, para voltar-se contra o encobrimento da vida humana, partindo-se para uma liberação, um aparecimento do ser do ser humano que está encoberto, que são os modos de ser-no-mundo-genético, de ser-no-mundo-(des)afetivo e de ser-no-mundo-ontológico.

É por isso que o legislador e a comunidade jurídica do mundo ocidental têm causado muitos problemas sociais, com a compreensão do texto do direito de família apenas em parte do mundo genético, já que a normatização não alcança a realidade da vida, a existencialidade, os eventos, os episódios, os acontecimentos. E como a pessoa não é nem pode ser compreendida como uma coisa54, ela está sendo transformanda em vítima de arrombamento, sem violência, de seus modos de ser-no-mundo-genético, de ser-no-mundo-(des)afetivo e de ser-no-mundo-ontológico.

Para compreender o texto do direito de família, a interpretação não deve levar em conta o ser-objeto, a normatização do mundo genético, uma vez que há um mundo circundante em que é vislumbrado um ter-prévio, um ver-prévio e um pré-conceito sobre a Constituição do País55 e a condição humana tridimensional. Nesse sentido, GADAMER56 lembra que o intérprete, ao dirigir-se a um texto, não deve partir da opinião prévia que lhe é própria, “mas examine expressamente essas opiniões quanto à sua legitimação, ou seja, quanto à sua origem e validez”. É preciso despir-se dos pré-conceitos, da pré-compreensão do que é família, lei, decisão judicial ou um processo que desconstitui o vínculo genético, afetivo e ontológico, querendo dizer que os preconceitos que dominam o ser humano comprometem o seu verdadeiro reconhecimento do passado histórico57, do presente e do futuro da família.

54 OHLWEILER, Leonel. Administração Pública e Filosofia Política Contemporânea: algumas

projeções do constitucionalismo comunitário. In: Direito, Estado e Democracia: entre a (in)efetividade e o imaginário social. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, v.1, n.4, p.266. O autor lembra que MARTIN HEIDEGGER “chamava de o fascínio pela técnica querer dispor das coisas do mundo da vida por meio da técnica”.

55 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova visão crítica do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.229.

56 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. 6.ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Rio de Janeiro: Vozes, 2004, t.I, p.356.

57 SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes (Org.). Hermenêutica filosófica. História e hermenêutica na obra de Hans-Georg Gadamer. In: Hermenêutica e argumentação. Ijuí: Editora Unijuí, 2003, p.20.

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4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Creio que ficou compreendido que o texto do direito de família não deve ser compreendido exclusivamente pela normatização genética, mas também pelos mundos (des)afetivo e ontológico. A genética, a afetividade e a ontologia são imprescindíveis à saúde física, mental, à inteligência, à educação, à estabilidade econômica, social, material e cultural do ser humano, à dignidade e à condição humana, não bastando tão só a procriação, a origem genética, como também a ancestralidade afetiva, a recreação, a paz, a felicidade, a solidariedade familiar e o respeito ao modo de ser de cada membro familiar.

O afeto e o desafeto são um construído, um (des)coberto, uma imagem, um especulativo de um sentido na singularidade, na universalidade e na faticidade das relações sociais, do mundo em família e do mundo próprio de cada ser humano, que “não é coisa ou substância, mas uma actividade vivida de permanente autocriação e incessante renovação”58.

O mundo da afetividade também compreende o perdão e a reconciliação, visto que, em linguagem gadameriana59, o simples fato de alguém pedir perdão significa que ele está perdoado, independentemente da manifestação do ofendido, pelo que “àquele que conseguiu pedir perdão é permitido acolhê-lo de tal modo que já lhe foi perdoado. Eis o único perdão que existe, uma palavra que já não tem de ser dita, porquanto já abriu o caminho que conduz de um ao outro, porque já superou, através do gesto da palavra, a desavença, a injustiça, isto é, tudo o que nos dissociava”.

Com o perdão, abrem-se as comportas da reconciliação, a qual, segundo GADAMER60, é “algo da verdadeira historicidade interna do homem; portanto, da possibilidade do seu crescimento interior”. Aduz, ainda, a seguinte passagem de afetividade e de solidariedade humana, principalmente no ventre da conjugalidade, da convivencialidade, da parentalidade e do modo de ser-no-mundo-tridimensional: “É esse, de facto, o segredo da reconciliação: onde quer que exista a desunião, a desavença e a cisão, onde entre nós estivermos divididos, onde a nossa convivência se desfez, quer se trate de um Eu ou Tu, ou de uma pessoa e a sociedade, ou eventualmente do pecador e a Igreja – em toda a parte experimentamos que, com a reconciliação, um mais entra no mundo. Só

58 BLANC, Mafalda de Faria. Introdução à Ontologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1990, p.110. 59 GADAMER, Hans-Georg. Elogio da Teoria. Lisboa: Edições 70, 2001, p.20. 60 GADAMER, Hans-Georg. Elogio da Teoria. Lisboa: Edições 70, 2001, p.20-21.

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através da reconciliação se pode superar a alteridade, a ineliminável alteridade, que separa o homem do homem e se eleva, sim, à admirável realidade de uma vida e de um pensamento comuns e solidários”.

Significa que ninguém melhor do que GADAMER soube decifrar e compreender a família, motivo pelo qual seu pensamento tem aplicação na tese da condição humana tridimensional, pelo seguinte: a genética está incorporada nas células humanas; a afetividade se dá por meio do incansável esforço de união, consenso, diálogo e reconciliação entre os humanos, na família e na sociedade; a ontologia, por meio da defesa intransigente ao respeito do mundo particular, pessoal de cada ser humano.

A (des)afetividade acompanha o ser humano desde a concepção até o leito de sua morte, tendo profunda influência no modo de ser-no-mundo, sendo inclusive a chave que abre o mundo dos seres vivos em geral (mundo genético) para o mundo humano, à medida que, “sem essa abertura mútua, tampouco pode existir verdadeiro vínculo humano”61, que é condição de possibilidade para pré-compreender o ser humano em sua tridimensionalidade.

Não há a menor dúvida de que é no recôndito da família que cresce, evento a evento, episódio a episódio, a importância do diálogo, do perdão e da reconciliação permanente, à medida que eles curam os desentendimentos e entram “numa conversação que ninguém dirige, mas que a todos nos conduz”62, sendo, pois, o vaivém da palavra, o escutar recíproco de um e outro, em que se forma e se elabora o ser-com, que possui os modos de não ouvir, resistir, defender-se63.

O ser humano convive e compartilha a sua total condição humana tridimensional quando ouve e é ouvido, tornando-se um ser-com-os-outros, socializando-se e tornando-se diferente dos demais seres vivos em geral, isso porque “o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. O ser-em é ser-com os outros. Somente onde se dá a possibilidade existencial de discurso e escuta é que alguém pode ouvir”64.

61 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p.471-472. 62 GADAMER, Hans-Georg. O mistério da saúde: o cuidado da saúde e a arte da Medicina.

Lisboa/Portugal: Edições 70, 1993, p. 129. 63 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schulack. 14.ed. Rio de

Janeiro: Vozes, 2005, Parte I, p. 222-223. 64 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schulack. 14.ed. Rio de

Janeiro: Vozes, 2005, Parte I, p. 170.

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Os membros da família precisam procurar se educar na conversação, no direito existencial de ouvir e de ser ouvido e no diálogo interminável, de tal modo que possam reconciliar, aceitando a diversidade tridimensional que habita em todo ser humano, porque se afeto é harmonia, saúde e inteligência, o desafeto é desequilíbrio, doença, ausência de educação. O (r)estabelecimento do afeto, da saúde tridimensional, poderá ser efetivado com o ouvir e o ser ouvido, promovendo o círculo hermenêutico, e não um círculo hermético, uma vez que cada ser humano é de maneira diversa, pelo que não existe “historia de amor que no se cree sus propias relaciones internas y externas, por cuya tensión no se deje al mismo tiempo transportar”65.

Se GADAMER e HEIDEGGER compreendem, respectivamente, que “ser que pode ser compreendido é linguagem” e que “a linguagem é a casa do ser”, é porque o sentido da família será compreendido/desvelado pela linguagem genética, afetiva e ontológica, quando então toda conversação em família, social e pessoal passa a gerar uma linguagem em comum. Essa nova linguagem comum surge com a conversação, com o diálogo, com o dizer e deixar-se dizer, o que não significa a adaptação de uns aos outros, um “mero confronto e imposição do ponto de vista pessoal, mas uma transformação que converte naquilo que é comum, na qual já não se é mais o que se era”66.

Surge, com isso, uma nova forma de compreender o texto do direito de família, não apenas dentro de um mundo natural, do mundo genético, do instinto, do mundo dos demais seres vivos, mas de outros dois mundos comuns pertencentes ao ser humano – afetivo e ontológico –, em que os demais seres vivos não fazem parte. É dizer, o ser humano, dentro do mundo genético, é um mero ser vivo, à medida que ele somente se transforma em humano pela linguagem, que se localiza dentro dos mundos afetivo e ontológico.

O mundo afetivo é o mundo do relacionamento em sociedade, mas, essencialmente, da compreensão, do diálogo, do entendimento, da solidariedade, do afeto e do desafeto, do amor, do perdão, da reconciliação.

65 KOSELLECK, Reinhart. Histórica y hermenéutica. In: KOSELLECK, Reinhart; GADAMER, Hans-Georg.

Historia y hermenéutica. Barcelona: Paidós Ibérica, Instituto de Ciencias de la Educación de la Universidad Autónoma de Barcelona, 1997, p.77.

66 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. 6.ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2004, p.493.

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O mundo ontológico é o mundo humano pessoal, é o modo de ser e de estar-aí-no-mundo, do diálogo consigo mesmo, uma autoconversação, um autorrelacionamento, uma linguagem e compreensão de si mesmo, porquanto compreender algo significa sempre aplicá-lo a nós próprios.

Essa confabulação familiar não se situa no mundo genético, no mundo circundante, como sempre tem sido apregoado e aplicado pelo legislador/intérprete, na medida em que o mundo biológico não distingue os humanos dos demais seres vivos. O acordo na conversação é diferente, assevera GADAMER67, uma vez que é uma linguagem humana que “deve ser pensada como um processo vital específico e único, pelo fato de que no entendimento da linguagem se manifesta ‘mundo’”. Além disso, o autor anota que o mundo é um solo comum, “não palmilhado por ninguém e reconhecido por todos, que une a todos os que falam entre si”.

É por isso, conclui, que a linguagem é por sua essência a linguagem da conversação, só adquirindo sua realidade quando se dá o entendimento mútuo. Entendimento mútuo não é possível no mundo genético, onde habitam os seres vivos em geral, sendo por isso que o humano é diferente, porque ele tem outros dois mundos humanos (afetivo e ontológico), tendo, portanto, linguagem. Significa que a dogmática jurídica e o legislador, ao normatizar o ser humano apenas parcialmente no mundo genético, já que é praticamente impossível legislar sobre a evolução humana, equipararam o humano aos seres vivos, tendo em vista que o ingresso dele na totalidade da tridimensionalidade humana é a condição de possibilidade de ser compreendido e tornar-se um ser humano.

Essa compreensão pode ser efetivada pela hermenêutica filosófica, mediante a singularidade e a historicidade da coisa mesma, da parte ao todo e do todo à parte68, a partir de si mesmo69, do permanente efeito recíproco e da ida e volta do olhar70 entre o texto, o intérprete, a tradição familiar e da suspensão dos preconceitos puros e impuros. Para tanto, é fundamental a compreensão da distância do tempo, que distingue “os pré-

67 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. 6.ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis:

Vozes, 2004, p.575-576. 68 MORENO, Montserrat; SASTRE, Genoveva. O significado afetivo e cognitivo das ações. In: ARANTES,

Valéria Amorim (Org.). Afetividade na Escola. São Paulo: Summus Editorial, 2003, p.130. 69 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. 2.ed. Tradução de Enio Paulo Giachini. Rio de

Janeiro: Vozes, 2004, p.72 70 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Processo e Ideologia. O Paradigma Racionalista. Rio de Janeiro:

Forense, 2004, p.283.

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juízos (preconceitos) verdadeiros segundo os quais compreendemos dos pré-juízos falsos que produzem os mal-entendidos”71.

Dessa forma, para compreender o texto do direito de família, devem ser suspensos, afastados, expostos os preconceitos ao crivo da diversidade, do modo de ser-nos-mundos-genético-(des)-afetivo-ontológico, para que haja o desvelamento da verdade, da dignidade, da igualdade, da liberdade e da condição humana. Isso, na linguagem gadameriana, quer dizer que a consciência hermenêutica precisa ser uma consciência histórica72, visto que “a consciência hermenêutica tem sua consumação não na certeza metodológica sobre si mesma, mas na comunidade de experiência que distingue o homem experimentado daquele que está preso aos dogmas”73.

A compreensão da família não pode ser pensada na limitada subjetividade, mas, sim, como um retroceder que penetra num acontecimento da tradição, em que se misturam constantemente passado, presente e futuro. Por isso, não basta examinar o texto do direito de família pelos mundos genético e afetivo, sendo necessário também compreender o mundo ontológico (Eigenwelt), o qual, caso não reconhecido, “as relações interpessoais tenderão a se tornar superficiais e estéreis”, e isso ocorre porque o afeto, sem esse mundo particular, próprio e único de cada humano, “carece de poder e de capacidade para frutificar-se”74.

Numa só palavra, a ausência do mundo pessoal (ontológico) causa a dissolução do mundo afetivo do ser humano, porque ele estará se relacionando unicamente no mundo genético, em que se encontram os seres vivos em geral, que não possuem linguagem.

A resistência em aceitar a ideia de um ser humano genético, afetivo e ontológico contribuiu para a lenta evolução do direito de família. Nesse sentido, STRECK registra que a cultura jurídica está acorrentada na reprodução liberal-individualista do Direito, quando, na realidade, o Estado Republicano e Democrático de Direito reclama a produção do Direito com vinculação social, já que a relação é transmoderna, em que os conflitos predominantes são de cunho transindividual. O direito de família, continua

71 TESTA, Edimarcio. Hermenêutica filosófica e história. Passo Fundo: Ed. UPF, 2004. p.62, nas pegadas

de GADAMER. 72 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. 2.ed. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis:

Vozes, 2004, p.79-80. 73 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p.385 e 472. 74 MAY, Rollo. A Descoberta do Ser: estudos sobre a Psicologia Existencial. Tradução de Cláudio G.

Somogyi. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p.143-145.

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o autor, é (des)cuidado nessa mesma angularização entre Estado e parte, surgindo, com isso, um contraponto, já que o Estado Constitucional passa, necessariamente, “por este deslocamento do centro das decisões dos Poderes legislativo e executivo para o âmbito do judiciário”.

É por isso que STRECK propõe a eliminação do caráter de ferramenta da Constituição, porquanto “a Constituição não é ferramenta – é constituinte. Temos de des-objetivar a Constituição, tarefa que será possível com a superação do paradigma metafísico que (pré)domina o imaginário dos juristas”75. A seguir, argumenta que há necessidade de ser aberta uma clareira no Direito, para des-ocultar caminhos, porquanto “é na abertura da clareira, no aberto para tudo que se apresenta e ausenta, é que se possibilitará que a Constituição se mostre como ela mesma, que se revele e se mostre em si mesma, enquanto fenômeno”.

Isso quer dizer que é comportamento que contraria a condição humana tridimensional interpretar-se o direito de família com base em norma infraconstitucional ou devido a um feixe compacto de escritores, de jurisprudência ou mesmo de súmula, na medida em que o texto deve passar, obrigatoriamente, pelo processo de filtragem da Constituição do País. É preciso compreender que a Carta Magna, a família, o ser humano, é um acontecer, um evento, um momento, um episódio da vida, um modo de ser-no-mundo-tridimensional, pelo que o texto do direito de família deve ser compreendido e concretizado pelo sentido do rio de sua historicidade (passado, presente e futuro) e do acontecer da linguagem humana tridimensional.

Há premente necessidade de o intérprete passar à condição de lenhador, de guardião, de desvelador, de descobridor dos caminhos do texto do direito de família, desterrando os velhos conceitos prévios, uma vez que, para perguntar, é preciso conhecer a coisa a ser pesquisada, discutida, examinada, compreendida/interpretada/aplicada. Com isso, a expressão gadameriana – sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar76 – serve justamente para evitar que os caminhos da floresta do direito

75 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2000, p.287. 76 ROHDEN, Luiz. Ser que pode ser compreendido é linguagem. Revista Portuguesa de Filosofia, v.56,

fase 3-4, p.544, jul.-dez. 2000.

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de família não permaneçam sinuosos, preconceituosos, perdendo-se, subitamente, no não trilhado77.

Somente se o intérprete invadir os caminhos estreitos e sinuosos da floresta familiar e neles se perder, retornando a novos caminhos, com a destruição do atual pensamento metódico e subjetivista, abrindo os olhos à realidade da vida e escutar nas palavras a proveniência secreta e o presente velado da tridimensionalidade humana, genética, (des)afetiva e ontológica, é que poderá desvelar e encontrar o verdadeiro sentido do texto do direito de família.

Muito ainda precisa ser dito acerca do texto do direito de família, da necessidade de conversação, de escutar e ser escutado, do círculo hermenêutico, da fusão de horizontes, da tradição histórica, da herança dos preconceitos puros e impuros e dos modos de ser-no-mundo-genético, de ser-no-mundo-(des)afetivo e de ser-no-mundo-ontológico. Por enquanto, (re)lembro o diálogo gadameriano78, no sentido de que o hermeneuta que não tiver vários horizontes terá uma visão reduzida, delimitada, obstruída, compreendendo demasiadamente o que está próximo em detrimento do que está a distância, ou desvalorizando o que está distante em detrimento do que está próximo, motivo pelo qual renovo a mensagem gadameriana, de que quem quiser compreender o texto do direito de família deixe que ele lhe diga alguma coisa.

Essa compreensão do direito de família não será efetivada à margem da Constituição do País, em que não basta compreender as regras, mas, sobretudo, os princípios, na medida em que o mundo prático não pode ser dito no todo, nem mesmo pela linguagem, sempre sobrando algo por ser dito. O princípio pode desnudar a capa de sentido imposta pela lei, que esconde a condição humana tridimensional, pois, enquanto a regra abre, o 77 STRECK, Lenio Luiz. O senso comum teórico e a violência contra a mulher: desvelando a razão

cínica do direito em terra brasilis. Revista Brasileira de Direito de família. Porto Alegre: Síntese/ IBDFAM, ano IV, n.16, p.160-161, jan.-fev.-mar. 2003. O autor refere que HEIDEGGER assim se manifestou sobre a descoberta de caminhos: “Há que se des-cobrir os caminhos que podem nos levar para o des-velamento daquilo que tendencialmente encobrimos... Entretanto, há que se ter muito cuidado! Afinal, diz HEIDEGGER, no seu Holzwege: ‘Na floresta há caminhos que, no mais das vezes sinuosos, terminam perdendo-se, subitamente, no não trilhado. Chamam-se caminhos da floresta (Holzwege). Cada um segue separado, mas na mesma floresta (Wald). Parece, muitas vezes, que um é igual ao outro. Porém, apenas parece ser assim. Somente os lenhadores e os guardas-florestais conhecem os caminhos. Eles sabem o que significa estar metido num caminho da floresta”.

78 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. 6.ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer: Rio de Janeiro: Vozes, 2004, p. 400-403.

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princípio fecha a compreensão do texto. Isso quer dizer que a lei não prevalece diante do princípio, sob pena de o intérprete incidir em contradição, porque a regra se funda com base em um princípio, não podendo sobrepor-se à sua principiologia, sob pena de haver um retorno ao positivismo79.

Isso explica as ponderações de ROLLO MAY, de que a ontologia serve para afastar o totalitarismo da razão, apontando a “fenda entre o que é abstratamente verdadeiro e o que é existencialmente real”. O autor lembra que o esquecimento do mundo afetivo (Mitwelt) faz com que o ser humano conviva tão somente no mundo instintivo, dos meros seres vivos (Umwelt), e que o afastamento do mundo ontológico (Eigenwelt) “contribui não somente para uma aridez intelectual e perda da vitalidade, como, também, obviamente, tem muito a ver com o fato de que as pessoas modernas sejam propensas à perda do senso de realidade em suas experiências”80.

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79 STRECK, Lenio Luiz. Verdade & Consenso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 102 e 266. 80 MAY, Rollo. A Descoberta do Ser: estudos sobre a psicologia existencial. Tradução de Cláudio G.

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A NULIDADE DOS ATOS DECISÓRIOS PRATICADOS POR JUIZ

ABSOLUTAMENTE INCOMPETENTE NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

GELSON AMARO DE SOUZA* RAFAEL JOSÉ NADIM DE LAZARI**

Resumo: Municiado com os métodos dedutivo e comparativo, debruça-se o presente artigo sobre a questão envolvendo a nulidade dos atos decisórios praticados por juiz absolutamente incompetente. Neste prumo, após breves reflexões sobre jurisdição e competência em sede de Processo Civil, passa-se à interpretação do art. 113, § 2º, do respectivo texto legal, o qual é analisado não de forma una e meramente gramatical, mas teleologicamente, em consonância com outros dispositivos do Código de Processo, quais sejam os arts. 122, 485, 273, entre outros. Em uma tomada de posicionamento (de maneira não sectária, contudo), ver-se-á que, a despeito de pender parcela doutrinária para um entendimento acerca da nulidade de todos os atos decisórios; há aqueles, aos quais se insere este Autor, que afirmam que a nulidade não se aproveita a alguns atos, por força da função social do processo, do atendimento da finalidade precípua do ato passível de nulidade, e por questão de lógica e economia processual.

* Procurador do Estado de São Paulo aposentado. Mestre em Direito pela ITE de Bauru/SP. Doutor

em Direito das Relações Sociais – com área de concentração em Direito Processual Civil – pela PUC/SP. Integrado ao Corpo Docente do Mestrado em Direito e na Graduação em Direito da Faculdade do Norte do Paraná (UENP). Ex-diretor e atual Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Toledo de Presidente Prudente/SP. Leciona também na graduação da FAI de Adamantina/SP. Professor convidado da ESA/SP e da Pós-graduação da FIO de Ourinhos/SP, ESUD de Cuiabá/MT e AEMS de Três Lagoas/MT. Advogado militante em Presidente Prudente/SP.

** Advogado. Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília/SP – UNIVEM. Pesquisador do Grupo de Iniciação Científica “Novos Rumos do Processo de Conhecimento”, sob orientação do Professor Dr. GELSON AMARO DE SOUZA.

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Palavras-Chave: Atos decisórios. Incompetência absoluta. Validade. Nulidade.

Abstract: Through deductive and comparative methods, this essay discusses the nullity of the acts of decision taken by judge absolutely incompetent. So, the article 113, § 2º, CPC, will be analyzed together with other provisions of the Code of Civil Procedure. In the end, analyzing the social function of process, the logic and the procedural economy, will be given a position that not all acts should be considered null.

Keywords: Acts of decision. Absolute incompetence. Validity. Nullity.

Sumário: 1 – Considerações iniciais; 2 – Da competência; 3 – Da incompetência absoluta e o dever de declará-la; 4 – Da questão acerca da nulidade; 5 – Conclusão; 6 – Referências bibliográficas.

1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

É sabido que vários são os métodos de interpretação da norma processual civil. Grande parte dos aplicadores do Direito segue uma linha meramente gramatical de observação do texto legal. Essa linha declarativa, condensada na expressão “o legislador disse o que queria dizer”, tende a ficar ultrapassada.

Isto porque o ordenamento jurídico deve ser analisado sob visão ampla, isto é, como um grande sistema interdependente. Uma norma não existe tão somente. Ela auxilia ou é auxiliada por outras normas espalhadas na abrangência do ordenamento de um Estado aplicador do Direito. Ainda assim, estas normas somente subsistem porque fatores históricos, políticos e culturais contribuíram para isso.

Neste prumo, o texto legal do art. 113, § 2º, do CPC, que diz: “Declarada a incompetência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos, remetendo-se os autos a juiz competente”, não pode ser analisado isoladamente.

Observa-se, aqui, que o legislador quis evitar um conflito interpretativo, mas acabou piorando as coisas. Ao que parece, em uma primeira impressão, o legislador quis dizer: “Todos os atos decisórios serão nulos”; então, como interligar esta forma de interpretar o artigo a outros tipos legais contraditórios a essa pseudointerpretação?

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Sendo assim, parece mais claro que, observando o art. 246, parágrafo único, o art. 449, o art. 273, o art. 122 e o art. 485, todos do CPC, entre outros, não parece ser a mais “apropriada” a redação conferida ao dispositivo processual mencionado alhures. A justificativa para tal asserção começa a ser desenvolvida no capítulo seguinte.

2 – DA COMPETÊNCIA

A palavra “competência” vem de competentia, que deriva do verbo competere1, que significa “proporção”, “[...] simetria de concorrer com outro, buscar ao mesmo tempo; dar no mesmo ponto” (BERMUDEZ, 1995, p.56). Assim, a competência “[...] é o resultado da divisão do trabalho jurisdicional” (CARVALHO, 1995, p.01).

Nas palavras de FIDÉLIS DOS SANTOS (1996, p.125):

“Havendo pluralidade de órgãos jurisdicionais, a lei limita a atividade de cada um. Esta limitação se chama ‘competência’, que é a medida exata de jurisdição do órgão judicante, ou seja, a fração que lhe compete, no amplo exercício da função estatal de aplicação da justiça.”

Prosseguindo, a competência pode ser absoluta ou relativa. Aquela, em razão da matéria ou hierarquia, é chamada “absoluta”. Se for em razão do valor ou território, será “relativa”2 (art. 111 do CPC). Fala-se em incompetência absoluta “[...] aquela que não puder ser alterada ou prorrogada por vontade das partes ou outro expediente qualquer” (SOUZA, 1998, p. 272); e em incompetência relativa “[...] aquela que se refere ao foro e não ao juízo e fica sujeita à preclusão” (SOUZA, 1998, p.272).

Desta forma, pelo conteúdo literal do art. 113, § 2°, do CPC, são nulos “todos” os atos decisórios atinentes à matéria ou hierarquia, de modo que, consequencialmente, isso importará “a remessa dos autos a juiz competente”.

1 Etmologicamente la voz competência procede de la latina competentia, y esta, por su vez, es un

derivado del verbo competere (DEL ROSAL, 1974. p. 37). 2 Vale lembrar, a título ilustrativo, que mesmo a competência em razão do “valor” pode ser

considerada absoluta, como aquela imperante nos Juizados Especiais Cíveis (40 S.M., conforme art. 3º, I, da Lei nº 9.099/95, no âmbito estadual; e 60 S.M., conforme art. 3º da Lei nº 10.259/01, no âmbito federal).

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3 – DA INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA E O DEVER DE DECLARÁ-LA

A incompetência absoluta é pressuposto de validade da relação jurídica processual e deve ser alegada de ofício pelo juiz, podendo sê-lo em qualquer tempo e grau de jurisdição (art. 113 do CPC).

Para PIZZOL, a incompetência absoluta “[...] deve ser declarada pelo juiz, arguida ou não” (2003, p.393). Para LAMARCA, “[...] o próprio juiz há de ser o juiz de sua competência e proclamá-la de ofício” (1979, p.72).

Ademais, aqui se deve lembrar do “Princípio da Competência sobre a Competência”, que ensina MARQUES (1997, p.322-323):

“O Princípio que domina os incidentes sobre competência é o de que todo órgão judiciário é juiz da própria competência (a chamada Kompetenz-Kompetenz dos alemães).”

Para SOUZA, “[...] o atendimento desse dever é ato de acordo com a lei” (2005, p.84); e se é dever, o ato decisório do juiz incompetente que declara a própria incompetência não é nulo e, logo, a afirmação de que “todos os atos decisórios são nulos” já começa a sucumbir.

4 – DA QUESTÃO ACERCA DA NULIDADE

É posição majoritária da doutrina processualista brasileira que atos decisórios praticados por juiz absolutamente incompetente são nulos.

Neste diapasão, PIZZOL discorre que “[...] se reconhecida a incompetência, os atos decisórios serão considerados nulos” (2003, p.394). Para THEODORO JÚNIOR, “[...] sendo reconhecida a incompetência absoluta, o processo é atingido por nulidade, mas esta somente se restringe aos atos decisórios” (2005, p.173).

Na verdade, é certo que nem todos os atos decisórios praticados por juiz absolutamente incompetente são nulos. Vejamos:

O art. 122 do CPC diz que: “Ao decidir o conflito, o tribunal declarará qual o juiz competente, pronunciando-se também sobre a validade dos atos do juiz incompetente”. Ora, isso significa que o Tribunal vai apreciar os atos já praticados, e pode muito bem convalidar um ato decisório, até mesmo porque não há um rol elencando especificamente quais atos especificamente serão declarados nulos. Nada obstante, para “legitimar” o art. 113, § 2º, chegou-se a afirmar que este apresenta dissonância com o art. 122. Não é esse o entendimento de quem vos escreve este artigo, todavia. Com efeito,

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alguns atos decisórios poderão ser nulos, conforme o art. 113, § 2º; e outros, absolutamente eficazes, segundo o art. 122 do CPC. Na verdade, os dois dispositivos são complementares e não conflitantes, fazendo uma simples análise. Ora, em decidindo um conflito de competência, nada obsta a que o Tribunal convalide ato decisório no âmbito de incompetência absoluta, até porque o § 2º do art. 113 pode até não permitir de forma velada, mas também não veda tal prática.

Também, um artigo que merece especial atenção é o 273 do CPC, que trata da tutela antecipada. A tutela antecipada, muito embora já existisse em casos específicos, como nas ações de alimentos, procedimentos especiais e mandado de segurança, apareceu como figura expressa somente na reforma processual de 1994, pela Lei nº 8.952, e, como se sabe, visa a assegurar direito iminente, mas que não pode ser concedido definitivamente devido aos passos que o processo deve seguir. A tutela antecipada existe para que prejuízos não ocorram em razão da morosidade do Judiciário, e veio para impedir que medidas cautelares autônomas fossem utilizadas indevidamente em seu lugar.

A tutela antecipada é tutela de emergência. O ato decisório de concessão de tutela antecipada tomado por juiz absolutamente incompetente não deve ser nulo, pois, em primeiro lugar, se nem mesmo a sentença que ao final soluciona a lide, quando proferida por juiz incompetente, é nula, mas apenas rescindível (ação rescisória, art. 485, II, do CPC), logo, a decisão do juiz competente que antecipa a tutela é também apenas revogável; e em segundo lugar, antes de analisar a validade de um ato decisório de juiz incompetente, devem-se observar a urgência do caso e a consequência positiva para a parte que necessita da concessão desta tutela. Há autores que dizem que a concessão da tutela antecipada, em contrapartida à urgência daquele que pede, causa real prejuízo à parte obrigada a seguir a decisão que concede esta tutela. Parece coerente que se respeite o Princípio da Proporcionalidade ou Preponderância daquilo que “está em jogo”. Toma-se, a título ilustrativo, o caso do paciente que paga o plano de saúde e, quando dele precisa, ouve da empresa médica que o plano não cobre aquele tipo de tratamento. O enfermo não pode esperar que o conflito se arraste na Justiça, até porque, quando da sentença final, ele já estaria morto. Seguindo-se uma relação de preponderância da vida sobre o aspecto financeiro, aliada à questão de urgência, parece ilógico que o ato decisório de juiz absolutamente incompetente que conceda tutela antecipada seja nulo, até porque o direito em jogo é iminente. Do contrário,

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se estaria diante da absurda aberração em admitir que uma falha técnica, como o é a concessão de tutela antecipada por juiz absolutamente incompetente, fosse suficiente a permitir a desconstituição do ato e o consequente estado de risco daquele que buscou o provimento antecipatório.

Dando continuidade às argumentações, outra situação possível de convalidação ocorre nos casos em que faltar pressuposto de validade necessário para o desenvolvimento e continuidade do processo. Aqui, o ato do juiz incompetente não deve ser considerado nulo. O art. 246, parágrafo único, do CPC, que diz: “Se o processo tiver corrido sem conhecimento do Ministério Público (nos feitos em que deva intervir), o juiz o anulará a partir do momento em que o órgão devia ter sido intimado”, e o art. 267 do CPC, que trata das hipóteses de extinção do processo sem resolução de mérito por indeferimento da petição inicial, litispendência, perempção ou coisa julgada, negligência das partes e ausência de pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo, tratam especificamente da condição de validade e procedibilidade do processo. Logo, se o juiz absolutamente incompetente der causa à extinção do processo por esses motivos, deve haver convalidação destes atos decisórios, vez que, seja um juiz competente ou incompetente, isso é função inerente ao seu ofício. Qual a necessidade, então, de repetir um ato por mero formalismo? Não há razão em permitir que a mesma ausência de pressuposto seja reapreciada, desta vez por juiz “competente”, para que este decida, então, exatamente como seu antecessor.

Ademais, o art. 132, parágrafo único, do Diploma Adjetivo, prescreve que: “Em qualquer hipótese, o juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas”. Observa-se, em primeiro lugar, que o legislador valeu-se da impressão “qualquer hipótese”. Assim, se uma captação de provas for feita por juiz absolutamente incompetente, essas não devem ser nulas, bastando que ele remeta os autos a juiz competente e este determine a repetição apenas das provas estritamente necessárias, meramente por certificação. Aqui, quanto à captação de provas, há outra consideração a fazer: suponha-se que juiz incompetente, em processo cautelar, determine a realização da perícia de um acidente. Esta perícia é crucial para a solução da lide. Ela não pode ser nula, pois, caso contrário, implicará ausência probatória quando os autos estiverem em mãos de juiz competente.

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O mesmo vale para o juiz incompetente que ouve determinada testemunha. Se essa testemunha morre antes que os autos sejam enviados para juiz competente, não há como anular o ato do juiz incompetente, afinal a testemunha já faleceu, e a prova não pode deixar de ser utilizada apenas por questão de tecnicismo processual.

Por sua vez, o art. 449 do CPC diz que: “O termo de conciliação assinado pelas partes e homologado pelo juiz terá valor de sentença”. Aqui, a justificativa para defender-se a convalidação de atos decisórios de juiz absolutamente incompetente remete aos Princípios Gerais de Processo Civil. O Estado estimula a conciliação. Isto pode ser percebido pelas audiências dos arts. 125, IV, e 331, bem como pelo art. 448 do CPC. Isto posto, se o principal objetivo da relação jurídica processual é solucionar a lide, parece coerente que se as partes chegam a acordo e o juiz homologa-o, o fato de a homologação ter se dado por juiz absolutamente incompetente não deve invalidá-lo, até mesmo porque é questão de agilidade no andamento do Judiciário. Esta homologação com força de sentença não deve ser considerada nula.

Outro caso é o art. 485, II, do CPC, o qual, segundo doutrinadores que defendem a não nulidade de todos os atos do juiz incompetente, é um forte tipo legal para defender essa ideia. Ele trata da Ação Rescisória e diz: “A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: (...); II – proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente”. Por sua vez, o art. 495 do CPC estipula prazo decadencial de dois anos para promoção da rescisória, qualquer que seja a hipótese prevista no rol numerus clausus do art. 485. Sendo assim, entende-se que, se a incompetência absoluta convalida com a coisa julgada, com maior razão ganha status de “imutável” ao fluir o prazo de dois anos previsto no art. 495, vez que nem mais a Ação Rescisória poderá alterar essa condição.

Neste sentido, ADA PELLEGRINI GRINOVER afirma que, “[...] no processo civil, a coisa julgada sana o vício decorrente da incompetência absoluta, mas, dentro do prazo de dois anos a contar do trânsito em julgado, pode a sentença ser anulada por ação rescisória” (1991, p.215). Interpretando essa assertiva em sentido inverso, tem-se que, caso não haja a rescisória, ou seja ela intentada intempestivamente, convalidar-se-á o pronunciamento derradeiro proferido por juiz absolutamente incompetente. Significa, por consequência, que mesmo o § 2º do art. 113 não terá mais força de desconstituir essa “verdade”. Conclui-se, portanto, ser essa mais

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uma prova de que alguns atos decisórios convalidam quando praticados por juiz incompetente.

De forma derradeira, como último argumento a ser utilizado neste tópico, vale a pena repetir o que já foi citado no anterior: o ato decisório do juiz incompetente que atesta a própria incompetência e remete os autos a juiz competente é válido. Logo, não há que se falar que todos os atos praticados por juiz incompetente são nulos. Essa é, sem dúvida, a maior prova de equívoco do dispositivo processual atacado.

5 – CONCLUSÃO

O art. 113, § 2º, do CPC não deve ser interpretado de maneira isolada. Dizer que “todos” os atos decisórios praticados por juiz incompetente são nulos é sofisma. Os artigos que foram citados ao longo deste texto não esgotam o assunto, mas são apenas alguns exemplos que visam a provar que alguns atos decisórios praticados por juiz absolutamente incompetente são passíveis de convalidação.

Ainda que se negassem todos os exemplos citados, subsistiria a decisão do juiz que determina a remessa dos autos ao juiz competente e esse ato será sempre válido.

Ademais, ainda que se fale que os arts. 113, § 2º, e 122, ambos do CPC, sejam conflitantes, parece límpido que estes são na verdade complementares, visto que fica clarividente que o Tribunal vai deliberar sobre a validade dos atos, podendo admitir alguns atos como válidos e outros não.

Como palavra derradeira, a validade dos atos decisórios deve estar intrinsecamente ligada aos seguintes fatores: 1 – à urgência em que eles ocorrem (vide Tutela Antecipada); 2 – a um Princípio de Preponderância do que é vital para o ser humano (desconsiderando, pois, o mero “tecnicismo” de anular o ato porque assim “mandou” o legislador); 3 – à manutenção da integridade do sistema processual; e 4 – a alcançar o objetivo-mor do Processo Civil, que é a pacificação social.

6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERMUDEZ, Sérgio. Introdução ao processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 1995. CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. CARVALHO, Milton Paulo. Manual da competência civil. São Paulo: Saraiva, 1995.

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GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 8.ed. São Paulo: RT, 1991. LAMARCA, Antônio. O livro da competência. São Paulo: RT, 1979. MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. Campinas/SP: Bookseller,

1997, v.1. PIZZOL, Patrícia Miranda. A competência no processo civil. São Paulo: RT, 2003. ROSAL, Manuel Pildez del. La Competencia Territorial en el Proceso Civil. Barcelona: Ariel,

1974. SANTOS, Ernani Fidélis dos. Manual de direito processual civil. 4.ed. São Paulo: Saraiva,

1996, v.1. SOUZA, Gelson Amaro de. Curso de direito processual civil. 2.ed. Presidente Prudente/SP:

Data Júris, 1996. ______. Dever de declaração da incompetência absoluta e o mito da nulidade de todos os

atos decisórios. Revista dos Tribunais, v.833, 2005. THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 35.ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2005, v.1.

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COMENTÁRIOS À LEI 12.122/09, QUE ALTEROU A LEI DO INQUILINATO

GILBERTO KOENIG*

A Lei 8.245, de 16 de outubro de 1991, indiscutivelmente é considerada pelos especialistas uma das melhores legislações sobre inquilinato que se tem notícias, e isso porque foi fruto da convergência de interesses de locadores, locatários e governo, em decorrência da crise habitacional que se instalara nos anos 90.

Em outubro de 2009, a Lei 8.245/91 completou 18 anos, portanto merecedora de uma atualização, principalmente porque neste período muitos fatos ocorreram e as relações interpessoais se alteraram em sociedade; legislações correlatas se modificaram, em especial o Código Civil Brasileiro de 2002.

A Lei 12.112, de dezembro de 2009, surgiu com o objetivo de modernizar as relações locatícias e atualizar a Lei 8.245/91; portanto, não estamos frente a uma nova Lei do Inquilinato, como muitos imaginam.

Destarte, passaremos a discorrer sobre as principais alterações da Lei do Inquilinato introduzidas pela Lei 12.112/09, sem, contudo, ter por objetivo esgotar o tema.

Art. 4º.

Na redação primitiva do art. 4º, a Lei estabelecia que:

“Art. 4º. Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. O locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, segundo a proporção prevista no art. 924 do Código Civil e, na sua falta, a que for judicialmente estipulada.”

* Advogado. Professor de direito imobiliário da Unisinos. Ex-vice-presidente do SECOVI/RS-

Agademi.

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A nova redação dada pela Lei 12.112/09 diz:

“Art. 4º. Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. O locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcionalmente ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada.”

É da tradição do direito locacional que durante o prazo determinado não possa o locador reaver o imóvel alugado, exceto, obviamente, nas hipóteses previstas na própria legislação, como ocorre, p. ex, com o art. 9º.

O locatário, todavia, sempre pode entregar o imóvel antecipadamente, sendo a recusa do locador no recebimento das chaves considerada injusta e o sujeita à condição de réu em ação de consignação, nos moldes previstos no Código de Processo Civil.

É verdade, por outro lado, que a entrega antecipada do imóvel se constitui em descumprimento contratual, razão pela qual a legislação estabelece que o locatário ficará sujeito ao pagamento da multa que foi pactuada no contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada, ressalvado o parágrafo único do próprio art. 4º1.

A mudança no caput do art. 4º, em verdade, apenas atualiza a legislação, pois o art. 924 mencionado era do Código Civil de 1916, e o atual diploma reproduziu norma assemelhada2, mas não idêntica.

Há que se ater, ainda, ao fato que a jurisprudência3 já havia se firmado no sentido de que a multa deve ser proporcional, ou seja, quanto maior for o tempo de cumprimento do contrato, menor deverá ser a multa, portanto utilizando um sistema de proporcionalidade com aplicação de uma regra de três simples.

1 “Parágrafo único. O locatário ficará dispensado da multa se a devolução do imóvel decorrer de

transferência, pelo seu empregador, privado ou público, para prestar serviços em localidades diversas daquela do início do contrato, e se notificar, por escrito, o locador com prazo de, no mínimo, trinta dias de antecedência.”

2 Art. 413 do Código Civil de 2002. 3 Ação de Cobrança. Multa Compensatória Decorrente da Entrega Antecipada do Imóvel Locado. Aplicação

do art. 924 do Código Civil, reduzindo a multa à proporcionalidade do descumprimento da obrigação. Juros Legais e Correção Monetária. Incidência desde a entrega das chaves, momento em que se verificou a mora. Apelação provida em parte. Apelação Cível nº 70002009264 – 16ª Câmara Cível – TJRS.

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Art. 12.

Na redação originária, temos:

“Art. 12. Em casos de separação de fato, separação judicial, divórcio ou dissolução da sociedade concubinária, a locação prosseguirá automaticamente com o cônjuge ou companheiro que permanecer no imóvel.

Parágrafo único. Nas hipóteses previstas neste artigo, a sub-rogação será comunicada por escrito ao locador, o qual terá o direito de exigir, no prazo de trinta dias, a substituição do fiador ou o oferecimento de qualquer das garantias previstas nesta lei.”

Na redação estabelecida pela Lei 12.112/09, consta:

“Art. 12. Em casos de separação de fato, separação judicial, divórcio ou dissolução da união estável, a locação residencial prosseguirá automaticamente com o cônjuge ou companheiro que permanecer no imóvel.

§ 1º. Nas hipóteses previstas neste artigo e no art. 11, a sub-rogação será comunicada por escrito ao locador e ao fiador, se esta for a modalidade de garantia locatícia.

§ 2º. O fiador poderá exonerar-se das suas responsabilidades no prazo de 30 (trinta) dias contado do recebimento da comunicação oferecida pelo sub-rogado, ficando responsável pelos efeitos da fiança durante 120 (cento e vinte) dias após a notificação ao locador” (NR).

A nova redação substituiu a expressão “sociedade concubinária” por “união estável”, adequando-a aos novos tempos e ao sistema do atual Código Civil Brasileiro.

O prosseguimento da locação com o cônjuge ou companheiro que permanecer no imóvel já era consagrado; o que se impõe agora é que a sub-rogação será obrigatoriamente comunicada por escrito ao locador e ao fiador, se esta for a modalidade de garantia prevista na locação.

O fiador, por sua vez, poderá exonerar-se das suas responsabilidades, comunicando o locador de forma inequívoca. A novel regra estabelece prazo decadencial de 30 (trinta) dias, contados do recebimento da comunicação de sub-rogação, para que o fiador utilize a faculdade de

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exonerar-se, independente de o contrato estar vigendo a prazo determinado.

Comunicado o locador da intenção de exonerar-se, o fiador é liberto da obrigação, independente de qualquer outra providência judicial ou extrajudicial, todavia, permanece responsável por todas as obrigações assumidas pelo prazo de 120 (cento e vinte) dias.

Se o sub-rogado, por sua vez, não comunicar o locador e o fiador do advento da alteração do locatário em face de uma das hipóteses previstas no caput do art. 12, permanecerá hígida a fiança, nos moldes do ajustado no contrato, até a efetiva devolução do imóvel, pois a exoneração do fiador não é automática; ao contrário, depende de comunicação expressa ao locador.

O legislador aproveitou e disciplinou de forma idêntica a hipótese de sub-rogação por morte do locatário prevista no art. 11 da Lei 8.245/914, o que significa que a partir da vigência da Lei 12.112/09 a morte do locatário não exonera automaticamente o fiador, que, pretendendo se livrar da obrigação, deverá comunicar de forma inequívoca o locador de sua intenção de liberar-se, ficando, entretanto, responsável pelas obrigações assumidas por 120 dias.

Art. 39.

Na primitiva Lei 8.245/91, o art. 39 apresentava a seguinte redação:

“Art. 39. Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel.”

A nova redação da Lei 12.112/09 é:

“Art. 39. Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel, ainda que prorrogada a locação por prazo indeterminado, por força desta Lei.”

A partir de uma equivocada interpretação do Superior Tribunal de Justiça quanto à Súmula 214, felizmente já superada, se estabeleceu no cenário jurídico um conflito do alcance da regra do primitivo art. 39 da Lei

4 “Art. 11. Morrendo o locatário, ficarão sub-rogados nos seus direitos e obrigações: I – nas locações

com finalidade residencial, o cônjuge sobrevivente ou o companheiro e, sucessivamente, os herdeiros necessários e as pessoas que viviam na dependência econômica do de cujus, desde que residentes no imóvel; II – nas locações com finalidade não residencial, o espólio e, se for o caso, seu sucessor no negócio.”

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do Inquilinato, no que diz respeito à manutenção da fiança quando a locação é prorrogada a prazo indeterminado.

O legislador atento à controvérsia fez constar expressamente que ainda que prorrogada a locação por prazo indeterminado, o fiador permanece obrigado por compromissos assumidos até que o locatário devolva as chaves do imóvel locado, simbolizando a resolução do contrato de locação e consequente extinção da garantia estabelecida.

Art. 40, inciso II

O art. 40 da Lei 8.245/91 disciplina as hipóteses em que o locador poderá exigir do locatário novo fiador ou a substituição da garantia, sendo que o inciso II diz:

“Art. 40. O locador poderá exigir novo fiador ou a substituição da modalidade de garantia, nos seguintes casos:

I – (...)

II – ausência, interdição, falência ou insolvência do fiador, declaradas judicialmente; (...).”

A nova redação do referido inciso II na novel legislação é:

“II – ausência, interdição, recuperação judicial, falência ou insolvência do fiador, declaradas judicialmente; (...).”

A regra acrescenta apenas a hipótese de recuperação judicial5, figura nova no direito brasileiro, assemelhada a extinta concordata, que possibilita ao empresário, para evitar a falência, liquidar suas dívidas em determinado tempo.

Ora, o locador, diante do pedido de recuperação judicial do fiador, poderá exigir do locatário novo fiador ou outra modalidade de garantia, o

5 Lei nº 11.101/2005. “§ 1º. Conceder-se-á liminar para desocupação em quinze dias,

independentemente da audiência da parte contrária e desde que prestada a caução no valor equivalente a três meses de aluguel, nas ações que tiverem por fundamento exclusivo: I – o descumprimento do mútuo acordo (art. 9º, inciso I), celebrado por escrito e assinado pelas partes e por duas testemunhas, no qual tenha sido ajustado o prazo mínimo de seis meses para desocupação, contado da assinatura do instrumento; II – o disposto no inciso II do art. 47, havendo prova escrita da rescisão do contrato de trabalho ou sendo ela demonstrada em audiência prévia; III – o término do prazo da locação para temporada, tendo sido proposta a ação de despejo em até trinta dias após o vencimento do contrato; IV – a morte do locatário sem deixar sucessor legítimo na locação, de acordo com o referido no inciso I do art. 11, permanecendo no imóvel pessoas não autorizadas por lei; V – a permanência do sublocatário no imóvel, extinta a locação, celebrada com o locatário”.

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que nos parece adequado, pois o garantidor com dificuldades financeiras não tem condições de assegurar os compromissos financeiros do afiançado.

Art. 40, inciso X.

A redação primitiva da Lei do Inquilinato não previa a hipótese do inciso X, que é redação da Lei 12.112/09:

“X – prorrogação da locação por prazo indeterminado uma vez notificado o locador pelo fiador de sua intenção de desoneração, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante 120 (cento e vinte) dias após a notificação ao locador.”

Incluiu-se, portanto, entre as hipóteses em que o locador pode exigir novo fiador ou outra modalidade de garantia, a exoneração do fiador, no prazo indeterminado, por desinteresse na manutenção da garantia prestada.

Ao fiador é assegurado o direito de exonerar-se da fiança quando a locação estiver prorrogada a prazo indeterminado, bastando para tanto comunicar de forma inequívoca ao locador.

A responsabilidade do fiador, todavia, se estende por 120 (cento e vinte) dias, contados da comunicação do desinteresse em continuar como garantidor.

Art. 40, parágrafo único.

Em contrapartida, acresceu o legislador, através da Lei 12.112/09, o parágrafo único ao art. 40 da Lei das Locações, com a seguinte redação:

“Parágrafo único. O locador poderá notificar o locatário para apresentar nova garantia locatícia no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de desfazimento da locação.”

Se por um lado ficou cristalina a possibilidade de o fiador se exonerar da fiança prestada, por outro, o legislador deixou do mesmo modo claro o direito de o locador exigir do locatário uma nova garantia no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de desfazimento da locação, ampliando as hipóteses de despejo.

A exigência de garantia é um direito do locador; portanto, cabe a ele a escolha da espécie que melhor lhe convier entre aquelas previstas no art. 37 da Lei 8.245/91.

Art. 59

O art. 59 da Lei das Locações, no capítulo destinado a disciplinar as ações de despejo, diz que essas ações terão rito ordinário, com as modificações constantes expressas.

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O § 1º do referido art. 59 trata das hipóteses de liminares para a desocupação do imóvel em 15 (quinze) dias, arrolando cinco situações objetivas6.

A Lei 12.112/09 acrescenta ao rol mais 4 (quatro) hipóteses de despejo liminar, que são:

“VI – o disposto no inciso IV do art. 9º, havendo a necessidade de se produzir reparações urgentes no imóvel, determinadas pelo poder público, que não possam ser normalmente executadas com a permanência do locatário, ou, podendo, ele se recuse a consenti-las;

VII – o término do prazo notificatório previsto no parágrafo único do art. 40, sem apresentação de nova garantia apta a manter a segurança inaugural do contrato;

VIII – o término do prazo da locação não residencial, tendo sido proposta a ação em até 30 (trinta) dias do termo ou do cumprimento de notificação comunicando o intento de retomada;

IX – a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação no vencimento, estando o contrato desprovido de qualquer das garantias previstas no art. 37, por não ter sido contratada ou em caso de extinção ou pedido de exoneração dela, independentemente de motivo.”

O legislador incluiu entre as hipóteses de despejo liminar para desocupação em 15 dias a situação em que há necessidade de se fazerem reparações urgentes no imóvel, determinadas pelo poder público, que pelo seu vulto ou periculosidade não possibilitam a realização com a permanência do locatário, ou, ainda que possam ser realizadas com sua permanência, ele se recuse a consenti-las.

Como se observa, a nova hipótese de liminar visa a proteger o patrimônio do locador, mas também, e principalmente, a segurança do locatário e de sua família.

6 Pensamos que na hipótese de a obra simplesmente ser autorizada pelo poder público, não

determinada, desde que urgente e que coloque em risco a integridade física ou a saúde do inquilino e de sua família, também se justifique o deferimento da liminar. Há que se atentar ao fato de que nem sempre a autoridade pública tem condições de efetiva fiscalização e, portanto, conhecimento para determinar a realização da obra. Muitas vezes, a situação é de conhecimento do proprietário que provoca a autoridade pública através do pedido de autorização para realização da obra urgente.

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Sendo a obra determinada pelo poder público7, notadamente pela condição de segurança ou salubridade, e não sendo possível a sua realização com a permanência do locatário, ou esse se recusando a consenti-la, não há melhor caminho que a medida liminar para desocupação no prazo estabelecido no § 1º do art. 59.

A sétima hipótese de liminar é quando expirado o prazo de 30 (trinta) dias8 para o locatário oferecer nova modalidade de garantia sem apresentação de outra apta a manter a segurança inaugural do contrato.

O art. 40 prevê extenso rol de situações que permitem ao locador exigir do locatário a substituição do fiador ou da modalidade de garantia.

Ao locador, entretanto, é facultado manter a locação sem qualquer garantia, hipótese em que poderá passar a cobrar o aluguel antecipadamente, como previsto no art. 209 e, incorrendo o locatário em mora, usar da faculdade de despejo liminar prevista no inciso IX do § 1º do art. 59.

Do novo rol de despejos liminares, o que mais nos chama a atenção é o inciso VIII, pois injustificadamente permite o despejo do locatário não residencial quando do término do prazo do contrato ou da notificação premonitória, desde que ajuizada ação desalijatória no prazo de 30 (trinta) dias.

A desocupação do locatário não residencial em prazo tão exíguo desequilibra a relação, pois permite ao locador uma forte pressão, inclusive para obtenção de vantagens econômicas, o que, por certo, não era a intenção do legislador.

A última hipótese de despejo liminar está prevista no inciso IX, e é, sem dúvida, a grande novidade, não obstante a considerarmos tímida.

Com efeito, o legislador possibilita o despejo liminar quando o locatário não tenha qualquer das garantias previstas no art. 37 da Lei do Inquilinato, seja porque nunca foi contratada ou mesmo por exoneração do fiador e esteja em mora com os aluguéis e/ou acessórios da locação.

7 “Art. 40, parágrafo único. O locador poderá notificar o locatário para apresentar nova garantia

locatícia no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de desfazimento da locação (NR).” 8 “Art. 20. Salvo as hipóteses do art. 42 e da locação para temporada, o locador não poderá exigir o

pagamento antecipado do aluguel.” 9 “Art. 37. No contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as seguintes modalidades de

garantia: I – caução; II – fiança; III – seguro de fiança locatícia; IV – cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento (Incluído pela Lei nº 11.196, de 2005).”

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Como se observa, o despejo liminar na falta de pagamento de aluguel somente alcança aqueles locatários que não têm garantia; portanto, mantendo o sistema tradicional da ordinariedade nas demais situações.

A medida, sem dúvida, foi tímida, pois aquele locatário que tem garantia, entre as quais a fiança, que é a mais utilizada, permanecerá beneficiado pela demora da prestação jurisdicional, podendo, inclusive, se utilizar de todos os meios de defesa.

Sem dúvida, ao final, o fiador continuará sendo responsabilizado patrimonialmente pela demora na obtenção do despejo do locatário que, na maioria das vezes, se utiliza de todos os expedientes possíveis para postergar o ato despejatório.

Pensamos que o melhor seria estender a todas as ações de despejo, por falta de pagamento, a medida liminar, independente de o locatário ter ou não garantia, pois aí sim haveria valorização do bom pagador e equilíbrio na relação locatícia, inclusive com proteção ao patrimônio do próprio fiador que, muitas vezes, responde com seu único bem, ainda que residencial10, pela inadimplência do afiançado.

Art. 59, § 3º.

“§ 3º. No caso do inciso IX do § 1º deste artigo, poderá o locatário evitar a rescisão da locação e elidir a liminar de desocupação se, dentro dos 15 (quinze) dias concedidos para a desocupação do imóvel e independentemente de cálculo, efetuar depósito judicial que contemple a totalidade dos valores devidos, na forma prevista no inciso II do art. 62” (NR).

Por outro lado, o legislador permitiu que o locatário inadimplente e que não tenha garantias possa evitar a rescisão da locação e, como consequência, elidir a liminar de desocupação, se dentro do prazo de 15 (quinze) dias concedidos para a desocupação do imóvel efetuar o depósito judicial da totalidade dos valores devidos, inclusive custas, honorários advocatícios e demais cominações legais, como previsto do inciso II do art. 62.

10 “Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal,

previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: (...); VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação (Incluído pela Lei nº 8.245, de 1991).”

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A regra, por certo, consagra o tradicional instituto da emenda da mora, todavia o faz de forma a não permitir ao locatário procrastinar a solução do litígio.

Aquele inquilino que está em mora e de fato pretende purgá-la poderá fazê-lo depositando integralmente o valor devido, sem maiores rodeios, nem mesmo de remessa dos autos ao contador judicial, pois cabe a ele, locatário, a elaboração do cálculo do valor a partir da memória de débito constante na petição inicial.

A medida, como se depreende, tem por objetivo acelerar o despejo daquele locatário que está em mora e não tem qualquer garantia contratual, sem, entretanto, deixar de oportunizar a emenda da mora.

Art. 62.

“Art. 62. Nas ações de despejo fundadas na falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação, de aluguel provisório, de diferenças de aluguéis, ou somente de quaisquer dos acessórios da locação, observar-se-á o seguinte:

I – o pedido de rescisão da locação poderá ser cumulado com o pedido de cobrança dos aluguéis e acessórios da locação; nesta hipótese, citar-se-á o locatário para responder ao pedido de rescisão e o locatário e os fiadores para responderem ao pedido de cobrança, devendo ser apresentado, com a inicial, cálculo discriminado do valor do débito;

II – o locatário e o fiador poderão evitar a rescisão da locação efetuando, no prazo de 15 (quinze) dias, contado da citação, o pagamento do débito atualizado, independentemente de cálculo e mediante depósito judicial, incluídos:

(...)

III – efetuada a purga da mora, se o locador alegar que a oferta não é integral, justificando a diferença, o locatário poderá complementar o depósito no prazo de 10 (dez) dias, contado da intimação, que poderá ser dirigida ao locatário ou diretamente ao patrono deste, por carta ou publicação no órgão oficial, a requerimento do locador;

IV – não sendo integralmente complementado o depósito, o pedido de rescisão prosseguirá pela diferença, podendo o locador levantar a quantia depositada;

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(...)

Parágrafo único. Não se admitirá a emenda da mora se o locatário já houver utilizado essa faculdade nos 24 (vinte e quatro) meses imediatamente anteriores à propositura da ação” (NR).

Na primitiva regra do caput do art. 62, lia-se que:

“Art. 62. Nas ações de despejo fundadas na falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação, observar-se-á o seguinte:”

Na novel redação, o legislador definiu que a ação de despejo pode ser promovida em decorrência da falta de pagamento não só de aluguéis e acessórios, mas apenas de um deles, incluindo a possibilidade em face de aluguel provisório ou eventuais diferenças desse, quando houver.

Ora, a nova redação não deixa dúvida que a ação de despejo pode ser ajuizada quando o locatário não paga, por exemplo, condomínio, IPTU, seguro, ou outro encargo que lhe cabe por força de lei ou do contrato, ainda que os aluguéis estejam rigorosamente em dia.

Aproveitou o legislador para definir que aluguel provisório ou diferença é aluguel11, portanto sujeita a inadimplência ao despejo.

No inciso II do artigo em comento, o legislador aproveitou para ratificar a possibilidade de cumulação da ação de despejo com cobrança12, esclarecendo que a ação de despejo é direcionada contra o locatário e a de cobrança pode ser proposta em face do próprio inquilino ou de seu fiador.

A regra anterior13 pecava pela falta de clareza, e muitos advogados simplesmente mencionavam na petição inicial a cumulação de ações contra o inquilino e fiadores, sem especificar que ação era movida e contra quem, o que, tecnicamente, era equivocado, pois o fiador não poderia ser parte na ação de despejo, uma vez que não figurava naquele contrato como inquilino14.

Quanto ao cálculo discriminado do débito, não é novidade e já constava da redação primitiva.

11 Em decorrência de ação revisional – art. 68 e/ou ação renovatória – art. 73. 12 Cumulação objetiva e subjetiva. 13 “I – o pedido de rescisão da locação poderá ser cumulado com o de cobrança dos aluguéis e

acessórios da locação, devendo ser apresentado, com a inicial, cálculo discriminado do valor do débito; (...).”

14 Não se pode esquecer que o contrato de fiança é acessório ao contrato de locação e que não obstante apareçam invariavelmente no mesmo instrumento, são contratos distintos.

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Com efeito, é fundamental para o desenvolvimento válido do processo que a petição inicial indique com clareza qual é o valor do débito do locatário, a fim que esse possa emendar a mora ou contestar a demanda ou os valores apontados como devidos.

No inciso II, o legislador explicitou que o fiador também pode evitar a rescisão do contrato de locação emendando a mora.

A jurisprudência sempre se posicionou no sentido de que o fiador ou outro interessado podem purgar a mora e evitar a rescisão contratual e, como consequência, elidir o despejo do locatário, desde que em nome deste. Agora, entretanto, o fiador poderá em nome próprio elidir a rescisão contratual, purgando a mora.

A polêmica que certamente irá surgir é e se o locatário não quiser purgar a mora, pode o fiador fazê-lo contra sua vontade? Pensamos que não, pois o legislador ao disciplinar adotou o conjuntivo “e”, locatário e o fiador, portanto, se não houver consenso, não poderá o fiador purgar a mora sem consentimento ou contra a vontade do locatário, mas este poderá fazê-lo independente do fiador, eis que é parte no contrato de locação, enquanto aquele não.

Outra alteração substancial é que a partir da vigência da Lei 12.112/09, se houver interesse na emenda da mora, o locatário e o fiador poderão fazê-lo, depositando o valor do débito, independente de cálculo do contador, e no prazo de 15 dias contados da citação e não da juntada aos autos do mandado15, independente de autorização judicial.

A autorização judicial para emenda da mora, como demonstrou a prática, é inócua, pois muitas vezes já vinha a autorização judicial no próprio despacho da petição inicial e em outras tantas o locatário utilizava-se do expediente apenas para protelar o resultado, pois requeria a autorização e o juiz despachava autorizando. Para tanto, o locatário tinha que ser intimado e, após, deixava decorrer sem emendar a mora. Todos esses atos judiciais protelavam o processo em dois ou três meses, senão mais.

O inciso III disciplina a hipótese de diferença de valores na purga da mora.

15 O prazo para contestar continua sendo contado da juntada aos autos do mandado de citação, e,

em havendo múltiplos réus, da juntada do último mandado devidamente cumprido, nos termos do art. 241 e inciso do CPC.

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Com efeito, se o locatário e o fiador purgarem a mora, é possível que o locador aponte diferenças, justificando-a, situação em que o interessado poderá complementá-lo depositando no prazo de 10 dias a diferença.

Na nova sistemática, o prazo de 10 dias é contado da intimação, que poderá ser pessoal, por carta ou mediante publicação de nota de expediente no diário oficial se o interessado estiver representado em juízo por advogado, se houver pedido do locador para tanto.

O inciso IV determina que se o depósito for complementado integralmente, o pedido de rescisão continuará pela diferença, sendo facultado ao locador desde logo levantar o valor depositado, pois esse é incontroverso.

No parágrafo único do art. 62, o legislador restringiu drasticamente o direito de emenda da mora, pois na redação primitiva o locatário poderia se valer deste benefício por duas vezes nos 12 meses imediatamente anteriores à propositura da ação de despejo.

A nova redação do parágrafo único permite a utilização do benefício de emenda da mora apenas uma única vez a cada período de 24 meses, pois não admitirá a purga se o locatário já tiver se utilizado da faculdade nos dois anos anteriores à propositura da ação.

A intenção do legislador é inibir o abuso do exercício do direito de emendar a mora e, como consequência, dizer aos locadores que o inquilino é desestimulado a recair na inadimplência.

Art. 63.

A redação original do art. 63 dizia:

“Art. 63. Julgada procedente a ação de despejo, o juiz fixará prazo de trinta dias para a desocupação voluntária, ressalvado o disposto nos parágrafos seguintes.”

A nova redação diz:

“Art. 63. Julgada procedente a ação de despejo, o juiz determinará a expedição de mandado de despejo, que conterá o prazo de 30 (trinta) dias para a desocupação voluntária, ressalvado o disposto nos parágrafos seguintes.”

A mudança adotada, sem dúvida, é pela busca da celeridade da prestação jurisdicional, pois na sistemática anterior, após julgada procedente a ação de despejo, havia a necessidade de expedição de

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mandado de intimação para desocupação voluntária, impondo, caso o locatário não cumprisse com a determinação judicial, a expedição de mandado de despejo compulsório, o que, não raras vezes, até o efetivo despejo, levava mais de três meses.

Pela nova redação, julgada procedente a ação de despejo, será expedido mandado de despejo, possibilitando a desocupação voluntária no prazo estabelecido, e, caso essa não ocorra, o próprio mandado servirá para o despejo compulsório.

Destarte, o oficial de justiça encarregado do despejo primeiro intimará o locatário e eventuais ocupantes do prazo estabelecido na sentença ou liminar para a desocupação e, decorrido esse, sem necessidade de novo mandado ou outra ordem qualquer, providenciará no despejo, nos termos previstos no art. 65.

Art. 62, § 1º, b.

Na redação original, tínhamos:

“b) o despejo houver sido decretado com fundamento nos incisos II e III do art. 9° ou no § 2° do art. 46.”

A regra atual diz:

“b) o despejo houver sido decretado com fundamento no art. 9º ou no § 2º do art. 46.”

Na regra revogada, se o despejo havia sido decretado com fundamento nos incisos II e III do art. 9º ou § 2º do art. 46, o prazo concedido para desocupação voluntária era de 15 (quinze) dias e agora o legislador estendeu a todas as hipóteses do art. 9º, ou seja, incluiu (I) mútuo acordo e (IV) reformas urgentes determinadas pelo poder público.

Destarte, se o decreto despejatório tiver por fundamento qualquer dos incisos do art. 9º ou o § 2º do art. 46, o prazo para desocupação voluntária do locatário e ocupantes será de 15 (quinze) dias e não os 30 (trinta) previsto no caput do art. 63.

Art. 64.

A regra original do dispositivo era:

“Art. 64. Salvo nas hipóteses das ações fundadas nos incisos I, II e IV do art. 9°, a execução provisória do despejo dependerá de caução não inferior a doze meses e nem superior a dezoito meses do aluguel, atualizado até a data do depósito da caução.”

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A nova regra é:

“Art. 64. Salvo nas hipóteses das ações fundadas no art. 9º, a execução provisória do despejo dependerá de caução não inferior a 6 (seis) meses nem superior a 12 (doze) meses do aluguel, atualizado até a data da prestação da caução.”

O legislador, finalmente, atendeu aos anseios dos locadores e extinguiu a necessidade de prestação de caução para execução do despejo provisório quando o decreto tiver fundamento no art. 9º.

A exigência de prestação de caução quando o despejo havia sido decretado com fundamento no inciso III do art. 9º era, sem dúvida, um equívoco imperdoável, pois penalizava o locador que não estava recebendo os aluguéis.

De outra banda, reduziu-se para as demais hipóteses de despejo provisório a caução mínima de 12 para seis meses e máxima de 18 para 12 meses de aluguel, atualizado até a data do depósito da caução.

A medida é salutar, pois a caução exigida é apenas assecuratória de indenização mínima caso o locatário consiga reverter a decisão em grau recursal e já tenha sido despejado.

Na prática, pouquíssimas são as decisões de reversão do despejo, pois as hipóteses previstas na lei do inquilinato que permitem o rompimento da locação são poucas e objetivas.

Art. 68.

Na redação revogada constava:

“Art. 68. Na ação revisional de aluguel, que terá o rito sumaríssimo, observar-se-á o seguinte:”

A regra atual:

“Art. 68. Na ação revisional de aluguel, que terá o rito sumário, observar-se-á o seguinte:”

O legislador no art. 68 apenas atualizou a expressão, pois o Código de Processo Civil há muito alterou no art. 275 a expressão sumaríssimo por sumário.

Art. 68, inciso II.

Na redação original, tínhamos:

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“II – ao designar a audiência de instrução e julgamento, o juiz, se houver pedido e com base nos elementos fornecidos pelo autor ou nos que indicar, fixará aluguel provisório, não excedente a oitenta por cento do pedido, que será devido desde a citação; (...).”

Na nova redação, temos:

“II – ao designar a audiência de conciliação, o juiz, se houver pedido e com base nos elementos fornecidos tanto pelo locador como pelo locatário, ou nos que indicar, fixará aluguel provisório, que será devido desde a citação, nos seguintes moldes:

a) em ação proposta pelo locador, o aluguel provisório não poderá ser excedente a 80% (oitenta por cento) do pedido;

b) em ação proposta pelo locatário, o aluguel provisório não poderá ser inferior a 80% (oitenta por cento) do aluguel vigente; (...).”

O legislador, no artigo em comento, primeiro criou a obrigatoriedade da audiência de conciliação, onde o réu apresentará a sua contestação, inclusive apresentando contraproposta, se discordar da pretensão autoral.

Aproveitou o legislador para esclarecer que a ação revisional de aluguel tanto pode ser proposta pelo locador como pelo locatário, obviamente que aquele se entender que o aluguel em vigor é inferior ao preço de mercado, e este se crer que paga acima do valor praticado para imóveis assemelhados em mesma localização.

Por outro lado, nas alíneas a e b, ficou disciplinado que caso a ação seja proposta pelo locador, o valor do aluguel provisório não poderá ser superior a 80% (oitenta por cento) do pedido, enquanto que se a demanda for ajuizada pelo locatário, o aluguel provisório não poderá ser inferior a 80% (oitenta por cento) do aluguel vigente.

Art. 68, inciso IV

Na redação primitiva, tínhamos:

“IV – na audiência de instrução e julgamento, apresentada a contestação, que deverá conter contraproposta se houver discordância quanto ao valor pretendido, o juiz tentará a conciliação e, não sendo esta possível, suspenderá o ato para a realização de perícia, se necessária, designando, desde logo, audiência em continuação; (...).”

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Enquanto que a nova redação diz:

“IV – na audiência de conciliação, apresentada a contestação, que deverá conter contraproposta se houver discordância quanto ao valor pretendido, o juiz tentará a conciliação e, não sendo esta possível, determinará a realização de perícia, se necessária, designando, desde logo, audiência de instrução e julgamento; (...).”

Apresentada a contestação16 na audiência de conciliação, o juiz buscará a conciliação e, não sendo exitoso, determinará a realização de perícia, se necessária, pois pode a discussão não ser quanto ao valor.

Em seguida, caberá ao juiz designar audiência de instrução e julgamento, obviamente, designando data em que presumidamente o laudo já tenha sido elaborado, evitando realização de solenidade desnecessária.

Art. 68, V.

“V – o pedido de revisão previsto no inciso III deste artigo interrompe o prazo para interposição de recurso contra a decisão que fixar o aluguel provisório.”

O inciso V do dispositivo em anotação é inovação, pois interrompe o prazo para a interposição do recurso contra a decisão que fixar o aluguel provisório, enquanto não for reapreciado o pedido de revisão previsto no inciso III.

O legislador ousou, pois não é da tradição do direito brasileiro interromper o prazo recursal quando a parte tenha pedido revisão da decisão, ou seja, deu-se o primeiro passo para conferir interrupção de prazo aos pedidos de reconsideração.

Art. 71, inciso V.

Na redação original, tínhamos:

“V – indicação de fiador quando houver no contrato a renovar e, quando não for o mesmo, com indicação do nome ou denominação completa, número de sua inscrição no Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento, endereço e, tratando-se de pessoa natural, a nacionalidade, o estado civil, a profissão e o número da carteira de identidade, comprovando, em qualquer caso e desde logo, a idoneidade financeira; (...).”

16 Que deverá conter rol de testemunhas, quesitos e indicação de assistente técnico.

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Na nova redação, temos:

“V – indicação do fiador quando houver no contrato a renovar e, quando não for o mesmo, com indicação do nome ou denominação completa, número de sua inscrição no Ministério da Fazenda, endereço e, tratando-se de pessoa natural, a nacionalidade, o estado civil, a profissão e o número da carteira de identidade, comprovando, desde logo, mesmo que não haja alteração do fiador, a atual idoneidade financeira; (...).”

A nova regra atualizou a denominação do Ministério da Fazenda que, no passado, era Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento, e, ao mesmo tempo, aproveitou para impor na ação renovatória o ônus de demonstrar a idoneidade financeira do fiador, ainda que seja o mesmo que prestou a fiança inaugural, o que apenas reforça a preocupação com a garantia.

Art. 74.

A redação original dizia:

“Art. 74. Não sendo renovada a locação, o juiz fixará o prazo de até seis meses após o trânsito em julgado da sentença para desocupação, se houver pedido na contestação.”

A novel regra diz:

“Art. 74. Não sendo renovada a locação, o juiz determinará a expedição de mandado de despejo, que conterá o prazo de 30 (trinta) dias para a desocupação voluntária, se houver pedido na contestação.”

A ação renovatória de aluguel é considerada demanda de caráter dúplice17, ou seja, independente de reconvenção, poderá o réu locador requerer a desocupação do imóvel em contestação; hipótese em que julgada improcedente a renovação, o juiz poderá desde logo determinar a desocupação do imóvel.

Na nova disciplina, o legislador diminui sensivelmente o prazo para a desocupação do imóvel, sendo extremamente rigoroso com o locatário, pois determina que ao julgar improcedente a renovatória o juiz expeça mandado de despejo, que conterá o prazo de 30 (trinta) dias para desocupação.

17 FUX, Luiz. Locações: processo e procedimentos. 2.ed. Rio de Janeiro: Destaque, 1995. 544 p.

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Na regra anterior, o prazo para a desocupação era de 06 (seis) meses e contados após o trânsito em julgado da decisão; portanto, se houvesse recurso do locatário, teria obrigatoriamente efeito suspensivo, o que era uma exceção ao art. 58, V.

Agora, ainda que o locatário recorra da sentença, o despejo poderá ocorrer, pois a eventual apelação não terá efeito suspensivo, por força do mencionado inciso V do art. 58.

CONCLUSÃO

Não temos dúvidas que havia necessidade de atualizar e modernizar a Lei 8.245/91, que foi proposta em outro cenário econômico e em momento de crise aguda no mercado das locações.

A Lei 12.122/09 certamente contribuirá para o crescimento do mercado de locações, principalmente ao dar celeridade à prestação jurisdicional.

As inovações contribuirão em muito para o equilíbrio da relação locador/locatário.

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CARACTERES DA TUTELA MANDAMENTAL PROMOVEDORA

DA IGUALDADE ENTRE OS GÊNEROS CÁSSIO BENVENUTTI DE CASTRO*

Sumário: Considerações preliminares; 1 – Excurso metodológico da ciência processual: da ruptura liberal-burguesa individualista à democratização dos novos direitos 1.1 Estado liberal-burgês e sua antropocentrista resolução dos conflitos: metodologias sincrética e conceitual; 1.2 Estado (neo)constitutcional de direito: metodologia instrumental aos novos direitos em pauta; 2 – Igualdade material providenciada pelo Estado Democrático de Direito; 2.1 Igualdade-postulado: estrutura pré-ponderada que fundamentou a Lei 11.340/06; 3 – Tutela mandamental: força institucional verticalizada pela Constituição; 3.1 Técnicas da tutela jurisdicional: a inovação da Lei 11.340/06. Considerações finais articuladas. Referências.

Resumo: A concepção objetiva dos direitos fundamentais atribui-lhes força normativa cujos efeitos se refletem a todos os poderes instituídos. O processo, no diálogo das fontes e ora compreendido como direito constitucional aplicado, reflete seu dever-poder nesse contexto promovedor de direitos. Em consequência, a natureza pública da tutela jurisdicional retira força normativa vertical e diretamente da Constituição. Sem descurar da situação material subjacente, os anseios imbricados axio-deontologicamente nas fontes superiores do ordenamento impõem a realização do direito da maneira mais específica, tempestiva e adequada possível, de molde à consecução dos escopos justiça e pacificação social. O sobreprincípio da igualdade substancial e sua glosa aplicativa normativa (postulado), nesse viés concretista, fundamentaram a elaboração

* Juiz de Direito no Estado do Rio Grande do Sul. E-mail para críticas e/ou sugestões:

[email protected].

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da Lei 11.340/06, criadora de técnicas da tutela mandamental impassíveis de retrocesso ablativo na atual ordem (neo)constitucional.

Abstratct: The objective conception of the fundamentals rights gives normative force to them whose effect are reflected to all instituted powers. The process, in the dialogue of the sources and however understood as applied constitucional law, reflects its must-power in this final context of rights. In consequence, the public nature of the jurisdictional guardianship directly removes vertical normative force of the Constitution. Without relinquishing of the underlying material situation, the linked principles and values yearnings in the superior sources of the order impose the accomplishment of the right in the way most specific, timely and adjusted possible, to support the achievement of justice and social pacification. The metaprinciple of the substantial equality and its normative use comment (postulate), on this pragmatic way, had based the elaboration of Law 11,340/06, creator of techniques of the mandamental guardianship which don’t permit the retrocession in the current (neo)constitutional order.

Palavras-chave: cultura; Estado (Neo)Constitucional; processo civil; valores; princípios; igualdade; liberdade; tutela mandamental; técnica de tutela; Lei 11.340/06.

Keywords: culture; State (Neo)Constitutional; civil precedure; values; principles; equality; freedom; mandamental guardianship; guardianship technique; Law 11,340/06.

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

A estrutura originária do Código de Processo Civil de 1973 expressava o tecnicismo positivo no qual se inseria a abstração intransigente das ciências descritivas, aparentemente alheias à realidade subjacente. Unificações procedimentais ordinarizantes, inativismo jurisdicional sufragado por uma utópica neutralidade, homogeneizações satisfativas obrigacionais de toda ordem são reles exemplos de uma obsessão técnico-classificatória narcísica que, por muito tempo, autorreverenciou o processo sistemicamente.

O item “I”, alínea “5”, da Exposição de Motivos propunha: “diversamente de outros ramos da ciência jurídica, que traduzem a índole

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do povo através de longa tradição, o processo civil deve ser dotado exclusivamente de meios racionais, tendentes a obter a atuação do direito”. Num primeiro momento, essa vetusta disposição parece afastar a legitimidade dos verdadeiros detentores do poder – o povo – de seus precípuos interesses programáticos normativos; noutra óptica, não apenas elide a “tradição” como mecanismo de influência social no âmbito jurídico, mas também fragmenta (por incompatíveis) as categorias do conhecimento humano, fazendo supor que o Direito deve ser lido em tiras compartimentais a despeito da transdisciplinaridade e do próprio diálogo entre as fontes, hoje mecanismos indispensáveis à própria racionalidade.

Até meados do Século XX, a discordância entre os paradigmas teleológicos contrapostos socialmente alavancou o Direito a uma posição eclética e, cientificamente, inerte: de molde a não se aproximar de tal ou qual ideologia político-cultural, fê-lo vassalo duma aritmética descritiva permeada pela utópica neutralidade – no mais fiel estilo técnico kelseniano. Como se o Estado e seus organismos institucionalizados nunca optassem por diretrizes mais tendenciosas que meramente apaziguadoras (!); como se a própria racionalidade humana, sufragado o influxo da física tradicional e da filosofia cartesiana1 especializadora do conhecimento, não infirmasse a desfragmentação do conhecimento interativo, já que a parte sem o todo não tem significado, ou não existe. Esse quadrante científico não perdurou.

Segundo JACINTO COUTINHO2, desde a noção kantiana, o conceito de sistema organiza-se ao entorno da noção de seu princípio unificador. A partir desta célula, promanam outras tantas acepções normativas vinculativas do emaranhado processual. E, de fato, a sorte metodológica do processo civil exsurgiu dos estudos da teoria da “ação”. Em sua decorrência, formou-se a trilogia científica – jurisdição, processo e ação – conformadora da autonomia científica deste ramo do conhecimento. Espantoso é que, a partir de um signo (a ação) conglobador do movimento em seu conteúdo semântico, contenedor da dinâmica, da antítese à inércia, parece ter sido impulsionado pela “estática” desprovida de carga axiológica, na qual se imiscuiu o processo como ciência por muito tempo.

1 ADIERS, Moacir. O direito e o jurista em um mundo em transformação e produtor de contrastes.

Revista da Ajuris, n.107, p.327. 2 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do processo penal e golpe de cena: um

problema às reformas processuais. In: WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Escritos de direito e processo penal em homenagem ao professor Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p.140.

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Vale dizer, o significado3 “ação” assumiu o paradoxal sentido de “inércia” (alheamento ao mundo real).

Inéditas necessidades sociais romperam com esse tecnicismo inóspito. O fenômeno do (neo)constitucionalismo do pós-guerra, relativizando conceitos em benefício da efetiva concreção dos direitos, rediscute a metodologia processual, convergindo-o ao instrumentalismo político-constitucional. Nesse patamar, à míngua de uma definição unitária dos fins estatais, alavancaram-se prospectivamente uma série de programas/escopos como melhores ou mais aconselháveis à tutela estatal. O formalismo abstrato, sistêmico e opaco de outrora, permeado pelas diretivas axio-deontológicas supremas, culminou à necessidade da outorga de tutela jurisdicional útil ao consumidor de seus serviços.

No cenário de relativas incertezas teleológicas – caractere natural do ambiente democrático –, o processo civil parece (re)encontrar-se às expressões sociais, econômicas, éticas e ideológicas que o circundam. Arrepiando-se a cerrada concatenação acrítica do Direito, sua finalidade pode ser vislumbrada ao cabo do certame, com a eleição de valores abertos porque flexíveis ao caso concreto: a justiça material e a pacificação social. A máxima da igualdade – metaprincípio reitor aplicativo de todos outros – perpassa-se diuturnamente nesses ideais, por ora prestando-se fundamentar os mecanismos inibidores da violência doméstica eleitos pelo processo não criminal.

Os novos interesses consagraram um Estado providência organizado pela Constituição dirigente. Dela, além dos valores, são extraídas diretrizes outorgadas a todos os ramos jurídicos. O processo, como longa manus institucionalizada deste movimento neoconstitucional, reflete verticalmente essas preocupações, dispensando, em termos de tutela, a positivação esmiuçada de todas as suas facetas. Apenas em termos de técnica, concernente ao procedimento e não às finalidades imanentes, faz-se necessária a previsão mais ou menos estrita do caminho a ser percorrido ao atingimento dos escopos. Daí a necessidade de a Lei 11.340/06 estabelecer mecanismos instrumentais e prevenir o sistema contra o não retrocesso técnico da tutela jurisdicional da ofendida.

3 Para ilustrar, o sentido está para o significado assim como o efeito está para a eficácia.

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1 – EXCURSO METODOLÓGICO DA CIÊNCIA PROCESSUAL: DA RUPTURA LIBERAL-BURGUESA INDIVIDUALISTA À DEMOCRATIZAÇÃO DOS NOVOS DIREITOS

No início do Século XX, o filósofo austríaco FRANZ BRENTANO4 diferenciou os fenômenos meramente físicos dos psíquicos. Nestes últimos, resultantes da intencionalidade, todas as manifestações apontam para algum objeto: querer é querer algo; pensar é pensar algo; e assim por diante. Corolário dessa reflexão imbrica-se na visualização de finalidades pela racionalidade humana – e, entre ela, os desforços das ciências humanas e jurídicas. Hoje, evidente que o desenvolvimento burocrático do processo não se resume apenas a um formalismo desprovido de seus objetos. Certamente, polariza-se às finalidades que legitimam sua própria existência dinâmica.

A eleição das finalidades que norteiam as ciências humanas varia na relação espaço/tempo, sendo conatural à diversidade dos compromissos sociais assumidos pelas políticas realizadoras das necessidades comunitárias. Considerações subjacentes de expressão ética, econômica, política ou ideológicas determinam a contingência orgânica relativizável de premissas em diuturna tensão. A noção do processo como instrumento – meio para atingimento dessas dinâmicas vivenciadas – remete-lhe como filtro à concreção dos propósitos escolhidos e, a partir daí, também o vetoriza pelas estruturas socioculturais imanentes a quaisquer objetos de conhecimento racional.

Refere ALVARO DE OLIVEIRA: “A noção de fim entrelaça-se, necessariamente, com o valor ou valores a serem idealmente atingidos por meio do processo. Impõe-se, portanto, a análise dos valores mais importantes para o processo: por um lado, a realização de justiça material e a paz social; por outro, a efetividade, a segurança e a organização interna justa do próprio processo. Os dois primeiros estão mais vinculados aos fins do processo, os três últimos ostentam uma face instrumental em relação àqueles”5. Posteriormente, o autor infere como sobreprincípios as noções da efetividade e segurança. E, de fato, valor trata do “ótimo”, que é melhor ao grupo, sendo indisponível por natureza; princípio relaciona-se ao que “deve

4 Apud TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2001, p.94. 5 OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo

excessivo. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Leituras complementares de processo civil. Salvador: JusPodivm, 2008, p.372.

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ser”, um mandado imediatamente finalístico, porém relativizável. Mister a separação entre finalidades e funções6. As primeiras indicam o resultado da chegada: a justiça e a paz social; os segundos, alguns caminhos a serem percorridos: a efetividade e a segurança como “entre-lugares” instrumentais, fazendo a ligação do Direito com os fins. O próprio ALVARO DE OLIVEIRA deixa implícita semelhante conclusão.

O processo não cuida meramente de uma adaptação técnica soterrada na própria organicidade. Sua estrutura depende dos valores oriundos das opções políticas do Estado. Na atualidade, repudia-se a filosofia dos fins limitados7, pretendendo-se, dentro da relativização coarctada à dinamicidade da vida pós-moderna, chegar-se ao valor “homem” através do culto à “justiça” substancial e efetiva. Consoante DINAMARCO: “Todo sistema processual tem como principal fator legitimante a sua compatibilidade com a carga de valores amparados pela ordem sociopolítico-constitucional do país. Mas, como a legitimidade em si é fato social e não jurídico (não se confunde com a mera legalidade), não se trata de confrontar somente o processo com a Constituição, mas de projetar esse confronto até à própria realidade axiológica subjacente a esta. Por outro lado, tratando-se de fenômeno sociológico, a legitimidade manifesta-se na aceitação geral do poder pela população (que não se confunde com a aceitação, ou conformismo, com decisões particularizadas). E, além disso, a legitimidade que aqui se examina é a do sistema em seu funcionamento em dado lugar e momento considerados”8.

O desenvolvimento da consciência do homem – na sua individualidade – trafega aos sobressaltos, em face de suas relações com o meio9 e por ser produto das íntimas aflições psíquicas. Ora, se cada pessoa também opera uma modificação na sua realidade exterior por ocasião de suas atividades, suposto que o grupo – resultado do somatório gregário – influencie-se por este construtivismo evolucionista. Nesse diálogo integrativo dos discursos socioindividuais, entremeiam-se desejos, objetivos tópicos e valores-sínteses, acarretando uma revelação cultural vinculada espácio-temporalmente nas vertentes históricas acumuladas. Inegável a precipitação da carga axiológica no ordenamento jurídico de cada sociedade

6 FERRAJOLI remonta essa distinção. Direito e razão, passim. 7 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 1996, p.31. 8 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 1996, p.316. 9 SCARPARO, Eduardo Kochenborger. Contribuição ao estudo das relações entre processo civil e

cultura. Revista da Ajuris, n.107, p.118.

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e, consequentemente, na configuração sistêmica do processo, observada a natureza cultural deste ramo e do próprio Direito, que reflete o conjunto de vivências de ordem espiritual e material vivenciada pela comunidade.

Não apenas as diretrizes abstrato-dogmáticas transmitem-se nas sucessivas gerações. Da mesma sorte, o trabalho dos operadores que o concretizam casuisticamente se respalda nas diferentes maneiras do sentir social. Daí ser preciosa a vontade política dos intérpretes para a efetivação das normas em sua totalidade, pena da cristalização simbólico-positiva dos programas estatuídos nas legislações. Célebre o brocardo sintetizado pelo magistrado Hughes, no julgamento do caso William Marbury versus James Madison: “We are under a Constitution, but the Constitution is what the judges say it is”10.

Nosso ordenamento ostenta legado vivo de institutos tipificados que, desprotegidos da vontade juspolítica efetivadora, feneceram por consumação retórica. O art. 5º, LXXI, da CRFB estabelece o mandado de injunção para tutelar o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, sempre que a falta de norma regulamentadora os tornem inviáveis. Por suposto, a significação do termo “mandado” e a força normativa da Constituição não reservariam dúvidas apriorísticas à efetivação desse importante mister fundamental. Todavia, o sentido emplacado ao instituto, desde 1988, imputou-lhe singelo caráter programático-declaratório, tendo o STF se utilizado da posição “não concretista”11. Isto é, dispunha-se de inédito mecanismo processual propulsor da sorte dos direitos fundamentais; em contrapartida, sua casuísta neutralização lhe retirava a força mandamental, subjugando-o à condição clássica da eficácia declaratória. Recentemente, o Tribunal Máximo conferiu efetividade ao mandado de injunção, adotando a posição concretista individual12 para 10 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003,

p.26. 11 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Método, 2005, p.576. 12 Veiculou-se no Informativo 442 do STF: “O Tribunal iniciou julgamento de mandado de injunção

impetrado, contra o Presidente da República, por servidora do Ministério da Saúde, auxiliar de enfermagem, no qual pleiteia seja suprida a falta da norma regulamentadora a que se refere o art. 40, § 4º, a fim de viabilizar o exercício do seu direito à aposentadoria especial, haja vista ter laborado por mais de 25 anos em atividade considerada insalubre. O Min. Marco Aurélio, Relator, julgou parcialmente procedente o pedido formulado para, de forma mandamental, adotando o sistema do regime geral de previdência social (Lei 8.213/91, art. 57), assentar o direito da impetrante à aposentadoria especial de que trata o § 4º do art. 40 da CF. Inicialmente, julgou adequada a medida, asseverando que, com o advento da EC 20/98, não há mais dúvida quanto à

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solução dessas contendas. O Judiciário conferiu sentido efetivador ao mandado de injunção que, de estranho desconhecido, em cada caso concreto, passou a suprir a lacuna legislativa e aplicar solução cabível à situação material – ultrapassados quase 20 anos, o instituto aflorou de natimorto à fase adulta.

Haure-se disso a necessidade de observação dos novos institutos sob a coloração dos anseios culturais vigentes. A constitucionalização do processo como ferramenta publicista indispensável à realização da justiça e à pacificação enseja um encorajamento transformador da realidade, aproximativo e específico ao Direito subjacente, pena de fazer letra morta à própria CRFB. Face à riqueza inestimável das situações da vida real, despiciendo imaginar, utopicamente, que tudo esteja regrado em lei. A solução casuísta-epistemológica se operacionaliza pelos princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, sobretudo sem dispensar o premente diálogo das fontes (horizontal e vertical) de molde a não compartimentalizar o Direito a categorias narcisicamente incomunicáveis.

Se filosófica, dinâmica e historicamente a ciência jurídica já não assume os lindes bicolores das regras, certamente o caráter dogmático da juridicidade também é de ser revisto na totalidade da transdisciplinaridade, tanto quanto medida-limite como em função do conteúdo-fundante de suas premissas. Alhures comentei: “O poder que outrora criava o Direito-conceito, simbolicamente estatuído como limite de seu genitor, agora se adstringe funcionalmente aos indisponíveis marcos normativos insuscetíveis de regresso autofágico, mas tendentes à satisfação social de todos e de cada qual de seus integrantes. Definitivamente, essa concepção, em diuturna mutação construtiva, reproduz o diálogo permanente no qual

existência do direito constitucional à adoção de requisitos e critérios diferenciados para alcançar a aposentadoria daqueles que tenham trabalhado sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, ficando suplantada, portanto, a jurisprudência do Tribunal no sentido de ser mera faculdade do legislador estabelecer, por meio de lei complementar, as exceções relativas a essa aposentadoria. Em seguida, salientando o caráter mandamental e não simplesmente declaratório do mandado de injunção, asseverou que cabe ao Judiciário, por força do disposto no art. 5º, LXXI e seu § 1º, da CF, não apenas emitir certidão de omissão do Poder incumbido de regulamentar o direito a liberdades constitucionais, a prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, mas viabilizar, no caso concreto, o exercício desse direito, afastando as consequências da inércia do legislador. Após, pediu vista dos autos o Min. Eros Grau” (MI 721/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, 27.09.2006).

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se ponderam os interesses conflitantes e reserva à legalidade estática uma distante recordação histórica”13.

As ciências jurídicas são humanas por natureza. Vale dizer, o social e o jurídico remontam elos de coordenado percurso evolutivo identificado pelos sobressaltos históricos momentâneos. O social faz surgir e influencia o jurídico; este, além de acompanhar aqueles valores imanentes, devolve significativa carga axio-deontológica e determinadora de novos movimentos fático-comunitários. Reflexo disso, em apertada digressão, serão abordadas algumas linhas que demonstram a pendularidade e/ou a estabilização provisória da metodologia processual pós-moderna.

1.1. Estado Liberal-Burguês e Sua Antropocentrista Resolução dos Conflitos: Metodologias Sincrética e Conceitual

A noção da actio romana14 ligava-se ao direito material. Numa promíscua relação de simbiose horizontal, era inidentificável o processo enquanto fenômeno autônomo. Nas concepções de SAVIGNY15 e CELSO, ação significava a inflamação do direito ou da pretensão, guardando idêntica natureza de seus prius lógicos. Até meados do Século XIX, vigorava essa noção imanentista, reflexo vislumbrado por alguns, inclusive na tradicional16 glosa do art. 75 de nosso anterior Código Civil (datado de 1916). Como princípio unificador do sistema, tal interpretação da ação culminou na metologia sincrética do processo civil. Dispunha-se de uma visão plana/monista do ordenamento, cujos efeitos decorrentes impediram a independência científica do processo. DINAMARCO17 sistematiza que a ação era definida como o direito subjetivo lesado; a jurisdição como sistema de tutela dos direitos; e o processo como mera sucessão de atos formais sob a condução pouco participativa do juiz.

Uma compleição delimitadora do poder inaugura os questionamentos do absolutismo real já em 1748, com a releitura das ideias aristotélicas das

13 CASTRO, Cássio Benvenutti de. Decadência da potestade invalidante do ato administrativo. Jus

Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2121, 22 abr. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12670>. Acesso em: 31 maio 2009.

14 SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v.2, p.197. 15 LIRA, Gerson. Evolução da teoria da ação. Ação material e ação processual. In: OLIVEIRA, Carlos

Alberto Álvaro de (Org.). Elementos para uma nova teoria geral do processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p.130.

16 Refiro-me ao apanágio “tradicional”, porque, atualmente, uma conclusão pós-moderna deste mesmo dispositivo povoa a margem acadêmica, como será oportunamente verificado.

17 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 1996, p.18.

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funções estatais na obra L’Esprit des Lois, de MONTESQUIEU. De então, as funções estatais se estruturaram organicamente em diferentes círculos de atribuições e competências, abalizando reciprocamente e reconhecendo suas limitações teleológicas normatizadas de modo extroverso. Nesse passo de restringir o absolutismo monárquico, construiu-se o estado de direito francês pela Revolução de 1789, assentando-se na primazia da lei como fonte superior e vinculativa de todos atos oficiais, dotada de generalidade e instrumentalizada pela igualdade (formal), em repúdio aos privilégios reais de outrora. Da autonomia da vontade ilimitada pelas intempéries psicológicas do rei (voluntas), a partir da ascensão revolucionária, transcendeu-se às condições gerais ou pelo menos estabelecidas sob o prisma da transividualização legal (ratio), na retórica da laicização do Estado. Contribuições de LOCKE, HOBBES e ROUSSEAU identificavam o Direito ao complexo de leis rígidas e à respectiva interpretação estrita.

Essa candente normatividade fundia-se aos demais ramos do jus civile preexistentes. Era desnecessária a dicotomização público-privado, tampouco a organização do estado até então inexistente (juridicamente), ainda permanecendo uma construção sincretista do processo como uma longa manus do direito material em movimento. O racionalismo iluminista amalgamado ao humanismo e ao universalismo18 da filosofia kantiana19 ricocheteou seus valores preservadores da liberdade contra um poder até então compreendido por contraposto à sociedade, meramente devedor dos direitos de liberdade, sobre a qual se dispensava uma reflexão funcional em benefício descritivo dos fenômenos, acertada na síntese de ARGÜELLES: “Lo que une a los liberales se debe más a lo que son que a por que lo son. No les une un unico fundamiento identificado con algún valor singular – como podría ser la autonomia, la libertad o la igualdad – sino más bien un acuerdo pragmático acerca de las relaciones entre el Estado y los indivíduos”20.

18 A virada kantiana influencia duas proposições do imperativo categórico superadores do

utilitarismo: cada indivíduo constitui um fim em si mesmo, e não um meio para realização de metas coletivas ou individuais que lhe são estranhas; um pessoa deve agir como se a máxima da sua conduta pudesse se transformar em uma lei universal. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 1995, p.68.

19 CAMARGO, Marcelo Novelino. O conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras complementares de constitucional. Salvador: JusPodivm, 2007, p.115.

20 Apud ZIMMER JR., Aloísio. A recuperação da noção de thelos para o processo. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de (Org.). Elementos para uma nova teoria geral do processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p.31.

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A visualização do Estado como um organizador necessário resultou numa série coordenada de disposições (contratualistas) plasmadoras dos interesses outrora em latente confronto, mas que se conformaram pela derrocada abrupta do monarca. A partir deste “acordo” (formal), na verdade imposto por alguns (oligarquias), dispensou-se a figura desgastada do rei em benefício duma suposta estabilidade negociada pelos simbólicos representes da revolução liberal. Viveu-se um niilismo axiológico transmutado ao total absenteísmo ideológico, sufragando-se a ordem da estática classista vigente com retóricas da imparcialidade e da neutralidade do poder, tudo para os fins de manutenção patrimonialista da burguesia. A delicada situação histórica da revolução industrial e os crescentes índices de miséria e criminalidade sobremaneira contribuíram para o afastamento formal das realidades que se contrapunham à liberdade, ou melhor, ao status capitalista subjugante.

Os estudos descritivos da filosofia positivista, que tendia a reduzir todos os fenômenos aos conceitos explicáveis por uma lógica quase matemática através de experiências ônticas21, decantavam-se dos valores para exprimir o purismo conceitual de suas matérias-primas. Assim, os institutos da racionalidade humana, através da observação e descrição pormenorizada das categorias analisadas, mereciam lindes classificatórios rígidos em detrimento da força de seus próprios conteúdos nem sempre aparentes.

Por certo tempo, tal ideologia liberal continuou inspirando a teoria22 civilista (SAVIGNY, CELSO), mas ambientou a teoria concreta da ação (WACH), nas quais não se distinguiam o direito subjetivo de sua dinâmica realizadora e os atores deste cenário remontavam à clássica relação devedor/credor. Até porque, ao legislativo remanescia toda a atividade criativa do direito; à jurisdição apenas se incumbia a aplicabilidade das regras de antemão positivadas numa aritmética lógico-racional, permitindo-se a leitura eficacial meramente homologatória da tutela formalmente oferecida: seja pela declaração, constituição ou condenação.

21 Exemplo sensível desses experimentos podem ser extraídos dos estudos de CHARLES DARWIN

(1809-1882). O naturalista inglês desenvolveu sua tese evolutiva que é a base da moderna teoria sintética: a teoria da seleção natural. Pela observação e descrição dos fenômenos físico-químicos, ele chegou à conclusão de que os organismos mais bem adaptados ao meio têm maiores chances de sobrevivência, legando um número maior de descendentes.

22 TESHEINER, José Maria Rosa. Elementos para uma teoria geral do processo. São Paulo: Saraiva, 1993, p.103.

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Não surpreende que a manifestação científica da sobreposição do homem em sua individualidade23 (contra seu algoz institucionalizado) grassou pensamentos revolucionadores da teoria da ação, da jurisdição e do processo (trilogia estrutural). Também pudera, a ruptura burguesa escancarou os privilégios estatais ilimitados da faceta imperial, cuja repercussão exasperou-se na possibilidade de agir contra o próprio ente público, demandando solução aos problemas de insatisfação dos direitos que se apresentavam. Com WINDSHEID, MUTHER (1856) e BULOW (1868), o direito processual consolida-se como ciência autônoma24: a ação não seria instituto de direito material, mas processual; não se dirige ao adversário, mas contra o juiz; não tem por objeto o bem litigioso, mas a prestação jurisdicional. Conclui ZIMMER JR.: “No princípio tudo concorria para obtenção do direito material, existia uma unidade. Com a transição vivida pelo processo, e com a entrada na modernidade, perde-se a finalidade. O processo torna-se independente, o homem torna-se independente, tudo se compartimentaliza. Perder a finalidade enseja um total relativismo. Atualmente, nos contentamos com a retórica, assim construímos o consenso, não nos preocupamos com a substância. É um acordo pela superfície. E justamente o processo perdeu-se em discussões que tentavam aprimorar uma técnica, porém sem a visão do contexto em que essas mudanças deveriam se inserir. O processo se autorreverenciava, não acolhendo problemas de outros sistemas, como a vida em sociedade, o acesso à justiça e a realização do direito material. Perdeu na substância, aprimorando-se na técnica. Desapareceram do universo as causas finais, tivemos a consequente desvalorização da práxis, e o Direito foi lançado para o campo da abstração. O Direito na modernidade apresenta-se como um conjunto de normas racionais desprovido de preocupações valorativas ou finalísticas”25.

Essa vertente teórica, como não raro verificado, deslumbrou-se na própria introspecção conceitualista. Intitulando-se de processualismo científico/autonomista e desenvolvendo um sistema de (co)existência do processo por ele mesmo, percorreu até meados do Século XX, quando as estruturas do então Estado social (protetivo de grupos) já não atendiam mais aos reclames totalizantes do Estado democrático, congratulador dos 23 Em última análise, reeditou-se o discurso sofista do individualismo pela “ataraxia”, que

revolucionou a noção de bem comum e felicidade difundida por Aristóteles. 24 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 1996, p.18. 25 ZIMMER JR., Aloísio. A recuperação da noção de thelos para o processo. In: OLIVEIRA, Carlos

Alberto Álvaro de (Org.). Elementos para uma nova teoria geral do processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p.32.

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novos direitos (terceira e quarta dimensões dos direitos fundamentais), passando a sociedade (como um todo) a assumir a preocupação sobrejacente.

1.2. Estado (Neo)Constitucional de Direito: Metodologia Instrumental aos Novos Direitos em Pauta

O movimento constitucionalista do Século XX, principalmente na segunda metade, sintoniza-se aos apelos sociais efetivadores dos direitos fundamentais positivos, ensejadores de participação concretista do Estado. Hoje, parece óbvio que declarar uma liberdade formalmente, mas sem lhe congratular com mecanismos reais de sua outorga, soa demagógica percepção desconexa aos valores subjacentes à nossa sistemática. Divulgou-se a proclamada dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que supera a dicotomização estéril do processo (e de todos os poderes instituídos), imbricando-lhes o dever realizador das finalidades básicas fundamentais. Consoante INGO SARLET, a perspectiva objetiva representa uma “mais-valia jurídica, no sentido de um reforço da juridicidade das normas de direitos fundamentais, mais-valia esta que, por sua vez, pode ser aferida por meio das diversas categorias funcionais desenvolvidas na doutrina e na jurisprudência, que passaram a integrar a assim denominada perspectiva objetiva da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais e entre as quais o reconhecimento de deveres de proteção (imperativos de tutela) assume um lugar de destaque, inclusive no que diz com sua repercussão na esfera jurídico-penal”26. A proteção comentada não apenas abrange a tutela jurisdicional como atine à própria cogência inerente à força destas prerrogativas públicas, pena de figurarem natimortas ou se transformarem em polêmicas líricas constitucionais, assegura ALEXY27.

Na esteira das contribuições de NORBERTO BOBBIO, DEL VECCHIO, RONALD DWORKIN, ROBERT ALEXY, KARL LARENZ, CLAUS-WILHELM CANARIS e JOSEPH ESSER, para citar alguns expoentes, o Estado, agora de Direito (ou melhor, neoconstitucional), assumiu natureza normativa transcendente da (positivista) legalidade clássica. A concepção da própria Lei Maior

26 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e proporcionalidade: notas a respeito dos limites e

possibilidades da aplicação das categorias da proibição de excesso e de insuficiência em matéria criminal. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos. Porto Alegre: EdiPucrs, 2008, p.213.

27 ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático. RDA, 217, p.73.

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exasperou a simplória separação das funções estatais, a ordenação burocrática e a escansão orçamentária dos dividendos. Atacando os exageros do “purismo” legalista, o Estado contemporâneo delineou a proteção/construção dos direitos fundamentais. Assim, consolidou-se um constitucionalismo de valores, regras e princípios, sendo que estes últimos estruturam deontologicamente os auspícios que subjazem o ideário axiológico do sistema, “abrindo” e dinamizando as opções dos poderes instituídos. Diretrizes açambarcadas internacionalmente pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1948), que inseriu regras mínimas de observância às entidades nacionais, complementam a plasticidade desse sistema garantista.

Em suma, o caráter Social do Estado de Direito reforça-se principiológica e valorativamente28. A partir daí, vincula-se não somente à lei (como no simbólico liberalismo afrancesado), mas à ordem constitucional polissêmica como um todo (bloco de juridicidade normativa). Torna-se nítida a evolução do conceito de legalidade, sistematização ora profligada nos termos ponderáveis interna/externamente pelo neoconstitucionalismo. Inicialmente, com a secularização do Estado e a positivação do Direito, a Revolução Francesa superou o racional-jusnaturalismo. A metafísica (moral) separou-se da estrutura normativa. Este mero formalismo acabou defendendo egoisticamente a ordem estabelecida e abandonou29 a igualdade ideologizada originariamente pelos revolucionários. Se antes “king can do no wrong”, até meados do Século XX, vigorou “the Parliament can do anything”, até o ultimato da rigidez constitucional e do controle de legalidade dos atos públicos como medida substancial de validade construtiva do sistema. A expressão Estado Social de Direito aparece, ineditamente, no art. 20 da Lei Fundamental de Bonn, em 1949, prevendo

28 Assente que valores se diferenciam dos princípios: estes são normas deontológicas de natureza

aberta em relação às regras; os primeiros subjazem todas as ações normativas, estruturam e legitimam políticas e opções genéricas ou casuísticas, de cunho axiológico e formadores do que “é melhor”. ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. RDA, 215, p.165.

29 Para se autolegitimar e conformar os interesses de todos que apoiaram a revolução, o paradigma de poder vencedor privilegiou uma igualdade meramente “formal”. Assim, no discurso e “perante” os súditos, apaziguavam-se as reivindicações; na prática, tudo continuava como antes, sem preocupações efetivadoras daqueles auspícios revolucionários que apenas se formalizaram no papel.

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total submissão dos poderes à Constituição, à lei e ao Direito30 nos sentidos amplificadores dos direitos humanos.

O estado constitucional de direito consagra duas ordens à legalidade. Primeira, no sentido formal (que lhe confere vigência) os poderes públicos são conferidos pelo ato normativo específico (reserva de lei) e submetido a um procedimento estabelecido. Em seguida, num cariz substancial no qual se respeita o conteúdo principiológico e valorativo supremo do Estado. Nesta perspectiva, concede-se validade/efetividade aos atos de todas as ordens emanados.

Noutras palavras, dois grupos de ideias sustentam o neoconstitucionalismo, segundo ANA PAULA DE BARCELLOS31. Do ponto metodológico-formal, haurem-se três premissas: a) caráter imperativo das normas constitucionais; b) superioridade destas diretrizes; c) subjugo de todos os atos posteriores à Carta Magna. No aspecto material, dois requisitos: a) incorporação dos valores e opções políticas no texto Supremo, sobretudo inerentes à dignidade da pessoa e aos direitos fundamentais; b) expansão dos conflitos específicos e gerais entre as opções normativas (as prerrogativas em discussão se ponderam sem exclusão absoluta, com preservação do núcleo essencial de cada qual, observada a casuística interpretação sistemática, harmônica e teleológica do texto).

Some-se a isto, numa concepção amplificadora dos direitos humanos – mitigando o então dualismo moderado dogmaticamente aplicável em matérias de direito internacional –, recente decisão do STF, que delimitou pragmaticamente a categoria de normas “supralegais”: “Entendeu-se que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no art. 5º, LXVII, da CF (‘não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;’). Concluiu-se, assim, que, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel. Prevaleceu, no julgamento, por fim, a tese do

30 MEDAUAR, Odete. O Direito administrativo em evolução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003,

p.107. 31 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Políticas

Públicas. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras complementares de constitucional. Salvador: JusPodivm, 2007.

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status de supralegalidade da referida Convenção” (em 03.12.2008, HC 87585).

No sentido neoconstitucionalista, legalidade é um princípio fundante. Demais disso, transforma-se na juridicidade, de concepção amplíssima, ora condicionante das demandas públicas, mais flexível e aberta em relação à ultrajada legalidade formal, já que em constante harmonização sistemática se ponderada às demais normas de similar envergadura (como a moralidade). Assevera MAFFINI32: é vetusta a concepção formal do “ilegal” na coisa pública, devendo-se haurir um conceito de “juridicidade” – esta sim vetoriza a contrariedade ao Direito como um todo, além da imoderada vinculação da Administração às regras legais.

Vale dizer, atualmente dispomos de Constituição dirigente transformadora e numa constante dinamização sinalagmática dos auspícios sociais. Orienta-se pelos valores e princípios pluralizados harmonicamente em seu texto, exortando todos setores da ordem jurídica, social, econômica e política. Evidente que, neste cenário, o Estado é repensado e vincula-se à hermenêutica constitucional para materializar, em concreto, os ditames daquele texto. Devido à complexidade e, por vezes, contraditórias indicações dos poderes públicos ao atingimento dos fins (não raro insuficientes a todos os interesses em liça), natural que os atos estatais sejam objeto de ponderações constantes, sopesados dinamicamente pelas ideologias e interesses fundantes imutáveis, bem como aos momentaneamente presentes e compatíveis com aqueles.

O processo civil acompanhou essa organicidade. Para satisfazer os novos auspícios sociais, emprestou-se-lhe uma ideologia valorativa que transcende a mera subsunção aritmética do direito material. Pelo contrário, normalmente exercita ponderações entre os conflitos aparentemente antinômicos e, apenas, concretamente, solúveis às inéditas questões que se lhe apresentam. A força estatal, via processo, demonstra uma relação simbiótica com o direito material, no qual este lhe serve, mas também por aquele é servido institucionalmente, flertando-se em coordenadas estruturas realizadoras das insurgências jurídicas e sempre norteadas pela justiça e pacificação social. Esta permeabilidade aos valores político-constitucional e jurídico-material constitui a metodologia instrumental33 do processo. A ação

32 MAFFINI, Rafael. Direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.46. 33 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 1996, p.21.

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desontoliza-se; a atividade jurisdicional ativa-se à consecução da justiça; o processo identifica finalidades precípuas.

2 – IGUALDADE MATERIAL PROVIDENCIADA PELO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O transcurso histórico dos paradigmas estatais cotejado às metodologias do processo civil denota a necessidade de proteção – agora efetiva – dos contemporâneos receios sociais configuradores dos “novos direitos”. Entre eles, merece destaque a noção de igualdade, à medida que nem sempre fora depreendida com a magnitude atual. Ela acompanha o percalço epistemológico construtivista, polarizado pelos valores (síntese/meta) a serem atingidos.

Previamente à revolução iluminista, as pessoas não eram reputadas iguais. Os direitos/deveres pertenciam às classes às quais pertenciam – sejam políticas, econômicas e/ou raciais. A consagração do Estado moderno simbolizou o “acordo” dessas oligarquias, outrora em latente confrontação. À sua frente, a burguesia coordenou retoricamente o poder, com a nítida tendência de satisfazer sua ambição capitalista em detrimento de quaisquer outras preocupações sociais. Ou seja, fez ruir diversas prerrogativas nobiliárquicas legadas de um tempo que afastava os potenciais consumidores da expansão mercantil. Nesse contexto outorgado verticalmente, aplacaram-se os reclames dos súditos mediante consagração da igualdade formal, desfazendo-se os títulos preconcebidos sucessoriamente em benefício da abstração e generalidade firmada pela lei estrita. Em contrapartida, outros privilégios afloraram, como o voto censitário, possibilitando alternâncias não ideológicas na maneira de conduzir uma comunidade notoriamente assimétrica.

A consagração da liberdade a foros aparentemente absolutos sufragava tanto a (i)mobilidade contratual – simbolizada pela autonomia privada – como limitava toda intervenção governamental na propriedade: permitia a circulação de bens entre os privilegiados/proprietários, mas jamais propunha modificação no status quo socioestereotipado. Uma igualdade formal34 apaziguava os interesses dos concentradores da 34 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998, p.179. Ainda hoje,

vicejam concepções ideológicas estereotipadas na doutrina. Comentando a igualdade substancial, BASTOS refletiu: “No campo político-ideológico, a manifestação mais acendrada deste tipo de igualdade foi traduzida no ideário comunista, que procura ainda tradução na realidade empírica, na vida das chamadas democracias populares. Ainda aqui, entretanto, a procura da igualdade

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decisionabilidade (titulares do poder e dos bens), confirmando o subjugo dos vassalos alheios a tais privilégios. A legalidade estrita fazia vigorar o axioma de que “se está na lei vigente, é válido bem como eficaz”, impossibilitando a insurgência da base daquela pirâmide estamental.

Para nações que, até então, sujeitavam-se à irreprochável sapiência real, dispor de um ordenamento legal que denotasse uma preocupação limitativa (ainda que formalista e demagógica) do poder representou uma conquista sem precedentes. A retórica burguesa aboliu os privilégios sucessórios de origem classista, imunizando-os pela abstração acessibilizadora/utópica. Consectário do positivismo estrito da época, a igualdade perante a lei (direcionada ao legislador) uniformizou a incidência35 das regras a todos, sem distinções originárias evidentes. O contratualismo encetado na relação indivíduo/estado parecia ter firmado uma barganha duradoura.

A CRFB/88 (art. 5º, caput) preocupou-se em garantir essa regularidade uniformizante perante a lei, declarando-a expressamente. Além disso, atendendo aos objetivos expressos no art. 3º, I, III e IV, impossibilita a “distinção de qualquer espécie”, com a “inviolabilidade do direito à igualdade”.

Referindo-se ao conteúdo da premissa fundamental, torna evidente a insuficiência da proibição da desigualdade (ou igualdade formal). Deve-se mais – que o Estado efetivamente promova a equiparação, na medida do possível e razoável ou, pelo menos, forneça meios garantidores das oportunidades a todos. A isonomia prometida pela Constituição não representa apenas um limite negativo, sobretudo configura uma meta para os poderes, que agirão sensivelmente para tanto. Os “verbos de ação ao tratar da igualdade”36 denotam a premissa de que, no Brasil, a igualdade não é um dado da realidade, mas objetivo a ser construído através de ações positivas.

material não foi de molde a eliminar as efetivas desigualdades existentes na vida das sociedades sujeitas a tal regime”. A história, a cultura, bem como a política, enfim, soterraram tanto uma concepção estrita do comunismo como a identificação substancializadora da isonomia com aquele regime. Na dinâmica sociopolítica contemporânea, norteada pelas relativas conformações de interesses dialogáveis, não há mais espaço aos estritos axiomas soterrados à própria ontologia fragmentária.

35 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros, 2008, p.77. 36 SARMENTO, Daniel. A igualdade étnico-racial no direito constitucional brasileiro: discriminação

“de facto”, teoria do impacto desproporcional e ação afirmativa. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras complementares de constitucional. Salvador: JusPodivm, 2007, p.190.

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Ictu oculi, a trasladação topográfica do ideal da isonomia denota significação de maior respaldo normativo-eficacial. Outrora mero direito fundamental como os demais (art. 153, § 1º, da CF/67), passou a encabeçar a lista dessas prerrogativas humanas (art. 5º, caput, da CRFB/88). Portanto, mais que assegurar determinada situação jurídica específica ao indivíduo contra toda indevida utilização passível de manipulação da ordem jurídica, a igualdade garante possibilidades materiais à concreção de seus anseios. CELSO BASTOS admite-a como “mais vasto dos princípios constitucionais, não se vendo onde ela não seja impositiva”37. Vale dizer, todos os direitos, a exemplo da liberdade, da propriedade, da comunicação, etc., apenas serão exercitáveis validamente se cotejados à igualdade.

Com efeito, essa sistemática brasileira reflete preocupação do Estado social que, ao longo do Século XX, passou a efetivar os direitos humanos positiva e materialmente, observando o caráter objetivo das prerrogativas públicas. Uma acepção meramente técnico-legalista da igualdade cuidaria de benefício opaco, legitimador da ordem vigente a outras arbitrariedades, tão-somente decantada pela singela retórica da impessoalidade legislada. De fato, isonomia formal não deixa de ser disfarçada faceta da legalidade, chegando a dispensar sua pretensão modificadora da realidade, apenas se quedando às vicissitudes subsuntivas da impessoal adequação dos fatos à norma. Insuficiente, por ora, a aplicação da lei a todos; além disso, ela deve observar, nas suas ponderações, a medida das desigualdades reais e promover mecanismos sociais de proteção. Até porque, uma lei arbitrária também poderá incidir indiscriminadamente – vide o exemplo dos regimes “legais” do nazismo ou do apartheid.

Do individualismo antropocêntrico e abstrato iluminista, a subjacência fática detonou preocupações crescentes da previdência interventiva estatal, que se desincumbe atuando efetivamente através das normas cogentes e protetivas. Salienta DANIEL SARMENTO que “os mecanismos de jurisdição constitucional ao longo do Século XX, conferiram ao Judiciário a possibilidade de exercer o controle sobre as ofensas aos direitos fundamentais perpetradas pelo próprio legislador. Assim, ao lado da igualdade perante a lei – que se destina ao aplicador da norma e veda que ele a empregue com discriminações ou favoritismos – tornou-se possível combater também a igualdade na lei, convertendo-se a isonomia

37 Idem, p.183.

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em parâmetro de valoração de todos os atos normativos”38. Transcendido o incipiente teor liberal, imprescinde-se do aspecto substancial desse sobreprincípio, no cotejo razoável das distintas realidades particularizáveis envolvidas nas relações em apreço.

Definitivamente, a promoção da igualdade entre os gêneros deve respeitar as inerentes condições peculiares que os separam. Por exemplo, natural que, pelo critério do sexo, a licença-maternidade seja deveras mais abrangente que a dispensa-paternidade. Ou seja, sua finalidade não é homonegeização forçada, pena de violação da sua força sinérgica – a liberdade.

Entretanto, a igualdade (re)encontra-se com a liberdade neste alvorecer do Século XXI. Constituem as faces de um arquétipo inicialmente cindido. Nalguns momentos, a promoção de uma representava vedação da outra, acarretando uma inércia absenteísta do Estado. Atualmente, a liberdade sem condições básicas de vida digna esvazia-se em sua utopia (flatus vocis). Isto é, à mulher deve ser garantida não apenas ausência de constrangimento externo, mas inclusive a possibilidade real de agir, fazer escolhas e viver com dignidade de toda ordem (física, psíquica, moral). Essa providência estatal, na qual, de antíteses, a liberdade complementa-se à igualdade, reflete a compleição material da diferenciação conatural dos gêneros. Leia-se, tutelando-se jurisdicionalmente a liberdade da hipossuficiente em situação de risco (por questões histórico-culturais), finaliza-se a isonomia substancial: fundamento dos remédios processual-constitucionais protetivos da incolumidade da mulher que for vítima de violência doméstica.

2.1. Igualdade-Postulado: Estrutura Pré-Ponderada que Fundamentou a Lei 11.340/06

Além das considerações finalísticas do vetor igualdade, ela pode se apresentar com diferentes funções. Sua complexidade normativa, em termos concretos, é multifária. Por se tratar de uma “supernorma”, que influi na aplicação de todas as outras, delas também recebendo influência e lhe preenchendo alguns requisitos estruturantes39.

38 SARMENTO, Daniel. A igualdade étnico-racial no direito constitucional brasileiro: discriminação

“de facto”, teoria do impacto desproporcional e ação afirmativa. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras complementares de constitucional. Salvador: JusPodivm, 2007, p.193.

39 Teoria da igualdade tributária. Op. cit., p.136.

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HUMBERTO ÁVILA visualiza a dissociação “heurística” na glosa da igualdade, no sentido de que “um ou vários dispositivos, ou mesmo a implicação lógica deles decorrente, pode experimentar uma dimensão imediatamente comportamental (regra), finalística (princípio) e/ou metódica (postulado)”40. Segundo o tributarista, ela “pode funcionar como regra, prevendo a proibição de tratamento discriminatório; como princípio, instituindo um estado igualitário como fim a ser promovido; e como postulado, estruturando a aplicação do Direito em função de elementos (critérios de diferenciação e finalidade da distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em razão do fim)”41. Nessa versátil plurivalência, desontoliza-se para se imiscuir axio-deontologicamente aos demais direitos fundamentais relativizáveis reciprocamente.

De fato, tanto quanto a igualdade, a liberdade já não constitui prerrogativa absoluta. Limita-se pelas variações heteronormativas ponderáveis nos casos concretos. Nas relações domésticas, ambas se complementam implicando o reconhecimento de uma para vedar o excesso da outra. A igualdade empregada como postulado normativo torna sensível tal dinâmica.

Imagine-se o exemplo de uma mulher subjugada pelo(a) convivente em termos físicos e psíquicos, sendo mantida e humilhada em cárcere privado por questões de ciúmes. Notória a violência contra a sua liberdade, a ponto de ninguém duvidar da implicação civil (ou até penal) das normas repressivas dessa situação. Contra isso, o direito aparelha-se há muito tempo.

Todavia, casos limítrofes escorados no fator risco (e não dano pretérito) mereceriam respaldo instrumental mais efetivo. Nem sempre o ilícito assume contundência irreprochável que reclame pronta atuação subsidiária do Direito Penal; há hipóteses mais tênues de violação da liberdade no seio doméstico que, mesmo assim, demandariam sugestão apaziguadora da jurisdição. Nessas oportunidades é que a igualdade fora invocada para, como metanorma, fundamentar a positivação da Lei 11.340/06.

O raciocínio da igualdade remete à observação de situação triangular: dois sujeitos ou objetos congêneres, uma determinada relação entre seus interesses, e um critério razoavelmente destinado a alguma finalidade para 40 Teoria dos princípios. Op. cit., p.60. 41 Idem, p.93.

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sopesar a diferenciação/equiparação concreta. Além dessa conformação orgânica, confirma ÁVILA, a igualdade também funciona como norma que estrutura a aplicação de outras tantas, situando-se analiticamente (não axiologicamente) acima delas, para dizer que é válida somente aquela diferenciação, se baseada num vínculo fundado e conjugado com a finalidade legitimadora daquela utilização momentânea. Trata-se de uma metanorma orientadora do intérprete/legislador ao manejo de diversas prerrogativas: critério de aplicação de outras normas.

Ou seja, o postulado da igualdade nunca figura isolado. Sua violação reconduz à contrariedade de alguma outra norma jurídica42. Os sujeitos relacionados devem ser considerados iguais em liberdade, propriedade, dignidade, etc – as normas tópicas. A violação da igualdade implica, em ricochete, o ferimento ao princípio fundamental sobrejacente analiticamente.

A Lei 11.340/06 “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do art. 226, § 8º, da CRFB”. A literalidade deste prefácio reproduz os fundamentos da igualdade-postulado: as normas tópicas tuteladas são dignidade, liberdade e patrimônio – que asseguram a fruição de diversos bens jurídicos à mulher –, afetados pela violência a ser inibida; mediatamente, ao se considerar a fragilidade natural e as questões histórico-culturais de opressão, a igualdade entre os gêneros também seria afetada pela situação de risco a ser evitado.

Atendendo às diretrizes do PRONASCI, a Lei 11.340/06 previu, dos seus 46 artigos, apenas três de natureza criminal. Logo, transparece evidente seu caráter profilático. Não somente pela semântica de “criar mecanismos para coibir a violência” como para efetiva promoção substancializadora da igualdade, em última análise, o plexo normativo constitui instrumento teleológico garantidor do conteúdo existencial digno à hipossuficiente oprimida.

3 – TUTELA MANDAMENTAL: FORÇA INSTITUCIONAL VERTICALIZADA PELA CONSTITUIÇÃO

A segunda metade do Século XX reservou significativas modificações tanto no aspecto dos direitos materiais como na ciência processual. Novos

42 Teoria dos princípios. Op. cit., p.94.

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paradigmas sociais e a problemática do pós-guerra, roborados pelos avanços da tecnologia e preocupações de um futuro que pareceu incerto, sustentaram o arcabouço da supraindividualização dos novos interesses. O fator liberdade e autonomia privada – maiores ênfases do Estado Liberal – desontologizaram-se, vez que o homem, em sua individualidade outrora prevalente sobre todas as demais concepções, não seria bastante para elidir a própria extinção da vida humana em seu meio comunitário.

Uma nova ordem jurídica conjeturada a proteger a sociedade (agora de massa), contra suas próprias mazelas oriundas do crescimento desenfreado, exsurge com valores dignificantes do homem e objetivos de solidarização recíproca, temperando as vetustas peias de uma liberdade absoluta. Inclusive a noção de direitos absolutos quedou em descrédito, conforme indica ALVARO DE OLIVEIRA: “Se o vislumbrarmos como posição de vantagem em face de todos, erga omnes, não se pode deixar de reconhecer que o dever geral de alterum non laedere insere-se no ordenamento jurídico para proteção de todos os direitos, sejam absolutos ou relativos. De mais a mais, direitos sensíveis, a exemplo do seguro de saúde, apresentam-se relativos, inseridos em relação puramente obrigacional, e mesmo assim exigem algo mais do que o simples condenar. Tudo isto conduz a ver na natureza do dano a prevenir que se vai determinar se a providência deverá ter natureza conservativa ou antecipatória, pouco importando a natureza do direito alegado”43.

Acompanhando a expansão dos bens jurídicos substancializados, o processo (re)afirmou sua verdadeira condição instrumental de realizador dinâmico da justiça. Até pela consolidação da autonomia científica do academicismo processual, não mais interessava a filigranação conceitual de técnicas desprovidas de sentidos efetivamente sociais, pena de a cegueira dogmática soterrar os avanços da subjacência sociocultural. Com BOBBIO: “Inútil dizer que nos encontramos aqui numa estrada desconhecida; e, além do mais, numa estrada pela qual trafegam, na maioria dos casos, dois tipos de caminhantes, os que enxergam com clareza, mas têm os pés presos, e os que poderiam ter os pés presos, mas têm os olhos vendados”44. Elaborada (mesmo que ainda presentes seculares discussões), a tríade ação, jurisdição

43 OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro. Perfil dogmático da tutela de urgência. Revista da Ajuris, n.70,

p.229. 44 Apud SILVEIRA, Patrícia Azevedo da. Processo civil contemporâneo: elementos para um novo

paradigma processual. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de (Org.). Elementos para uma nova teoria geral do processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p.16.

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e processo, busca-se o instrumentalismo substancial no sentido de proporcionar às pessoas o resultado possível e adaptado à realidade como medida de efetividade45: o processo deve oferecer, aproximadamente, a quem tenha o direito, tudo e somente aquilo de antemão previsto pelo direito material.

Se o direito substancial modificou-se como ponto de partida e requisito legitimador, o processo também reorganizou-se em decorrência desse giro aproximativo efetivador. ZANETI JR. observa que “o processo devolve (sempre) algo diverso do direito material afirmado pelo autor na inicial, algo que por sua vez é diverso mesmo da norma expressa no direito material positivado. Diverso está aí como elemento de substituição, mesmo que idêntica à previsão legal: a norma do caso concreto passou pela certificação do Poder Judiciário. Pode-se dizer, neste sentido, que entre processo e direito material ocorre uma relação circular, o processo serve ao direito material, mas para que lhe sirva é necessário que seja servido por ele”46. Com proficiência, escorou-se em CARNELUTTI – “tra diritto esiste un rapporto logico circolare: il processo serve al diritto, ma affinchè serva al diritto, deve essere servito dal diritto”47 –, ressaltando que a visão de efetividade resgata, como valor ideológico e paradigma legitimador, o direito material. A convivência destas ciências passa a se coordenar à finalidade comum, superando-se o tecnicismo inóspito da fase processualista que determinou um “esquecimento” dos ideais “diferenciados” do direito material vetorizados pela normatividade constitucional.

Contemporaneamente, parece tautologia referir que toda celeuma processual, volátil por dinâmica e arriscada pela incerteza imanente (interna bem como exogenamente), deve finalizar um resultado, senão idêntico/similar, ao menos contingente ao direito material. À míngua do desencontro qualitativo de forças, há nexo teleológico entre ambos os paradigmas, relação que desencadeou a racionalização promovedora do processo, congratulando novas formas de tutela jurisdicional (teoria quinária), desforços pela acessibilidade à justiça (ondas cappellettianas),

45 MAFFINI, Rafael Da Cás. Direito e processo. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de (Org.). Eficácia

e coisa julgada. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.13. 46 ZANETI JR., Hermes. A teoria circular dos planos (direito material e direito processual). In: DIDIER

JR., Fredie (Org.). Leituras complementares de processo civil. Salvador: JusPodivm, 2008, p.403. 47 CARNELUTTI, Francesco. Profiro dei rapporti tra diritto e processo. Rivista di diritto processuale, n.4,

p. 545.

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com reforço axiológico de toda normatividade envolvida. Em suma, os valores dignidade da pessoa humana como síntese e a justiça como meta desencadearam inédita vida às demandas. ZIMMER JR. arremata: “Recuperar a noção de finalidade para o processo significa entendê-lo não como um fim em si mesmo, mas como um meio de obtenção do direito material pleiteado segundo um critério de justiça, ao mesmo tempo em que se afirma a paz entre os privados. O fundamental é alcançarmos a finalidade do processo, que não é outra senão sua efetividade. Sem dúvida que o tecnicismo ao qual ficou limitado o processo é fruto da visão da burguesia que tomou o poder no Século XVIII e afirmou seus ideais através das constituições e dos códigos. As regras devem assegurar a ordem, mas sem interferir na realidade, dirigindo e limitando comportamentos”48.

Ademais da técnica jurídica, a problemática assume relevos sociopolítico-culturais. O ambiente científico do Século XVIII, pulverizado pelas noções comtianas de métodos acríticos descritivos, não abria ensanchas aos influxos complexos da atualidade. Atualmente, inviável reputar o direito material por meramente estático como outrora, à medida que diversas e vultosas relações se coordenam extrajudicialmente49, arrepiando a vinculação institucional-publicizada. Em contrapartida e, justamente, para acompanhar tal motricidade sem precedentes de um mundo que rotaciona cada vez mais rápido50, inviável o singelo oferecimento de “inerte” inafastabilidade (art. 5º, XXXV, da CRFB). A tutela jurídica morreria por consumação egoística, caso não tendesse a ser efetiva, tempestiva e adequada. De ultrajado direito público, configurou-se em garantia com foros objetivos às necessidades sociais.

Novos direitos impõem referida consideração. Outrossim, vetustos interesses exercitam inéditos circuitos epistemológicos, consoante retratado pela igualdade, agora substancial. Um sistema de normas (regras, princípios, postulados) relativizáveis, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados não se compadece ao sacrifício estático da “observação” absenteísta da equiparação formal. Diante da abissal desigualdade social

48 ZIMMER JR., Aloísio. A recuperação da noção de thelos para o processo. In: OLIVEIRA, Carlos

Alberto Álvaro de (Org.). Elementos para uma nova teoria geral do processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p.36.

49 V.g., a mediação, a arbitragem ou mesmo a cifra negra de direitos não persequíveis ad tempore, transjudicializam uma série de demandas substanciais.

50 Ver THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais: tempo, tecnologia, dromologia, garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

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brasileira, a vulnerabilidade de alguns setores reclama específica proteção estatal. A “conjugação da cláusula de isonomia com a diretriz constitucional, apontada como um dos fundamentos da República, de redução das desigualdades sociais (art. 3º, III, da CRFB), não apenas permite, mas antes impõe, na ordem jurídica brasileira, a proteção das partes mais débeis nas relações”51.

A clássica teoria dos poderes implícitos, de há muito, consagra os lindes desse retorno axiológico dos direitos e do processo enquanto dinâmica institucionalizada. As finalidades deontologicamente vislumbradas devem ser garantidas pelos respectivos meios adequados ao resultado previsto. Minimamente, o entorno processual deve revestir-se da técnica em busca da efetividade. Isso tudo fundamenta a tutela mandamental por assecuratória do direito à igualdade material e, à perspectiva da incolumidade da mulher, protege sua própria liberdade.

Com efeito, o diálogo das fontes e a emergência das relações – em especial, as de violência, que expõem a incolumidade absoluta dos indivíduos – imprescindem de mecanismos sincréticos, senão aplacadores do risco, no mínimo, de alguma forma profiláticos à continuidade do dano atual. Nesse giro, o provimento jurisdicional que “ordena” uma abstenção ou um fazer transforma-se no remédio esperado e de cunho generalizante às situações limítrofes à própria intervenção penal. As filigranações condenatórias sustentadas pela escola tecnicista, hoje, para a efetiva tutela da situação de risco, nada mais representam que simbólicos acenos estatais desprovidos da factualidade interdital. A problemática sociocultural da violência doméstica exige específica proteção estatal.

Não seria exagero relembrar que a mandamentalidade reconstrutiva da parêmia romana de “prevalência da ação sobre o direito” chega a subjugar a tutela condenatória à coerção da vontade alheia. Veja-se o art. 475-J do CPC: a multa ali prevista dispõe, para determinada corrente52 doutrinária, de natureza coercitiva, transmutando a questão do pagamento (ontologicamente, uma obrigação de dar, na qual o patrimônio vetorizava

51 SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado

e no Brasil. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Leituras complementares de processo civil. Salvador: JusPodivm, 2008, p.131.

52 Entre outros, LUIZ RODRIGUES WAMBIER e RODRIGO BARIONI. Contra, sufragando a natureza penitencial da multa do art. 475-J do CPC, CARLOS ALBERTO ALVARO DE OLIVEIRA. BASTOS, Antônio Adonias Aguiar. O novo regime de cumprimento da sentença civil (exposição das questões controvertidas). Revista da Ajuris, n.107, p.65.

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atenções) a uma obrigação/dever de prestar um fato humano (do objeto, agora parte-se da conduta dos envolvidos). Situação outrance defendida, mediatamente, por GOLDSCHMIDT53, que profligou ser a condenação uma espécie da eficácia mandamental: condenar seria uma ordem de execução aos órgãos institucionais.

Infraconstitucionalmente54, a visão pós-moderna sustenta que o consagrado art. 75 do CC/16 amadureceu a força da tutela mandamental, em termos sistemáticos do ordenamento. Segundo WATANABE55, a “ação” que assegura a todos o direito é de cunho processual, explicitando os princípios da efetividade e da adequação, subservientes ao art. 5º, XXXV, da CRFB. Clarividente não se tratar de novidade positiva uma espécie protetiva mandamental. De há muito, são inúmeros e crescentes os exemplos de seu manejo: primeiramente, como mandado de segurança e ações cautelares; num segundo momento, com situações da parte especial do CPC, haja vista o interdito proibitório (art. 932) e a nunciação da obra nova (art. 934); finalmente, as previsões esparsas do art. 84 do CDC e art. 11 da LACP culminaram na generalização cooptativa da mandamentalidade no bojo do CPC – art. 461.

Sem adentrar na polêmica da ação (correntes monista, dualista e instrumentalista), impende registrar basilar definição do que se entende por tutela mandamental. Em termos dos efeitos oriundos do provimento, as referidas escolas convergem ao indicar a determinação estatal sobre a vontade alheia, de molde ao sujeito fazer, ou se abster de fazer alguma coisa. Todavia, as diferenças atinem ao conteúdo do mandado jurisdicional. OVÍDIO56, ratificando lições de PONTES DE MIRANDA, sobreleva o direito material em movimento com força exclusiva para substancializar a “ação” (processual) e/ou sentença. Se o juiz ordena, legitima institucionalmente a

53 SILVA, Clóvis do Couto e. A teoria das ações em Pontes de Miranda. Revista da Ajuris, n.43, p.69. 54 Em termos de legislação vigente, e ainda com mais veemência, tem-se o art. 83 do CDC: “Para a

defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela”. Óbvio que as ações permitidas não se adstringem ao Código do Consumidor. Até porque o sentido da “ação” é importada de normatividade estranha. Nesse diálogo de fontes, em termos ampliativos de direitos, consentânea a glosa ampliativa.

55 WATANABE, Kazuo et al. Código brasileiro do consumidor – comentado pelos autores do anteprojeto. São Paulo: Saraiva, 2001, p.767.

56 SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil – execução obrigacional, execução real, ações mandamentais. São Paulo: Forense, 2002, v.2, p.336.

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ação de direito material mandamental. De sua parte, ALVARO DE OLIVEIRA57 critica esta orientação, por reeditar um imanentismo savignyano pós-moderno. Não apenas a eficácia da sentença é peremptória à classificação, tampouco o direito material subjaz por completo a opção pelo circuito mandamental. Certo que o direito material presta-se como ponto de partida, influindo desde a demanda até a decisão final, servindo de fundamento e limite da cognição. Todavia, se o instrumento necessita de seu objeto, tendo a problematicidade como polo metodológico, sua discursividade prática reconstrói resultado peculiar, de outro nível qualitativo, hachurado pelo repertório da força estatal. Logo, não apenas o conteúdo dinâmico da relação material influenciaria a carga sentencial. A tutela jurisdicional, por ser proteção institucionalizada ao direito, ressente-se tanto da eficácia quanto dos efeitos do provimento, numa conformidade abstrata relativizável, fruto da ponderação deontológica de uma série de normas do sistema. Por exemplo, o art. 4º, parágrafo único, do CPC faculta a opção declaratória, mesmo após a violação do direito, apesar da parca significação fática dali advinda. A partir do dano, em tese, conclui-se pela possibilidade do ajuizamento de pretensão condenatória, declaratória ou, conforme o caso, mandamental. As peculiaridades do caso concreto e a perspicácia do demandante é que, casuisticamente, definirão a força do provimento jurisdicional advindo da situação material. Ou seja, uma série de fatores normativos elencados por ALVARO DE OLIVEIRA sufraga o selo autoritativo característico da ordem judicial: “O que releva são os elementos vinculados à própria tutela jurisdicional, tais como os princípios dispositivos e da demanda, o princípio da adequação (entre o direito material afirmado e o instrumento que serve à sua realização) e os princípios da segurança e da efetividade”58. Para ele, “a tutela mandamental é adequada para os deveres

57 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O problema da eficácia da sentença. In: MACHADO, Fábio

Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Orgs.). Polêmica sobre a ação – a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.48-50.

58 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O problema da eficácia da sentença. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Orgs.). Polêmica sobre a ação – a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.106. Mesmo sem adentrar na “polêmica” e logrando a máxima vênia ao recém falecido maestro e jusfilósofo OVÍDIO, o texto indica, pelo diálogo de cogências normativas encetado, simpatia pelo instrumentalismo profligado à tutela eminentemente processual dos direitos via “ação” processual, uma “violência” institucionalizada negociada à impossibilidade da tutela jurídica por moto próprio. Reforço essa conclusão à perspectiva das recentes reformas do CPC, que anteviram as técnicas processuais funcionalizadas ao instrumento “título executivo” em detrimento da vetusta separação das modalidades executórias em razão da espécie obrigacional subjacente.

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de abstenção decorrentes dos direitos da personalidade e para as obrigações de fazer e não fazer, quando se atua sobre a vontade, e não sobre o patrimônio do demandado. Em princípio, tal espécie de tutela é a mais apta para o exercício das tutelas de caráter preventivo, com vistas a impedir o ilícito, a lesão ou o agravamento da lesão”59.

No caso de proteção da vítima contra situação de violência doméstica, notória a premência da movimentação estatal. Em última análise, sequer o aparato punitivo clássico do Direito Penal, eminentemente sancionatório – recognitivo/retributivo de um fato do passado, mas nem tão profilático ao futuro –, seria efetivo nestas relações. Da mesma sorte, os tradicionais conceitos sentenciais de outrora (declaração, constituição ou condenação), além de não satisfazerem a pretensão primária evidente, acarretam sobrevitimização secundária60 da ofendida. Sufragando a nova leitura processual pela adequação dos expedientes, BARBOSA MOREIRA sintetiza: “Se não é viável, ou não é satisfatória, a modalidade tradicional de tutela consistente na aplicação de sanções, quer sob a forma primária da restituição ao estado anterior, quer sob as formas secundárias da reparação ou do ressarcimento, o de que precisam os interessados é de remédios judiciais a que possam recorrer antes de consumada a lesão, com o fito de impedi-la, ou quando menos de atalhá-la in continenti, caso já se esteja iniciando. Em vez da tutela sancionatória, a que alguns preferem chamar de repressiva, e que pressupõe violação ocorrida, uma tutela preventiva, legitimada ante a ameaça da violação ocorrida, uma tutela preventiva, legitimada ante a ameaça de violação, ou mais precisamente à vista de sinais inequívocos da iminência desta”61. Apenas a tutela mandamental e, quiçá, a executiva socorrem a hipossuficiente na situação de risco ocasionada pela violência doméstica.

Todavia – e nisso reside o cerne desta reflexão, por diretamente refletirem as concepções da igualdade acima descritas –, encerram

59 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Direito material, processo e tutela jurisdicional. In:

MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Orgs.). Polêmica sobre a ação – a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.106.

60 Vitimização secundária é ocasionada pela violência dos meios formais de controle social. O próprio aparato repressivo estatal, excedendo-se na utilização de suas fórmulas, com o strepitus judici, não raro agrava a problemática de antemão gerada pelo fato-crime. Ver BITENCOURT, Luciane Potter. Vitimização secundária e depoimento sem dano. Revista da Ajuris, n.110, p.269.

61 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela sancionátória e tutela preventiva. Revista Brasileira de Processo Civil, n.18, p.127, 1979.

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importância duas questões: a Lei 11.340/06 fora peremptória à possibilidade do manejo da tutela mandamental em socorro da ofendida? Antes da Lei Maria da Penha, a jurisdição não dispunha de poderes/formas para elidir o ilícito/situação de risco?

Evidente que mesmo antes da Lei 11.340/06, o sistema normativo já possibilitava a tutela adequada da ofendida! Por toda imbricação histórica brevemente aforada, enfatizou-se a constitucionalização do processo, que pode ser entendido como direito constitucional aplicado, direcionado para tal ou qual finalidade cultural sociopoliticamente eleita. O processo não se esgota na mera realização do direito material, mas diligencia na busca incessante dos valores justiça e pacificação social. Logo, não apenas com força nos dispositivos extravagantes supramencionados (art. 461 do CPC, art. 84 do CDC, art. 11 da LCP, art. 213 do ECA) admitir-se-ia o mandamento para obstar à situação de violência doméstica; não somente com a Lei 11.343/06 – que mais instituiu programas e técnicas – poder-se-ia cogitar, finalmente, da consagração positiva da tutela mandamental. Tal situação não precisaria vir expressa em regras legais (!), para o desespero do conceitualismo franco-tupiniquim. A própria Constituição, sob a égide da eficácia objetiva dos direitos fundamentais, verticalmente, empresta (e outorga) a necessária legitimação à proteção efetiva (adequada, tempestiva, específica) à mulher ofendida. Isso realiza a igualdade material no plano das relações humanas, tutelando a incolumidade/liberdade da hipossuficiente e lhe possibilitando uma vida de conteúdo digno. A questão da tutela jurisdicional – pela sua natureza pública –, sem descurar da situação material subjacente, retira veemência institucional dos anseios constitucionais para consecução de seus objetivos.

A efetividade (art. 5º, XXXV, da CRFB) não se restringe à acessibilidade formal para adentrar no Judiciário com a demanda. Tanto quanto possível, a jurisdição há de corresponder ao auspício específico, adequado e tempestivo, conferindo ao vencedor no plano jurídico e social tudo a que faça jus62. Ademais, essa instrumentalidade realizadora dos direitos atine tanto à proteção contra a lesão já consumada como à temerária ameaça de seu advento.

Data venia, por isso é vazia (de conteúdo constitucional) a discussão se caberia, em benefício do homem, a tutela mandamental regrada pelas

62 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo.

Op. cit., p. 374.

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técnicas da Lei 11.340/06. Ora, se a proteção institucionalizada robora-se pela normatividade suprema, natural que tutele toda e qualquer pessoa em situação de risco! A Lei Maria da Penha, tão-somente, especificou algumas técnicas, não excluindo o caráter sinalagmático da cogência fundamental da tutela jurisdicional efetiva. Logo, é natural o deferimento da ordem de afastamento contra a mulher em relação ao homem, não raro verificada na rotina do fórum.

Arremata FERRAJOLI: “Tem acontecido, na formação dos modernos Estados constitucionais, que o direito positivo tem incorporado grande parte dos conteúdos dos valores de justiça elaborados pelo jusnaturalismo racionalista e iluminista: o princípio da igualdade, o do valor da pessoa humana, dos direitos civis e políticos e, ademais, quase todas as garantias penais e processuais de liberdade e de certeza enumeradas no nosso sistema garantista. Todos esses princípios, afirmados pelas doutrinas jusnaturalistas dos Séculos XVII e XVIII na forma de direito ou direitos naturais, foram consagrados nas modernas constituições na forma de princípios normativos fundamentais que contêm limitações ou imperativos negativos – ou também positivos, como os expressados pelos chamados ‘direitos sociais’ ou ‘materiais’, acrescentados nas constituições deste século –, cujos destinatários são os legisladores e os demais poderes públicos. Em particular, os chamados direitos ‘invioláveis’ da pessoa, direitos ‘personalíssimos’ ou ‘indisponíveis’ não são mais do que a forma jurídica positiva que os direitos naturais, teorizados como pré ou meta ou suprajurídicos nas origens do Estado moderno, têm assumido como ‘direitos subjetivos’ nas constituições modernas. Neste sentido bem se poderia dizer que as doutrinas contratualistas e utilitaristas dos direitos naturais representam a base filosófica do direito penal moderno e mais geralmente do moderno direito público. O fundamento político ou externo do moderno Estado de direito tem, com efeito, a função de garantia dos direitos fundamentais mediante a sanção de anulabilidade dos atos inválidos; das leis, por violação das normas constitucionais; dos atos administrativos e decisões judiciais, por violação das leis constitucionais válidas”63. A discussão que prevalece em nosso atual momento histórico-cultural remanesce entre normatividade e efetividade dos direitos previstos na Constituição. Ou seja, as prerrogativas estão previstas, disciplinadas e consagradas positivamente, mas ainda não aplicadas materialmente como 63 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2002, p.287-288.

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se idealizou (efetivação concreta). No mais, a Lei 11.343/06 consagrou técnicas de tutela que, daí sim, reclamam previsão normativa mais estrita; agora, a tutela mandamental já vinha disposta na Constituição.

3.1. Técnicas da Tutela Jurisdicional: A Inovação da Lei 11.340/06

A despeito do conservadorismo permeado nalgumas glosas pragmáticas – que insiste na consideração do processo como mecanismo técnico e neutro destinado a regrar as condutas dinâmicas da contenda, indiferente ao contexto político atual –, há intensa reciprocidade de influências entre Constituição e processo. Além da hierarquia normativa (infirmadora do próprio paleopositismo), a separação harmônica dos poderes, inerente ao Estado de Direito, faz Legislativo e Judiciário dependerem um do outro, todos para satisfação dos fins sociais culturalmente propostos.

A constitucionalização do processo é reflexo desse prolongamento/imanência normativa. DINAMARCO sustenta: “Constituem ainda características publicistas de grande significado no direito processual moderno as exigências oriundas do plano político, mediante a garantia constitucionalmente outorgada a princípios inerentes à ordem processual. Interest rei publicae a inafastabilidade do controle jurisdicional, sem a qual ficariam abaladas as bases do próprio modelo político consubstanciado no Estado de Direito; a garantia constitucional da ampla defesa (com o seu desdobramento na regra nulla poena sine judicio) tem muito a ver com a liberdade pessoal, valor inalienável e indisponível, cuja preservação contra moléstias ilegítimas constitui um dos esteios do pensamento democrático; o devido processo legal e a garantia do juiz natural, mas a exigência do contraditório e da economia em qualquer processo, são garantias entrelaçadas entre si de tal modo que a violação de uma delas atinge alguma das outras (ainda que indiretamente) e isso acaba por atingir ou a liberdade ou algum outro direito substancial e, em qualquer hipótese, repercute como limitação ao pleno acesso de todos à ‘ordem jurídica justa’. A instrumentalidade do processo à ordem político-constitucional é tão íntima que o desvio das diretrizes processuais preestabelecidas e asseguradas constitucionalmente constitui perigoso caminho à violação de regras substanciais da própria Constituição. Daí o caráter público dessas exigências e a fiscalização ex officio da sua observância. E daí, também, a tutela do processo e a repressão de atos como o atentado e o contempt of

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court”64. A tutela mandamental é definida como o resultado da atividade desenvolvida pelos órgão do Estado que exerce a jurisdição ou são autorizados a fazê-lo. Referido caráter institucionalizado denota que a Lei 11.340/06 não inova no cenário protetivo do patrimônio jurídico dos litigantes (em termos de resultado), cuja força se extrai diretamente da CRFB.

De outro lado, a Lei consagrou novas técnicas que melhor instrumentalizam a consecução dos escopos protetivos da ofendida. Consoante DINAMARCO65, técnica jurisdicional é a “predisposição ordenada de meios destinados a obter certos resultados” – a tutela.

A técnica66 está a serviço da eficiência do instrumento assim como a tutela está à disposição dos valores e princípios em ponderação. Pelo fato de subentender exercício de poder e, portanto, condicionado aos valores subjacentes da força estatal, a tutela sempre vislumbra finalidades definidas (mesmo plúrimas ou conflitantes). Em contrapartida, a técnica não tem a ver com o valor das finalidades a que serve, pois, como meio/instrumento, concerne exclusivamente ao procedimento, caminho para consecução teleológica, infere ÁLVARO DE OLIVEIRA67. Novamente, insta salientar o prólogo da Lei 11.340/06, que: “Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da CRFB”.

Além das premissas programáticas tributadas, positivou-se uma gama de disposições inéditas desburocratizantes e ativadoras do imperium estatal, haja vista: a) a competência dos juizados de violência doméstica e a transdisciplinaridade de sua matéria-prima (arts. 13 e 14). A cumulação das jurisdições cíveis e criminais reafirma a sorte unitária do poder indivisível da jurisdição constitucional; b) a capacidade postulatória da própria ofendida (art. 19) possibilita maior agilidade e acessibilidade ao desencadeamento da análise judicial; c) a possibilidade do deferimento de medidas assecuratórias/satisfativas de ofício (arts. 19, § 1º, e art. 20) salienta

64 A instrumentalidade do processo. Op. cit., p.56. 65 Op. cit., p.225. 66 MARINONI utiliza-se duma classificação eminentemente material das tutelas, de origem italiana,

denominando-as inibitória, ressarcitória e reintegratória. Ao mais, os diversos provimentos seriam meras técnicas daquelas tutelas. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.466.

67 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.92.

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o ativismo judicial; d) a gama de medidas protetivas de urgência (arts. 22 a 24) ou, nos termos do art. 461 do CPC, medidas necessárias à tutela específica denotam os meios indiretos e/ou sub-rogatórios à efetivação das ordens judiciais, com expressa remissão do art. 22, § 4º, da Lei 11.340/06. Para os fins apertados deste ensaio, são algumas das previsões técnico-procedimentais fundamentadas pela igualdade-postulado entre os gêneros. A pré-ponderação autêntica (legislativa), valendo-se da finalidade isonômica material, inovou essa miríade de disposições instrumentalizadoras da tutela jurisdicional adequada.

Os positivistas refratários a uma reflexão um pouco mais aprofundada das funções do direito no Século XX não conseguem aceitar a viragem interpretativa ocorrida na filosofia do direito (invasão da filosofia pela linguagem) e suas consequências doutrinário-jurisprudenciais. Precisam de regramento estrito à sua hermenêutica subsuntiva. Para tanto, de todo ineditismo a Lei 11.340/06. Noutro giro paradigmático, acompanhando-se o (neo)constitucionalismo permeado de estruturas axio-deontológicas dirigentes, parece-me que o novo corpo legislado somente inova na técnica. Afinal, direito constitucional é direito político, e nossa sociedade (estrangeira e a interna) reclamava há tempos do descaso técnico à situação de violência doméstica. Com LÊNIO STRECK: “O novo constitucionalismo, nascido da revolução copernicana do direito público, traz para dentro do direito temáticas que antes se colocavam à margem da discussão pública: a política, representada pelos conflitos sociais, os direitos fundamentais sociais historicamente sonegados e as possibilidades transformadoras da sociedade a serem feitas no e a partir do direito”68. A tutela mandamental veio prevista há razoável tempo; algumas novas técnicas, agora com a Lei 11.340/06.

Grande e bem-vinda inovação! Firma compromisso mínimo e impassível de retrocesso ablativo naquilo que se propõe, uma vez instrumentalizada a proteção dos direitos fundamentais da mulher. O sonho da efetividade, amiúde prejudicado na política, pode alcançar na técnica um paliativo.

68 STRECK, Lênio Luiz. Os dezoito anos da Constituição do Brasil e as possibilidades de realização

dos direitos fundamentais diante dos obstáculos do positivismo jurídico. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras complementares de constitucional. Salvador: JusPodivm, 2007, p.39.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ARTICULADAS

1. As ciências jurídicas são humanas por natureza. Legitimam-se das relações sociais e a estas desencadeiam um projeto deontológico em constante (re)construção. Inegável a precipitação da carga axiológica no ordenamento jurídico de cada sistema e, consequentemente, na configuração sistêmica do processo como organismo aberto e democrático, observada a natureza cultural deste ramo e do próprio Direito.

2. A teoria da ação constitui o princípio unificador do sistema processual civil. Sua evolução imbrica-se diretamente às diversas metodologias do processo, que seguiram aos sobressaltos no transcurso histórico. Do Estado liberal ao (neo)constitucional, sucederam-se as escolas sincretista, autonomista e instrumentalista. O ecletismo conquistado neste quadrante cultural, reflexo da desontolização acadêmica da ciência processual, simboliza uma estabilização provisória da teoria do processo.

3. Em seus primórdios dogmático-formais, a igualdade representava antítese da liberdade. Formalizava uma aparente conformação classista pós-revolucionária. Permeada das forças programático-dirigentes do neoconstitucionalismo contemporâneo, da leda negação de privilégios, assumiu contornos substanciais afirmativos, consentâneos ao próprio caráter objetivo dos direitos fundamentais.

Sua posição tópica na CRFB/88 (re)condiciona-a como supernorma, cujo manejo concreto se dissocia heuristicamente. Exemplo da sua meta-aplicatividade tem-se na fundamentação da Lei 11.340/06, “criadora de mecanismos para inibir a violência doméstica”.

4. A tutela mandamental para obstar (ou fazer algo) à situação de risco à incolumidade alheia não dependia de legislação específica. A despeito do conservadorismo permeado nalgumas glosas pragmáticas – que insiste na consideração do processo como mecanismo técnico e neutro destinado a regrar as condutas dinâmicas da contenda, indiferente ao contexto político atual – há intensa reciprocidade de influências entre Constituição e processo. Além da hierarquia normativa (infirmadora do próprio paleopositismo), a separação harmônica dos poderes, inerente ao Estado de Direito, faz Legislativo e Judiciário dependerem um do outro, todos para satisfação dos fins sociais culturalmente propostos.

A constitucionalização do processo é reflexo desse prolongamento/imanência normativa. Logo, a discussão que prevalece em

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nosso atual momento histórico-cultural remanesce entre normatividade e efetividade dos direitos previstos na Constituição. A tutela jurisdicional garantida no art. 5º., XXXV, da CRFB dispõe de cogência suficiente para sufragar a tutela mandamental.

5. A técnica está a serviço da eficiência do instrumento assim como a tutela está à disposição dos valores e princípios em ponderação. A Lei 11.340/06 estabelece diversos mecanismos para assecuração da tutela de antemão coarctada na Constituição e genericamente prevista no CPC. Firma compromisso mínimo e impassível de retrocesso ablativo naquilo que se propõe, uma vez instrumentalizada a proteção dos direitos fundamentais da mulher.

O sonho da efetividade, amiúde prejudicado na política, pode alcançar na técnica da Lei Maria da Penha um paliativo procedimental.

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